sábado, 5 de março de 2011

O ano em que houve dois carnavais (Roberta Jansen)

Morte do Barão do Rio Branco fez governo adiar festa, mas povo brincou duas vezes

É o sonho dos foliões mais animados; um verdadeiro pesadelo para quem é avesso aos festejos: comemorar o carnaval duas vezes por ano. Por incrível que pareça, isso já aconteceu uma vez no Brasil, em 1912, por conta da morte do Barão do Rio Branco — tido como responsável pela consolidação do território nacional e, por isso, aclamado herói. A fascinante e bem pouco conhecida passagem foi resgatada pelo historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos. No recém-lançado “O dia em que adiaram o Carnaval — política externa e construção do Brasil” (Ed. Unesp), ele a utiliza como ponto de partida para discorrer sobre a construção da nacionalidade brasileira.

Não que o povo tenha ficado feliz com a morte do Barão. Longe disso. Ele realmente era muito admirado pela população. Sua morte, em 10 de fevereiro de 1912, a uma semana do início das comemorações do carnaval daquele ano, foi bastante lamentada. Como mostra Santos, em seu livro, o jornal “A República” não economizou na emotividade: “Nenhum brasileiro atingiu mais alto o culto da veneração popular. O Barão do Rio Branco era verdadeiramente um patrimônio nacional. A nação que o amou em vida, há de idolatrar-lhe reverentemente a sua memória.” A “Gazeta de Notícias” também não fez por menos, registrando, ao noticiar a morte, que “o país inteiro soluça”.
— Pela documentação que juntei, houve, de fato, uma reação muito forte da população — conta o historiador.

Como registra Santos, de forma espontânea, independentemente do luto oficial, o comércio fechou as portas, bem como bancos e escritórios privados, além das repartições públicas. Os cinemas e os teatros não funcionaram naquele dia. E bailes e festas foram cancelados. Logo, o governo determinou que, em virtude do luto, as comemorações do carnaval não começassem no dia 17 de fevereiro, conforme previsto no calendário, mas fossem transferidas para 6 de abril, em sinal de respeito.

Acre é anexado: nova vitória de Rio Branco
● José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, era adorado pelo povo. Em 1902, quando retornou ao Brasil para assumir o Ministério das Relações Exteriores, ele foi aclamado nas ruas pela mesma população que, dez anos depois, chorava copiosamente a sua morte.
— Ele já era um personagem bem popular quando voltou do exterior — atesta Santos.
— Uma multidão o esperava no porto, onde desembarcou, e acompanhou sua carruagem pelas ruas. Quando, num determinado ponto, os cavalos não puderam prosseguir, estudantes se ofereceram para puxá-la. Enfim, uma volta triunfante, extraordinária. E não era para menos. O Barão, que na época ocupava o posto de embaixador na Alemanha, tinha servido de advogado brasileiro em duas arbitragens internacionais cruciais à delimitação de nossas fronteiras: a de Palmas, em 1895, em que conseguiu assegurar para o Brasil boa parte do território dos estados de Santa Catarina e Paraná em litígio com a Argentina; e a do Amapá, em 1900, em que obteve uma vitória sobre a França na disputa da fronteira com a Guiana Francesa.
Foi justamente o prestígio obtido nesses dois casos que fez com que o então presidente Rodrigues Alves escolhesse o Barão do Rio Branco — a quem sequer conhecia pessoalmente — para ocupar o posto máximo da diplomacia do país naquele ano de 1902, em que o governo se via às voltas com uma nova discussão sobre fronteiras, desta vez com a Bolívia, pelo então território do Acre. A despeito da oposição de nomes de grande peso da época, como os de Rui Barbosa e Pinheiro Machado, o Barão conseguiu aprovar o Tratado de Petrópolis, pelo qual o país anexava o Acre mediante pequenos territórios na fronteira com o Mato Grosso, uma indenização em dinheiro, e a ferrovia Madeira-Mamoré.
Santos. — Ou seja, o Barão, que já tinha— Houve uma grande discussão no Congresso e na imprensa, e forte oposição ao tratado. Mesmo assim, ele acabou sendo aprovado, no que, até hoje, é consideradauma grande vitória do Rio Branco — afirma retornado ao país com a popularidade em alta, obteve sucesso com a questão do Acre logo no seu primeiro ano, promovendo uma escalada de sua popularidade. Por tudo isso, sustenta Santos, a tristeza gerada pela morte do Barão é bastante plausível.
— Os jornais todos da época registram uma grande comoção popular, com pessoas chorando nas ruas, cinemas fechados, um impacto grande — diz o historiador. — Dado o contexto, a reação me parece coerente.

Foi diante dessa situação que o governo do Marechal Hermes da Fonseca decidiu, então, adiar o Carnaval. Não funcionou. Os brasileiros acabaram festejando duas vezes. Uma, em fevereiro mesmo, a despeito do luto. Outra, de 6 a 10 de abril, seguindo as determinações governamentais. A irreverência prevaleceu, como atesta a letra da marchinha feita para o segundo Carnaval: “Com a morte do Barão/Tivemos dois carnavá/Ai que bom, ai que gostoso/Se morresse o marechá”, numa referência nada sutil à possível morte do presidente.

Carnaval remonta ao período colonial
● E se a consolidação do território brasileiro, com a definição de suas fronteiras, foi crucial na construção de uma identidade nacional, como mostra Santos, o carnaval também o foi.
— O carnaval tem uma história que vem da Colônia, com o chamado intrudo, em que as pessoas jogavam água, farinha, xixi umas nas outras — conta Santos. — Com o fim do Império, ele começa a incorporar os batuques africanos; o Rei Congo, em que os negros representavam suas realezas.
Na virada do século XX, quando o Rio vive um período importante de modernização, começa também a importar aspectos do Carnaval europeu, do Rei Momo, do Pierrô e da Colombina. Então, esse momento da virada do século, é justamente o momento em que o Carnaval começa a ganhar uma aceitação social mais ampla.

E é também na virada do século, mais precisamente em 1896, que o futebol entra no país. Junto com a noção da territorialidade, dois importantes símbolos nacionais.
— Ou seja, dois dos mais fortes símbolos nacionais são bem recentes — afirma Santos.
— Símbolos da identidade que parecem eternos e muito antigos, na verdade, não o são. É o mesmo caso da extroversão e alegria do brasileiro que é bem recente.Mas, como frisa o pesquisador, não se tratam, necessariamente, de noções construídas pelo Estado.

— O Estado tem papel importante, mas ninguém controla a construção da identidade — diz o diplomata. — Há uma circularidade das ideias. As massas, as classes subalternas trabalham as ideias. O
produto final, ninguém controla. Não há exatamente uma pessoa conduzindo o processo.
Fonte: O Globo

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