quinta-feira, 31 de maio de 2018

O centro político, a democracia e as reformas (Luiz Werneck Vianna)

Como sistema de orientação, meus artigos vêm observando a crise que nos assola a partir da nossa experiência na matéria, que ensina a reparar inicialmente a fim de medir seu potencial disruptivo, as ruas e os quartéis como os lugares mais sensíveis para o registro de sua gravidade. Salvo momentos episódicos de pico, as ruas estão vazias e os quartéis, silenciosos, fazendo profissão de fé à ordem constitucional. De forma inédita em nossa História, é da família do campo do Poder Judiciário em associação também inédita com a imprensa – combinação sempre explosiva aqui e alhures – que, faz tempo, provêm as tentativas de desestabilizar a ordem reinante, levando o presidente da República às barras dos tribunais mesmo a poucos meses das eleições gerais, como já é o caso.
Duas das corporações mais influentes na conjuntura presente – a militar e a jurídica –, como seria natural, falam de perspectivas distintas, a do poder a primeira e a segunda, do princípio republicano da moralidade e dos seus valores diante da degradação pública que, nos últimos anos, sofreram nossas instituições políticas, hoje justamente repudiadas pela cidadania. O momento eleitoral pode constituir, se levado a sério, uma oportunidade de ouro para o saneamento, pelo voto, dos partidos e da própria atividade política.
Ambas são animadas por lógicas distintas, mas que podem e devem exercer papéis complementares, tanto para garantir que a competição eleitoral obedeça às vias democráticas quanto para interditar o acesso a candidaturas que, na forma da lei, estejam proscritas.
Se este país se tornou, a partir dos anos 1930, um caso clássico de modernização por cima, conduzindo pela mão do Estado a industrialização, valendo-se de todos os meios para a realização dos seus objetivos, borrando desde aí os limites que devem separar as esferas públicas das privadas, tal modelo se esgotou sob o governo Dilma, que pretendia radicalizá-lo, contra todos os sinais que apontavam para sua exaustão.
Nesse sentido, o processo eleitoral que já vivemos pode ser considerado como um momento quase constituinte, na medida em que deve impor pelo voto uma radical mudança nas relações entre o Estado e a sociedade civil. O movimento de junho de 2013 da juventude anunciou com tintas fortes a profundidade da crise dessa relação, enquanto a devassa nos negócios entre agentes públicos e empresas privadas procedida pela chamada Operação Lava Jato fez o resto, jogando ao chão o que ainda restava dela. Decerto que o momento de uma campanha eleitoral não seria o mais oportuno, pelas paixões que ela suscita, mas, por ora, só contamos com ele.
A seleção das candidaturas e suas alianças devem, portanto, considerar a excepcionalidade deste processo eleitoral. No caso, não se pode deixar de considerar, nesta hora de falta de rumos confiáveis para o nosso futuro, em meio às ruínas em que sobrevivemos, o manifesto Por um polo democrático e reformista, lançado a público por iniciativa de dois parlamentares, o deputado Marcus Pestana e o senador Cristovam Buarque, já subscrito por Fernando Henrique Cardoso, uma extraordinária personagem das que nos sobraram de tempos menos sombrios do que os que agora vivemos, que parece ter saído das páginas dos textos políticos de um Max Weber, pela coragem sóbria, sempre fiel às suas convicções de fundo, defendidas com responsabilidade, que nos afiança os caminhos preconizados nesse bem-vindo manifesto, a rigor, um programa de ação de um novo governo.
Nesse manifesto-programa se conclamam “todas as forças democráticas e reformistas em torno de um projeto nacional que, a um só tempo, dê conta de inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, a partir dos avanços alcançados nos últimos anos, e afaste um horizonte nebuloso de confrontação entre populismos radicais, autoritários e anacrônicos”. O texto continua para afirmar que para o sucesso dessa iniciativa se devem agregar, de forma plural, liberais, democratas, social-democratas, democratas cristãos, socialistas democráticos, numa frente que se empenhe, nesta hora decisiva para a construção do futuro, na realização de um programa de desenvolvimento com mudança social que abra as portas para o moderno no Brasil, pondo fim aos processos de modernização autoritária que levaram o País a um lugar sem saída.
O tempo é curto para que essa iniciativa possa encontrar seu ponto de maturação. É preciso invocar a sabedoria dos nossos maiores, que no passado, do Império à República, como no caso recente da transição do regime militar para o democrático, sempre pela via da negociação souberam encontrar soluções para os nossos impasses políticos e institucionais. Seus adversários são conhecidos e ambos desejam vias de ruptura: à direita, os que desejam uma saída neoliberal clássica – desejo mal escondido de poderosa rede de comunicação; à esquerda, os que visam a uma retomada das vias bolivarianas.
O papel do centro político como estratégico na nossa formação não pode ser ignorado, e para só falar do período republicano, a exemplo de Vargas, que em 1945 fundou o PSD com lideranças tradicionais a fim de respaldar sua obra social reformadora, reeditado em grande estilo por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves para abrir caminho à democratização. O manifesto, que ora circula em busca de adesões, segue as pegadas de momentos criativos e fecundos da política brasileira, que nos seus estonteantes ziguezagues nunca perdeu de vista seus compromissos com a obra da civilização singular que fazemos aqui.
Como palavras finais, deve-se mencionar que tal movimento, ao menos in pectore, admita que sua vitória trará consigo um momento de concórdia, reeditando a época do movimento da anistia, que envolva a sociedade, o Congresso e, principalmente, o sistema de Justiça, que pacifique de verdade esta praça de guerra que desgraçadamente nos tornamos.
Sociólogo, PUC-Rio
Fonte: O Estado de São Paulo (27/05/18)

O fator conservador (Denis Lerrer Rosenfield)

O Brasil entrou definitivamente na discussão eleitoral, que se apresenta sob a forma de uma pré-campanha que não deixa de ser uma campanha propriamente dita. Os candidatos tomam posição no tabuleiro ao sabor das conveniências, destacando-se questões de valores e de costumes, fundamentando até a luta contra a corrupção. Os partidos tradicionais procuram, porém, evadir-se dessas questões, engolfados que foram no redemoinho de prisões e condenações decorrentes de práticas criminosas.
Apesar da urgência da pauta de reformas econômicas, a sociedade veio a perceber a questão da moralidade pública e dos valores como prioritária. Se muitas vezes falta a amplos setores da população clareza sobre assuntos econômicos, sobram-lhes certezas sobre temas de valores e costumes. Mais concretamente, o eleitorado brasileiro é composto por uma parcela com opiniões consideradas conservadoras que, por ser significativa do ponto de vista numérico, pode muito bem decidir a eleição ou, num primeiro turno competitivo, ser decisiva para levar determinado candidato ao segundo.
Conforme pesquisas, posições conservadoras aparecem como majoritárias entre a população brasileira. Algumas estimam que 85% dos brasileiros se mostram favoráveis à redução da maioridade penal, 79% são contrários à legalização do aborto no País, 56% são contra o ensino de questões de gênero nas escolas e 51% rejeitam o Estatuto do Desarmamento. Outras constatam que 66% dos brasileiros são contrários à liberação do uso da maconha, droga atualmente ilícita. Quando recortamos as respostas segundo um critério confessional, eleitores religiosos, especialmente evangélicos, expressam índices ainda maiores de respostas em relação às questões mensuradas.
Embora o politicamente correto não cesse de produzir impacto em meios de comunicação que se empenham em transmitir essas ideias, o setor conservador destaca-se cada vez mais na sociedade brasileira.
O impacto dos que se autointitulam “progressistas” é principalmente veiculado por grupos de esquerda, que encontraram nessas ideias um refúgio decorrente do fracasso do projeto socialista, apesar de continuarem, muitos deles idolatrando o castrismo e o chavismo, com as ditaduras e os desastres econômicos que lhes são inerentes. Acontece que os manifestos de artistas e intelectuais exibem, cada vez mais, sua ineficácia e falta de coerência. São grupos minoritários que procuram impor sua posição por meios jurídicos e não democráticos. Não aceitam, por exemplo, plebiscitos ou referendos sobre temas relativos a questões morais e de costumes.
Os conservadores, por sua vez, têm conquistado espaços cada vez maiores na sociedade, tendo ganho adesão substancial. Temas como direito à legítima defesa, aborto, educação de gênero, redução da maioridade penal e pena de morte/prisão perpétua são hoje muito debatidos. Há toda uma demanda dos que se ressentem da insegurança pessoal e patrimonial, com a criminalidade assomando à casa de cada um. Difícil encontrar alguém que não fale de assaltos, roubos e assassinatos. Os valores morais foram diluídos. Condenam coerentemente a corrupção que tomou conta do Estado brasileiro.
O avanço conservador se faz mais sensivelmente sentir no segmento evangélico da sociedade, embora não lhe seja exclusivo. Ao contrário, por exemplo, do setor católico, eles são hierarquicamente estruturados, com os fiéis seguindo majoritariamente as orientações de pastores, bispos e primazes de cada uma das denominações religiosas. Têm na defesa dos costumes e da moral o eixo central de sua pregação, fazendo-se representados politicamente no Legislativo e no Executivo. Muitos sustentam também posições liberais na economia, não aceitando políticas estatizantes. São partidários da liberdade de escolha, do trabalho e do mérito pessoal.
Os evangélicos, segundo o censo IBGE 2010, somavam naquele então 22,5 milhões de pessoas. Em 2000 eram 15,4 milhões. Em dez anos seu crescimento se aproxima de 50%, sendo possível estimar que sejam hoje mais de 30 milhões. Isto é, seu peso numérico é expressivo, além de agirem coletivamente em função de suas convicções e seus valores.
Sua igreja amplamente majoritária é a Assembleia de Deus, com seus templos se disseminando por todos os rincões do País, seguindo em orações, cultos e leituras dominicais as diretrizes de seus líderes. A Igreja Universal, por sua vez, possui todo um império de comunicação, a Rede Record, com jornais, rádios e emissoras de televisão cobrindo todo o território nacional. Outros grupos evangélicos possuem outros veículos de comunicação e programas próprios. Sua influência é considerável. A formação da opinião pública evangélica, e para além dela, é feita por todo esse sistema de pregação, culto e mídia, veiculando ideias conservadoras e as opções políticas correspondentes.
A Igreja Católica, por sua vez, tem fortalecido sua ala conservadora, apesar de sua participação política ter sido feita nas últimas décadas mediante posições esquerdizantes, representadas em boa medida pela CNBB. Não convém esquecer que a Teologia da Libertação e seu apoio ao MST e ao PT foram pilares até agora de sua atuação. A pantomima do ato “religioso” de Lula, antes de sua prisão, contou com a sustentação desses setores mais à esquerda. De qualquer maneira, também setores da hierarquia católica se têm distanciado dessas posições, abraçando o campo defensor dos costumes tradicionais e da moralidade.
Nesse contexto, coloca-se como uma questão central dos políticos em geral e dos presidenciáveis em particular: que posição assumir diante de uma pauta conservadora que terá nesta eleição, muito provavelmente, um peso maior que o das últimas eleições.
O que têm os candidatos a dizer a esse respeito?
(*) Professor de filosofia na UFRGS.
Fonte: O Estado de São Paulo (28/05/18)

‘Brasil vive em estado de indignação permanente’ (Sérgio Abranches)

Segundo o cientista político, descontentamento generalizado leva à solidariedade popular com movimento de um grupo específico. Ele considera que pré-candidatos deram ‘show de contradições’ e diz que empresas são ‘viciadas em subsídios’
Rennan Setti | O Globo
Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, o Brasil vive em “estado permanente e latente de indignação”, e é isso que explica a sustentação da greve dos caminhoneiros. Segundo o autor de “A Era do Imprevisto”, a organização horizontal dos manifestantes, que ocorre via WhatsApp, é sintoma da falta de representatividade do sistema político e dificulta as negociações com o governo.
• O que explica essa greve?
De um lado, há uma motivação econômica. Saímos de um período de congelamento de preços para um de aumento diário, influenciado pelo câmbio e pela geopolítica. Isso elevou o custo do frete em um momento de crise. Além disso, o sistema de transportes brasileiro é de extrema exploração, com uma parcela grande de autônomos expostos a um leilão brutal e tendo que aceitar um frete quase de subsistência. Quando ele paga um pedágio alto, mesmo andando vazio, e vê o diesel disparar, existe uma indignação legítima. Do outro lado, há um sentimento difuso de inquietação e descontentamento.
• Mas esse movimento também não atende a interesses corporativos?
Das concessões do governo, o frete mínimo é a única que atende aos autônomos. O resto é resultado do lobby das empresas. A empresa brasileira é viciada em subsídio. Eu não pesquisei o suficiente para saber em qual desses núcleos o movimento nasceu, mas sei o suficiente para saber que, sozinhos, os autônomos não conseguiriam fazê-lo durar tanto tempo.
• Por que o governo encontra tanta dificuldade para desmobilizar a greve, mesmo com tantas concessões?
As lideranças verticais estão perdendo a capacidade de controlar movimentos que nascem de forma mais difusa e espontânea. Uma parcela grande deles não é representada por associações, criadas para representar profissionais formais. Agora, o “biscateiro” da carga, que estava desempregado e viu nas facilidade dadas pela Dilma a possibilidade de trabalhar, não é alcançado pelas lideranças. É muito mais fácil para ele se comunicar em rede, por meio do WhatsApp, com outros grevistas do que ligar a televisão e reconhecer o representante que diz negociar em nome dele. O verdadeiro autônomo hoje não faz parte da malha do sistema, mas é alcançável pela rede. É um fenômeno da transição. Em todas as categorias, quando houver esse tipo de problema, o governo não conseguirá lidar com os instrumentos tradicionais.
• Então a organização virtual, em rede, foi fundamental para o surgimento dessa greve?
É um instrumento e será cada vez mais. Diante de um sistema político que não dá voz à sociedade, que só representa a si mesmo, a indignação da população se valerá cada vez mais desses canais. A culpa é do sistema político.
• Do ponto de vista do sistema político, há uma razão estrutural para esta crise?
Em meu próximo livro, “Presidencialismo de coalizão” (que sai em agosto pela Companhia das Letras), trato da questão de fundo, que é a péssima qualidade das políticas de base no Brasil, por conta de uma visão de curto prazo e do “toma lá, dá cá” com o Congresso. Isso produziu políticas de muito má qualidade. Além disso, temos uma concentração absurda no governo federal. Essas questões se refletem em nossa estrutura tributária e fiscal absurdas. O sistema tributário é um Frankenstein. Tudo isso é um incentivo brutal ao clientelismo e impede os estados de buscarem suas próprias iniciativas.
• O que explica o apoio de parcela importante da população ao movimento?
O Brasil apresenta nível quase unânime de indignação e insatisfação, com a política e com o governo. Cada vez que um segmento específico é mais apertado e se revolta, esse descontentamento explode na rede e ganha respaldo dos indignados em geral. O governo, desde a Dilma (Rousseff ), prometeu coisa demais e não cumpriu. (O presidente Michel) Temer chegou prometendo o paraíso. Embora a inflação tenha caído, a melhora econômica não veio. Tem-se, então, uma sociedade em estado permanente e latente de indignação, o que gera uma reação espontânea de solidariedade com o outro. Mas isso é efêmero. Conforme o desabastecimento afeta o conforto, esse elas começam a enxergar um exagero e mudar de argumentação.
• Qual será o impacto da greve nas eleições?
Será como o das manifestações de 2013. Só não sabemos para que lado mudará o quadro eleitoral. Mas está claro que o Brasil tem uma agenda que não dá para resolver. Nenhum dos pré-candidatos demonstrou ter noção da gravidade do problema. Não sei o que esperar das eleições diante de respostas tão esvaziadas. Foi um show de “vaselina” e contradições. Quando você é candidato a presidente, você tem obrigação de vir a público, expor as causas do problema e como enfrentá-lo. Aliás, é a hora de mostrar sua capacidade de articulação e participar da intermediação com os manifestantes, como fez o (Emmanuel) Macron, durante a campanha eleitoral na França, nos protestos na fábrica da Whirlpool.
Fonte: O Globo (29/05/18)

Pela política de volta aos seus postos: espantar fantasmas, evitar esquinas (Paulo Fábio Dantas Neto)

Entre 2013 e 2018, alusões a 1964 têm sido abundantes como retórica do embate político e midiático. Sérios transtornos sociais, prejuízos econômicos, complicação do problema fiscal e desdobramentos políticos do locaute das empresas transportadoras de carga que encorpou o movimento dos caminhoneiros deram, nos últimos dias, ainda mais audiência a quem difunde esse tipo de analogia.
Na mesma direção vai a percepção geral da fraqueza política do governo para deter a sabotagem perpetrada contra o país. O mesmo governo que vem saneando e recuperando a Petrobras caminha agora em direção ao passado recente, quando a instrumentalização política da empresa, associada a uma política de desoneração de empresários, afundou o tesouro nacional e ajudou a desarmar estado, economia e sociedade no enfrentamento de uma recessão que vinha então a galope, uma tempestade ocultada pela maquiagem marqueteira da campanha governista de 2014.
Analisado isoladamente, o caso da atual gestão da Petrobras é dos mais bem sucedidos. Pode-se discordar da orientação adotada mas ali há (ou houve) política pública. Ali não houve (ou não havia) o vaivém do governo na busca do equilíbrio das contas públicas, visível em outros setores. Porém, o governo paga alto preço por ter permitido um tal grau de insulamento à Petrobras que a desconectou da grande política. Colocar fim na política de varejo e na instrumentalização partidária no atacado, marcas do período anterior, é um mérito, mas era preciso fazer isso com régua e compasso, atento à necessidade de ir ganhando mais aliados no curso da política adotada. Num país onde o novo e o antigo sempre estão a se misturar, ir pelo incremental é sempre bom conselho. A gramática política do Brasil, como mostrou Edson Nunes, é sincrética e foi ignorada ao se fazer um tratamento de choque radical. Perdendo o compasso, o governo passou só a régua e - vê-se agora - produziu amplo leque de adversários, além dos inevitáveis. Implacáveis na defesa de seus interesses corporativos, transportadoras e caminhoneiros legaram um rombo financeiro ao país e abriram aos pés do governo uma cratera política, com aplauso ou silêncio de políticos acovardados e eleitoralmente ansiosos.
A realidade é que os defensores do status quo anterior ganharam de volta um discurso, ainda que mistificador. A imprudência encontra um limite espantoso quando gente de esquerda sai a reboque do locaute empresarial e de sabotagens populistas e autoritárias ajudando a mergulhar o país no caos. Mas o que querem? Deixar faltar gasolina para que o preço baixe? ou pensam em usá-la para atiçar o fogo no qual eleições podem ser incineradas? Fazem o jogo da direita na ilusão de que rirão por último. Essa fantasia e a aventura que dela decorre levam, à primeira vista, a nos lembrar 1964.
Apesar das aparências é o caso de distinguir, não de confundir as coisas. Proponho que recusemos o raciocínio anacrônico que tenta exumar, como assombração, um fato relevante ocorrido no passado, como se fosse parte de uma tradição, daquelas tradições através das quais, conforme Marx, gerações mortas oprimem os cérebros dos vivos. Conferindo a conspirações e golpes o status de uma tradição nacional, essa narrativa agride o método de Marx, pois oculta, ideologicamente, um traço forte da tradição política brasileira: a aceitação, pela elite política, da sugestão de Tocqueville, de tratar a mudança mental de uma sociedade como se fosse desígnio da Providência, ao qual não cabe resistir, mas que é preciso fazer deslizar, o mais suavemente possível, para que não se torne um liberticídio.
A adoção dessa sugestão por uma elite politicamente ativa está na raiz da propensão ao acordo e à negociação que marca, mais que os momentos de ruptura, a nossa história política e a faz contínua enquanto a sociedade se transforma. Os riscos que nossa democracia atual enfrenta – e eles não são desprezíveis – estão menos nessa nossa tradição e mais em desconsiderá-la, como fez o governo na condução política da mudança na Petrobras. Agora tenta retomá-la, para tentar diminuir o estrago.
Os riscos não compõem um flashback. Invisíveis pelo retrovisor, são próprios da complexidade e da intensidade inaudita de mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas possibilitadas, inclusive, pela avenida institucional que se abriu, há 30 anos, com a promulgação da atual Constituição. O quadro é preocupante mas não porque as instituições políticas tenham trincado ou sejam más. O problema, está, em parte, na fortuna, ou seja, na objetiva e farta oferta de novos fatos sociais realmente difíceis de compreender e de incorporar ao cotidiano institucional. Mas está, também, em boa medida, na escassez de virtú, a virtude política que se tornou rara onde precisa ser comum.
Com as exceções de praxe – que devem ser valorizadas – as instituições políticas e outras, que as devem controlar, estão sendo pilotadas sem imaginação e sem suficiente responsabilidade política. Refiro-me não só ao patrimonialismo tradicional e ao oportunismo raso, presentes na elite política propriamente dita. Ela é alvo de contundentes operações policiais e judiciais e recebe reprovação da sociedade pelo que faz, pelo que não faz e também pelo que lhe imputam demagogos de vários matizes, que batem ponto na própria política, em corporações estatais e empresariais e na imprensa. Refiro-me, também, ao corporativismo e messianismo difusos em elites que se pretendem moralizadoras, bem como no discurso e na práxis de sindicatos e outros entes da sociedade civil, entregues a um varejo medíocre. Amantes de esquinas de variados tipos, com seus fundamentalismos e/ou pragmatismos, contribuem para travar a fluência do trânsito na avenida. A busca de atalhos e cirurgias, de tão insistente, pode acabar mesmo nos levando a novas esquinas. E uma vez diante delas, improvisos de má qualidade ou scripts inaptos à via democrática e pluralista aberta em 1988 podem nos enredar em becos. O locaute do setor de transportes apontou para um deles.
Movimento na estrada na contramão da avenida
A crise política prolongada estimulou empresários a seguirem, nesse maio de 2018, script análogo ao usado pelos irmãos Batista, no maio do ano passado, para chantagear o estado e a nação. Mas quem são os Janots do maio de 2018? Haverá hoje um Congresso disposto a frustrar suas intenções? Partidos e lideranças que ainda possam adiar táticas eleitorais para salvar uma pinguela estratégica? Presidente e governo em condição de operar a política real com habilidade e eficácia, sem ceder no essencial do seu programa de recuperação econômica? Ou de tratar com firmeza os sabotadores sem contar apenas com as corporações armadas? Interpeladas com frequentes missões excepcionais, sob holofotes, essas corporações manter-se-ão inflexivelmente restritas a rotinas da vida profissional?
A inquietante resposta comum a quase todas as perguntas parece ser um genérico não. Mas a primeira das perguntas requer, para ter resposta, um entendimento prévio mínimo do que se passou no caso específico desse movimento de caminhoneiros e de empresas de transporte de carga.
Apesar das declarações firmes e verazes do ministro Jungmann merecerem menção, bem como o sentido institucional da linha de ação que sugeriu, é recorrente e também veraz a avaliação de que a situação política do governo e do presidente não levou a posição clara e ação em tempo hábil para sanar a sabotagem. Na outra ponta da realidade, o ministro Marun levava ao presidente novas reinvindicações de caminhoneiros. Como as dos empresários, primeiros da fila, elas foram tratadas – e tinham de sê-lo - como se houvesse greve convencional, envolvendo trabalhadores e sindicatos e não o que de fato havia: paralisação sustentada por movimento de empresários com objetivo econômico antissocial, sem armas, mas com metodologia para militar e potencial político explosivo.
Fique claro que não se trata de criticar o governo por ter negociado. É da sua índole e isso é bom. Trata-se é de ter realismo para reconhecer que o governo não estava em posição forte para negociar. E isso é ruim. Está sendo comemorado por quem de fato pensa e por quem só declara que pensa (a intenção aqui importa menos que o efeito do pensamento equivocado quando orienta a ação) defender o interesse público ao enfraquecer mais o governo nessa hora. O equívoco está em não considerar que prejuízos coletivos serão proporcionais à força de quem estava do outro lado da mesa.
A falsidade das analogias com 64 não nos dispensa de tentar responder à pergunta sobre quem são os Batistas e Janots do maio de 2018. Buscar uma resposta a essa altura só tem sentido político se for para reverter o êxito da presumida ação ilegal. Tarefa que o ministro Jungmann assumiu ser dos órgãos de segurança institucional mas que não teve até aqui serventia. Comprovado o locaute (e já há, ao que se diz, 48 processos), há possibilidade política de recuo em pontos já firmados do acordo, lesivos às contas públicas? Se não há seria imprudente recusar a simultânea pauta encaminhada por Marun. Claro que as conclusões da investigação serão úteis, mas o tratamento político que se dará a elas já foge ao poder de decisão do governo Temer. O êxito do movimento está consumado, tenha sido ou não ilegal o seu método e mesmo que se confirme o caráter antissocial da sua motivação.
Mas detectada a conspiração, resta ainda saber por quê terá dado certo. Como já se disse bem sobre 64, o simples fato de uma conspiração existir não explica seu eventual sucesso. A questão em aberto conduz ao tema da fragilidade política do governo Temer, para entendê-la, do ponto de vista político. Tema que não é assunto maduro para cientistas políticos, menos ainda para historiadores. Mas uma elite política não pode adiá-lo, sob pena de praticar haraquiri antes de um golpe lhe ser imposto. Depois do fato consumado a ela restará apenas confessar o ato de se ter auto convertido em fantasma.
Por que a pinguela balança?
O tema central aqui, repito, é o que explica a fragilidade do governo Temer. Para se ter resposta útil e tempestiva sobre isso é preciso pensar em quem tem responsabilidade política e institucional pela condução do país, além do próprio governo, cuja conduta já analisei.
Para começar, a fragilidade não é produto exclusivo do processo político que gerou esse governo. Essa é uma simplificadora e obviamente interessada explicação para um problema complexo. Se em política houvesse correspondência tão direta entre alhos e bugalhos, o colégio eleitoral inventado pela ditadura não teria sido, como foi, ponto de partida para a institucionalização prática de uma democracia de amplitude inédita no Brasil, processo de conflito e negociação que incluiu também praças e avenidas lotadas, como estiveram igualmente em 2013 e em 2015/2016.
Seguramente não é simples assim. A fragilidade inaugural do governo Temer seria (e estava sendo) superada pela entrega de uma das mercadorias prometidas, a reconstrução da economia. A outra meta, a pacificação do país, teve logo seu cumprimento travado por atores interessados, por razões diversas, em impedir que o governo acumulasse dividendos políticos com o êxito da primeira. A ilusão de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa começou a se desfazer quando o governo começou a atirar em direções contraditórias para compensar os efeitos da gradativa deserção de aliados, cada vez mais focados no imediatismo eleitoral. Foi perdendo seu próprio foco e com ele a força relativa que ainda retirava da clareza de sua plataforma reformista. A realidade da conexão entre economia e política mostrou-se, explicitamente, dramaticamente, na conexão entre estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. A política, aos poucos interditada durante a crise, sumiu da prateleira porque a elite política, sem combustível, sumiu dos postos que ocupa no mundo público.
Pontos fora dessa curva infeliz há talvez em todos os partidos que não são apenas siglas de aluguel. Necessitam de articulação transversal para vencerem a barreira da invisibilidade. Há um manifesto em circulação, assinado por gente de peso e respeito, tentando emitir um toque de reunir para democratas e reformistas. Até aqui, parca resposta, dando a suspeitar que a política chamada por Marco Aurélio Nogueira de “dos políticos” tenha sofrido edema de glote e agonize sedada na UTI.
Essa sensação de vácuo político conduz boas cabeças a se voltarem, como solução, para a política “dos cidadãos”. Há aí dois problemas: ela não é bem votada no eleitorado profundo e, principalmente, ela não governa, nem aqui nem em qualquer lugar do mundo. A democracia é (ainda) o governo dos partidos, portanto, dos políticos. E será assim enquanto não inventarem nada melhor, ou até que algo melhor entre, de fato, na política e não se limite a fazer a sua crítica. Macron pode estar sinalizando isso? Talvez (se a política externa deixar) mas até na França é preciso esperar um pouco para saber. E o Brasil em crise pede soluções para ontem.
Isso não significa desprezar a política do cidadãos. Ao contrário. Uma sociedade civil politicamente ativa é muito importante para democratizar a democracia. Mas governo é outra conversa, como mostraram nossas estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. Terá sido por falta da política dos cidadãos ou pela omissão da política dos políticos, que segue sendo imprescindível?
Mais uma vez a história pode ensinar, em vez de confundir. É recorrente também lembrar de Ulisses Guimarães. Quero fazer isso salientando um determinando ângulo do seu legado. Através de sua liderança, a política dos políticos desobstruiu e pavimentou estradas, abasteceu e energizou o tráfego. O Ulisses que mais faz falta hoje não é o da resistência democrática e sim o artista da governabilidade. Sarney, o afortunado e Temer, o sem fortuna, que o digam. Como se sabe, Ulisses foi cristianizado pelo seu próprio partido, nas eleições de 1989. Porém, profissional - como são os bons políticos - ainda segurava o leme em 1992, quando foi preciso, por meio de um impeachment, consertar um erro das urnas, reconhecido pelos eleitores. Morreu duas semanas depois, em paz com sua missão. Simbolicamente não pode ser sepultado, nem cremado. Impossível não lançarmos, nessa hora difícil, um olhar perdido sobre a Serra da Mantiqueira, em busca de luz. Ou do toque de reunir.
(*) Cientista político e professor da UFBa.
30 de maio de 2018

sábado, 19 de maio de 2018

Marx, o marxismo e a esquerda brasileira (Zander Navarro)

A utopia do novo paraíso societário, à luz do socialismo real, não atraiu maiorias sociais...estimulou amor e ódio, ideologias sacrossantas e também guerras e extermínios. E foi um ideário dominante durante quase meio século, pois entre 1949, a chegada de Mao ao poder na China, e 1989, com a queda do Muro, quatro em cada dez cidadãos do mundo viveram sob governos que se diziam marxistas.
Li tudo o que foi escrito por Marx, desde que me apaixonei pelas aparentes certezas defendidas pelos marxistas brasileiros na lendária revista Encontros com a Civilização Brasileira, na década de 1960. Jovem, quem não seria magnetizado por promessas de igualdade e uma sociedade justa? Não consegui concluir apenas os três volumes das áridas Teorias da Mais-Valia, que o autor alemão escreveu disciplinadamente entre 1861 e 1863 na biblioteca do Museu Britânico, em Londres. Eram os volumes preparatórios para sua maior obra, O Capital, cujo primeiro volume veio a lume em 1867.
No doutoramento, também na Inglaterra, continuei estudando essa tradição política. São quase cinco décadas de pesquisa. Assim, submeto curtas e simplificadas formulações sobre os três temas principais deste comentário.
Sobre Marx: um autor genial, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Febrilmente criativo e capaz de interpretar a sociedade humana como um todo, Marx foi leitor insaciável, movido por raríssima inteligência.
Percebeu como nenhum outro autor a chegada de um novo modo de vida, o capitalismo. Ainda que sua obra contenha inúmeros erros, ninguém, antes ou depois, identificou tão claramente os mecanismos essenciais desse regime econômico, em especial a sua intrínseca instabilidade, o que produz crises cíclicas. Causa perplexidade a sua capacidade analítica, considerando que escreveu quando inexistiam dados factuais adequados. A leitura de Marx, se feita desapaixonadamente, é essencial para todos os que desejarem entender o mundo dos humanos.
A maior insuficiência, não exatamente uma falha, desse modelo reside na sua teoria do valor trabalho. É uma tese lógica e irresistivelmente sedutora. Afirmada simplificadamente: o valor dos bens e mercadorias produzidos decorre do trabalho dos humanos, mas estes são remunerados apenas em parte. Por isso o capitalismo embute um veio de exploração social e, como resultado, um processo de acumulação da riqueza por uma minoria. Daí decorreriam a luta de classes e outras implicações sociais e políticas que propôs em sua copiosa produção. O problema: a teoria jamais foi provada empiricamente, senão de forma indireta. Competindo com outras explicações capazes de quantificar seus conceitos, a teoria de Marx foi se enfraquecendo com o tempo. Num mundo cada vez mais matematizado, a teoria, sem irrefutável comprovação quantitativa, foi sendo marginalizada pelos economistas e estudiosos. Tornou-se apenas uma curiosidade do pensamento social.
O marxismo é o outro tema de imensas proporções. Marx legou uma obra de interpretação, mas o marxismo não cresceu como ciência, e sim como ação política até meados da década de 1970, não fazendo parte de universidades e centros de investigação. Somente nessa década, especialmente na França, é que houve a tentativa de transformar aquele arcabouço numa “ciência”. Ou seja, ao contrário de teorias suas competidoras (a economia neoclássica, por exemplo), ao adentrar o mundo da pesquisa universitária o marxismo já encontrou seus opositores entrincheirados e foi incapaz de oferecer uma rota alternativa convincente para desalojá-los. Adicionalmente, no mundo real, os anos de expansão capitalista do pós-Guerra já haviam moldado a mentalidade dos cidadãos. A utopia do novo paraíso societário, à luz do chamado socialismo real que então existia na antiga União Soviética, não atraiu maiorias sociais para empurrar as sociedades para outro modo de produção.
Por fim, as chamadas “esquerdas”, os agrupamentos sociais assim intitulados porque são motivados por uma orientação política cujo epicentro conceitual retornaria a Marx e ao marxismo. O comentário, desesperadamente breve, nos remete apenas a dois aspectos da esquerda brasileira, tal como a conheci durante este longo período. Primeiro, a rígida convicção daqueles que tomam posição à esquerda, sobre a categórica segurança acerca da transformação social. Foi o que me atraiu quando jovem, mas posteriormente quis entender as origens dessas inquebrantáveis certezas sobre o mundo e seu destino histórico. Não precisei estudar muito para entender que inexistiam razões bem fundamentadas para manter essa proposição, como se dogma fosse. Por que meus amigos marxistas insistiam em apregoar a inevitável ruptura do capitalismo, com repetidas e cansativas loas sobre uma vaga “crise iminente” que nunca chegava?
Após essa decepção teórica, veio outra, porém mais mundana. Foi perceber que a maioria dos marxistas brasileiros lia pouco, discutia menos ainda e, mais grave, no geral apenas repetia um monocórdio rosário de frases feitas, com escassa e insuficiente comprovação. De fato, um credo. Até meados dos anos 1980, por exemplo, a maior parte da obra de Marx nem sequer era conhecida pela maioria da esquerda brasileira, pois não fora traduzida do alemão ou do russo. Mas, ainda assim, prosseguiam as visões religiosas sobre a derrocada próxima do regime capitalista.
A conclusão é inevitável. Marx e o marxismo são encantadores como um movimento de ideias, mas deixaram de ser a arquitetura possível de uma nova sociedade. As esquerdas, em geral, não souberam manter aberto esse roteiro histórico.
Fonte: O Estado de São Paulo (17/05/18)

A democratização do estado (Hamilton Garcia)

A democracia representativa no Brasil é uma experiência historicamente recente, cuja inauguração pode ser associada ao fim da monarquia-escravista (1888-89) e ao processo de urbanização e diversificação econômico-social que a partir daí se encorpou. Se comparada à da Inglaterra, bem mais antiga, é também bastante mais irresoluta. Os ingleses, depois de um longo período de disputas religiosas (1547-58), conflitos políticos agudos e guerras civis (1640-89) – com um Rei decapitado (1649) e uma República autoritária (Cromwell, 1653-58) –, encontraram seu modelo numa Igreja reformada (1559) e numa Monarquia Constitucional governada por um Parlamento representativo sob a égide da Declaração de Direitos (1689), que afirmava a liberdade dos indivíduos como base inalienável das formas de governo.
No nosso caso, nem a Igreja foi reformada, nem o poder absoluto do Estado foi decapitado; tudo se deu, como reza nossa tradição, de maneira segura e sincrética, mantendo-se os indivíduos subjugados ao poder oligárquico, fonte primeira do poder de Estado. Depois de derrubada a Monarquia por uma conjuração militar-civil (1889), no qual o povo assumiu o papel de expectador – tanto ativo, como passivo –, inaugurou-se um período (Primeira República) onde as oligarquias agrárias ganharam autonomia (federalismo) e as burguesias voz ativa no cenário político das mais importantes cidades (liberalismo) sem, contudo, ameaçar o poder estabelecido sobre o vasto território – inclusive os currais eleitorais, beneficiados pela vigência do voto aberto e a ausência de autoridade corregedora isenta – e as mentalidades (Igreja Católica).
Não obstante o conservadorismo do pacto elitista inaugural da República – com a fracassada pretensão reformista de certos segmentos militares (positivistas) –, as novas classes sociais urbanas manifestariam seu descontentamento político, mesmo tendo contra elas o liberalismo de fachada instituído pela Constituição de 1891 e a dura repressão das forças policiais. Medidas como o fim do voto censitário, dos privilégios nobiliárquicos e da dominância eclesiástica sobre as localidades e a educação – entre outras iniciativas legais modernizadoras –, mesmo descasadas de reformas econômico-sociais progressistas (agrária, urbana, tributária, financeira, etc.), foram suficientes para, pelo menos, inaugurar um período de aspirações democráticas, que acabaria por desnudar o descompasso entre a superestrutura jurídico-política e as mudanças econômico-sociais, de sentido democratizante, provocadas pelo avanço do capitalismo – descompasso este que, não obstante os avanços percebidos desde 1985 (Nova República), está na base da instabilidade política dos nossos dias.
As curtas experiências liberal-democráticas vividas após as intervenções civis-militares de 1930 e 1945 – logo descontinuadas por intervenções análogas de polaridade invertida e sentido diverso, em 1937 e 1964 –, demonstraram a fragilidade (e força) de nossa tradição republicana. Nelas, podemos enxergar as marcas profundas do nosso modo de ser contemporâneo, radicado na formação social polarizada por quatro séculos de latifúndio, onde tanto a sociedade civil se forjou comprimida pelo esmagador peso do agrarismo colonial, como a sociedade política (Estado) se amalgamou ao compromisso neopatrimonial, mesmo quando sob a liderança de seus segmentos dissidentes (populismo).
Enquanto 1930 e 1945 nos revelaram uma sociedade civil trabalhadora frágil, incapaz de conter os arroubos jacobinos de suas lideranças – rupturismo que propiciou o retrocesso autoritário após a aventura "revolucionária" de 1935, e, depois, em sentido inverso, levou os comunistas a apoiar o ditador que antes queriam derrubar, precipitando a intervenção militar redemocratizadora –, 1937 e 1964 mostraram a inapetência da sociedade civil burguesa em lidar com as pressões legítimas (e ilegítimas) pela democratização vindas de baixo, cedendo ou estimulando o protagonismo conservador de caserna ao invés de pactuar a reforma das instituições republicanas da qual participavam – dentre elas o Parlamento e o Judiciário –, de modo a reverter seu embotamento histórico (patrimonialismo).
A semelhança com a crise de hoje não é mera coincidência: a sociedade civil trabalhadora continua presa fácil de lideranças retrovisoras (bolivarianistas) e de um populismo que, embora descido às fábricas, ainda veste o manto sagrado dos pais dos pobres, enquanto as principais instituições republicanas (redemocratizadas) claudicam pela insuficiência das reformas até aqui efetuadas, abrindo amplo espaço para o conservadorismo de caserna, agora autonomizado pela fórmula político-eleitoral do bolsonarismo.
De auspicioso, apenas a emergência de uma nova sociedade civil burguesa disposta a renovar as lideranças políticas do liberalismo, contra a vontade de seus partidos tradicionais; um novo ativismo do Ministério Público e do Judiciário, que – dentro de seus limites funcionais e ainda adstritos à esfera federal – permitem o avanço das reformas institucionais que Executivo e Legislativo tentam barrar; e uma liderança militar (Alto Comando) até aqui inclinada a apoiar ambas as novidades e agir, se necessário, apenas na condição de última instância.
Tal conjunção, que tem constituído até aqui a verdadeira âncora de nossa ainda frágil liberal-democracia – diga-se de passagem, contra a vontade de boa parte das esquerdas, inclusive a desconfiança de certos segmentos seus de viés liberal –, carece, é verdade, de uma concertação política mais ampla do que a permitida pelos parâmetros corporativos dos operadores do direito; mas isto parece estar sendo superado, não obstante sua mais nítida expressão eleitoral, Joaquim Barbosa, ter desistido da postulação por conta de uma aparente falta de vocação.
O que é importante nisso tudo, é que a sociedade civil, por meio da política bem pensada e articulada, pode vencer a pesada herança semirrepublicana que resiste no Estado, nas corporações e nas mentes de todos os quadrantes ideológicos, mas para isso vai ter que se livrar dos mitos e das concepções ideológicas anacrônicas e pseudorrealistas que impedem-na de enxergar o cenário em toda a sua inteireza e complexidade, inclusive contemplando os remédios contra a pior de todas as heranças: a marginalização social por meio da pauperização econômica e da alienação laboral-educacional, que exigem a reinvenção do liberalismo (liberalismo-social) e do progressismo-nacional (neodesenvolvimentismo).
(*) Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF )
12/05/18.

Desistência de Joaquim não diminui divisão dos democratas (Marco Aurélio Nogueira)

A saída de cena de Joaquim Barbosa, que desistiu da candidatura presidencial, serviu como um novo alerta para os democratas e um suspiro de esperança para os demais candidatos. O ex-presidente do STF saiu atirando, sem ocultar seus titubeios e sua tendência a demonizar os políticos: “Os políticos criaram um sistema político aferrolhado de maneira a beneficiar a eles mesmos. O sistema não tem válvula de escape. O cidadão brasileiro vai ser constantemente refém desse sistema. Você não tem como mudá-lo. Esse sistema contém mecanismos de bloqueio que servem para cercear as escolhas do cidadão”. Para ele, a eleição de 2018 não mudará o país.
Passou da hora de cair a ficha: não se trata do centro, da esquerda ou da direita. Tais posições subsistem e é bom que o façam. Deve ser respeitadas. Não podem ser apagadas por decreto ou mágica, pois fazem parte da dinâmica política de qualquer país. Precisam porém ser “dessencializadas”, saírem da casca ideológica e voarem para a condição pragmática, propositiva, descritiva: há um centro efetivo, ladeado por uma esquerda (mais generosa e igualitarista) e por uma direita (mais vinculada à ordem que à liberdade), mas há também mais de uma esquerda e mais de uma direita. O centro, portanto, mesmo que se proponha a ser um fator de equilíbrio e serenidade, pode pender para um desses lados. Não existe em termos puros.
A atual sociedade brasileira se contorce em espasmos provocados por uma desigualdade absurda, por falhas gravíssimas em termos de políticas públicas básicas (educação e saúde), por uma violência que parece brotar da terra como erva daninha. Está num estado emergencial, diante do qual a única força de propulsão virá de algum tipo de unidade política progressista. Não há como um centro governar o país se fizer concessões à direita fundamentalista ou a uma esquerda que veja a “luta de classes” como principal recurso de pensamento e ação.
Bolsonaro e Boulos têm suas razões, seus admiradores e seguidores. São diferentes entre si, evidentemente. Um quer fazer com que prevaleça no país a “autoridade” em estado puro; o outro quer que seja ouvida a “voz do proletariado e do precariado”. Não há porque devam silenciar. São o que são, e cada um a seu modo fazem com que as coisas fiquem mais claras. Mas há que se pensar nas consequências para o futuro se um ou outro conseguir – não chegar à Presidência, meta remota ou remotíssima – prevalecer no debate político, a ponto de impedir que se discuta o fundamental. Ou seja, um programa realista e generoso para reconstruir o país.
Bolsonaro é um perigo, até porque tem ressonância expressiva em parcelas da população desejosas de “ordem”, fechadas em si mesmas, ressentidas e presas à ilusão de que é preciso defender os “bons costumes”. Há muita gente que pensa assim, mas não é razoável acreditar que esse contingente forme uma maioria categórica. Bolsonaro parece destinado a evaporar ou a ficar no teto que já atingiu.
Boulos, por sua vez, está no hexágono para marcar posição e tentar fazer com que a temática da “igualdade” entre na pauta, devidamente turbinada por uma substancialização que ele, candidato, tempera com uma visão da política como conflito, pressa e contradição, sem margem para negociação ou processamento democrático.
Um e outro simbolizam os extremos que podem dificultar o alcance de uma pauta capaz de impulsionar o país para frente. Mas Boulos não é Bolsonaro e é preciso deixar bem clara a distinção. Bolsonaro é um extremista de direita, convicto e fundamentalista, ao passo que Boulos posiciona-se mais em termos “geográficos”, espaciais, dedicado que está a propor o protagonismo de uma dada esquerda.
Há outros à direita e à esquerda.
À direita, a competitividade não ameaça Bolsonaro: os que com ele concorrem são inexpressivos.
À esquerda, porém, a fragmentação bate ponto. Manuela D’Avila (PCdoB) pode se sair melhor que Boulos no desempenho e na proposição temática: tem mais tradição, um partido mais bem estruturado, maior flexibilidade e a bastante disposição de luta igualitarista. Se ela e Boulos vierem a se unir, e ela conseguir pilotar a união, o debate poderá ganhar um componente (a visão política da igualdade) que até agora tem permanecido ausente. E há o PSB, o PDT e a Rede, imersos em seus planos e indefinições.
Parte disso poderá se articular ou ao menos se aproximar. Não é impossível, mas também não é fácil. Por um lado, há os arranjos e coligações estaduais, que embaralham o quadro. Por outro, há o fator Lula e o PT. Dada a força do partido, seus movimentos tenderão a condicionar os passos da esquerda. Inclusive de Ciro e Marina , que são esquerda de outro tipo, também aqui cada um a seu modo. Mas o PT tem algo de “tóxico”, ficou pesado demais para ser carregado.
Até agora, o PT continua atrelado a seu prisioneiro, sem demonstrar aptidão para voltar ao jogo da grande política, nem mesmo para disputar o poder pelo poder. Está sendo atropelado pelos fatos, que não lhe têm sido especialmente favoráveis. A hipótese menos pior, para ele, é que Lula, lá por agosto ou setembro, consiga concorrer sub judice. Enquanto isso, o partido parece se conformar com um acampamento em Curitiba, perdendo dias preciosos, adiando conversas decisivas, dividindo-se mais um pouco entre “fundamentalistas” e realistas, entre “pessoas de partido” e “militantes da política”, marcando passo na construção da tão falada “frente de esquerda” ou em negociações com candidaturas que, nos últimos tempos, fizeram parte do entorno do partido. Tratar mal Ciro Gomes, por exemplo, ou estigmatizar Marina Silva, mostra o estrago que pode ser causado pela ausência de uma estratégia política consistente por parte do PT. Um pouco de modéstia faria bem. Assim como mais visão estratégica.
14/05/18

Brasília é a sede do poder, não o seu fim (Fernando Abrucio)

Ninguém ganha a disputa presidencial para governar Brasília. Lá estão o governo federal e os outros Poderes da República, cujas decisões são fundamentais para todos os brasileiros. O forte poder da União, contudo, não significa que o presidente possa ter sucesso sem levar em conta os problemas e as posições dos prefeitos e governadores. Quanto mais dificuldades e crises enfrentarem municípios e Estados, mais complicada será a governabilidade do país. De modo que a busca do equilíbrio federativo será uma tarefa central para o vencedor da eleição.
A federação brasileira passou por muitas mudanças e fases desde o restabelecimento da democracia. Num primeiro momento, por conta da combinação da crise do regime militar com a do Estado desenvolvimentista, a União perdeu forças e as forças descentralizadoras ganharam poderes e recursos inéditos na história. Só que a mesma Constituição que deu status de ente federativo a todos os municípios - algo sem igual entre os países federativos - e ampliou o poderio tributário dos Estados pela via do ICMS, também deu amplos poderes legislativos ao governo federal e manteve uma base financeira e burocrática ao Executivo nacional que o manteve como a principal peça do jogo político brasileiro.
Mas o alcance desse equilíbrio não foi imediato. O final do governo Sarney e o início dos anos 1990 foi uma época marcada por uma descentralização municipalista desorganizada de políticas públicas, pela irresponsabilidade fiscal dos Estados - que produziam dívidas e repassavam os custos disso à Brasília - e por uma grande turbulência política e financeira no Executivo federal. Foi com a aliança montada em torno de Fernando Henrique Cardoso, primeiro como ministro da Fazenda e depois como presidente eleito, que se iniciou a reversão desse cenário federativo. FHC conseguiu montar uma coalizão e uma agenda de reformas que foram capazes de se aproveitar das competências legislativas dadas à União pela Constituição de 1988
Dali em diante o governo federal se fortaleceu no jogo intergovernamental. Pode se ter a impressão que essa mudança foi fácil, mas houve muito conflito e incerteza no meio desse caminho. A crise da dívida dos Estados, por exemplo, foi uma negociação bastante tensa, cuja resolução envolveu a troca de privatizações de empresas estaduais por recursos do governo federal, seja com empréstimos do BNDES e da Caixa, seja com o refinanciamento dos débitos pelo Tesouro Nacional. Esse passivo tem sido pago pelos governadores que vieram a seguir, mas também por todos nós, pela via do crescimento da dívida pública. Nada disso é indolor, tanto política como financeiramente.
O fortalecimento da União também foi uma obra de desenhos institucionais e políticas de coordenação federativa construídas de forma bastante competente e criativa. É preciso louvar os que pensarem o então Fundef, na educação, e o PAB, na saúde. Essas soluções não eram óbvias e outras federações mais próximas do nosso modelo, como o México ou a Argentina, não foram ainda capazes de montar arranjos intergovernamentais para reduzir as desigualdades e coordenar melhor a descentralização do que o Brasil.
O período Lula continuou esse processo de ampliação do papel da União na articulação e indução da ação dos governos subnacionais. A experiência de vários quadros petistas em municípios os levou a entender a necessidade de ajudar os governos locais a ampliar as políticas públicas, sobretudo as de corte social. O exemplo do Bolsa Família é interessante para esse debate. Seu sucesso em relação aos objetivos pretendidos e à sua impressionante amplitude (número de famílias atendidas em tão curto espaço de tempo) é inegável. O desenho adotado combinou uma forte centralização na distribuição dos benefícios, que vão direto aos indivíduos sem a intermediação de líderes locais, com uma paulatina criação de capacidades institucionais nos governos subnacionais, especialmente nas prefeituras, pela via do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Índice de Gestão Descentralizada (IGD).
A trajetória recente das principais políticas sociais revela, mesmo com diferenças entre os setores, a principal equação do federalismo brasileiro: normatização e coordenação federal somada à execução subnacional. Neste cenário, Brasília tem um peso grande, mas não define o jogo. A implementação é a peça-chave e está nas mãos de Estados e municípios. Tome-se o exemplo da educação. O ensino fundamental está dividido entre governos municipais e estaduais, e o ensino médio ficou basicamente com os Estados. O plano federal pode fazer uma legislação estratégica como a da Base Nacional Comum Curricular, importante por si só, porém, que terá poucos resultados se a gestão subnacional fracassar. Aí não adianta fazer propaganda na TV: os eleitores vão achar que o presidente errou na política pública.
Houve muitos avanços nessa coordenação de ações federais e subnacionais nos períodos FHC e Lula. O crescimento econômico da década passada permitiu ainda uma certa recuperação das finanças estaduais. Também ocorreu uma elevação de gastos subnacionais nas principais políticas sociais, algo que foi sustentável até 2014. O federalismo estava mais equilibrado, com um comando nacional importante e com a expansão das iniciativas governamentais no plano local.
A crise federativa voltou com o governo Dilma. Do lado das políticas públicas, a centralização exacerbou-se, como mostra o modelo da construção de creches. Tal qual em outras arenas, Dilma criou poucos espaços de efetivo de diálogo e negociação entre os atores intergovernamentais, não levando em conta, no mais das vezes, as peculiaridades locais na definição do tipo de ação federal. Do lado financeiro, na ânsia de continuar o crescimento do país, a presidenta estimulou uma nova rodada de endividamento dos governos estaduais e não os induziu a fazer ajustes estruturais. O resultado é que começamos o novo quadriênio governamental, em 2015, com um processo de derrocada dos Estados, algo que se agravou com a forte e prolongada recessão.
Na verdade, no atual momento a crise financeira não é somente dos Estados, como ocorrera na segunda metade da década de 1990. Os municípios nunca estiveram numa situação tão frágil em termos fiscais como agora, o que se soma à deterioração do quadro no plano federal. Desse modo, os três níveis de governo estão mal das pernas. Por isso será mais difícil reconstruir o equilíbrio federativo em comparação às mudanças ocorridas no período FHC. Há grandes problemas econômico-financeiros, no campo das políticas públicas e na concepção de federalismo que terão de ser enfrentados.
A recuperação financeira da federação vai ter de passar por quatro âmbitos. Primeiro, o das reformas no plano das despesas próprias, com a questão previdenciária tendo aqui o maior destaque. Segundo, deve-se alterar o financiamento intergovernamental, aumentando a eficiência e a efetividade no repasse dos recursos entre os entes, com uma melhor definição dos critérios de desempenho e equidade que regulariam as transferências. Terceiro, é preciso atuar no campo da receita, tornando, ao mesmo tempo, a tributação mais justa e mais amigável às atividades econômicas. E, por fim, a reformulação da gestão pública, pois será necessário fazer mais e melhor com relativamente menos. O problema aqui é que, além dos problemas mais gerais da administração pública brasileira, como o engessamento da legislação e o predomínio do controle procedimental sobre a autonomia dos gestores, prevalece um cenário de baixa capacidade de governança e implementação na maior parte dos governos subnacionais.
As políticas públicas terão de ser mais cooperativas daqui para diante, o que implica melhorar os incentivos à atuação intergovernamental conjunta. Há muitos obstáculos aqui, que vão desde dificuldades institucionais para se montar formas de cooperação intermunicipal ou regional nos vários setores, até a ausência de fóruns de participação dos três entes federativos no processo deliberativo. Algumas áreas têm uma situação mais dramática, como é o caso da segurança pública, que se tornou uma verdadeira Torre de Babel, em que não se sabe como juntar os esforços dos governos para se obter melhores resultados.
Essas transformações passam por uma mudança na concepção política do federalismo brasileiro, em particular de nossas principais lideranças políticas. De um lado, Brasília não pode decidir tudo o que deverá ser feito em todo o país. Não é uma questão de preferência descentralizadora. É que esse modelo tem dado errado. Do outro lado, sabe-se que uma visão descentralizadora fragmentada só produzirá mais desigualdade territorial, pois a maioria dos governos locais irá trilhar o caminho do fracasso na implementação das políticas públicas.
O próximo presidente tem de saber que Brasília é a sede do poder, não o seu fim. Nessa linha, a famosa esfinge do poder lhe dirá: "Seu sucesso dependerá, fortemente, da melhoria dos serviços públicos, fornecidos basicamente pelos governos subnacionais. Esse objetivo só será possível com a adoção de medidas para reequilibrar a federação. Caso não faça isso, presidente, você será devorado".
Fonte: Valor Econômico (11/05/18)

sábado, 12 de maio de 2018

Estilhaços de 1968 (Demétrio Magnoli)

No 13 de maio de 1968, meio século atrás, o levante estudantil levou 800 mil às ruas de Paris. No Quartier Latin, os muros falavam: “A imaginação no poder”, “É proibido proibir”, “Abaixo das ruas de pedra, a praia”, “O tédio é contrarrevolucionário”, “Seja realista, exija o impossível”, “Decretado o estado de felicidade permanente”. 1968 não terminou? Terminou, sim, mas seus estilhaços estão por aí.
A revolta de Paris assinalou a ruptura do controle da juventude pelo Partido Comunista. A imagem da URSS ruía no espelho da invasão da Hungria (1956) e da Primavera de Praga, esmagada pelos tanques soviéticos meses depois. Mas a cisão extinguiu o próprio levante: no fim, os sindicatos comunistas interromperam a greve geral, isolando os estudantes. Pouco antes, 30 de maio, algo como um milhão de apoiadores do general De Gaulle, a “maioria silenciosa”, tomaram os Champs-Elysées.
O 1968 francês foi festa, decepção e silêncio. Na Alemanha Ocidental e na Itália, as revoltas estudantis deixaram fragmentos letais. Delas, ou de suas franjas extremas, nasceram o Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas, dois grupos terroristas infiltrados pela Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental. A luta armada, escreveu Ulrike Meinhof, servia para “resgatar o estado de conhecimento” alcançado pelo movimento de 1968. Qual “conhecimento”? A ideia de que a democracia ocidental não passava de uma delgada película destinada a ocultar a natureza fascista do Estado. Eis um estilhaço ideológico do passado que permanece conosco, no pensamento infértil da extrema-esquerda.
A correnteza do 1968 europeu bifurcou-se na encruzilhada da democracia parlamentar. Os que não seguiram a trilha da “ação direta” inventaram a política ecológica. Cohn-Bendit, o Daniel Le Rouge, trocou o grupo radical autonomista de sua juventude, no qual militara com Joschka Fischer, que viria a ser ministro do Exterior alemão, pelo Partido Verde. Eis mais um estilhaço de 1968: o alargamento do discurso da esquerda moderada e a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável na política contemporânea.
O 1968 representou coisas distintas em lugares diferentes. Na Alemanha Ocidental, abriu caminho à ascensão de uma social-democracia reformada: Willy Brandt tornou-se chanceler em 1969, interrompendo as duas décadas de hegemonia conservadora do pós-guerra. Nos EUA, propiciou a fusão das lutas pelos direitos civis e contra a guerra no Vietnã, revolucionando por dentro o Partido Democrata. Já na América Latina, não se repetiu a ruptura europeia entre a juventude e a esquerda stalinista tradicional. As fotos do corpo sem vida de Che Guevara haviam sido divulgadas pelo governo boliviano em outubro de 1967. Sob a força gravitacional da Revolução Cubana, os grupos latino-americanos de esquerda aderiram ao castrismo e deixaram-se embriagar pela ideia do “foco revolucionário”. Na Argentina, no Uruguai, no Brasil eclodiram as lutas armadas.
Caetano e Os Mutantes tocaram “É proibido proibir” numa noite de domingo, 15 de setembro de 1968, provocando a célebre, irada reação da plateia estudantil que identificava a guitarra elétrica ao imperialismo. No Brasil, o 1968 libertário quase se restringiu à Tropicália. Seis meses antes do happening no festival da canção, um PM matara o secundarista Edson Luís Lima Souto, no restaurante Calabouço, no Rio. Três meses depois, no 13 de dezembro, o AI-5 terminou o nosso ano que supostamente nunca acabou. Dali em diante, as dissidências armadas do PCB instalaram seus focos urbanos, enquanto o PCdoB preparava a guerrilha no Araguaia. Não faz muito sentido conectar o “nosso” 1968 ao “deles”.
Cuba carece de relevância econômica ou geopolítica, mas desempenhou um papel crucial no plano ideológico. O castrismo formou uma caverna escura, que serviu de santuário para a esquerda latino-americana. Dentro dela, protegidos dos clarões que vinham da Europa, os grupos esquerdistas podiam continuar a rezar pela Bíblia do “socialismo real” e estudar o Minimanual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Marighella. Do nosso 1968, restou um estilhaço: a atração pelos personagens trágicos da luta armada, homenageados até hoje em sessões oficiais e celebrados em filmes ou canções que gotejam vandalismo intelectual.
Jorge Amado, um comunista de carteirinha, terminou a vida abraçado a Antônio Carlos Magalhães, pedindo que se erigisse uma estátua a Marighella em Salvador. Caetano cantou Marighella em “Um comunista”, em 2012, sem atinar para a evidência de que seria fuzilado num hipotético regime comandado pelo guerrilheiro. Na Bahia, em 2010, ainda presidente, entre um e outro encontro com os Odebrecht, Lula reverenciou a figura de Marighella, conclamando-nos a elevá-lo ao panteão dos heróis da pátria e a “valorizar as razões pelas quais fez o que fez”. Os militantes do PT e do PSOL circulam vestidos em camisetas com a efígie do Che. A caverna é escura.
Fonte: O Globo (07/05/18)