quarta-feira, 30 de março de 2011

Poder Judiciário e migração partidária (Rafael Cortez e Vitor Marchetti)

O noticiário político recente dá sinais não apenas de possíveis mudanças de legenda por parte de alguns líderes partidários mas também da criação de novas legendas. O tema, porém, não é novo. Desde a redemocratização, a prática da migração partidária se transformou em algo tão recorrente quanto polêmico.

Num primeiro momento, nos anos 80 e início dos 90, a troca de partidos poderia até ser encarada como uma mostra da vitalidade do recém "inaugurado" pluripartidarismo. Como durante o regime militar o sistema político tinha passado por um longo período de limitações às liberdades, o retorno das liberdades políticas e a progressiva retomada da competição eleitoral acabaram produzindo um natural movimento de acomodação. Tanto foi assim que, em 1985 o Parlamento aprovou uma Emenda Constitucional (EC 25) que retirou da Constituição de 1967 a punição com perda do mandato aos parlamentares que mudassem de partido.

A migração partidária, porém, persistiu mesmo após a superação da transição democrática. A permanência desse padrão veio pela chave do presidencialismo de coalizão. Como efeito de uma estratégia do Executivo na formação de sua coalizão de governo, a mudança de partido serviria como recurso para evitar que governos ficassem reféns de um Congresso fragmentado. Os congressistas, por sua vez, movimentados por interesses imediatos de suas carreiras, transitariam entre as diversas opções partidárias. Se um dia a prática foi sinal de dinamismo democrático, acabou servindo de referência para um diagnóstico recorrente de que os partidos são fracos e que a representação política no país é deficiente. Expressaria, assim, um dos principais custos da governabilidade.

Depois de inúmeras decisões afirmando que a Constituição não previa punição ao representante que mudasse de partido, a justiça eleitoral acabou encontrando uma interpretação que, por vias tortas, chegaria nesse mesmo desfecho - a cassação do migrante.

O TSE, em 2007, respondendo a diferentes consultas, decidiu que os mandatos eletivos pertenceriam aos partidos pelos quais foram eleitos e não aos políticos individuais. Como consequência, o político eleito poderia perder o seu mandato caso mudasse de partido. A propriedade do mandato serviria tanto para as eleições legislativas (principal lócus de mudança partidária), como também, para os cargos executivos. A justiça eleitoral, todavia, legitimou a mudança partidária em alguns casos, com destaque para mudanças decorrentes de criação de novas legendas partidárias ou ligadas à defesa do programa partidário.

O formato dos partidos é resultado dos interesses para a sobrevivência político-eleitoral dos políticos

A interpretação da justiça eleitoral de que o mandato pertence ao partido aumentou os custos da mudança partidária por parte da classe política. Assim, buscam-se estratégias para legitimar tais mudanças aos olhos do TSE. Tome-se o exemplo do atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que anunciou sua saída do partido que o elegeu (DEM) em direção a outra legenda, contrariando os pedidos das demais lideranças dos democratas que ameaçam uma guerra jurídica. Acabou anunciando uma nova legenda, o Partido Social Democrático, que já ameaça atrair vários deputados. Note-se que a estratégia em nada representa um reforço da representatividade do sistema político ou ganho de força das organizações partidárias, mas tão somente um "drible" na determinação judicial.

A interpretação do TSE provocou uma reação da classe política. O poder Legislativo discute a chamada "janela de transferência" a fim de permitir mudanças partidárias, tendo em vista estratégias eleitorais individuais ou partidárias.

O debate em torno dessa agenda reflete um argumento de John Aldrich no clássico trabalho acerca do sistema partidário, "Why Parties?". O formato dos partidos não é resultado de nenhuma medida institucional, mas resultado dos interesses para a sobrevivência político-eleitoral dos políticos. A ação do TSE, no limite, alterou as chances de sobrevivência eleitoral dos políticos. A resposta dos parlamentares (seguindo o receituário da verticalização das coligações, número de vereadores) é alterar a legislação para reacomodar seus interesses.

É porque a reforma política contempla uma complexa diversidade de diagnósticos que a arena parlamentar é o lócus mais adequado para o seu debate. É nessa arena que os consensos podem ser forjados com legitimidade. Sendo forjadas por um ator externo, as mudanças nas regras podem carecer de legitimidade e força para serem cumpridas.

Por que não deixemos os eleitores punirem ou recompensarem políticos pelo seu desempenho e suas estratégias eleitorais?

Rafael Cortez, doutor em Ciência Política pela USP, é professor da PUC-SP e analista político da Tendências Consultoria.

Vitor Marchetti, doutor em Ciências Sociais: Política pela PUC-SP e professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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