segunda-feira, 28 de março de 2011

Os dois lados da glória lulista (César Felício)

Produziu certo alvoroço entre petistas nas redes sociais o longo artigo sobre Lula e o Brasil publicado nos últimos dias pelo historiador inglês Perry Anderson na "London Review of Books". Petistas atuantes no "twitter" chamaram a atenção ao artigo como se ele fosse uma chancela internacional ao ex-presidente, um sinal de reconhecimento acadêmico do exterior ao ineditismo e à excelência do ex-sindicalista como governante. Algo muito apropriado para a semana em que Lula se tornará doutor em Coimbra.

Um dos expoentes da escola britânica marxista e hoje professor na UCLA, na Califórnia, Anderson de fato coloca Lula em um alto pedestal no artigo singelamente chamado de "Lula"s Brazil". A leitura completa do texto mostra, contudo, que Anderson passou a uma distância muito grande da realização de um panegírico.

Marxista britânico elogia Lula, mas relativiza êxitos

O autor inicia afirmando que "por qualquer critério que se analise, Lula é o mais bem sucedido político de seu tempo". Isto, segundo Anderson em razão de "um conjunto excepcional de qualidades pessoais, uma mistura de sensibilidade social acolhedora e um cálculo político frio, para não falar de seu bom humor e de seu charme pessoal". E o símbolo mais evidente do sucesso seria o fato de Lula ter conseguido a rara façanha em regimes democráticos de terminar a sua administração com mais popularidade do que no momento que entrou. É realmente uma soma de adjetivos elogiosos que poucos acadêmicos no Brasil ousariam enfileirar em um artigo para uma revista erudita.

Mas Anderson dedica um generoso espaço a analisar em seu artigo os piores momentos do lulismo. O historiador assume como um dado factual a existência de um esquema mensal de propinas a políticos, o chamado "mensalão", que provocou a crise política de 2005. Anderson não procura negar a existência do "mensalão", como faz Lula, mas apenas busca colocá-lo em uma perspectiva histórica.

Relata que a corrupção é disseminada no sistema político brasileiro e uma evidência disso seria o fato de cerca de um quarto do Congresso sofrer acusações judiciais no final do segundo mandato do ex-presidente. Ressalta que as eleições no Brasil, em proporção com a renda do País, são as mais dispendiosas do continente. Lembra que a força de Lula nas urnas não era proporcional ao tamanho da base governista no parlamento. Comenta que o então ministro José Dirceu queria estabelecer uma aliança com o PMDB, mas que Lula preferiu pactuar com partidos pequenos. "O mensalão, ou o pagamento mensal de propina, foi concebido para eles", afirma Anderson, que se arrisca a uma avaliação: " em termos financeiros, a corrupção da qual o PT se beneficiou e presidiu foi provavelmente mais sistemática do que qualquer uma que a tenha precedido".

O historiador relembra que Lula só não sofreu um pedido de impeachment porque Fernando Henrique e José Serra avaliaram que o PSDB poderia ter sucesso nas urnas se enfrentasse um Lula enfraquecido em 2006. "Raras vezes na história houve um cálculo político tão equivocado", comenta.

Anderson matiza o alcance social e político das mudanças que teriam sido desencadeadas na era Lula, ao traçar a diferença entre o ex-presidente e Getúlio Vargas: "no poder, Lula não mobilizou nem incorporou o eleitorado que o aclamou. Não houve novas estruturas que deram forma à participação popular. A assinatura de seu mando foi a desmobilização. Os sindicatos organizavam mais de 30% da força de trabalho formal nos anos 80, hoje é 17%. Este declínio o procedeu, mas ele não o alterou", assinala. Considera também que as loas à criação de uma "nova classe média" repousam no que chamou de um "artifício de categorização, no qual não se considera pobre famílias que chegam a receber menos de US$ 7 mil por ano, ao contrário do que ocorre em outros lugares". Anderson questiona até mesmo a redução da desigualdade de renda durante o período de Lula. "Esta crença deve ser vista com ceticismo", afirma, citando duas razões: os dados estatísticos não conseguem distinguir a faixa dos "super-ricos" do topo da pirâmide social e sub-avaliam os ganhos de capital da parcela investidora da população.

Na parte final do artigo, Anderson discorre sobre as diferenças de análise dos dois principais estudiosos do lulismo, o ex-porta-voz da presidência André Singer e o sociólogo Chico de Oliveira e chama a atenção para o relativo emudecimento do PT sobre a polêmica entre ambos. "O PT virou uma máquina de gerar votos, mas perdeu suas asas intelectuais", observa.

O saldo geral da avaliação de Anderson sobre os oito anos de Lula é evidentemente positivo. Não apenas pelos atributos pessoais citados pelo autor logo no início, mas pela capacidade do Brasil de ter atravessado de maneira relativamente indolor a maior crise econômica global desde 1929. Destaca que sua legado histórico se amplificou no momento em que evitou a moderação e radicalizou suas políticas. Evita compará-lo a Perón ou Chávez e o aproxima de Roosevelt e Mandela. Mas o autor de amplos estudos da evolução histórica como "Linhagens do Estado Absolutista", sobretudo com orientação marxista que tem, jamais deixaria de relativizar o êxito de um líder político face às condições que propiciaram seu protagonismo.

César Felício é correspondente em Belo Horizonte. O titular da coluna, Luiz Werneck Vianna, não escreve hoje excepcionalmente

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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