sábado, 28 de maio de 2016

Esquerda tende a se isolar na oposição (Raymundo Costa)

As propostas de reformas da equipe econômica do presidente interino, Michel Temer, devem encontrar um ambiente mais favorável que Dilma Rousseff enfrentou no Congresso quando apoiou o ajuste fiscal do ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy. A diferença é a maior identidade programática entre a atual base de apoio e o governo do PMDB, ao contrário do que acontecia quando o PT dava as cartas no Palácio do Planalto.
A oposição declarada a Temer é mais ou menos do mesmo tamanho da oposição a Dilma, algo em torno de 100 deputados na Câmara. Para ser exato, 99 deputados, resultado da soma de PT (58), PDT (20), PCdoB (11), P-SOL (6) e Rede Sustentabilidade (4). Número insuficiente para a esquerda requerer sozinha a abertura de CPIs ou lançar frentes parlamentares. Diz a lógica que esse espectro deveria tentar sair do isolamento buscando alianças ao centro ou ao menos num grupo de cerca de 70 deputados que podem vir a discordar do novo governo.
Feitas as contas, sobra numericamente para o governo Temer uma base monumental, algo em torno de 370 deputados (o impeachment teve 367 votos na Câmara). A presidente afastada tinha praticamente o mesmo número de deputados ao seu lado, supostamente, mas perdeu sustentação política. "O governo Temer tem agora uma base com unidade programática e expectativa de poder", diz Antonio Augusto Queiroz, diretor de documentação do Diap, entidade que presta assessoria legislativa às centrais sindicais.
Com a experiência de quem há 30 anos acompanha o dia a dia congressual, Toninho, como Queiróz é chamado, não vai ficar surpreso se a coalizão governista apoiar as propostas de reformas feitas pela equipe econômica, por mais duras que elas sejam. "Ela vai votar contra por quê?", pergunta ele. "Antes votavam contra o PT, agora têm a expectativa de eleger um dos seus para Presidência da República".
Na opinião do diretor do Diap, "o PT erra ao não procurar o diálogo". Toninho vê o PT ainda "muito ressentido". Mergulhado nesse ressentimento, "perdeu a racionalidade". Como não conversa, "não agrega ninguém, não consegue trazer um apoio de centro". Restam os movimentos sociais, mas esses- acredita - "estão sendo asfixiados financeiramente pelo governo Temer". O Minha Casa Minha Vida Entidades, por exemplo, ajudava grupos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Segundo apurou o Valor, entidades sindicais mais ligadas ao PT estão apreensivas, por considerar que vão ter que bancar as manifestações (inclusive aquelas contra o impeachment) e acolher o pessoal desempregado do governo, que não é pequeno. Não dá para abrigar todos nos governos estaduais, como o de Minas Gerais, o maior na mão do PT.
O PT, as esquerdas em geral e o movimento sindical entram enfraquecidos na guerra das reformas. Hoje apenas 51 deputados têm origem no movimento sindical. Em 2006, eram 91 os sindicalistas. A razão da queda, na opinião de Toninho: a prioridade que o governo e partidos à esquerda deram à eleição de candidatos das máquinas governamental e partidária. O que levou à desmobilização da aliança e a formação de quadros nos movimentos sociais.
"A nova base não tem divergência ideológica", como acontecia quando o PT e não o PMDB eram o partido líder da coalizão, "e os conflitos no seu interior não são suficientes para levar os deputados a votar contra as reformas", acredita Toninho. "Ela só precisa de um presidente com pulso para aprovar as matérias. A oposição está isolada, raivosa e muitas vezes envergonhada por ter apoiado projetos como a renegociação da dívida dos Estados, que esfola com os servidores". Antes da saída de Dilma, esse era um dilema vivido por PSDB e DEM, quando decidiam votar contra o que apoiavam quando eram governo.
A identidade ideológica da base parlamentar, evidentemente, não é garantia para a aprovação das propostas de reforma como foram apresentadas, mas Toninho acredita que facilita a negociação e a composição dos interesses no interior da coalizão.
Valor Econômico (27/05/16)

"Por trás das aparências" (Fausto Matto Grosso)

Aproximam-se as eleições. Os primeiros pré-candidatos começam a aparecer. Será que teremos boas opções ou seremos reduzidos, mais uma vez, à triste condição de votar no menos pior?
O pano de fundo do processo eleitoral que se aproxima é o da frustração provocada pela natureza da pratica política existente em nosso País, caracterizada pelo descompromisso programático, pela promiscuidade entre o público e o privado, pela corrupção, pelo clientelismo e pela degenerescência das práticas políticas, situação essa que afeta os mais diferentes partidos e suas lideranças.
Mas afinal, como separar o joio do trigo, se nas eleições todos os discursos são parecidos e os candidatos aparentam serem todos iguais, aos olhos dos eleitores?
Uma boa ajuda para a tomada de decisão do voto pode vir da análise da tipologia de lideres políticos construída pelo chileno Carlos Matus. Chimpanzé, Maquiavel e Ghandi, assim o autor tipificava os estilos de liderança política, em uma escala do pior para o melhor.
Tais como nos grupos de chimpanzés, os líderes, assim classificados, são caracterizados pela expressão “o fim sou eu”. A forca representa o seu atributo político principal. Não existe projeto algum - o líder guia a manada a lugar nenhum e é guiado pela lógica de que “o projeto é o chefe e o chefe é o projeto”. É o estilo mais primitivo de fazer política. Os ditadores sul-americanos, velhos e novos, são uma boa representação desse espécime.
“Os fins justificam os meios” essa é a síntese da ideologia que sustenta o estilo Maquiavel. Em relação ao estilo anterior, a grande diferença é que neste caso há um projeto, que transcende o líder. O projeto não é mais individual, é coletivo, tem base social, mas é impossível realizá-lo sem o líder messiânico. Aqui o poder pessoal não é o objetivo, mas o instrumento. Nesse contexto, não há adversários, e sim inimigos que devem ser derrotados e, se necessário, eliminados. A esquerda autoritária foi pródiga em produzir tais lideranças.
Mas a humanidade já conseguiu produzir, embora mais raramente, outro tipo de líder, que baseia a sua liderança na força moral e no consenso. Ghandi é o paradigma desse tipo de liderança política. Talvez um bom exemplo mais recente seja Nelson Mandela.
Também aqui o projeto é coletivo, mas o líder não disputa para sê-lo. Não precisa força física, lidera pela superioridade de seus valores e da sua ética. Não precisa construir inimigos para vencê-los, mas sim subordinar e ganhar os adversários pela razão objetiva do projeto socialmente superior. Pratica a coerência entre discurso e ação, essa coisa hoje tão rara na política, cuja escassez está na origem da desmoralização dos líderes políticos.
Esses estilos de lideranças políticas raramente são encontrados em estado puro. Também, o líder não os escolhe ao seu bel prazer. O estilo real de cada político acaba sendo uma combinação particular entre esses estilos básicos e ainda vai depender do contexto dentro do qual se realizam as disputas.
A cada estilo de liderança vai corresponder, no exercício do poder, um comportamento político esperado. O de pensar e usar o governo como coisa sua, ou comportar-se segundo princípios republicanos. O de isolar-se no uso pessoal do poder ou de compartilhá-lo com a sociedade. O de perpetuar conflitos ou buscar convergências que possam viabilizar projetos de interesse público.
A essa altura, cada um deve estar procurando colocar as figurinhas dos líderes das disputas nos álbuns de personalidades, ou nos porta-retratos que lhes correspondem. O critério é de cada um, assim como a responsabilidade do acerto ou erro
(*) Fausto Matto Grosso é professor da UFMS, membro do Movimento por uma Cidade Democrática
Correio do Estado (MS) (27/05/16)

Não é o Brasil que está em crise, é o PT (Francisco Ferraz)

A crise ou as crises são do PT – como governo, partido, lideranças e militantes –, que por sua posição estratégica na Presidência contaminou o País com seu relativismo moral, sua ideologia mal digerida, sua inexperiência arrogante, seu envolvimento na corrupção e sua incapacidade de se decidir entre um reformismo não assumido e uma mal resolvida e confusa noção de revolução.
O Brasil que o PT recebeu em 2003 não estava em crise. O Brasil que Dilma deixou para Temer em 2016 está afundado na mais grave crise da sua História. De 2003 a 2016 o Brasil foi governado pelo PT, que, desfrutando as melhores condições econômicas e políticas, as desperdiçou por incompetência, ambição e corrupção.
É inaceitável e dispensa contestação a tentativa de transferir culpas alegando crise internacional, boicotes da oposição e da imprensa. Quem manteve no bolso, por 13 anos consecutivos, a caneta das nomeações e a chave do cofre não tem direito de transferir responsabilidades quando lhe convém.
O que liga a crise do PT à crise nacional é o conceito de contaminação. Quem domina o Poder Executivo no Brasil, com a concentração de poder que nos é peculiar, adquire ipso facto o poder de contaminar o sistema político, social e econômico e cultural. Adquirido o poder de contaminação pela vitória de 2002, o PT encontrou à sua disposição as instrumentalidades de que necessitava para disseminar na sociedade brasileira sua ideologia, seus projetos, preconceitos morais e interesses.
É na equação concentração do poder-instrumentalidades-difusão social-contaminação que se encontram as razões que explicam o sucesso e o fracasso do ciclo de 13 anos de governos do PT.
A maior evidência de que é o PT que está em crise se encontra no fato de que o governo Dilma, desde a reeleição até seu afastamento, não encontrou tempo nem vontade para governar o País com medidas à altura das dificuldades.
O Brasil e os brasileiros conheciam o PT como um partido minoritário de oposição. O Brasil e os brasileiros não conheciam o PT no comando do Poder Executivo nacional. De sua parte, o PT não imaginava a latitude dos recursos que a titularidade do Poder executivo oferecia a seu ocupante.
Não foi o PT que inventou a centralização política, econômica e administrativa, mas o PT levou-a a limites até então desconhecidos. Foi por meio dessa centralização extremada, coadjuvada por um marketing de Primeiro Mundo, pela herança “bendita” que lhe coube, pela facilidade de cooptação de líderes políticos e empresariais para operar a “máquina do governo”, lubrificada a reais e dólares, que o País foi contaminado e anestesiado por um otimismo irresponsável que funcionou enquanto havia dinheiro para gastar.
Acomodado no poder, o PT descobriu então que nem o federalismo, nem o princípio da separação dos Poderes, nem a Constituição podiam conter o Poder do Executivo exercido com audácia, arrojo e oportunismo. Inversamente, perder o poder tornou-se uma ideia absurda e quando admitida como possibilidade, apavorante.
A revolução havia sido ganha... (Não estavam no poder?)
Mas, estranhamente, jornais, revistas e TV resistiam; STF, juízes, Ministério Público e delegados condenavam e prendiam; companheiros delatavam; delações vazavam para a opinião pública; a economia ia mal, sem muitas alternativas, já que o gasto público, embora alto, não podia ser reduzido, pois se tornara a sustentação política do governo; e as investigações não paravam, aproximando-se cada vez se mais de Lula e de Dilma.
Em resumo, só a democracia atrapalhava a implantação cabal do seu projeto de poder. Era preciso ganhar tempo para fazer os fatos se adaptarem à revolução (já feita). Ganhar a eleição presidencial era absolutamente necessário.
Acostumado a demonizar os outros, viciado em ver sua vontade sempre atendida, decidido a não reconhecer erros, a não exibir nunca a boa e sincera humildade, o PT no poder revelou uma grave deficiência política: não sabe mais como lidar com a derrota. As sucessivas revelações da Lava Jato, as gravações telefônicas de Lula, a delação de Delcídio, a regulamentação do impeachment pelo STF, as votações na Câmara e no Senado e o afastamento de Dilma desnudaram sua forma de reagir à derrota. A marca singular dessa reação é a explosão emocional que impede seus líderes e militantes de praticar a saudável autocrítica. Aparece, então, com absoluta clareza o ressentimento de quem se julgava titular de um direito inalienável ao poder, perene, exclusivo, absoluto e legítimo, que dele só poderia ser subtraído por um golpe, se não militar, parlamentar.
O que o PT não quer admitir é que se tornou novamente minoria. Essa novidade é difícil de aceitar, mais difícil de entender as razões e mais ainda saber o que fazer para dar a volta por cima. A exemplificar essa reação emocional, na luta para reverter suas perdas de forma imediata passou a assediar o STF, constrangendo-o e perigosamente o comprometendo, por seus comentários desairosos e pelas “ameaças” de novos recursos à Corte, que a todo o momento dispara contra os adversários.
Tal forma de conceber a derrota o impede de equacionar estrategicamente a situação política em que se encontra. Fatos políticos como sua responsabilidade na crise política, econômica e moral do País; a desmoralização a que ficou sujeito com as revelações da Lava Jato; a perda do monopólio das ruas; o surgimento de novas forças políticas, que não desaparecem ao serem chamadas de coxinhas; e a perda do respeito e admiração de suas lideranças; nada disso é suficiente para recomendar a humildade, racionalidade e lucidez.
Ao contrário, não entende, não admite e não aceita a situação. Reage com impaciência, revolta e sede de vingança. Incapaz de fazer sua autocrítica, é forçosamente outer-oriented, isto é, pautado externamente pelo ódio aos inimigos.
A crise do PT decorre da negação da realidade.
(*) Francisco Ferraz é professor de Ciência Política, ex-reitor da UFRGS
O Estado de São Paulo (26/05/16)

Tristeza não tem fim (Monica De Bolle)

Era esperado. Era esperado que um dos membros do “ministério pragmático” de Michel Temer, desse com os burros n’água, fosse pego com a boca na botija, não tivesse destreza para dar nó em pingo d’água. Afinal, para quem é bacalhau, basta. Não é assim que pensam nossos governantes? Não somos todos bacalhau em casa de ferreiro, espeto de pau?
O ministro do Planejamento escolhido por Temer, um dos principais integrantes da equipe econômica, pego em gravação comprometedora. O ministro do Planejamento, às vésperas da votação pelo Congresso Nacional da nova meta fiscal, meta metida no vermelho, enrubescida de vergonha, posto que é negativa, disse que queria “estancar a sangria”. Em entrevista para se explicar, disse o ministro que a sangria a que se referia era a da economia. É mesmo? Então, agora vai.
Não houve tempo. Ao perceber o “erro”, pediu licença. “Licença de ministro” e “quarentena com foro privilegiado” são tecnologias jurídicas únicas no mundo, esquisitices brasileiras para tipos peemedebísticos e petísticos. Aquilo que o povo chama de pouca vergonha. Acabou exonerado para voltar ao Senado.
O governo interino de Michel Temer completa duas semanas. Duas semanas em que, entre brados de golpe, alguns acertos nas nomeações para a equipe econômica, vários erros nas indicações políticas, houve sopro de esperança. Esperança de que torniquete na hemorragia à qual o ex-ministro falastrão não se referia fosse, finalmente, aplicado. Não falo dos mercados, sempre a oscilar ao sabor dos dissabores políticos e econômicos. Falo dos empresários, dos trabalhadores, das pessoas que sentem a dor do desemprego, o desamparo da falta de perspectivas para o investimento – empresários, grandes, médios, pequenos.
Depois de tantos desvarios, por fim se via possibilidade de começar o árduo processo de reconstrução do País. Destruído, como refletira a meta revisada para um déficit primário de R$ 170,5 bilhões. É bom que se saiba: o déficit bilionário é apenas a diferença entre as receitas e as despesas programadas – muitas já ocorridas – em 2016, excluindo-se da conta o pagamento dos juros que incidem sobre a dívida pública. Caso esses sejam somados à vermelhidão, o resultado chega perto dos R$ 600 bilhões. Seiscentos bilhões de reais, ou cerca de R$ 4.200 para cada indivíduo que trabalha no País. Pensem nisso. Quantos podem pagar cota extra de condomínio de R$ 4.200 para ajudar a fazer dos escombros novo prédio?
Contudo, criou-se a expectativa de que o governo interino pudesse, com confiança e determinação, trazer de volta ao País algum leve, levíssimo ar de esperança. A dura realidade de quem realmente nos governa, entretanto, nos deu aquilo que merecíamos. Ardeu a bochecha? Machucou a mandíbula? Pois é, é para que não nos esqueçamos de que Temer-Adão é costela de Dilma-Eva, que é costela de Lula-Adão.
E agora? Há dois possíveis cenários. No primeiro, Temer altera aos poucos seu ministério político por outro com perfil mais técnico e segue em frente com as reformas de que o País tanto necessita, aos trancos e barrancos, mas sem interrupções ameaçadoras. No segundo, Temer nada muda e é confrontado por sequência de escândalos dentro de seu partido, aquele que governou lado a lado com o PT ao longo dos últimos tantos anos, é atropelado pela crise política e pela crescente insatisfação da população brasileira. Nesse cenário, sinto dizer, a tristeza não terá fim. Crise fiscal haverá de se instalar no País, acompanhada de mais caos, mais incerteza, inflação, desemprego.
O que é mais provável? Como vimos no caso do ministro exonerado, antes nas estripulias de Waldir Maranhão, no Brasil de hoje tudo é possível. A volta de Dilma também é possível. Volta que levaria o País ao apogeu da tortura econômica e do tumulto político e social, que não se enganem aqueles que ainda a defendem.
A esperança. A esperança é aquela que voa leve, que tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar. No Brasil saqueado não há vento. Há torvelinho, há olho do furacão. Brasil que faz cair a alma aos pés...
(*) Economista, pesquisadora do Peterson Institute for Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
O Estado de São Paulo (25/05/16)

Entre os sempre-governo e os neo-governo (Marcos Nobre)

O presidente do PMDB é um árbitro de luta profissional. Dá os pontos e a vitória a quem bate mais e melhor. Está sempre atento para não virar ele mesmo alvo dos golpes. Não há projeto, rumo ou direção previamente estabelecidos em suas decisões. Apenas acompanha a correlação de forças de cada momento: quem pode mais, leva; quem pode menos, aguarda uma próxima oportunidade. A única preocupação do árbitro é evitar o nocaute. No PMDB, a regra são as decisões por pontos.
Não por acaso, não se fala mais em presidente do PMDB. Ninguém sabe ao certo quem está no exercício do cargo no momento. O presidente interino se licenciou da função, assim como seu sucessor imediato no partido, o ministro do Planejamento, Romero Jucá. Mas, como presidente interino, Temer continua operando como presidente do PMDB. O problema é que não dá para agir na Presidência da República da mesma maneira como na presidência do PMDB. A necessidade de mudar de atitude já está mais do que evidente.
Não se trata de imaginar que um governo liderado pelo PMDB possa vir a ter um rumo preciso. Seria excessivo para a lógica de funcionamento do partido. O impeachment veio para restaurar as condições em que o sistema político operou nas duas últimas décadas. Se o governo interino tomar algum rumo mais ou menos homogêneo não será por obra sua, mas de algum polo de aglutinação dentro de seu governo que venha a se impor como dominante, seja em torno de Henrique Meirelles, seja em torno de José Serra. Mas o mais provável é que seja mesmo um governo disperso. Mesmo seu traço distintivo comum, o conservadorismo, não deverá ser homogêneo.
Em suma, o governo interino está à mercê das disputas internas entre seus feudos e será o que resultar dessas disputas. Mas não ter rumo não significa não ter objetivos e prioridades. Mais especificamente, o presidente interino tem uma única prioridade oficial, que pode ser resumida em um único objetivo: estabilizar a relação dívida/PIB. Colocou seu destino nas mãos do mercado, da mesma forma como Dilma Rousseff ao longo de 2015. Mas não se trata de mera troca de Joaquim Levy por Henrique Meirelles. A troca do segundo escalão das relações com o mercado pelo primeiro significa também que foram dadas a Meirelles garantias de que terá condições efetivas para entregar o prometido.
Não há hipótese de o governo interino não alcançar o objetivo se quiser chegar a 2018. Acontece que isso exige capacidade de aprovação em prazo relativamente curto de uma série de medidas no Congresso. Temer conseguiu reunir um megabloco parlamentar em favor do impeachment porque convenceu de que disporia do apoio dessa mesma esmagadora maioria quando assumisse a Presidência. Até agora, não conseguiu uma única manifestação concreta de que dispõe da mercadoria que vendeu no mercado futuro.
A mudança de governo não se deu como resultado de eleições gerais, mas como união de forças parlamentares contra o ciclo de governos liderados pelo PT. E não é tarefa simples transformar uma unidade contra em uma unidade a favor. Especialmente com a ameaça da Lava-Jato erguida sobre as cabeças, especialmente quando o ponto de união tem de ser o ajuste liderado por Meirelles, com todos os profundos danos eleitorais que trará.
Até agora, tudo o que o governo interino conseguiu foi impedir a implosão de sua base. O novo líder do governo na Câmara, André Moura, só chegou a essa posição por ter sido imposto pelo Blocão, uma massa que chega a 225 deputados. E o governo conseguiu que seu primeiro ato como novo líder fosse anunciar que o Blocão não seria formalizado. Só que o segundo ato do novo líder foi declarar que uma nova CPMF não passa na Câmara. Para completar, o Blocão mandou o recado: se for alijado do comando da Câmara, criará a figura do líder da maioria e a ocupará. Seria uma versão interna à Câmara do líder do governo, que, dessa maneira, passaria a ser, na prática, uma figura decorativa.
A disputa pelo governo interino se dá hoje na Câmara entre os sempre-governo do Blocão e os neo-governo de PSDB, DEM e PPS. O PMDB não conseguiu até agora se estabelecer como referência e liderança para nenhum dos dois blocos, muito menos conseguiu unificá-los. No momento, o único caminho de que dispõe o governo interino para isso é uma aliança tática com Renan Calheiros. O presidente do Senado não apenas criticou duramente a escolha de André Moura. Também partiu para impor o líder do governo no Senado. A movimentação precede a disputa pela liderança do governo no Congresso, que dará o termômetro da correlação de forças que acabará se estabelecendo.
À diferença da Câmara, a sucessão no Senado já está resolvida de há muito, o impeachment apenas veio confirmar as negociações para que Eunício Oliveira assuma o posto depois de Renan Calheiros. Mais que isso, a unificação entre os sempre-governo e os neo-governo no Senado já foi selada há muito tempo. Basta lembrar a dobradinha PMDB-PSDB nos principais projetos aprovados na Casa no último ano.
A aliança tática com Renan Calheiros está longe de ser óbvia. Ele mesmo e toda a sua equipe de interlocução parlamentar pertencem ao chamado grupo da Câmara e sempre tiveram relações de enfrentamento com Renan dentro do PMDB. Mas, se não quiser esticar a corda além do tempo de que dispõe, Temer será obrigado a dar um passo para além da posição de árbitro de luta profissional que o manteve por 15 anos na presidência do PMDB. Esse passo terá de ser o de organizar ativa e diretamente sua base no Congresso. E isso incluirá necessariamente a permissão para o nocaute.
De maneira simples e direta, Temer tem de se resolver a tirar Eduardo Cunha do ringue. O presidente suspenso da Câmara não tem condições de liderar, mas também não deixa ninguém liderar. Na condição de morto-vivo político, Cunha não tem outra saída a não ser emperrar e atravancar o quanto puder, impedindo que a nova base na Câmara se unifique em algum grau. É a única maneira de ainda se manter no jogo. E é também o caminho mais seguro para inviabilizar o governo interino.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Valor Econômico (23/05/16)

O claro-escuro do governo Temer (Sérgio Fausto)

A narrativa do golpe se desdobra agora numa visão cataclísmica do governo Temer. Há quem veja no ar o espectro de uma reação conservadora que lançará por terra todas as conquistas democráticas do povo brasileiro. Alguns não hesitam em comparar o quadro atual ao da instalação do primeiro governo autoritário depois do golpe militar de 1964.
Não se sabe até que ponto a paranoia é real, até que ponto é mera fabulação política para alimentar o discurso do PT na oposição. O certo é que essa visão é um despropósito: onde estão os tanques na rua, os Inquéritos Policiais Militares, a cassação de políticos e funcionários públicos, ou seja, o rol de arbitrariedades que a ditadura não tardou a adotar? Não há no quadro atual um traço sequer de semelhança com o daquele outono, 52 anos atrás. Hoje o que se tem é um governo interino que assumiu o poder em conformidade com a Constituição e o rito definido pelo STF para o processo de impeachment, sem um arranhão às liberdades democráticas.
Seria o governo Temer o mais conservador desde o retorno do País à democracia? Tenho minhas dúvidas. Não tenho nenhuma, porém, quanto a ter sido o governo Dilma o mais desastroso não apenas nesse período, mas em toda a História da democracia no Brasil, com a possível exceção da breve gestão de Jânio Quadros, cuja renúncia irresponsável empurrou o País ladeira abaixo em direção ao golpe de 1964.
Conservador, assim como progressista, é um termo que se emprega no Brasil com grande licença poética. Seria conservadora a constatação de que a rigidez do orçamento, nos três níveis de governo, chegou a tal extremo que o gasto da União, dos Estados e municípios se tornou virtualmente incontrolável, pondo o País na rota da insolvência fiscal, com colapso de serviços públicos, como já se vê em alguns lugares? Caberia igual adjetivo à disposição política para enfrentar essa situação com reformas que reequilibrem as contas da Previdência Social, assegurando o pagamento das aposentadorias no futuro, e afastem os riscos de o País retornar à inflação cronicamente alta e/ou à rotina de calotes da dívida pública? De igual maneira, mereceria essa qualificação a ênfase num programa de privatizações de ativos e concessões de serviços públicos capaz de reduzir o endividamento do Estado e impulsionar o investimento privado em infraestrutura? Em todas essas questões o governo Temer representa grande avanço em relação ao antecessor. E os primeiros sinais são animadores, pela clareza de objetivos e pela qualidade da equipe escolhida para realizá-los.
O mesmo se pode dizer da política externa, agora sob o comando do senador José Serra. Seria conservadora uma linha de clara independência em relação aos regimes bolivarianos e de repúdio às violações à democracia e aos direitos humanos nos países onde eles sobrevivem? Também nessa área o governo Temer começou marcando diferença, para melhor, dos governos lulopetistas, haja vista a nota emitida pelo Itamaraty, em 13 de maio, condenando o relato dos governos de Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia e Nicarágua e do secretário-geral da Unasul sobre impeachment da presidente Dilma. Relato ofensivo não a este ou àquele governo, mas às instituições da democracia brasileira. A nomeação do deputado Raul Jungmann para o Ministério da Defesa é outro sinal positivo. Entre outras razões, porque a presença de um ex-militante do Partido Comunista Brasileiro naquele ministério, em substituição a um membro do PCdoB, mostra o quanto amadureceram as relações entre militares e civis, cabendo a estes o comando das Forças Armadas.
Também infundada é a visão de que a área social seria submetida a uma política de terra arrasada. Ela decorre da premissa errada de que a expansão dos direitos sociais no Brasil é obra exclusiva do PT. Revela profunda incompreensão da própria dinâmica de uma democracia de massas num país com muitos pobres, onde a competição política impulsiona os governos a gastar na área social. A diferença maior reside em fazê-lo de forma clientelista ou não, populista ou não, sustentável ou não, menos ou mais eficaz para superar a pobreza e reduzir as desigualdades. O deputado Osmar Terra, nomeado ministro do Desenvolvimento Social, ocupou a secretaria executiva do programa Comunidade Solidária no governo FHC. Nem de longe é um conservador que come criancinhas.
Porém, como diz a velha piada, o fato de alguém ser paranoico não significa que não haja alguém o perseguindo. No Congresso, muito especialmente na Câmara, existe uma maioria conservadora, de tamanho variável em função do tema em pauta, mas forte o suficiente para promover retrocessos na legislação ambiental, nos direitos reprodutivos da mulher, no direito de família, no Estatuto do Desarmamento e mesmo na pesquisa científica. Essa maioria conservadora, que tem como alvo a geração mais recente dos direitos individuais e coletivos, pode cobrar um preço alto para aprovar as reformas fiscais de que o Brasil necessita.
A constatação do risco de retrocesso no campo dos direitos acima mencionados não deve levar a uma visão cataclísmica do governo Temer, muito menos à nostalgia pelo desastroso governo de Dilma Rousseff. Para defendê-los as forças políticas com valores afins nesse campo, não importa a posição em relação ao impeachment, devem atuar em conjunto nas esferas jurídica e política. Será um passo importante na configuração de alianças suprapartidárias. Elas podem revelar-se especialmente produtivas se caminharmos para um sistema de governo semipresidencialista, com maior protagonismo e responsabilidade do Congresso, em que a representação parlamentar ganhe maior densidade temática.
Uma coisa é certa: a disputa em torno dos “novos” direitos será cada vez mais dura. É preciso preparar-se para enfrentá-la.
(*) Sérgio Fausto é superintendente executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of public policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/05/16)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Duas Marias vão à guerra (Demétrio Magnoli)

Sinto, editores e leitores "modernos", mas não as elogiarei por serem mulheres. Nesse tempo e país, símbolos valem mais que substância – mas, anacrônico, prefiro a segunda. Maria Helena de Castro na secretaria-executiva do MEC e Maria Inês Fini na presidência do Inep são uma ousadia do ministro Mendonça Filho: a decisão de proteger os direitos dos estudantes contra a aliança entre a politicagem triunfante e o corporativismo sindical, grudados por uma gosma ideológica. Infelizmente, as duas Marias serão expostas a uma guerra suja, como sabem por experiência própria.
Maria & Maria têm uma plataforma para a Educação. 1) Base curricular unificada, com foco no "aprender a aprender"; 2) Avaliação sistemática das escolas, baseada em metas definidas; 3) Qualificação permanente dos professores; 4) Bonificação por mérito para escolas e professores.
Elas sofrerão, por isso, intensa sabotagem de camarilhas políticas, interessadas na colonização do sistema de ensino por cabos eleitorais, da burocracia aparelhada do MEC, consagrada a diversos tipos de doutrinação ideológica, e de associações sindicais de professores, avessas a distinções meritocráticas de remuneração. Todos esses grupos tecerão pactos de conveniência contra as duas Marias, boicotando suas iniciativas. São eles os "conservadores": querem conservar um ensino público que conspira contra o direito à educação dos filhos dos pobres.
Maria Helena assumiu a Secretaria da Educação de São Paulo em julho de 2007, mas durou apenas até março de 2009. O Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo (Idesp) registrou avanços em 70% das escolas. Contudo, de olho na sua campanha presidencial, o então governador José Serra entregou a cabeça da secretária numa bandeja de prata, cedendo à campanha da Apeoesp contra a unificação curricular, a avaliação das escolas e a bonificação por mérito. Numa entrevista, Maria Inês disse o que se sabe ("A maioria dos professores são heróis: dão 60 horas de aula por semana. É por isso que as melhores cabeças estão indo para qualquer outra área, menos para a sala de aula") e também o que não é óbvio.
Os professores "são preparados para transmitir informação, não para promover a cultura do conhecimento". Nas escolas, "dificilmente se ouve o estudante", mas "nenhum professor pode ter medo do que o aluno pensa" pois "é fundamental ter acesso às estruturas de pensamento da turma". No governo FHC, idealizou o Enem como ferramenta de avaliação da "cultura do conhecimento" e de investigação das "estruturas de pensamento". Depois, os bárbaros desvirtuaram o exame, convertendo-o em vestibulão nacional e, às vezes, em megafone de delinquências extremistas (ano passado, uma questão celebrava o antiamericanismo de Slavoj Zizek, para quem Pol Pot "não foi radical o suficiente").
Na guerra contra as duas Marias, as universidades federais ocuparão lugar de vanguarda. A ordem de tiro partirá de cima: em setembro de 2014, 54 reitores das federais prostraram-se diante de Dilma Rousseff, oferecendo-lhe seus préstimos na campanha eleitoral. De acordo com o texto que assinaram, eles tomavam posição "enquanto dirigentes universitários eleitos", forma despudorada de expor uma concepção sobre as relações entre universidade, política e partido. Suspeito que, além das tradicionais reivindicações corporativas, a próxima greve das federais será movida por objetivos político-partidários.
Ao aceitar as nomeações, Maria & Maria revelam a coragem de enfrentar poderosas máquinas políticas e sindicais sem contar com "ninguém" por trás: os escolares, crianças ou adolescentes, são o "povo desorganizado" na sua máxima fragilidade. A esperança de mudança no ensino passa a depender das convicções de Mendonça e do improvável compromisso de Michel Temer com os interesses de quem não têm voz.
fonte: - Folha de São Paulo (21/05/16)

Meu palavrão predileto (Bolívar Lamounier)

Como grande parte dos cientistas sociais brasileiros e latino-americanos, às vezes sinto uma vontade irresistível de empregar o adjetivo “liberal” como xingamento. Nesta parte do mundo, como bem sabemos, liberal é um feio palavrão.
Meus eventuais leitores por certo já repararam nisso. Por mais que procurem, os intelectuais, o clero, os dirigentes partidários e os chamados formadores de opinião não conseguem atinar com um termo mais adequado quando querem se referir depreciativamente a um economista, empresário, partido político ou ao próprio governo.
As entonações usadas são especialmente notáveis quando o personagem inquinado de fato propõe ou professa algo suscetível de ser considerado liberal. Pobre do partido político que fale em privatizar estatais deficitárias, ineficientes ou que simplesmente não tenham uma justificativa clara para serem mantidas no setor público. Maldito o governo que insista em manter as contas públicas e a inflação sob controle. “É um liberal”, alguém logo dirá. Ou, muito pior: “Não passa de um neoliberal”.
Resumindo, creio não exagerar quando digo que, entre nós, menoscabar o liberalismo se tornou uma atitude generalizada, direi mesmo um indicativo de qualidade intelectual: uma norma “culta”. Como isso aconteceu é uma história um pouco longa, mas farei o possível para contá-la no restante deste artigo.
A primeira causa – aliás, por definição – é o liberalismo político ser a teoria da democracia representativa – tanto assim que às vezes a designamos como democracia liberal; o oposto, portanto, do fascismo e do comunismo. Segue-se que o adjetivo “liberal” diz respeito a uma forma política dotada de instituições voltadas para a preservação da liberdade dos indivíduos e a autonomia de associações dos mais variados tipos. Como ideologias, o fascismo e o comunismo comportam exegeses imensamente complexas, mas os sistemas políticos que se propuseram a aplicá-las na realidade histórica foram totalitários, sempre e sem nenhuma exceção.
Uma conclusão preliminar é, pois, que algo há de estranho em nossa alma latino-americana, ou pelo menos na alma das categorias profissionais a que me referi. Parece que odiamos viver em liberdade e esperamos um dia viver em Estados baseados no partido único, na polícia secreta e na censura generalizada dos meios de comunicação.
Outra causa perceptível é que o antiliberalismo geralmente aparece em estreita associação com o antiamericanismo. Odiamos a liberdade porque os Estados Unidos a cultivam e simbolizam. Porque tiveram a ousadia de se desenvolver economicamente de uma forma espetacular; por terem saltado de uma condição cultural de terceira classe para a dianteira em todos os setores do conhecimento, fato atestado por todos os rankings das universidades de todos os continentes. E, sobretudo, por sua visão atomística do individuo, uma filosofia abominável, eticamente inferior ao “comunitarismo” que nos guia e inspira, assim como inspirou ditaduras fascistas e comunistas pelo mundo afora.
Deve ser por esses e outros horrores do liberalismo em vários campos de atividade que nosotros tendemos a rejeitá-lo. Nossos corações e mentes pendem para o antiliberalismo, tão bem representado no século 20 por um Mussolini, um Stalin e até um Perón; e no passado recente, por um Hugo Chávez, o grande inspirador da revolução bolivariana e do progresso de seu país, a Venezuela.
Marxistas por formação ou simbiose, os antiliberais, como disse, tomam-se de sacrossanto horror quando pressentem a proximidade de um “neoliberal”. Esse, ao ver deles, é um indivíduo que não se contenta com manter a moeda estável e as contas públicas em ordem, com melhorar a eficiência no gasto público; não, eles querem mais que isso. Querem retirar do Estado suas atividades mais nobres, desde logo as que exerce por meio de empresas públicas, direcionando suas energias para tarefas comezinhas como a educação das crianças e dos jovens, para tentar minorar o sofrimento dos que acorrem aos nossos serviços públicos de saúde (cuja qualidade Lula certificou como sendo de Primeiro Mundo), ou ainda, a segurança pública e a defesa nacional.
Como pode alguém querer um Estado que faça “só isso”? – perguntam os petistas, os intelectuais de esquerda, alguns clérigos e, naturalmente, aquela parte do empresariado que gosta do capitalismo, mas odeia a concorrência.
Mas qual é, afinal, o ponto mais importante da disjuntiva liberalismo x antiliberalismo? O problema de fundo, o verdadeiro divisor de águas, parece-me ser o papel do Estado. O papel e, portanto, a dimensão e os tipos de atividades que devem permanecer na esfera pública, para bem assegurar os objetivos e a soberania nacionais. Antigamente, o que os antiliberais em geral e os fascistas em particular não toleravam era o que chamavam de Estado gendarme, guardião e protetor dos interesses burgueses; hoje, mais ou menos na mesma linha, o que causa urticária nos marxistas por formação ou simbiose é a (suposta) ideia do Estado “mínimo”. O que não deixa de ser curioso, tendo eles sempre acreditado que, depois da revolução socialista, o Estado pouco a pouco fenecerá, ou seja, perderá seu “caráter político”; por falta de função, ele se tornará cada vez menos necessário.
Escusado dizer que jamais algo parecido aconteceu em algum país socialista. Mas o ponto que importa é este: os segmentos intelectuais a que me referi, que tão exacerbadamente combatem o “neo”-liberalismo, na verdade, o fazem em nome de um “paleo”-liberalismo.
(*) Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras, e autor do livro 'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20' (Companhia das Letras, 2014)
fonte: O Estado de São Paulo (21/05/16)

Fora do poder, PT terá de resolver crise de identidade (Editorial/Valor Econômico)

Com alguns de seus dirigentes históricos presos ou ameaçados de ir para a cadeia, sob suspeita de roubar recursos da Petrobras, políticos e ex-ministros sob a mira da Polícia Federal, o PT enfrenta uma enorme crise de identidade. Não sairá dela sem uma renovação dos métodos de atuação de sua direção, dos quadros dirigentes e sem diagnóstico realista sobre os motivos que o levaram à decadência quase terminal. Afastada a presidente Dilma Rousseff, o diretório nacional da legenda continua tergiversando sobre os motivos de sua agonia e se recusa a encarar publicamente a parte de responsabilidade do partido em um dos maiores escândalos de corrupção da história.
Após perder o predomínio nas ruas, o partido deverá levar uma sova nas urnas em outubro, da qual a debandada dos atuais prefeitos da legenda dão uma ideia aproximada. Seu desgaste é profundo e foi captado em pesquisa feita entre os eleitores de Dilma pelo "think tank" da legenda, a Fundação Perseu Abramo. Nela o partido é visto como direitista, desmoralizado, desonesto e corrupto ("O Estado de S. Paulo", 12 de maio). Mais: entre eleitores do PT, 46% defenderam sua extinção.
Único partido de esquerda com ampla base popular construído na história do Brasil, o PT entrou por último na teia de tenebrosas transações que sempre moveu as engrenagens do poder político, mas conseguiu ficar com a auréola de principal responsável pela corrupção sistêmica no país. Seguiu o caminho de organizações semelhantes em outras partes do mundo, embora a rapidez com que abandonou programas e princípios para envolver-se com em ações ilegais chama a atenção - apenas 13 anos.
Enquanto o PT continuou, quando chegou ao poder em 2003, a fazer reverência formal ao ideário da esquerda, seu maior líder, Luiz Inácio Lula da Silva, foi plenamente ortodoxo na política econômica, seguindo linhas básicas do governo de Fernando Henrique, ao qual se opôs tenazmente. A diferença foi a centralidade dada à política social, com resultados positivos importantes na redistribuição de renda, na ampliação do mercado interno e no ideal de igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. As conquistas obtidas ao longo de uma década, porém, estão sob risco, depois que erros de política econômica jogaram o país em uma profunda recessão.
O sucesso econômico dos primeiros quatro anos de Lula no Planalto deixaram em segundo plano o retrocesso político representado pela formação de coalizões sem princípios, incluindo com o que de pior existia na política tradicional. Para manutenção e ampliação dessa base extensa, o partido atravessou as fronteiras legais e enredou-se na corrupção que acabaria por derrubá-lo.
Como boa parte dos líderes carismáticos, Lula não formou sucessores e deixou de lado os políticos que fizeram com ele uma caminhada de três décadas. Na hora de escolher um candidato à Presidência em 2010, optou pela ex-brizolista Dilma Rousseff, que havia ingressado no PT há pouco tempo, quando ele estava perto de chegar ao poder. As correntes majoritárias do partido incensaram mais uma vez a sabedoria infalível do chefe, em um erro de avaliação que se revelaria o maior de Lula e que seria avassalador para o partido.
A análise preliminar do que deu errado pelo Diretório Nacional é digna de burocratas que querem se manter no poder, e nada tem a propor a não ser mais do mesmo, enquanto buscam culpados em outro lugar. Na relação dos conspiradores estão a ameaça "imperialista", a mídia monopolizada e a direita capitalista. Um dos sinais de que não haverá autocrítica séria é a atribuição do "papel crucial para a escalada golpista" à Lava-Jato. O PT nunca se explicou cabalmente e a fundo sobre evidências amplas crescentes de corrupção e busca de enriquecimento próprio por alguns de seus membros, nem sobre a sinistra linha de continuidade de objetivos entre mensalão e petrolão. É possível que muitos de seus dirigentes acreditem que houve erros pela "causa", mas se não arrumarem explicações melhores o destino do PT é a cisão, com os remanescentes estacionados em uma legenda que já não se distingue há tempos das demais.
O PT não acabou, Lula é ainda um dos candidatos favoritos em 2018 e a legenda pode se camuflar em uma "frente de esquerda" para tentar voltar ao poder. Mas sem dizer a si próprio, sem subterfúgios, o que deu errado, o PT não tem mais futuro.
(20/05/16)

terça-feira, 24 de maio de 2016

Sobre heróis e golpes (Bruno Cava)

A queda de Dilma parece demandar uma leitura óbvia. Novamente na história da América Latina, um governo de matiz nacional-popular teria sido derrubado pelas elites neocoloniais. Mais uma vez, a tentativa geopolítica de constituir um eixo alternativo ao imperialismo sediado em Washington, desta vez por meio dos BRICs, terminaria esmagada pela restauração conservadora. Reencenou-se a história dos golpes de estado no subcontinente, ecoando os de 1964 (Brasil), 1973 (Chile) ou 1976 (Argentina), a quartelada contra Chávez na Venezuela (2002), ou então os ditos “golpes brandos”, contra Zelaya em Honduras (2009) ou Lugo no Paraguai (2012). Desta vez, a vítima teria sido o maior partido de massas das Américas, maior peça do dominó que, agora, ameaça o inteiro ciclo de governos progressistas. Símbolos para afiançar essa leitura não faltam. Em favor dela, comparecem as estrelas e bandeiras vermelhas, lá estão Lula, o MST, o panteão de intelectuais de esquerda a elucidar os mecanismos imediatos do golpe e denunciá-lo.
O dilaceramento do ciclo do Partido dos Trabalhadores no comando do governo federal, de 2003 a 2016, tornou aguda a vivência do presente daqueles que se sentem diretamente implicados no projeto. O que quer que “projeto” signifique para cada um, a admissão de seu colapso é vivida como fim de uma visão de mundo. Por mais truncada e repleta de contradições, quando o pano cai sobre a peça petista a sensação manifestada tem sido um misto de melancolia e raiva. Tamanha é a tutela pressuposta ao redor do PT, o momento é sentido como o ocaso de uma era, quando naufragariam também as esquerdas, os progressismos, os horizontes das lutas como um todo. Futuro, presente e passado se agregam num tempo em que tudo parece ganhar espessura e ser colocado em questão. Estariam em jogo não só a ocupação do governo, como também as conquistas sociais das últimas duas décadas, o legado institucional da constituição de 1988, a memória das lutas contra a ditadura.
Durante a votação do impeachment no Congresso, os parlamentares repetidamente invocaram valores sagrados e instituições patrióticas, em meio a discursos túrgidos e jogos de cena de um lado e de outro. Um deputado elogiou um coronel torturador do regime de 1964, outro proclamou o fim da “ditadura lulopetista” fiada no bolsa família, outro ainda sintetizou: é contra a “vagabundização remunerada”. E a compressão temporal também levou deputados contrários a invocar mártires da resistência, do líder insurgente dos escravos Zumbi à Olga Benário, comunista deportada na ditadura Vargas ao III Reich e gaseada. As múltiplas escalas do tempo dramatizadas no tableau vivant da representação parlamentar brasileira soam como sucessivos golpes de teatro, pulando inusitadamente em cena.
Deveria provocar ao menos a curiosidade, naqueles menos suscetíveis a efeitos melodramáticos e histrionismos, chamar de golpe de estado o procedimento conforme a constituição presidencialista do país, previsto exatamente para a remoção de um presidente eleito, quando esse procedimento é seguido a rigor, sob a supervisão de uma suprema corte cuja composição tem 8 de 11 ministros indicados pelos governos do PT. Ou quando vai assumir, caso o impeachment se confirme em outubro, o vice-presidente eleito conjuntamente com Dilma, em 2014 e 2010, com direito a foto na tela da urna e tudo o mais. Mais de 2/3 dos parlamentares votaram pela instauração do processo em ambas as casas do Legislativo brasileiro, com um intervalo de quase um mês entre uma e outra deliberação, período em que as forças governistas têm exercido uma abrangente defesa em fóruns, mídias e nas próprias instâncias previstas, em que vêm interpondo recurso atrás de recurso numa microscópica discussão do rito.
Alega-se que não existe fundamento material para o impeachment, mas entre considerar uma decisão injusta ao sabor das conveniências políticas e acusá-la de ser um golpe que rasga a constituição vai uma saudável distância. Embora o grau de tramoia envolvido no alijamento de Dilma não permita nivelá-lo aos impeachments consumados de Collor no Brasil (1992) ou Fujimori no Peru (2000), por outro lado, difere em muito na forma e no conteúdo dos casos recentes em Honduras, onde o presidente foi metido num helicóptero na calada da noite e deportado pelas forças armadas, ou no Paraguai, onde Lugo sofreu um “impeachment-relâmpago” que durou menos de 48 horas.
Os defensores do governo diriam: não importa. Golpe brando, parlamentar, judicial-midiático ou pós-moderno, o que importa é traduzir a torrente de fatos do noticiário e os encadeamentos vertiginosos de uma conjuntura num enunciado simples e direto. Um que possa, como escreveu Luiz Eduardo Soares, “definir a presidente como vítima” ou “remeter mensagens facilmente decodificáveis para o público internacional, constrangendo os operadores internos do processo” [1].
De fato, está em curso a conjugação de esquemas didáticos e estruturas obsessivas ao redor da narrativa do golpe cuja lógica cerrada não permite hesitação. Não é hora de compor charadas ou abstrair a gravidade da indecência que vivenciamos. É hora de resistir ao golpe. Todo o resto será tratado como ponderação bizantina para atrasar a marcha dos paladinos contra o golpe. Num clima de pânico moral com cães de guarda postados à beira do escândalo, que não deixa de lembrar aquele do avanço moralista e conservador que estaria por trás do golpe em primeiro lugar.
O maior problema dessa cobrança rebarbativa está no absoluto descompasso entre expectativas e realidade. Como é possível invocar a força moral de um governo em favor dos mais pobres quando estes não comparecem à altura que o momento, segundo esse relato épico, exigiria. O músico e intelectual das periferias, Mano Brown, lamenta que a favela faz silêncio, se ilude com a televisão e termina por dar as costas à Dilma [2]. Faz dois anos, depois do levante de junho de 2013, o secretário de Dilma chegou a falar em ingratidão: “fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós” [3].
Paira realmente um sentimento difuso entre os resistentes ao golpe que a situação não vem mobilizando o povo como seria de se esperar. Existe uma defasagem de representação política também à esquerda, pois os sujeitos pressupostos do discurso parecem recusar-se a ser enquadrados nos esquemas do nacional-popular. E quando aparecem nas narrativas e muxoxos, são reduzidos a um caldo desorganizado, pré-político, à deriva das pulsões midiáticas.
Outro descompasso impossível de engolir consiste no fato que, durante 13 anos, o governo reivindicou o pragmatismo como razão de ser. O limite máximo da correlação de forças, no dizer de seus intelectuais, serviu de álibi para uma verdadeira “paixão pelo possível” que levou ao Compromisso Histórico na base do lulismo. Durante mais de uma década, inclusive durante a mais extraordinária mobilização popular e democrática em 2013, as forças governistas opuseram um férreo realismo político ao idealismo naif e irresponsável. Como podem os governistas, agora, quererem atualizar sagas de outros tempos numa elaboração shakespereana, quando vão fazer política no mais desencantado pragmatismo?
Não foi Gleisi Hoffmann, ex-ministra-chefe de Dilma, atualmente uma das protagonistas da saga da resistência contra o golpe, quem disse que “o governo não pode e não vai concordar com minorias com projetos ideológicos irreais”? [4]. Com qual legitimidade pode a presidenta afastada assomar agora como figuração heroica de uma mitologia de esquerda, quando ela mesma, quando tinha a caneta na mão e sólidas condições, vinha chamando as lutas de nosso tempo, dos indígenas e ambientalistas diante da usina de Belo Monte, de “fantasia”?
A obsessão simplificadora e pedagógica, voltada a cultivar uma mística, não vai penetrar no complexo de fatos de que é feita a conjuntura brasileira. Desse modo, os afetos tendem a alucinar em círculos, um grito tanto mais estridente quanto impotente. Governa-se munido de pranchetas, cálculos de governabilidade e da razão desenvolvimentista, mas uma vez fora do governo recorre-se ao carisma como uma manobra tática, à idolatria das imagens. Não se vai longe assim. “Infeliz a nação que precisa de heróis”. A mesmerização do discurso do golpe se limita, no máximo, a reforçar uma matriz comunitária, de sentimento de pertença, cuja salvação depende de um ritual de coesão e algum líder carismático.
Que o impeachment seja tramoia, — vá lá um “golpe palaciano”, — mas não há paladinos nessa história. Não vale o provérbio cria cuervos e después te sacarán los ojos, porque não há palomas nessa história. São todos corvos, como revelou a operação Lava Jato, isto é, um bloco ecumênico de partidos, políticos e parceiros contra o que protesta boa parte dos milhões de indignados em ruas e redes nos últimos anos. Temer foi um velho aliado. O delator Delcídio autointitulado “profeta do caos” foi o líder do governo no senado. O PMDB, um irmão siamês da coalizão lulista. Henrique Meirelles, o homem forte da economia durante os 8 anos do governo Lula. O ajuste fiscal e a reforma do estado, tendências que já estavam postas pelo menos desde a guinada à direita de Dilma, na contramão de sua própria campanha de 2014. Se há descontinuidades entre Dilma e Temer, há também diversas e incontornáveis continuidades. O desentranhamento do PT da coalizão governista não se deu especialmente por suas qualidades.
Num país que viveu duas ditaduras e escravidão, em que o golpismo parece estar situado em sua quintessência [6], com tantos linchamentos diários, violência policial nas metrópoles, encarceramento de pobres em massa, racismo de estado e extermínio indígena, soa de um egocentrismo atroz hoje, depois de 13 anos no poder, colocar-se no centro da peça como vítimas heroicas de um golpe de estado [7]. As únicas tropas nas ruas que vimos nos últimos anos foram as que os governos colocaram na favela, nos megaeventos, nas grandes obras das empresas “campeãs nacionais”, para garantir a lei e a ordem, para exercer a violência legítima contra os não pacificados, os “criminosos”, os selvagens, contra os manifestantes, para fazer reinar a paz…
Não dá pra passar pelos problemas hoje como gato sobre brasa. É preciso introduzir dados novos no desenho, recapitular episódios, argumentar passo a passo, cartografar minuciosamente as relações de força, os impasses, os paradoxos e vaivéns que nos trouxeram até este ponto [8]. O calor da hora não pode subtrair-nos o direito a reflexões necessárias e dolorosas.
Notas
[1] Respiração artificial: Sobre o impeachment e suas implicações
[2] Mano Brown: “Eu vi a população virar as costas pra Dilma. Enquanto a favela faz silêncio, a mídia manipula”
[3] Houve 'quase ingratidão' em protestos, diz ministro
[4] Um governo a favor dos caras pálidas
[5] Dilma afirma que não há espaço para discutir 'fantasia' na Rio+20. E também Dilma: quando o consenso pisa na fantasia.
[6] – Sobre o golpismo como um gradiente, um limiar pervasivo e latente do Brasil, ver o excelente ensaio de Diego Viana/Guardo uma pequena diferença com relação a seu posicionamento conjuntural na última seção, pois a meu ver o esgotamento do ciclo, mesmo por meio do atual desenlace, abriga potenciais diversos que estão em aberto.
[7] – Renan Porto já argumentou assim: O golpe da falácia.
[8] – Dois textos que apontam processos emergentes e que contribuem para abrir o pensamento e a prática a um horizonte transformador: Vertigens de junho (Alexandre Mendes e Clarissa Naback) e A sociedade contra o Estado e o Mercado (Moyses Pinto Neto).
(*) Bruno Cava, graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito e participa da rede Universidade Nômade (artigo publicado no blog Quadrado dos Loucos, 21/05/16.