terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O que o Carnaval diz do Brasil? (Roberto DaMatta)

No Brasil, o Carnaval nos permite abandonar as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo


Toda celebração nacional tem um mito, uma história que explica e justifica a sua celebração. O melhor exemplo é o nosso "7 de setembro". Uma arrogada realidade histórica ensina que já em agosto de 1822 Dom Pedro I rompera com Portugal declarando inimigas as tropas lusas que estavam em nosso território.
Mas o mito, conforme aprendemos na escola primária, narra um gesto muito mais dramático e revelador. Em viagem a São Paulo acompanhado por sua guarda de honra (chamada de "dragões"), Dom Pedro recebe a correspondência de Portugal limitando seu poder. Reagindo à diminuição de sua liberdade, arranca do seu dólmã as fitas com as cores vermelha e azul das cortes portuguesas, desembainha a espada e grita:

"Independência ou morte!". Estava declarada nossa independência às margens do Ipiranga – um riacho de "água vermelha" (i-piranga em tupi), como mostra o quadro consagrador de Pedro Américo. O ritual que celebra esse mito repete todo ano o gesto de uma forma estilizada: há uma parada militar onde se afirma o poderio brasileiro. O grito "original" (sinal do rom-pimento) é substituído por discursos ou pelo canto do hino nacional. A Independência segue a norma dos ritos da ordem e tem um centro, um propósito e um personagem.

Tudo isso contrasta notavelmente com o Carnaval, que não tem um mito de origem nem é uma comemoração de algum ato ou pessoa. Na festa de Momo, temos o rito, mas não temos o mito. Trata-se de uma festa da desordem e, como tal, ela promove uma infinidade de personagens e eventos. Em contraste com a Independência, o Carnaval ocorre dentro de um tempo bíblico. O Carnaval, como o futebol, não foi inventado no Brasil e faz parte de uma tradição arcaica na qual se coloca em correspondência a mudança das estações do ano ou anomalias cósmicas (como os eclipses) e o barulho por meio da percussão, o insulto e o as-sassinato dos deuses. Ele ocorre antes da Quaresma, que culmina no sacrifício de Cristo, o Deus que se fez homem para salvar a humanidade, conforme reza a tradição cristã. Antes então de um período de disciplina (onde não se come a carne – donde: carne levare), permite-se o excesso que sinaliza o fim de um recreio.

No passado, o Carnaval foi uma celebração obrigatória: todos tinham de brincá-lo. Hoje, ele é um longo feriado, embora con-tinue preservando sua escritura original que suspende e inverte as regras das rotinas mais equilibradas. A norma é esbaldar-se, brincar e pular até cair. Temos então uma revelação interessante: como uma festa baseada no "poder fazer tudo" acontece na terra do "não pode"? Um "não pode" sempre dirigido para quem não é rico, bem de vida ou faz parte do governo?

A pergunta contém sua resposta. Só existe Carnaval onde há o desejo de ver o mundo de cabeça para baixo. A permissividade planejada e permitida é, no fundo, uma licença "legal" (conforme taxamos tudo o que é bom no Brasil) para abandonar, por um curto período de tempo, as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo. Tão profundamente aristocrático e desigual que seus membros precisam de um ritual permissivo. Testemunha isso o fato de o Carnaval ter sido proibido na Es-panha e em Portugal nas ditaduras de Franco e Salazar. No Brasil, as tentativas de proibi-lo sempre estiveram associadas ao eliti-smo intelectual que vê na festa um abuso dos bons costumes e um exemplo de "atraso" nacional. Enfim, como perda de um tempo precioso, destinado a produzir e a fazer as grandes reformas e a "revolução" de que tanto precisamos. Como o futebol, o Carnaval seria um ópio ou, na melhor hipótese, um remédio para o povo.

O que fazer com o puritanismo globalizado que manda trabalhar, poupar e ser recatado, se o Carnaval apresenta aos seus celebrantes uma verdade alternativa: aproveite enquanto pode; é hoje só, amanhã não tem mais... E, ao lado dessa mensagem, deixa que o pobre vire divindade, reduzindo o patrão ao papel de espectador de seus empregados. Não satisfeito com tais ab-surdos, ele faz o governo destinar verbas para suas "escolas de samba", cujas sedes são melhores que as escolas e os hospitais. Pode-se urinar, beijar e fazer outras coisas na rua em cidades cujas vias públicas são finalmente destinadas a nós, seus cidadãos – essas ruas que, sem os nossos mortíferos automóveis, podem ser desfrutadas porque estamos num mundo sem donos e patrões.

Nada melhor do que a marchinha de Lamartine Babo, escrita em 1934, para mostrar o que o Carnaval diz do Brasil:

Quem foi que inventou o Brasil?
– Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval!

Se o mundo diário nos obriga a pensar a festa como um resultado ou um prêmio, a música e o mito levam a ler o Brasil irre-mediavelmente marcado pelo Carnaval. Nele, a festa não depende do Brasil, mas, pelo contrário, é o Brasil que dela decorre. O compositor percebe como o Carnaval escapa do viés utilitário que só enxerga o mundo como controlado por partidos e classes sociais. Nessa sociedade que, até 1888, teve escravos, que até ontem teve imperadores e barões e, no seu período republicano, mais ditaduras do que regimes igualitários e livres, entende-se por que o Rei Momo vem periodicamente governar. Pois, mais do que festa, o Carnaval é o espelho pelo qual vemos a nós mesmos por meio da estética dos subordinados. Esses que amam o luxo e o enfeite adoram o exagerado e o invejável. E assim reproduzem seus superiores por meio da licença ampla concedida pela permissividade do ritual. Desse modo, abusam tanto quanto seus superiores o fazem no mundo diário, onde desfilam com suas falcatruas, mentiras e roubos da coisa pública, sem ser punidos.

Penso, pois, que o Carnaval põe o Brasil de ponta-cabeça. Num país onde a liberdade é privilégio de uns poucos e é sempre lida por seu lado legal e cívico, a festa abre nossa vida a uma liberdade sensual, nisso que o mundo burguês chama de libertin-agem. Dando livre passagem ao corpo, o Carnaval destitui posicionamentos sociais fixos e rígidos, permitindo a "fantasia", que inventa novas identidades e dá uma enorme elasticidade a todos os papéis sociais reguladores. Se Shakespeare nos visitasse, confirmaria seu famoso axioma segundo o qual o mundo é um palco. E descobriria, indo além de si mesmo, que, nesse cenário de tragédias, injustiças, sofrimento e reveses, a própria morte é convidada. Pois, no Carnaval, os homens desmorali-zam a morte, cantando e dançando com ela. Reafirmando o riso como nosso único consolo. Esse riso carnavalesco que cora-josamente permite rir de nossas próprias desgraças.

Roberto DaMatta é antropólogo, autor de Carnavais, malandros e heróis (1979) e Pé em Deus e fé na tábua (2010)
Revista Época

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

HISTÓRIAS DA EDUCAÇÃO DE VILA VELHA PARA SEREM LEMBRADAS

Lembro-me de que ao final do ano de 2008, o prefeito Neucimar Fraga já eleito, a pergunta que todos da educação fazia era: Quem será o secretário de Educação? Logo na primeira semana do mês de dezembro, a resposta: será “o vereador Heliosandro Matos”. Já indicado pelo então futuro prefeito o novo secretário resolveu fazer uma reunião com representantes dos diretores eleitos, os mesmo tinham um fórum, e ao iniciar a reunião fez a seguinte declaração: “ESSE GOVERNO VAI SER DE RUPTURA E NÃO DE CONTINUIDADE, É UMA NOVA FASE PARA A EDUCAÇÃO DE VILA VELHA”, realmente a promessa foi cumprida, e só essa. Vamos aos fatos:

Na época da campanha política, em uma assembleia do magistério de Vila Velha, o Sr° prefeito Neucimar Fraga assinou a famosa CARTA COMPROMISSO, que tinha como um dos itens o compromisso de respeitar as eleições para diretores. Mas o que ele fez foi justamente o contrário: exonerou diretores. Alguns foram exonerados por conta de uma carta anônima que estava em poder do Ministério Público e falava sobre desvios de verbas e que até hoje não se tem investigação ou resultado da mesma. Outros, podendo-se dizer que a maioria, por terem feito campanha para o Dr. Hércules - candidato da oposição que disputou o segundo turno. Ainda existiram casos de diretores exonerados por terem alguma desavença com o secretário Heliosandro. Além de serem exonerados os diretores tiveram que passar por uma situação em que tiveram a moral colocada à prova, na ocasião foram divulgadas informações na mídia dizendo que o motivo das exonerações dos diretores do Max Filho era por desvio de verba da merenda escolar, o que culminou na organização de uma CPI na Câmara Municipal onde os diretores foram julgados pelos vereadores (E QUEM SÃO ELES PARA JULGAREM?) e inocentados ao final. E foi a partir desse episódio que começamos a ter certeza que o Sr° Prefeito não honraria as suas promessas.

Começamos então a nova era, a era Heliosandro, a era dos devaneios de uma mente sem igual. Em uma entrevista ao vivo o então secretário de educação Heliosandro fala que em todas as escolas municipais iriam dispor de um botão antipânico e que qualquer problema com um aluno bastaria o professor acionar o botão e a patrulha escolar iria até o local. Heliosandro até inaugurou um botão ao vivo na escola conhecida popularmente como Vila Olímpica, só que ficou no campo da promessa, pois trabalho há muitos anos na rede e nunca vi e nem me deram o tal “butão”.

Temos também a fala do Helisandro de que no governo Max Filho se gastava muito com o transporte escolar, mas com ele seria diferente, ele compraria os ônibus com recursos da Educação. Estamos esperando até hoje o transporte chegar, antes na época do secretário Roberto Beling tínhamos ônibus para levar os alunos ao cinema, e hoje? Hoje, os ônibus que ficavam a disposição para esse fim foram remanejados para a Região V, ficando todo o resto de Vila Velha sem o transporte.

Outra história que deve ser lembrada é a aparição do Heliosandro no jornal “Bom Dia ES”’, da TV Gazeta, afirmando que o em quatro anos o índice do IDEB de Vila Velha subiria de 4,8 para 8,0, só um lembrete: isso é índice de país de primeiro mundo, será que estamos neste patamar? Quero só ver quando o resultado sair, qual será a desculpa do mesmo. Pelo visto o índice tende a baixar, pois o ano em que foi aplicada a prova tinha escola sem professor até o mês de setembro, e agora José?

Temos ainda o vídeo monitoramento. Todas as escolas foram obrigadas a colocarem o circuito interno e tinham que dar “preferência” para uma empresa, por que será? Coisa de diretor ou secretário? Eis a questão (tem escola que o sistema e só enfeite, não funciona, pois a manutenção é cara).

Outro ponto que devemos apenas citar, pois os números falam por si: quantas escolas tinham no governo Max Filho? Quantas existem hoje? As que foram inauguradas em que gestão começaram a ser construídas? Quantas ordens de serviços há para construção de novas Unidades? Quantas escolas realmente foram reformadas? (não estou falando passada uma tinta da cor do partido do PR, falando nisso, onde estão as empresas de manutenção? Antes na época Max Filho e o secretário Roberto Beling nós tínhamos manutenção e hoje? O que se alardeava aos quatro cantos era que havia muitas crianças fora da escola e que se construiriam novas escolas e que era urgente esse processo, o resultado disso tudo foi que as construções não passaram de uns CONTÊINERES, e que comparando números de matrículas pelo site do INEP, em 2008 na gestão de Max Filho 43435 alunos estavam matriculados e no ano de 2011 (Neucimar Fraga) os números são de 42441 alunos. Onde estão todas essas crianças fora da escola que tanto se falava? Perceberam que não se ouve mais falar nesse assunto?

Depois desse tumultuado secretário, entrou um novo secretário (Miguel) que não ficou dois meses, em nota em jornal de grande circulação, o mesmo dizia que estava saindo, pois não estava gostando do que viu. O que será que ele viu?

Veio então Maria do Carmo com o projeto Vila Velha Aprendente, que também não houve aceitação por parte dos professores, e tanto, que foi um projeto que não foi à frente e, com ele sua autora a secretária que tinha medo de se expor, pois quem falava era só a subsecretária Rosângela, na verdade temos que dá um ponto para as duas, pois não atendiam aos pedidos dos vereadores, que logo “pediram suas cabeças”, resultado: exoneradas.

Ai chegou a Vanessa, vinda diretamente de Nova Venécia/Tocantins com passagem por Brasília, essa é a mesma pessoa que está fazendo a vida dos professores de Vila Velha virar um inferno, essa parte da história é o presente não precisa ser contada todos estamos sentido na pele o que ela é capaz temos como exemplo, horário de trabalho.

Espero que o que foi relatado acima, pouco eu sei, pois são vários os episódios que essa gestão protagonizou, sendo infelizmente o professor o maior prejudicado, sirva para relembrarmos o que passamos neste três anos desse desgoverno e se queremos passar por tudo isso ou mais, em um período de oito anos, e lembre-se “NADA E TÃO RUIM QUE NÃO POSSA PIORAR”.
(Zé Canela Verde)

O projeto verde (Renato Janine Ribeiro)

Preocupo-me com uma triste curiosidade da política brasileira: temos por um lado partidos sem projeto político, como é o caso de várias agremiações médias ou pequenas, que nada almejam senão uma fatia do poder e, por outro, projetos ou agentes políticos sem partidos. Estas semanas, discorri sobre este assunto. Tratei dos empreendedores e ongueiros, que, a despeito de suas diferenças, estão desenvolvendo um know-how de qualidade para organizar a sociedade - mas não têm, e talvez jamais venham a ter, projeto político. Substituem com vantagem, a meu ver, um liberalismo que nunca deitou raízes reais em nosso país, mas nem por isso se converteram em ator político. Tratei disso há poucas semanas. Na última coluna, lembrei aqueles, economistas ou políticos, que acham insuficiente o Brasil exportar produtos agropecuários e minérios, querendo uma pauta de produção e de exportações que agregue mais valor-trabalho a nossas mercadorias.

Acrescentei que esta importante discussão não tem desdobramento político; fui então agradavelmente surpreendido pelo lançamento, em breve, da Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Nacional, comunicado a mim pelo deputado Newton Lima. Espero que dê frutos, embora eu esteja convencido de que hoje a oposição indústria-lavoura está sendo substituída pela do trabalho inteligente vs. o braçal.

Hoje há duas forças políticas capazes de disputar o poder no Brasil - o PT e o PSDB. Mas há outras ideias, outras questões, que precisam ocupar mais espaço em nossa cena pública - seja criando novos partidos que com o tempo se tornem competitivos, seja levando os dois principais a levar em conta conceitos e concepções que não constam, ainda, de suas agendas. Aliás, esse foi o caminho tomado pelos verdes, na sua história de quase meio século. Sabendo que não conseguiriam votos suficientes para chefiar um governo, eles se aliaram aos socialistas, na França e na Alemanha, a fim de implantar ao menos parte de suas políticas. Isso, que vale para os verdes nos dois países mais importantes em que exerceram algum poder, parece-me valer para todos os projetos de que tratei, mais o que verei hoje, que é o dos verdes de Marina Silva. Empreendedores podem ser mais fãs do capital (ainda que social), industrializantes podem ter tido em José Serra seu político mais proeminente e Marina foi ministra de Lula; mas não há impossibilidade, de princípio, para que uma dessas políticas seja assumida, quer pelo PT, quer pelo PSDB.

Vamos então aos verdes. Eles passaram do romantismo para a ciência e a tecnologia. No começo, era o amor às matas e a tudo o que é natural. Depois, tornou-se princípio econômico. Entre nós, o lançamento da obra organizada por Ricardo Arnt, "O que os economistas pensam sobre sustentabilidade" (2010), marcou bem essa transição do ideal à proposta ou, se quiserem, esse revestimento da ética pela ciência, essa aliança do romantismo com a economia. Temos aí um projeto de vida, mais até do que uma proposta política. Estamos acostumados à ideia de que um partido importante tem uma visão global do mundo. Aqui, não é o caso. Quem tem a visão global são os defensores do desenvolvimento sustentável, isto é, membros de um partido pequeno - ou nem membros, de partido nenhum. Isso pode até fazer deles pessoas de uma nota só, mas o relevante é que tenham propostas para cada momento do dia, para a ação cotidiana assim como para o planejamento econômico.

Aqui, o paradoxo. Por um lado, os verdes têm uma visão do mundo mais detalhada e mais consistente, quem sabe, do que nossos dois principais partidos. Mas, por outro, a experiência dessas décadas lhes dá, quando muito, a chance de serem parceiros minoritários numa coligação de governo. Assim foi no estrangeiro, mas também aqui: geralmente, o PV se coliga com administrações tucanas municipais ou estaduais. Ou seja, entre seu ideal e suas possibilidades, vai uma distância. Eles bem que gostariam de moldar o mundo à sua imagem - pois têm uma utopia, talvez a única de nossos dias -, porém dificilmente o conseguirão. Mas talvez a república que eles propõem, sua visão de "coisa pública", de "como viver juntos", seja política só em parte. Como ela diz respeito a toda uma mudança espiritual e comportamental - que inclui a reciclagem, o não desperdício, o respeito à natureza e ao outro -, pode ser que seu projeto esteja mais na ética do que na política. O que, certamente, não os exclui da disputa pelo poder, mas define um leque interessante: muita ambição nos ideais, um certo pragmatismo nas alianças de governo, pouca chance de mandar.

Quer isso dizer que a candidatura de Marina Silva, com todos os votos que obteve, não terá chances - ela ou outra - de conquistar a presidência da República, ainda que a longo prazo? Assim acredito. É verdade que poderíamos compará-la, sim, ao PT, que lentamente, durante 20 anos, construiu sua ascensão ao poder. O PT é um partido de certa forma único no mundo - uma grande agremiação de trabalhadores, tendendo à esquerda, mas sem ser comunista. Há partidos trabalhistas no mundo, há partidos grandes e há esquerda não comunista; mas essas três características, ao mesmo tempo, só o PT tem. Por isso mesmo, se o PV em outros países nunca chefiou o poder, quem sabe seremos originais também nisso. Ele pode começar pelo Brasil... Mas, por ora, o papel dos verdes - não o do partido, mas o do movimento que Marina capitaneou - parece ser o da pregação ética e científica. O que, por sinal, nos longos anos de travessia do deserto, foi uma das grandes contribuições do próprio PT para nossa política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Ficam os anéis (Roberto Romano)

A aristocracia ruinosa dos tucanos pode levar a indecisões mais graves em 2014

As indecisões de José Serra integram a crise de abulia que desgasta todos os partidos, algo já diagnosticado no século 20 por Max Weber e Robert Michels. Direções mornas suscitam lideranças voluntariosas, contrárias aos poucos e acomodados condottieri. O PSDB sofre o processo político chamado oligarquização. Aquela forma organizacional nega decisões à base militante e as concentra nos líderes. Ser ou não ser candidato, com acertos alheios à militância? Como garantir apoio nas urnas, se oligarcas preferem em sigilo outros nomes?
Alckmin diz que espera por Serra até as prévias - Sergio Castro/AE - 10.01.2012
Sergio Castro/AE - 10.01.2012
Alckmin diz que espera por Serra até as prévias

Um fenômeno ilustra o complexo tucano: o “lulécio” (Lula com Aécio), oligarquia mineira envolta em lençóis democráticos. O partido reúne alguns núcleos fortes (Minas e São Paulo) e outros nem tanto (Paraná, Rio Grande do Sul, Ceará). A concentração das opções em certas pessoas e a ausência de diretórios nos municípios cria a união de líderes com votos, mas poucos liderados. Tucanos e petistas, primos em primeiro grau, cochilaram ao não aproveitar o Palácio do Planalto (oito anos) para distribuir sedes na maior parte do Brasil. A via das “alianças” foi a preferida. O PMDB, por sua vez, garante presença em cidades de vários portes e aumenta sua capacidade de amealhar votos em todas as classes em prol de potentados, os donos das regiões. É o caso dos grupos Sarney, Barbalho, Temer e demais quistos instalados na base da pirâmide eleitoral.

O PMDB não tem candidato competitivo à presidência desde a derrota de Ulisses Guimarães. Mas nenhum presidente da República governa sem aquele ajuntamento oligárquico. Do nanico PRN ao PSDB, chegando ao PT, as siglas que conquistaram a presidência não tinham sólida presença em todo o país. Assim, se fortaleceram as oligarquias partidárias tradicionais, dando àqueles que chegaram aos cargos, após muita guerra de bastidores, a certeza de que nada conseguiriam sem o PMDB, que mantém seu ritmo de crescimento eleitoral ano após ano. Já os aliados do PSDB minguam a olhos vistos. O PSD, marca de fantasia, tem estratégia presa às ambições do inventor e proprietário. Sintoma: Gilberto Kassab afiança, para justificar o recuo diante do PT, seu compromisso com Serra, sem programas ou ideologias. Temos aí a pura troca de favores, alma da sociedade e do Estado brasileiros, contra os integrantes da base partidária.

As eleições municipais de 2012 são uma peça importante no quebra-cabeça de 2014. A incerteza domina os coletivos tucanos e petistas, pois os seus aliados são submetidos aos oligarcas que ostentam apetite pantagruélico de recursos financeiros, cargos, benesses várias do poder. Como o PT e o PSDB não possuem bases municipais sólidas, ambos dependem da federação oligárquica peemedebista. Esta, por sua vez, se alimenta dos favores trocados entre os comandos regionais. O PMDB, berço do centrão, gerou o “é dando que se recebe”. Manter o seu equilíbrio interno é tarefa de meticulosos maquiavelismos. Mas no mundo de Maquiavel a técnica empregada é a dissimulação, o que aumenta a incerteza dos aliados. O caso Chalita é evidente. Será ele candidato ou serve para dissimular alvos peemedebistas? Os interesses variam segundo os projetos e as necessidades dos oligarcas regionais. O PMDB usa, de modo grotesco, a máxima de Spinoza segundo a qual o imperativo da vida encontra-se na arte de conservar a si mesmo. Se for preciso, os mestres do PMDB retiram a solidariedade aos aliados de hoje, para voltar a oferecê-la amanhã, conforme a conveniência. A incerteza de Serra, em parte, tem origem na pantomima peemedebista.

O problema não reside no indivíduo Serra. A sua hesitação segue a cacofonia atordoante de poucos líderes inebriados pelo poder. O PT assume o “é dando que se recebe” e ignora grande parte de suas bases, em favor de alianças ditadas por um líder. E assim nasce o candidato Haddad, um anônimo na Pauliceia, em detrimento de Marta Suplicy. A dúvida não reside em aceitar ou não candidaturas, mas em definir se os partidos pertencem aos que os sustentam nas bases, ou às direções. É possível, eticamente, apresentar um coletivo como se fosse democrático e, no mesmo átimo, manter escolhas eleitorais dominadas apenas por algumas lideranças? Se José Serra aceitar a candidatura que lhe oferecem, e na forma como é ofertada, ele será a face invertida do verticalismo petista, no qual um só dedo aponta o candidato e vigora a monarquia de Luiz Inácio. No seu caso, poucos dedos escolherão, ruinosa aristocracia tucana. Implodir a consulta partidária (mesmo formal) levará os companheiros de Serra a indecisões mais graves em 2014, mesmo ganhando ele a prefeitura paulistana. Numa derrota...

ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP. AUTOR DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA)
Estadão/Álias (26/02/2012)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Entrevista: Randall Kennedy - A persistência do racismo (Lúcia Guimarães)

Randall Kennedy, da Harvard Law School, fala sobre o preconceito na política americana

Em novembro de 2008, quando milhões de americanos se congratulavam, certos de que haviam dado mais um passo para redimir nas urnas seu histórico pecado original - o racismo -, o dono de uma loja de conveniência em Standish, Estado do Maine, pendurou o aviso: "A Loteria Osama Obama de Espingarda". A aposta custava US$ 1 e o apostador estaria adivinhando quando o recém-eleito Barack Hussein Obama seria assassinado. O subitamente mais ocupado Serviço Secreto registrou a iniciativa do comerciante mentecapto, uma entre as milhares que tornaram o primeiro presidente negro da história americana um dos mais frequentes alvos de complôs assassinos entre os moradores da Casa Branca.

O incidente é lembrado por Randall Kennedy em seu livro The Persistence of the Color Line: Racial Politics and the Obama Presidency (A Persistência da Divisão de Cor, Política Racial e a Presidência Obama, Pantheon Books, US$ 26,95). Kennedy é professor da Harvard Law School e dono de um currículo acadêmico estelar que inclui uma passagem como analista de processos para o lendário Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro da Suprema Corte americana.

O livro faz o contraponto da euforia que cercou a eleição de Barack Obama com a realidade ainda enfrentada por mais de 12% da população americana. Um país, onde, diz o professor, a elite branca tem "alergia" a reconhecer a persistência do racismo; onde a população carcerária negra passa de 39%; e a direita se sente à vontade para questionar, do privilégio de um cargo eletivo ou do poleiro de comentarista de TV, a legitimidade do presidente.

"O racismo ainda é relevante", escreve Randall Kennedy, lembrando que o Senado americano só elegeu três negros em toda sua história - um deles, Barack Obama - e não abriga nenhum senador negro hoje. A eleição de Obama, ele conclui, não inaugurou uma era em que os políticos negros se livraram do peso do racismo: "Apenas demonstrou que a seleção racial não impede em termos absolutos a chance de vitória de um candidato presidencial negro". Em outras palavras, Obama mudou a história por ser eleito. E, prevê o professor, com uma dose de desapontamento, é por novembro de 2008 que ele deve ser lembrado, mais do que por suas ações de governo.

Apesar da escrita sóbria e da argumentação meticulosa característica do pensamento legal, Kennedy se torna mais enfático na conversa ao vivo, quando fura o balão da narrativa nacional que inclui, a seu ver, ficções como "a era pós-racial". Leia a seguir, a conversa de Randall Kennedy com o Sabático.

Em 2010, o senhor passou uma semana em São Paulo dando um curso sobre ação afirmativa. Como foi a experiência?

Foi muito interessante. Na turma do curso, a maioria dos estudantes era contra ação afirmativa racial. Aqui nos Estados Unidos é o contrário, os estudantes são, geralmente, a favor. Tivemos uma boa discussão. Foi importante falar com gente que parte de outra perspectiva. Uma coisa que me chamou muita atenção foi o grau em que as pessoas negam o que para mim é óbvio, que há estratificação racial no Brasil.

Na introdução do novo livro o senhor critica a noção de que a eleição de Barack Obama sinalizou o começo de um período pós-racial no país. Esta ideia tem perdido defensores. De onde ela partiu?

Pós-racial é uma variação de outro jargão, color blindness (não enxergar a cor). O que existe é este desejo coletivo de se afastar do passado racista. Muitos americanos querem se libertar deste fardo, do sentimento de culpa. Assim como "color blind" pós-racial é uma formulação para atender a este impulso.

Como é que o país vai daquele momento histórico de aparente cicatrização da ferida racial - a celebração na noite da eleição de 2008, no parque de Chicago - para a virulência de caráter racial contra um ocupante da Casa Branca?

Veja, assim como o Brasil, este país é muito grande. As câmeras estavam todas voltadas para o Grant Park de Chicago. Nem todo mundo celebrou. Havia muita gente triste, inclusive na rede Fox, de Rupert Murdoch. A tristeza se transformou em raiva e ressentimento. A eleição foi mais apertada do que pensávamos. Lembro que Barack Obama não levou a maioria do voto branco, apesar de tantos brancos terem votado nele. Mesmo na fase de maior popularidade na campanha, havia um número razoável de pessoas profundamente opostas a Obama. E, francamente, durante a eleição, uma das coisas que ele teve que superar foi o sentimento entre certos negros de que, se ele chegasse perto da vitória, haveria violência contra ele. Obama e sua família foram bravos e aceitaram isto. Você não ouve falar muito destas ameaças a Obama hoje. Mas o medo de que haveria reação violenta existia. Ninguém deve se surpreender com a violência retórica anti-Obama que vemos hoje. Posso argumentar: diante da nossa história, o que me surpreende são os ataques não serem mais abertos. O que acontece de fato, é a linguagem em código. Por exemplo, a controvérsia dos "birthers", que questionaram a certidão de nascimento do presidente. O Donald Trump, que pagou investigadores para ir ao Havaí e espalhou que Obama teria tirado notas muito baixas para chegar a Harvard. Este tipo de discurso é obviamente racista.

Se o racismo dirigido contra Obama é tão óbvio, porque não é mais denunciado? A mídia americana é tímida neste aspecto?

Sim, com certeza! Temos um par de razões: a elite branca americana sofre ou de ignorância sobre esta realidade ou simplesmente nega, é uma parte do problema. A outra é que o racismo é estigmatizado. É proibido chamar alguém de racista ou até sugerir, a não ser que a pessoa se identifique, "sou racista". Um sujeito como o locutor Rush Limbaugh, por exemplo, não vai usar a palavra "nigger", ele não precisa dela para passar sua mensagem. Ao Obama, resta enfrentar esta negação. Ele não tem como dar nome ao problema. E, mesmo se ele denunciar toda esta linguagem em código, vai ser acusado de paranoico e demagogo. E, assim, ele se cala. Naquele incidente durante o discurso para uma sessão conjunta do Congresso, em setembro de 2009, em que o deputado Joe Wilson gritou "Você mente!", foi preciso Jimmy Carter, um ex-presidente branco e sulista, para declarar em público que aquilo foi uma explosão de ressentimento racial.

O discurso A More Perfect Union (Uma União Mais Perfeita), feito por Obama durante a controvérsia sobre seu pastor Jeremiah Wright, em 2008, é considerado um ponto alto da oratória presidencial americana e um dos melhores exemplos de discurso racial conciliatório. No livro, o senhor expressa reservas sobre o discurso.

O discurso é brilhante. Mas o seu valor reside em demonstrar a perfeita compreensão de um presidente sobre seu público, o público que ele precisa acalmar. Falo sobretudo da audiência de brancos. Como fazer um discurso sobre a ferida racial completamente despido de acusação? Mas o que Obama não pode dizer é exatamente o que o impediria de se reeleger. O eleitor branco americano não tolera o menor tom de acusação. É como uma alergia que se estende até a uma crítica leve sobre a injustiça racial. Eu quero o Obama reeleito. Eu não quero que ele faça o discurso que falta. Prefiro esperar pelo momento em que alguém na Casa Branca possa quebrar o tabu.

No momento, o apresentador de TV Tavis Smiley e o professor de Princeton Cornel West se uniram nas críticas a Obama por não se concentrar nos problemas que afetam de maneira desproporcional a população negra.

Muito do que eles dizem é verdade. Mas o que os dois não levam em conta é que Obama não é um animador de TV. Não é um acadêmico falando num seminário. Nem é um Martin Luther King. Ele não existe sem votos, não pode ser cândido. A situação me faz lembrar aquele momento do filme Questão de Honra, quando o Jack Nicholson grita para o Tom Cruise: "Você não aguenta a verdade!".

Como o senhor vê a relação do presidente com os artistas populares negros? A campanha de reeleição está divulgando a lista do iPod dele. Ele gosta muito do Jay Z.

Ele precisa ser cauteloso. Por um lado, quer continuar a cortejar a base negra, os negros americanos são a âncora da coalizão Obama. Ele precisa de mais do que apoio, precisa de entusiasmo. Então, nós temos o Obama citando a história cultural negra e a música do Jay Z. Mas a maioria do eleitorado continua a ser branca. Com o rap, ele tem que tomar cuidado. Em 2008 eu fiquei assustado, quando ele fez um discurso respondendo a críticas da então adversária Hillary Clinton. Ele fez aquele gesto, como quem passa a escova no casaco, era uma referência à gravação de Dirt Off Your Shoulder, do Jay Z. Se você vai ouvir a gravação, ela soa misógina e muito vulgar.

O senhor atribui a Michelle Obama um grande impulso à candidatura entre o eleitorado negro, em 2008. O quanto ela ainda é importante nesta campanha?

Ela foi a grande legitimadora do Obama. No começo, ele era tão desconhecido que muitos nem sabiam que ele era negro. Ele tinha um passado multirracial e exótico. Já a Michelle tem a história familiar. É mais escura do que ele, a família fugiu do racismo no Sul, ela cresceu no bairro negro de Chicago. Mas hoje ele precisa menos desta legitimidade racial. O Obama é o soul brother número um da América.

Muita gente estranhou quando a primeira-dama reagiu ao livro Os Obamas, de Jodi Kantor, um livro lisonjeiro para o casal, com o comentário, "tentam me impingir esta imagem de mulher negra ressentida".

Foi totalmente impolítico da parte dela. Não entendi mesmo. O Obama jamais diria algo assim.

O senhor explora os significados da primeira eleição de Barack Obama. Qual seria o significado de uma reeleição?

Acredito que ele vai ser reeleito. Mas Obama nunca será tão popular quanto foi na noite da eleição de 2008. E nunca será tão reverenciado como foi no dia da posse. Você só pode eleger o primeiro presidente negro uma vez. Uma reeleição vai ser vista como outro marco. Mas não teremos mais a intensidade simbólica e emocional. O Obama abriu a imaginação de muitas pessoas de cor nos Estados Unidos. O grande legado dele vai ser ter sido eleito. E, ao fim de oito anos, não acho que vai haver nenhuma legislação histórica. Ele está fazendo o que a Hillary Clinton poderia ter feito. O seu grande legado vai ser psicológico, ele mudou a psicologia da América. Reconheço que é uma coisa impressionista e não vai aparecer, quem sabe, antes de 30 anos. A partir de então, acho que vai florescer uma geração política permitida pela aparição do Obama.
(Estado de São Paulo)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O pessimista entre a anarquia e o poder (Eliana Cardoso)

No território da bandidagem e da violência, a discussão da origem do Estado não se assenta na República de Platão, mas na lenda hobbesiana da vida curta e brutal. E - lamenta-se o señor Juan, protagonista de Coetzee no Diário de um Ano Ruim - Hobbes nos esconde que a entrega do exercício da força ao Estado é irreversível e impede para sempre a volta ao estado natural. Entretanto, se o estado natural era a barbárie, porque haveríamos de querer voltar para lá? Você não quer. Nem eu. Mas ao señor Juan interessa demonstrar a solidez da opinião anarquista: o que está errado com a política é o poder em si.

Para ilustrar seu argumento o señor Juan comenta a "ingenuidade" do filme Os Sete Samurais, no qual Kurosawa oferece sua versão da origem do Estado. Uma aldeia japonesa, durante um período de desordem política - quando o Estado praticamente deixara de existir -, sofria invasões de uma tropa de bandidos, que roubava mantimentos, estuprava mulheres e matava quem resistisse. Aos poucos, os bandidos - mutantes de predadores em parasitas - sistematizaram as visitas, comparecendo à aldeia apenas uma vez por ano para cobrar tributo.

O filme começa com a decisão dos camponeses de contratar um bando de durões (sete samurais desempregados) para proteger a aldeia. Os samurais derrotam os bandidos e, tendo visto como o sistema de extorsão funciona, oferecem aos camponeses uma proposta: pagamento anual em troca de proteção permanente. Como Kurosawa é um sonhador romântico, quando os camponeses recusam a oferta, os samurais vão embora em paz.

Coetzee desacredita do final feliz do filme de Kurosawa, mas é exatamente um final feliz que desejamos na solução dos conflitos iniciados pela Polícia Militar que ocupou a Assembleia Legislativa da Bahia, durante a segunda semana de fevereiro. Por isso, vários analistas tentaram entender o que se passou e perguntar como evitar que o motim se repita no futuro.

Vale começar passando em revista o susto da população brasileira, quando o movimento articulado por grevistas espalhou o pânico para forçar a aprovação da PEC 300, que cria piso nacional para o salário de policiais e bombeiros. Os homens do Exército e da Força Nacional fecharam o cerco aos policiais militares acampados dentro do prédio da Assembleia Legislativa em Salvador, transformado em quartel-general dos grevistas. Fracassada a primeira tentativa de negociação, o Exército endureceu. O clima ficou tenso. Helicópteros deram rasantes sobre o prédio. De dentro da Assembleia, um dos líderes do movimento ordenou atos de vandalismo. A greve provocou uma onda de crimes. Houve relatos de mendigos assassinados e ônibus invadidos por supostos policiais. O Exército reforçou a tropa que cercava a Assembleia. Suspendeu a entrega de comida. Cortou a energia e a água. A ocupação terminou.

As greves policiais são comuns no Brasil, declarou um defensor dos grevistas, no suplemento Aliás de O Estado de S. Paulo, como se o clichê do "todo mundo faz" pudesse justificar a não justificável violação dos direitos humanos da população, sujeita a assassinatos e saques.

A maioria dos analistas concordou que a reivindicação salarial era justa. Mas a maioria também argumentou que uma reivindicação justa deixa de sê-lo quando vem vinculada a técnicas de intimidação e extorsão. A discussão então se voltou para a regulamentação do direito de greve do setor público e a omissão do Congresso Nacional na aprovação desse disciplinamento.

Mas a nossa Constituição inclui os policiais e os bombeiros na categoria de militares, porque a eles cabe preservar a ordem e garantir a segurança. Os profissionais que portam armas estão, segundo a Constituição, barrados da sindicalização e da greve. A esses servidores públicos, portanto, não se aplica a necessidade de regulamentação do direito de greve, pois a proibição já existe.

Nenhuma democracia conta com organizações simétricas para todos os seus grupos. Por exemplo: os desempregados, os consumidores e os contribuintes não se encontram organizados. A consequência é que grupos organizados e poderosos (como o dos trabalhadores sindicalizados ou o dos banqueiros) tendem a ignorar as perdas para os grupos não organizados. As forças do mercado não são suficientes para garantir comportamentos que beneficiem igualmente todos os grupos sociais. Entende-se, portanto, que os policiais precisam reivindicar ajustes, mas terão de fazê-lo por meio de atos de suas associações ou esperar que o Estado lhes dê cobertura legal para realizarem um movimento reivindicatório disciplinado e com mobilização parcial, sem ação violenta, sem ocupação de prédios e sem vandalismo.

Aqui entra a inação do Congresso Nacional e dos governos estaduais e federal. A sociedade pergunta-se por que a PEC 300, que tramita na Câmara desde 2008, ainda não foi discutida nem se votaram emendas para harmonizar salários levando em consideração as condições e o custo de vida nas diferentes regiões do País. Por onde andavam nossos representantes todos esses anos?

A explicação parece ser a de que os políticos acreditam que não têm mandato para se anteciparem aos problemas e o público não reage à inação de seus representantes. A consequência é que problemas que parecem pequenos acabam se transformando em tragédias. A Câmara só age sob pressão.

O señor Juan - personagem de Coetzee que abriu este artigo - declara-se anarquista-quietista-pessimista. Anarquista porque o que está errado com a política é o poder em si. Quietista porque a vontade de se pôr a mudar o mundo se encontra, ela também, infectada pelo desejo de poder. E pessimista porque não acredita que coisas possam mudar. A posição parece intelectualmente sofisticada. E, com certeza, é cômoda. Mas se todos pensarmos como ele, estaremos entregando o Brasil aos bandidos.

* Eliana Cardoso, ph.D em Economia pelo MIT, é autora de "Mosaicos da Economia" (Saraiva, 2010).

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Discretas esperanças nas eleições (Fernando Gabeira)

O que têm que ver as eleições com segurança nas metrópoles brasileiras? Prefeitos e vereadores que delas emergem não têm como função específica garantir a segurança pública. Mas não podem dar as costas ao tema.

A experiência mais discutida na eleição presidencial foram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criadas no Rio. Sucesso entre os moradores, a imprensa e até no comércio imobiliário, que delas se beneficiou, essas unidades são, no conjunto, um cinturão no setor da cidade que abrigará a Copa do Mundo. Além dos benefícios para os moradores, o governo consegue demonstrar o domínio sobre o território, apoiado por quedas no índice de criminalidade.

Mas vistas de bairros mais remotos, áreas metropolitanas e cidades médias, as UPPs significaram mais perigo no cotidiano, porque os ocupantes dos morros foram dispersados. O índice de assassinatos na Baixada Fluminense é o dobro do registrado na capital. Essa diferença não nasceu agora, apenas revela onde é mais perigoso viver. É o tipo de realidade que o planejamento de eventos internacionais não pode encobrir. Seu objetivo é garantir os jogos, e não necessariamente a segurança conjunta.

Eleições municipais não mudam tal realidade, mas poderiam atenuar seu impacto. Prefeituras têm algo essencial: informação sobre inúmeras variáveis. Respeitada a privacidade, combinados e analisados, esses dados seriam uma ferramenta complementar para uma política de segurança. Uma rede de guardas municipais conectados pode dizer muito, a todo instante, do que se passa nas ruas. O risco continuará a existir, mas a informação pode trazer mais clareza sobre como é administrado e empurrado para a periferia. São os bairros mais distantes, de modo geral, que recebem outros riscos decorrentes dessa administração. Para lá vão os presídios, manicômios, aterros sanitários, traficantes e milícias.

Em muitas áreas da metrópole a insegurança está na própria moradia. O Brasil desenvolveu um modelo original. O capitalismo no seu curso espontâneo tende a empurrar as pessoas para áreas de risco. E os socialistas lutam ardentemente para que elas continuem lá, no perigo extremo.

A energia central está na construção de novas moradias. As cidades esperam muito de programas ambiciosos como o Minha Casa, Minha Vida. E às vezes não percebem a energia da própria comunidade, como a de Vieira, distrito de Teresópolis, que construiu dez casas, a R$ 10mil cada, por conta própria. Foi preciso que um grupo se cotizasse e buscasse mais recursos entre pessoas simpáticas à reconstrução. A única demanda ao governo foi que emprestasse uma de suas máquinas, locadas na região, para algumas horas de trabalho.

A possibilidade de renovação nas cidades não se limita ao uso de recursos inteligentes. Elas têm algo que governos estaduais e Brasília não conseguem com a mesma intensidade: o potencial de mobilização. Os dois fatores permitiram que algumas cidades obtivessem, na luta contra a corrupção, melhores resultados que o obtido no plano nacional.

Os candidatos poderão ser ultrapassados pela demanda que começa em reuniões de pequenos grupos em casas de família e se estende pela rede social. Muito possivelmente, ao lado de projetos mais amplos os moradores vão querer saber o que está previsto para sua área, que tipo de crescimento o bairro vai experimentar. Isso estimula, em certos casos, a dividir a cidade por áreas com projetos específicos de crescimento, respeitada sua vocação. Um plano desse tipo foi discutido no Rio em 2008. Adotado parcialmente pelo prefeito eleito, estimulou o crescimento de um polo de produtores de plantas ornamentais e flores em Barra de Guaratiba, que cresceu em torno do sítio de Burle Marx e agora se consolida.

Um projeto para a cidade não se faz só em ano de eleições. Até porque os candidatos, em níveis diferentes, têm conhecimentos limitados da cidade que vão governar. Embora dependa muito da discussão, depende também da existência de grupos que estudem o problema e, como urbanistas ou acadêmicos, já tenham formulado o esqueleto do plano.

Campanhas, sozinhas, não pensam a cidade adequadamente. Com alguma ajuda externa, um dos seus objetivos seria discernir em 2012 os interesses da Copa do Mundo e os da metrópole, no conjunto. Em muitas cidades as obras da Copa estarão em pleno curso, aumentando a sensação de desconforto. Apenas 17% da frota de ônibus do Rio, por exemplo, tem ar-condicionado. A Copa é no inverno, porém vivemos nas quatro estações e até hoje não surgiu uma lei obrigando o ar-condicionado em todos os ônibus. No caso do Rio essa inibição dos políticos tem suas raízes no jabaculê. Por meio de revoltas sucessivas e explosões de violência, os passageiros mostram descontentamento.

Embora o quadro não esteja definido, a eleição em São Paulo tende a ser uma grande atração nacional. As ideias, todavia, ainda não foram postas na mesa. Se depender do potencial do impulso externo às campanhas, a cidade pode oferecer inúmeros debates, entre eles o da sustentabilidade urbana. Como as duas forças em presença já governaram a cidade, parte da discussão entre elas será sobre quem fez melhor. Certamente a demanda vai transcender esse tópico, deslocando-se para o futuro imediato.

No carnaval sonha-se muito, para tudo acabar na quarta-feira. Em eleições, de certa forma, tudo pode começar na quarta-feira.

A fase até agora vivida foi a de discussão interna dos partidos e movimentos de coligações. Logo, decerto, começará outra, ressaltando alguns pecados dos candidatos e estimulando a declaração de seus princípios morais. Se tudo correr bem, no meio do ano a cidade estará no centro da cena, com o potencial de inspirar debates de interesse internacional: para onde vai a principal metrópole da sexta economia do mundo?

Mesmo quem não gosta de ler programas será tentado a dar uma olhada. Um bom debate nesse campo fortalece o trabalho do vencedor, não importa quem seja. Otimismo? Esperar o melhor pode ajudá-lo a acontecer.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O PARTIDO DA IMPRENSA GOLPISTA (PIG) TORNOU-SE ALIADO ( MALU FONTES )

O Jornal Nacional acabou com a liderança de Marco Prisco sobre a paralisação da Polícia Militar da Bahia em seu 9º dia de greve e redefiniu radicalmente os rumos do movimento. Imediatamente após o telejornal de maior audiência do país, em sua edição da noite de quarta-feira, veicular gravações de ligações grampeadas, obtidas com exclusividade via governo, ressalte-se, entre o líder da greve, Marco Prisco, e outras lideranças do interior do Estado articulando o fechamento de rodovias baianas, e de policiais do Rio de Janeiro com lideranças políticas cariocas sobre a estratégia de usar a greve da Bahia como mecanismo de deflagração de uma paralisação nacional, a greve, o motim, a paralisação, ou seja lá que nome seja dado ao impasse que escancarou a violência em toda a Bahia, mudou completamente de feições.

Diante do movimento em si, das suas consequências políticas (para o Governo do Estado e para a imagem da Polícia Militar da Bahia), e, sobretudo das consequências sociais, com cerca de 140 homicídios em pouco mais de uma semana, saltava aos olhos algumas avaliações de autoridades sobre o começo do desfecho na quinta-feira. Não foram nem dois nem três parlamentares e autoridades públicas a elogiar o desfecho do imbróglio e a afirmar em bom som diante dos microfones dos telejornais o quanto todas as negociações foram conduzidas com sensatez, fazendo com que tudo terminasse bem e sem derramamento de sangue (sic).

OS ‘BAIRROS MAIS...’ - Como assim, ‘sem derramamento de sangue’? Ou estão todos completamente imbuídos de um esforço político cínico de negar o que se assemelha a tons de uma chacina de grandes proporções e estão banalizando índices de violência inaceitáveis, ou a expressão derramamento de sangue só teria sido digna desse nome se o sangue fosse dos militares, dos mais favorecidos ou se desse-se em bairros de classe média? O que houve senão um oceano de sangue quando uma cidade matou em menos de uma semana mais de 14 dezenas de pessoas?
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PIG - O outro aspecto ilustrativo da greve foi a observação dos modos como giram as engrenagens do poder e da política partidária antes e depois de conquistarem o poder. Todo e qualquer brasileiro sabe que o Partido dos Trabalhadores construiu boa parte de sua história atuando com estardalhaço nos bastidores de greves. Na Bahia, essa foi a primeira que o partido experimentou um movimento de grandes proporções e consequências estando no lugar de vidraça. Todo e qualquer leitor bem informado também sabe que, desde que chegou ao poder, o PT e seus seguidores que pensam e agem com o fígado e transformam toda e qualquer notícia envolvendo alguém do partido em coisa pessoal, em corpo a corpo desqualificador de quem fala ou escreve, dividiram a imprensa brasileira em duas categorias separadas por um grand canyon moral, ético e ideológico: a imprensa progressista, santa, ética, de um lado e o PIG, o partido da imprensa golpista, do outro, com os diabos que manipulam informações e só publicam mentiras para desestabilizar as lideranças petistas. Sim, os bastiões do PIG para quem divide a imprensa sob essa clivagem são a revista Veja e a Rede Globo de Televisão e, nesse contexto, o Jornal Nacional é tido como o legítimo filho do diabo.

É ou não é ironia que, tendo em mãos a nitroglicerina que eram as gravações feitas via grampos autorizados pela Justiça nas quais as lideranças da paralisação da Polícia na Bahia articulam o fechamento de rodovias, a inteligência dos órgãos de segurança de um governo do PT tenha preferido entregar de bandeja o furo nacional justamente para o mais autêntico dos produtos, tido como o filho legítimo do PIG? Nos bastidores das notícias, a emissora do bispo, e mais ainda os blogueiros bem abençoados chamados de progressistas, devem ter se sentido feridos n’alma com essa traição. Ou seja, audiência é audiência e desde que o PIG possa ser transformado em um baita aliado para tirar governos ditos de esquerda do desconfortabilíssimo lugar de vidraça, nos unamos a ele. Mas que a pergunta é válida, ah é: se a Globo é tão amaldiçoada pela esquerda, que chega à patetice de viver pregando ‘Um dia sem Globo’ nas redes sociais, por que justo a ela foi dada a primazia e o privilégio do furo das conversas grampeadas de Marco Prisco? Democratização da informação, entrevista coletiva, mesmo sob embargo de algumas horas que fosse... Para quê, se o que se quer mesmo é a audiência segura?

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 12 de Fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

As cidades e o sertão (Luiz Werneck Vianna)

O diabo, ouve-se dizer, mora nos detalhes. A nomeação para o Ministério das Cidades do deputado federal pela Paraíba Aguinaldo Ribeiro (PP) não se pode perder no noticiário dos faits divers da política nacional, nem tanto pela falta de credenciais do indicado para exercer os papéis na direção de uma agência estratégica como essa - cabe-lhe, como se sabe, administrar o urbano, dimensão crucial da vida contemporânea -, menos ainda por já ter respondido em seu Estado a processos por improbidade administrativa, mas, sobretudo, pela sua linhagem política, a revelar de modo contundente o que há de reacionário na forma de imposição do nosso processo de modernização.

Certamente que atos dos nossos avoengos não nos comprometem - a responsabilidade por eles é puramente individual e não se transmite às futuras gerações. Contudo a sociologia já é uma disciplina científica estabelecida e há tempos fixou como critério na investigação social operações de escrutínio dos dados referentes às origens sociais dos atores sob sua observação. Na história recente da sociologia provavelmente ninguém melhor que Pierre Bourdieu, hoje no panteão da disciplina como um dos seus maiores, contribuiu para esclarecer o lugar do chamado capital social, conceito elaborado por ele, na produção e reprodução da hierarquia social numa dada sociedade.

Na sociologia brasileira, Sergio Miceli, ex-discípulo de Bourdieu, Leôncio Martins Rodrigues e Jessé de Souza, entre tantos autores relevantes, o primeiro na sociologia da cultura, os segundos na sociologia política, têm demonstrado em seus influentes trabalhos o papel explicativo, se bem que não determinante, da origem social a fim de dotar, ou de privar, os indivíduos do capital social que lhes vai demarcar, positiva ou negativamente, seus lugares em termos de poder ou de prestígio social.

O caso do deputado Aguinaldo Ribeiro, novo ministro guindado ao vértice de nossas instituições republicanas, é exemplar não por sua trajetória pessoal, mas pelo significado, digamos, macroestrutural de que se investe. Nele, por inteiro, se põe em evidência o segredo de Polichinelo da modernização brasileira, que, desde sempre, de Vargas a JK, passando pelo regime militar e que ora se renova, conquanto de modo velado, nos governos Lula e Dilma Rousseff, se radica no pacto implícito - quando necessário, explicitado - entre as elites modernas e as tradicionais, no caso em tela, dos seus setores vinculados social e politicamente à história do exclusivo da terra e ao sistema de controle autocrático que ele impôs no hinterland.

Com efeito, o deputado Aguinaldo Ribeiro é neto - como registra oportuna matéria do jornalista Raphael Di Cunto (Valor, 3/2) - do tristemente famoso usineiro Aguinaldo Velloso Borges, chefe de baraço e cutelo do agreste paraibano, acusado de mandar matar, em 1962, João Pedro Teixeira, uma das maiores lideranças dos trabalhadores do campo, então à frente da Liga Camponesa de Sapé, quando se destacou nacionalmente pela firmeza na defesa dos direitos da sua categoria social. Em 1983, o mesmo usineiro Aguinaldo foi, mais uma vez, apontado como responsável por mais um crime político, pois era disso que se tratava, com o assassinato sob encomenda de Maria Margarida Alves, símbolo das lutas feministas no País, cultuada na Marcha das Margaridas, que desde 2000, anualmente, desfila em avenidas de Brasília.

A saga de João Pedro Teixeira e de sua família foi objeto de um documentário, Cabra Marcado Para Morrer, obra-prima de Eduardo Coutinho, na época um jovem cineasta do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), surpreendido, em meio à filmagem no sertão, pelo golpe de 1964, salvos, depois de muita correria, ele e o filme, que esperou quase 20 anos para ser finalizado.

A matéria do jornalista Di Cunto informa ainda que a mãe do deputado Aguinaldo é prefeita de Pilar, pequena cidade paraibana, e Fábio Fabrini, repórter do Estado, em circunstanciada notícia (4/2) sobre a projeção na política regional da rede familiar do novo ministro, revela que sua irmã, hoje deputada estadual, é candidata à prefeitura da importante cidade de Campina Grande, sem contar outros membros da sua parentela em posições de comando na vida local e até na prestigiosa Embrapa, ponta de lança da moderna agricultura brasileira.

Está aí a mais perfeita tradução da quasímoda articulação, no processo de modernização capitalista do País, entre o moderno e o atraso, ilustração viva do ensaio de José de Souza Martins A Aliança entre Capital e Propriedade da Terra: a Aliança do Atraso (in A Política do Brasil Lúmpen e Místico, São Paulo, Editora Contexto, 2011) e que se vem atualizando por meio da conversão do imenso estoque de capital social, econômico e político do latifúndio tradicional, que se processa no circuito da política e mediante favorecimento da ação estatal, em que seus herdeiros se reciclam para o exercício de papéis modernos. Para quem é renitente em não ver, este é o lado obscuro do nosso presidencialismo de coalizão, via escusa em que os porões da nossa História se maquiam e mudam para continuarem em suas posições de mando.

De fato, num país com as heterogeneidades sociais e regionais que nos são características, o andamento para a conquista do moderno nas relações sociais e políticas, num contexto de democracia institucionalizada, não pode deixar de consultar sua História e as forças da sua tradição, a fim de ajustar, interpretativamente, seu movimento a elas. Mas isso não se pode confundir com a reanimação - como a que acaba de ocorrer -, sem princípios e em nome de razões instrumentais, procedida por políticas de Estado, das sedimentações socialmente recessivas que recebemos do passado, com as quais é preciso romper.

Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

As fronteiras da ação policial (José de Souza Martins)

A greve na Bahia e o despejo no Pinheirinho expressam as imperfeições da ordem e o desprezo elitista pelo Brasil da margem

A greve da Polícia Militar da Bahia ocorre na mesma conjuntura da intervenção da Polícia Militar de São Paulo no despejo dos ocupantes do Pinheirinho, em São José dos Campos. As motivações são opostas e os silêncios também. Mas os sujeitos não diferem. Na greve da Bahia, a PM priva a sociedade da segurança da ordem e, por meio da coação, força o governo petista a atender suas pressões. A PM de São Paulo, para cumprir ordem judicial e impor o primado da lei e da ordem, viu-se instrumento do que parecia e é uma injustiça praticada em nome do direito.

Apesar do fato de que as duas ocorrências se deem em territórios de governos de partidos antagônicos, elas oferecem a oportunidade de um exame das questões além do limitado horizonte do partidário. O país tem sido refém de um pendularismo ideológico que dificulta a compreensão de anomalias políticas, como essas. É que são elas expressões das estruturas profundas de uma sociedade carregada de heranças do pretérito e do atraso pré-político. A história não é petista nem tucana.

A greve da Bahia violou os direitos humanos da população baiana ao pô-la em situação de risco, concretizado nos decorrentes assassinatos e saques. E na violência generalizada do terror do amotinamento dos agentes de uma instituição essencial à manutenção da ordem. Encerrar a greve, como se os mortos vitimados pela omissão da PM baiana fossem apenas produtos defeituosos e descartáveis da linha de produção de uma fábrica, seria confissão de criminoso desprezo pela vida do outro. Em princípio, cúmplice de homicídio, mesmo decorrente de uma greve, tem seu crime capitulado no Código Penal, e não na legislação trabalhista. A greve na Bahia desandou, ainda, para o deboche, que lhe revelou o sentido último, ao aliciar a simpatia do general comandante da operação de imposição da lei, subornando-lhe as lágrimas com um bolo de aniversário.

Às pressas, a presidente da República desenterra projeto de regulamentação do direito de greve no serviço público, o que abrange as polícias. É medida que se torna urgente. Quando a liberalidade da lei é fator de abuso, violência e anulação das próprias condições de afirmação do direito, a regulação torna-se necessária. A greve é historicamente a indicação de um limite, não um direito de abuso.

É significativo que o atual governador, que foi um dia experimentado líder sindical, tivesse sido surpreendido, em visita a Cuba, por uma greve que correu fora dos canais sindicais de convenção e fora das expectativas da reivindicação negociável. Crianças e mães e o bolo do general são indicativos de reclamo pautado longe da racionalidade própria das relações de trabalho. Toda a população do Estado foi feita refém de uma chantagem. A reivindicação salarial justa deixou de sê-lo quando veiculada por meio de técnicas de intimidação e de extorsão.

As mudanças que vem ocorrendo no País no último meio século indicam claramente que o eixo da reivindicação de classe foi deslocado pela própria dinâmica da economia moderna e, sobretudo, pela dinâmica da sociedade. A sociedade se fragmentou e já não há fatores que deem unidade, visibilidade e eficácia política ao pressuposto da classe social como agente das demandas sociais. Hoje, as entidades e movimentos de reivindicação, mesmo os profissionais, estão mutilados pela interveniência de subjacentes demandas estranhas à situação de classe, como as raciais, religiosas e corporativas.

Os grupos desfavorecidos falam como grupos de interesse que expressam demandas informadas pela rusticidade das ideias da economia moral, como fazem os PMs da Bahia e como faz o MST, arrastando para o cenário de seus conflitos mulheres e crianças, aquém do sindicato e do partido e, portanto, aquém do neoliberalismo de negociação que os preside. Ou seja, a família como sujeito pré-político de carências. O que o historiador inglês E. P. Thompson chamou de economia moral retorna do fundo dos tempos, dando nova e diferente entonação às lutas sociais. Esse é o ponto que junta os problemas impostos aos respectivos governos pelas PMs na Bahia e em São Paulo.

Numa entrevista infeliz a Débora Bergamasco, a secretária da Justiça de São Paulo alinhavou argumentos de radical legalismo para justificar a ordem judicial do despejo no Pinheirinho e o emprego da PM para executá-la. O país da bem-vinda Constituição liberalizante de 1988 omitiu-se em relação a questões essenciais, como a dos limites morais na execução da lei. A própria ditadura militar, no governo Costa e Silva, em face da violência dos despejos de posseiros na Amazônia, baixara ato complementar instituindo a audiência prévia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na decretação de despejos pela Justiça, antepondo o primado social da reforma agrária às formalidades da lei, dada a possibilidade da desapropriação e da regularização fundiária. O caso da Bahia e o caso de Pinheirinho expressam as imperfeições da ordem e o desprezo elitista pelo Brasil da margem.

* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto, 2011)

FONTE: ALIÁS/ O ESTADO DE S. PAULO

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

General: "Homem que é homem não chora".

Para o Governo Dilma "homem que é homem não chora"

Quem viu pela TV não deixou de se emocionar, assistindo as cenas do "diálogo" entre o General responsável pelo cerco a Assembléia baiana e os PMs grevistas.

O General Gonçalves Dias não apenas confraternizou mas chorou ao ganhar bolo aniversário.

Fez um discurso na linha demagógica do "estou aqui sem colete", como lançou um bordão na linha "militar não bate em militar". Acima da lei e da ordem, o corporativismo. Certamente levantou a moral dos insurgentes. E, Em nenhum momento, pensou que pessoas que usam filhos menores indefesos e incapazes de tomar decisões como escudos humanos estavam , no mínimo, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O general Gonçalves Dias foi chefe da segurança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, certamente, aprendeu com o antigo chefe o valor da emoção e de trabalhar essas questões de forma emotiva e emocional. Afinal, na política a emoção é tudo.

O problema é que a atitude do General desagradou não só ao Exército, como o Palácio do Planalto. Dizem que a Presidente Dilma Rousseff não escondeu a sua "indignação" com o episódio. Dizem, ainda, que chegou a considerar como "inaceitável" a postura do general Gonçalves Dias de "apagar velinhas", mesmo sendo seu aniversário, passando a ideia de que estava confraternizando com os manifestantes (e estava).
O que deve ter mais irritado os chefes militares é que atitudes desse tipo enfraquecem a doutrina e futuras operações de garantia da lei e da ordem (GLO). Afinal, o reconhecimento dessa doutrina legitimou o direito de os militares intervirem em questões internas a título de defesa da lei e da ordem.

Deve ter passado pela cabeça dos comandantes militares velhas imagens do pré-64 quando figuras como o Almirante Aragão, designado para reprimir rebelados, não apenas aderia como saia carregado nos braços dos insubordinados e aclamado como "Almirante do Povo".
Pesadelos ou não, o certo é que o General, com nome que remete ao poeta libertário, já foi devidamente escanteado.
No governo Dilma não se brinca com essas coisas.
E, por favor, não venham com discursos do tipo "criminalização do movimento social". Isso só se aplica a governos tucanos e congeneres.
Roberto Beling

Yoani Sánchez, a direita e a esquerda (Eugênui Bucci)

A blogueira cubana Yoani Sánchez (http://www.desdecuba.com/generaciony/), também colunista do Estado, virou uma celebridade mundial. A imagem da dissidente que jamais conseguiu autorização de seu governo para sair do país, nem mesmo uma viagem de poucos dias, virou um símbolo eloquente do limite estreito, muito estreito, que confina as liberdades individuais em Cuba. Nessa condição, ela é manchete permanente.

Como se sabe, todas as manchetes servem a interesses e Yoani Sánchez também serve, mesmo que involuntariamente. Ela tremula como um estandarte nas mãos dos opositores do regime dos irmãos Castro, principalmente dos opositores de direita - pois é também possível uma oposição à esquerda, como logo veremos.

Com frequência os relatos sobre as desventuras da blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista. Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar. Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana. Mesmo agora, a partir do final da 2.ª Guerra, inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso acarretasse uma degeneração de corte totalitário. Tanto é assim que, no mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade democrática.

Portanto, é falso o discurso direitista que atribui os padecimentos (reais) do povo cubano ao DNA de qualquer projeto de sociedade sem pobreza. A construção da tirania em Cuba não tem origem na rebeldia dos que se insurgiram contra a ditadura de Fulgêncio Batista, mas na conformação do Estado aos moldes ditados pela União Soviética.

Fora isso, o autoritarismo em Cuba tem sua origem na esquerda, sem dúvida, mas, em matéria de autoritarismo, a direita delinquiu muito mais em outros países. Avesso a essa ululante evidência, o discurso direitista instrumentaliza a figura de Yoani Sánchez para alardear que toda plataforma socialista está fadada ao totalitarismo e à escassez - e que só há liberdade num ambiente baseado mais no mercado do que na justiça social, mais na ostentação do que na dignidade humana.

Oportunista, esse discurso nunca menciona o bloqueio que os Estados Unidos impuseram à ilha há exatos 50 anos (ele teve início no dia 5 de fevereiro de 1962). A própria Yoani, é interessante notar, não vai por aí. Em mais de uma ocasião ela pediu em seu blog a suspensão desse embargo "absurdo". Ao mesmo tempo, ela cuida de alertar para algo que é profundamente verdadeiro: o bloqueio pune o povo, é verdade, mas, perversamente, convém aos irmãos Castro, que se valem dele para culpar os Estados Unidos por tudo o que acontece de ruim. Tanto que, para ela, fim do embargo seria "o golpe definitivo contra o autoritarismo sob o qual vivemos".

Há poucos dias, uma vez mais, Yoani teve negado o seu pedido para viajar para o Brasil (pela 19.ª vez, segundo sua contagem). De novo, foi notícia. Ela queria vir ao lançamento do documentário Conexão Cuba-Honduras, de Dado Galvão, em que aparece como entrevistada. Sem a presença de sua convidada mais ilustre, o lançamento foi adiado.

Enquanto isso, a injustiça prolonga-se em Havana. Muitos, hoje, no Brasil e em Cuba, apoiam a ditadura cubana. Até mesmo no caso de Yoani, a quem acusam de ser remunerada por organizações de direita e de ganhar de presente recursos avançadíssimos de tecnologia digital para fazer contrapropaganda. Logo, não movem uma palha pelos direitos dela.

O curioso é que, mesmo se fossem verdadeiras, as acusações não poderiam justificar o arbítrio. O direito de ir e vir é um direito fundamental da pessoa humana, e não apenas de quem concorda com o governo. Em qualquer democracia os direitos fundamentais de um cidadão não estão condicionados às opiniões dele. Em Cuba, porém, é assim que funciona. E ainda há os que, em nome dos ideais de esquerda, batem palmas para a opressão, dizendo que na ilha não há fome, não há morador de rua, todos têm escolas e hospitais à vontade, e que, diante disso, a falta de liberdade é um reles detalhe. Outra vez: mesmo se aceitarmos como verdadeira essa afirmação - e não há comprovações empíricas de que ela seja realmente verdadeira -, mesmo assim ela não tem validade política, pois o suposto atendimento das necessidades materiais não compensa a falta de liberdade. Aliás, lá mesmo, em Cuba, na prisão americana de Guantánamo, os prisioneiros fazem suas refeições diariamente, entre uma tortura e outra, além de contarem com médicos e dentistas de plantão. Isso não significa que vivam "numa sociedade justa". Eles vivem encarcerados, isso sim. Comida, cama, escola e hospital não são suficientes para que se tenha justiça social, paz e democracia. E sem liberdade constituem a negação dos ideais de igualdade.

Por esse ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto, mas toma a liberdade como fim. Para ela, a livre comunicação das ideias, "um dos mais preciosos direitos do homem", segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, não é meramente um capricho liberal, mas uma conquista de toda a humanidade, na exata medida em que os direitos sociais não beneficiam apenas um ou outro sindicato, mas toda a sociedade. Ao romperem com a democracia, os ditadores em Cuba traíram o sonho que um dia representaram. Por isso também os opositores de esquerda defendem os direitos de Yoani Sánchez.

Guerra civil na Bahia (Cláudio Gonçalves Couto)

Num momento em que a boa fase econômica do país permite olhar para o futuro de forma alentada, a calamitosa situação provocada pela greve de policiais militares na Bahia não permite esquecer que o país ainda padece de seríssimos problemas atinentes à qualidade de suas instituições, de seus recursos humanos e das políticas públicas em diversas áreas. Problemas tão sérios que permitem questionar até que ponto a onda positiva é sustentável e um necessário salto de qualidade está ao alcance. No caso em tela, a precariedade da segurança pública, elementar para a efetividade de todas as demais políticas governamentais, revela uma fragilidade institucional mais profunda do que perceptível no movimento paredista.

A debilidade é evidenciada por um dado tétrico: o volume de homicídios na Região Metropolitana de Salvador atingiu a casa da centena em uma semana de greve. Por si só tal cifra já seria aterradora, pois corresponde ao dobro do registrado na semana precedente - cinquenta e duas mortes, um número altíssimo. Mas há algo pior, notado pelo governador do Estado, Jaques Wagner. Em entrevista à Folha de S. Paulo de ontem, ele acusa policiais militares de, utilizando armas, ameaçarem passageiros de ônibus, bloquearem vias de trânsito e, o mais terrível, assassinarem moradores de rua (algo que o governador admite ser, por enquanto, uma suspeita). Se tais ações são por si só lastimáveis, simplesmente por já terem acontecido, elas embutem algo ainda mais preocupante em relação ao futuro: serão os policiais perpetradores dessa barbárie os responsáveis por zelar pela segurança dos cidadãos e pela preservação da lei e da ordem após o final da greve. Dá para confiar? Como cantou Chico Buarque, "chame o ladrão!".

Greve dos PMs baianos revela instituições frágeis

Por um lado, o evento evidencia um problema institucional das polícias país afora, que repetidamente emerge: uma cultura de truculência e banalização de ações ilegais. Quando tal modo de agir se dirige a criminosos ordinários, justiçados ao arrepio do direito, alguns segmentos da sociedade brasileira - em particular da mídia e da classe política - dão de ombros ou até mesmo aplaudem. "Menos um", diriam certos cronistas midiáticos da violência cotidiana, apelando ao atavismo dos espectadores. Vez por outra, contudo, essa mesmíssima truculência, corriqueiramente empregada contra bandidos, dirige-se a cidadãos comuns, que ou não cometeram crime algum, ou apenas ultrapassaram a fronteira jurídica dos microdelitos.

Quando os vilipendiados habitam periferias das grandes cidades, quase nada vira notícia, pois os atingidos não dispõem nem de status social, nem de conexões que lhes permitam vocalizar seus reclamos e denunciar a violência sofrida. Já quando a truculência atinge os que dispõem de status e poder político ou econômico, há repercussão - o caso das ações desastradas da PM paulista na USP não nos deixam mentir. Para justificar tais deslizes, os porta-vozes da polícia costumam dizer que não se trata de um problema da corporação, mas de um ato individualizado de homens que não honram a farda. Nada mais enganoso, pois o caráter reiterado das transgressões (das quais é preciso escusar-se apenas quando se tornam públicas) revela que a honra corporativa passa, em boa medida, por ações de violência e demonstrações de força incompatíveis com a ordem legal vigente em qualquer Estado democrático de direito.

Os eventos na Bahia explicitam que o hábito de lançar mão da violência de acordo com seu próprio arbítrio pode, em circunstâncias particulares, levar ao flerte com a guerra civil. Senão, como classificar uma situação em que homens armados tomam de assalto um parlamento, promovem o terror contra cidadãos comuns e assassinam indivíduos vulneráveis para coagir o poder constituído a fazer-lhes concessões? Tanto mais grave por se tratarem justamente de "homens da lei".

Por outro lado, é forçoso reconhecer que os PMs baianos têm uma causa justa. Assim como os professores de escolas públicas, policiais recebem salários aviltantes. Todavia, se no caso dos professores uma política nacional voltada a garantir-lhes um piso nacional mínimo foi implantada e deu início a um lentíssimo processo de recuperação da dignidade e das condições de trabalho da categoria, o mesmo não aconteceu com os policiais. O governador da Bahia tem razão quando observa que o movimento mira na PEC-300, que visa justamente conferir a policiais uma remuneração nacional mínima. E não seria o caso, então, de buscar uma solução para o pleito? Certamente isto não deve ocorrer como fruto de uma chantagem de criminosos fardados, que colocam uma faca no pescoço do governo com seu motim. A razão legítima é que dificilmente qualquer política de segurança prosperará no país sem que salários condignos sejam pagos a policiais - sobretudo num momento de melhora na remuneração dos trabalhadores brasileiros em geral, aumentando a disparidade e, por conseguinte, o desprestígio social da categoria e sua insatisfação.

O mais sério obstáculo à elevação da remuneração é o passivo previdenciário do setor público. Enquanto certas categorias do funcionalismo recebem altos salários, mas são pouco numerosas, impactando menos as combalidas contas previdenciárias do serviço público, professores e policiais são muitos, e que qualquer aumento de seus salários gera de imediato um novo choque de gastos previdenciários. Neste momento, em que o governo federal tenta aprovar o fundo de previdência dos servidores, é o caso de articular sua aprovação com políticas de reestruturação das condições de carreira e remuneração de setores do funcionalismo, permitindo políticas salariais necessárias ao bom trabalho e sustentáveis no longo prazo. Mudanças nessa direção teriam inclusive o condão de melhorar o recrutamento, atraindo gente mais capacitada para funções primordiais do serviço público. Nada disso será viável, entretanto, sem que se olhe também para a questão previdenciária.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

FONTE: VALOR ECONÔMICO

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Para além dos comerciais: educação em Vila Velha entre promessas e farsas

A "Mensagem ao Congresso Nacional", edição 2012, encaminhada pela Presidente Dilma ao Legislativo é a "mais perfeita tradução" de como é tratada a questão da Educação no Brasil. O documento diz muito sobre o que foi esse primeiro ano de governo e como tem sido pífia a execução de programas governamentais. E a educação não foge desse quadro.

Para refrescar a memória: um dos grandes bordões da campanha foi a promessa da construção de mais de 6 mil creches nos quatro anos de governo. A Mensagem destaca a "aprovação", em 2011, da "construção de 1.484 creches e pré-escolas por todo o Brasil". A promessa de Dilma foi bem distinta: erguer - e não "aprovar a construção" - 6.427 creches em quatro anos. Nenhuma delas, porém, foi concluída até agora.

Como mostrou o jornal Estado de S.Paulo, "para cumprir uma promessa de campanha feita pela presidente Dilma Rousseff, o Ministério da Educação terá que inaugurar pelo menos 178 creches por mês, ou cinco por dia, até o fim de 2014". O programa destinado à construção das creches - o Pro-Infância, executou meros 16% do orçamento do ano passado.

Com a educação é sempre assim: discurso forte nas campanhas eleitorais e conteúdo vazio ou pífio no desempenho governamental.

Se está assim no plano federal, imaginem como anda essa realidade no plano das prefeituras, e, especialmente, em nossa Vila Velha.

Falo em nossa Vila Velha porque na TV um novo comercial da Administração Neucimar Fraga tem como foco exatamente a educação. É revoltante ver uma política pública que atinge de forma significativa a vida da população e afeta profundamente os segmentos sociais mais necessitados ser objeto de um tratamento que beira a desfaçatez da mentira e tentativa de manipulação de dados. Um acinte a inteligência e um desrespeito aos moradores de Vila Velha que são tratados como ineptos e massa ignara suscetível a manipulação.

Uma frase sintetiza bem o conteúdo do comercial : "são mais de 40 novas escolas, entre construídas e reformadas", ou seja, ao colocar escolas reformadas (as vezes uma mera pintura sendo chamada de reforma) tenta induzir o telespectador a pensar que a cidade de fato recebeu mais de 40 novas escolas.

Se for colocada a pergunta, de forma objetiva e sem firulas, quantas escolas essa administração licitou, iniciou e inaugurou, a resposta, também de forma objetiva, é nenhuma. Repito, essa administração não projetou, licitou, começou e inaugurou NENHUMA ESCOLA NOVA, (mas isso é assunto para ser demonstrado em um outro artigo).


Na sequência, a publicidade tenta vender a ideía de que foram gastos mais de 400 milhões em investimento como se gastos ou custeio pudessem ser considerados como investimento. Pode se gastar muito mas se gastar mal. Pode-se , por exemplo, gastar muito graças a compras superfaturadas, contratação em excesso de pessoal (cabide de empregos) ou pagando produtividade de 200% aos apaniguados e cabos eleitorais travestidos de educadores.

Essa administração foi trágica para a Educação e o que tem a apresentar depois de 3 anos de gestão é um resultado desmoralizante. O que tem a apresentar é uma fantástica série de promessas não cumpridas e a manipulação da informação como instrumento de gestão.

Vamos repassar rapidamente alguns exemplos que nos permitem confirmar as afirmações acima.

1) Em 2009, o secretário Heliosandro Matos chegava de Brasília anunciando que junto com o senador Magno Malta havia acertado a garantia da construção de 8 unidades de educação infantil dentro do progama federal Pro-infância. Embora, o governo federal tivesse lançado o programa com uma estimativa de 800 "creches" para todo o país, o secretario afirmava que Vila Velha receberia oito, como se tivesse condições políticas de obter esse número em 800 "creches" disputadas por milhares de municipios Brasil afora.

Em A Gazeta, de 22 de fevereiro de 2009, o secretário anunciava que "a partir do convênio firmado entre a Prefeitura e o Ministério da Educação, a cidade será incluída Programa Nacional de Reestruturação e Aparelhagem da Rede Pública de Educação Infantil (Pró-Infância)" e que "terá mais sete escolas muniicipais de educação infantil" e assegurava que "as obras comecem nesse ano (2009, nota nossa) e sejam concluídas em 2010." Informava ainda que "a Prefeitura adquiriu sete terrenos nas regiões de Araçás/Garanhuns, Terra Vermelha/Ulisses Guimarães e Cobilandia".

Isso em 2009, primeiro ano de governo. Agora, pergunto: alguem viu a cor desses recursos? Vila Velha ganhou alguma unidade do Pró-infancia? alguem sabe onde se localizam os terrenos adquiridos? alguem viu a inauguração de uma dessas unidades? Blefe, puro blefe.

2) Ainda em 2009, a PMVV anunciava a construção de 29 novas escolas. Conforme matéria de A Gazeta, de 16 de julho de 2009 (o aninho fatídico!), as obras seriam iniciadas até dezembro de 2009 e entregues em 2010. Na listagem eram nominadas 17 unidades de Educação Infantil nos bairros: Morada da Barra, Balneário Ponta da Fruta, Novo México, Divino do Espírito Santo, Cristóvam Colombo, Rio Marinho, Alecrim, Athaíde, Santa Paula, Cobilandia, Nova itaparica, Terra Vermelha, Alvorada, Darly Santos, Vale Encantado, Barramares e Guaranhuns.

E 13 unidades de Ensino Fundamental nos bairros de Morada da Barra, Balneário Ponta da Fruta, Santos Dumont, Alvorada, Cobilandia, Vale Encantado, Barramares, Barra do Jucu, Terra Vermelha, Rio Marinho, Pontal das Garças e São Torquato.

Essas obras estavam garantidas, conforme o secretário Helisandro, através de um investimento total de R$ 55 milhões, sendo "parte financiada em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e por meio de convênios com a Secretaria de Estado da Educação (SEDU)".

Logo depois a Secretaria de Comunicação da PMVV editava uma publicação ricamente ilustrada, com um mapa de Vila Velha, onde bolinhas coloridas indicavam o tipo de escola (educação infantil ou ensino fundamental) e o bairros que seriam beneficiados.

Mais uma vez a pergunta; esses convenios e parcerias foram assinados? alguém viu a cor desses recursos?, alguém viu alguma dessas 29 escolas sendo inauguradas? Blefe, mais uma vez puro blefe.

3) E para fechar a série de blefes e factóides de 2009. Em 09 de maio, a Gazeta trazia a informação que a secretaria de educação de Vila Velha havia estabelecido a meta de nos próximos quatros anos (2009/12) elevar de 4,8 para 8,0 o IDEB dos alunos das escolas municipais.

O secretário ganhou manchetes dos jornais e até uma entrevista no Bom Dia ES da TV Gazeta. O que faltou para os repórteres que cobriram tal factóide foi perguntar qual seria a fórmula mágica que permitiria a Secretaria de Educação, em quatro anos, duplicar o IDEB do municipio, considerando que o MEC havia estabelecido uma meta nacional de 6,0 até 2022.

Certamente, os planejadores do ministério tinham alguma base ou critério para estabelecer a média de 6,0 como meta a ser atingida em 2022. Qual seria, então, a base que permitiria os planejadores de PMVV estabelecer uma meta que colocaria o municipio em patamares superiores aos países top de linha na educação mundial?

Nenhuma base, apenas mais um factóide e apenas mais um blefe, simplesmente um blefe.

Vou ficar apenas em tres exemplos referentes ao ano de 2009. Não vou passar a limpo o que exatamente foi feito nesse tres anos de gestão e como está sendo feito.

Fico nesses tres exemplos para mostrar a forma leviana com que a Administração Neucimar Fraga trata as coisas da educação.

Fico apenas em 2009 para mostrar o modus operandi de uma gestão que faz da propaganda enganosa a razão de ser da sua relação com a cidadania vilavelhense.

Fico apenas em 2009 para mostrar minha indignação frente a um comercial que manipula dados e informações, esquecendo a velha licão de Abraham Lincoln:

"Pode-se enganar a todos por algum tempo; Pode-se enganar alguns por todo o tempo; Mas não se pode enganar a todos todo o tempo..."

Roberto Beling

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A cota de Cardozo (Demétrio Magnoli)

Ao longo da história, os EUA receberam 75 milhões de imigrantes, o que alavancou sua economia

Anos atrás, o ministro da Justiça, Tarso Genro, determinou a deportação de dois pugilistas cubanos que tentavam fugir de seu país. Há pouco, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, seu companheiro de partido, estabeleceu cotas restritivas para a concessão de vistos a imigrantes haitianos, anunciando a possibilidade de deportação dos que entrarem ilegalmente no Brasil.

Genro fez um agrado asqueroso à ditadura dos Castro. Cardozo curvase a reações preconceituosas que operam nas esferas superpostas das marcas social e de cor. Obviamente os atos não são idênticos, mas ambos se inscrevem numa moldura similar de desprezo pelos direitos humanos.

Ministério da Deportação – é essa a placa de bronze que pretendem inaugurar sobre o espelho d"água do Palácio da Justiça? No site de um jornal, sob a notícia de que o governo federal liberou um repasse de verbas para o Amazonas e o Acre destinado a apoiar o atendimento aos imigrantes haitianos, comentários de leitores funcionam como súmulas do preconceito. A marca da cor, indizível, oculta-se sob a da pobreza: "Lindo, Brasil! Ao invés de gastar esse dinheiro com os nossos pobres, vamos gastar com os pobres dos outros." O complemento, na mensagem seguinte: "Mais bolsa miséria a caminho.

Vamos lá, Brasil." Há uma narrativa comum, insuflada pela ignorância sobre a história: "Qual país do mundo paga para receber brasileiros? Por que o governo brasileiro não olha para o Norte e aprende como os EUA agem nessas ocasiões? Somos mais ricos que eles?" Ao longo de sua história, os EUA receberam 75 milhões de imigrantes, um fenômeno sem igual que funcionou como a alavanca decisiva na configuração da maior economia do mundo.

O principal ciclo imigratório, no meio século anterior a 1920, criou a agricultura farmer do Meio-Oeste e ergueu as plataformas industriais do Nordeste e dos Grandes Lagos. Eram pobres, quando não miseráveis, os europeus que desembarcavam em Nova York minutos depois de singrar ao largo da Estátua da Liberdade, fincada em 1886 numa ilha desabitada da baía.

Cardozo deveria, de fato, "olhar para o Norte" antes de impor uma cota insignificante de cem vistos mensais para os haitianos. Nos EUA, o maior fluxo imigratório do mundo prossegue a taxas médias anuais superiores a um milhão, desde 1990. No lugar dos irlandeses, que fugiam da an Gorta Mór, a crise de fome deflagrada por uma praga nas plantações de batata, os novos imigrantes são latino-americanos ou asiáticos. Os mexicanos e seus descendentes somam 25 milhões, dois quintos dos quais residem na Califórnia. Nova York é o núcleo de uma comunidade expatriada de 600 mil haitianos, fonte principal dos recursos que, circundando a teia parasitária de ONGs internacionais atuantes no Haiti, sustentam os milhões de deslocados internos pelo terremoto de 2010.

O nome de Madison Grant está associado à única descontinuidade na história das migrações para os EUA. Grant escreveu um célebre tratado histórico sobre raças, promoveu a exibição de um pigmeu do Congo na jaula dos macacos do Zoológico do Bronx e formulou a Lei de Integridade Racial da Virgínia, de 1924. No mesmo ano, sob sua inspiração, o Congresso americano aprovou a Lei de Imigração que interrompeu o grande influxo migratório das décadas precedentes. Em nome da pureza racial da nação, a lei estabelecia cotas restritivas ao ingresso de europeus orientais e meridionais e proibia a entrada de asiáticos.

Da raça à cultura, é só um passo. Há sete anos, o cientista político Samuel Huntington publicou "Quem somos nós? Os desafios à identidade nacional americana", uma obra nativista na qual caracteriza a imigração hispânica como um ácido corrosivo que ameaça a integridade cultural dos EUA. O livro ocupa um lugar destacado na biblioteca de Newt Gingrich, o pré-candidato republicano que promete deportações em massa de mexicanos.

Quando o ministro Cardozo seleciona os haitianos como alvos de restrições inéditas, está "olhando para o norte" – mas enxergando a porção ignóbil de uma longa história.

No primeiro semestre do ano passado, 330 mil imigrantes portugueses conseguiram regularizar seus papéis no Brasil. Cerca de 4 mil haitianos cruzaram ilegalmente a fronteira brasileira no último ano. Mas a bússola do ministro da Deportação Anunciada são as sondagens de opinião, não os fatos. Na entrevista consagrada a informar sobre a política de cotas, Cardozo invocou o imperativo da segurança nacional, dissertou sobre o conluio de "coiotes" com narcotraficantes e, astuto como uma raposa, mencionou o caso específico da entrada de um haitiano foragido de um presídio que desabou durante o terremoto.

Nenhum jornalista solicitou que ele estabelecesse uma relação positiva entre a cota restritiva de vistos e o controle policial das fronteiras brasileiras. Também não se indagou o motivo para o contraste entre o tratamento dispensado aos imigrantes haitianos e portugueses.

Imigrantes são uma riqueza, um recurso social, para os países receptores.
A economia ensina que eles diversificam e dinamizam o mercado de trabalho, sem aumentar as taxas de desemprego. A antropologia ensina que eles deflagram novos intercâmbios culturais, contribuindo para a criatividade geral da sociedade. Deriva do estereótipo a noção de que os haitianos que ingressam no Brasil formam uma massa homogênea de indivíduos sem qualificações profissionais.
Como no caso da comunidade haitiana nos EUA, parcela significativa dos imigrantes que cruzaram nossas fronteiras é constituída por trabalhadores qualificados que abandonam um país entregue à desordem, à corrupção e à violência dos poderosos.

O Brasil não tem tradição de estabelecer distinções de origem entre os imigrantes. Cardozo criou um precedente vergonhoso – que, aliás, só beneficia os "coiotes". Felizmente, ao contrário do episódio dos pugilistas, ainda há tempo para corrigi-lo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A ética do coronelismo (Roberto DaMatta)

Nos idos de 1960, um humilde sertanejo do antigo Estado de Goiás me disse o seguinte sobre o sistema político brasileiro: "Todo mundo tem patrão e empregado. Só Deus não tem patrão e não deve favor a ninguém! O resto tudinho tem um lado forte e um lado fraco! É patrão e doador (seu lado forte) e cliente e recebedor (seu lado fraco). Por isso, todo mundo tem o rabo preso!". Confesso que fiquei sobressaltado com essa moralidade que punha todos os relacionamentos em uma escala que ligava os patrões – os mandões e os coronéis – a seus empregados, capangas e partidários; e, mais ainda, pelo fato de que a fórmula mostrava como todos estavam divididos entre credor e devedor. Sendo o Brasil assim, a descoberta de que Fernando Bezerra Coelho – descendente de uma ilustre e eficiente estirpe coronelista do Nordeste e atual ministro da Integração Nacional – nomeava parentes e, paralelamente, desintegrava suas verbas, favorecendo seu Estado, Pernambuco, não deveria causar assombro.

Esquecer que cuidamos primeiro dos nossos é algo semelhante a não recordar que todos queremos um jeitinho, que somos nazistas no volante, que achamos normal o roubo da coisa pública, predestinada para o furto; que temos gosto em fumar em local proibido e, por fim mas não por último, que temos o dever de perguntar ao amigo do peito o que ele quer quando entramos no governo. Ou seja, quando temos emprego para "dar" sem nenhum prejuízo para a empresa que é o Estado – essa Viúva ou a Grande Prostituta (como dizem nossos irmãozinhos latino-americanos com senso de realidade) – cuja riqueza até ontem era tida como infindável e que, pertencendo a todos, pertenceria aos governantes do momento. Daí chegamos ao caudilhismo – a politicagem e o personalismo que excluem as pessoas, pois nos autoritarismos o poder não está a serviço da sociedade, mas dos donos da máquina pública. Recolher impostos de todos para gastar com os nossos (porque são nossos) é o ponto central da ética do coronelismo.

Diante disso, pergunta-se: como gastar dinheiros públicos sem isenção, quando somos incessantemente motivados por nossas famílias, compadres e amigos? Quando somos todos patrões de um lado e clientes de outro – e como patrões usamos a lei contra o cliente, mas, como clientes, queremos tê-la a nosso favor? Afinal, os governos passam, mas os irmãos, os tios, os primos, os amigos e os cunhados ficam. E nossa vida sexual, bem como nossa paz de espírito e senso de integridade, depende muito mais deles do que – e aí está o problema! – da polícia, do Ministério da Fazenda, da escola pública e do posto de saúde que nos faz esperar 12 horas numa sala imunda. Dane-se o Estado, viva a família. Por tudo isso, e por jamais ter sido devidamente politizado, o que é público é, no Brasil, sinal de pornografia e de prostituição.

Como, então, seguir o sábio conselho do historiador romano Cornélio Tácito – o famoso sine ira et studio (sem cólera ou parcialidade)? Esse princípio que inspirou Max Weber como a atitude mais adequada? Que serviu de base para a impessoalidade igualitária – base das democracias modernas? Como, com base nesses princípios, contrastar com os modos de governo tradicionais no país, fundados justamente no poder da família, do carisma e dos elos pessoais? Num universo social como o brasileiro, fundado numa economia e num sistema legal escravista, centrado na desigualdade e nas relações pessoais (os escravos precisavam ser mantidos na ignorância), como bloquear o oceano de práticas culturais baseadas nas hierarquias do dar para receber? Como operar sem o viés dos elos pessoais e familísticos que ordenam todas as esferas da vida? Como esquecer a importância capital da "casa" (que congregava, como faz até hoje, patrões e empregados harmonizando as mais brutais desigualdades) se era precisamente na família onde se centrava a operação do sistema?

O caso Bezerra desnuda um lado de nossa vida política que os partidos políticos, a divisão de poderes no melhor estilo do Barão de Montesquieu, os diários oficiais e os códigos legais escondem. Pois se neles a lei é feita para indivíduos enquanto cidadãos, o clientelismo nepotista do ministro pernambucano – que pertence, pasmem, aos quadros do Partido Socialista Brasileiro – mostra que ao lado do cidadão coexistem, mais ou menos escondidos, o tio, o primo, o irmão e o pai. Ou seja: antes de saber das competências e das necessidades para um cargo público, temos os parentes, os compadres, os amigos e, no lulo-petismo de hoje em dia, os partidários. O Brasil moderno, não cabe dúvida discutir, é um país feito de cidadãos sujeitos absolutos da lei e sobretudo do mercado que vale para todos; mas – eis o problema que hoje fere mais do que ontem – há também uma teia de relações cujo dado crítico continua sendo o velho parentesco, pai do clientelismo.

Afinal de contas, somos republicanos ou monárquicos? Nascemos no Novo Mundo ou em Roma? Quem deve ser nomeado? O mais competente, como ocorre no futebol? Ou o parente feito do mesmo sangue a quem devemos favores desde o nascimento? Quem deve receber a verba? A região mais atingida pelas enchentes ou nosso torrão natal, o lugar dos nossos conterrâneos, governado por nossa família? Se na era Vargas e na ditadura militar o Brasil tinha um patrão que despoticamente dava ou tirava direitos, será que hoje – com mercado, competição, internet, Banco Central, moeda estável, telefonia sem fio, globalização e uma imprensa não só livre, mas profissional e eficiente, que divulga e (muito mais que isso) faz pensar – continuamos na mesma? Paramos ou não no tempo em termos de política, de justiça e de administração pública igualitária e democrática?

Essas são as questões que o caso do ministro da Integração Nacional levanta com sua conduta clientelística. Se fomos marcados desde o início por um documento que terminava com Pero Vaz de Caminha pedindo um favor ao rei Dom Manuel, pois boas notícias se pagam com bons presentes, cabe perguntar até quando iremos continuar a viver num mundo onde a igualdade é sempre preterida – e, em seu lugar, valem os laços de família.

A questão é saber até onde quem tem o controle do Estado, e pode mudar as regras do jogo, vai continuar a – em nome do povo e dos pobres – usar a máquina pública em favor da família, dos amigos e do partido. A privatização passa, no Brasil, pelo elo pessoal, não exclusivamente pela dimensão empresarial. Falamos em igualdade, mas continuamos a ter pessoas que são maiores do que os cargos que ocupam. E, o que é pior, jamais discutimos a ética desses cargos. Que não podem pertencer a partidos ou indivíduos porque são do Brasil. Mesmo tendo partidos, a lógica do poder à brasileira contempla mais as pessoas – com suas manias e fobias – que as ideologias que, por isso mesmo, desmoronam do mesmo modo que nossas estradas e pontes debaixo das tempestades. As chuvas começam na natureza, mas acabam no velho nepotismo que jamais foi erradicado entre nós. Temos leis universais que valem para todos, mas o sistema insiste em funcionar como um coronel, como uma ação entre amigos.
30/01/2012, revista Época