quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A cavalaria tucana... (Marcos Nobre)

• PSDB tem experiência em tomar governos pelo alto
É verdade que Temer não se cansou de dar tiros no próprio pé, mas aproveitou de maneira eficiente a janela dos seus sete primeiros meses de governo. Mesmo sob fogo intermitente da Lava-Jato, a confusão generalizada acabou jogando a favor de sua agenda. O grande emblema, a PEC dos gastos, foi objeto de aprovação no atropelo, sem que a grande maioria da população tenha entendido do que se tratava, sem que a oposição tenha conseguido inflamar as ruas. Agora que o entendimento parece um pouco mais amplo, quando a emenda já foi promulgada, as pesquisas mostram uma sólida maioria contra a medida. Ou seja, o efeito tecnocrático-surpresa não poderá mais ser usado no futuro. A conversa com o eleitorado terá de ser de outro tipo a partir de agora.
É isso o que provoca a sensação de que, fechada a janela, acabou o governo Temer. Ou pelo menos esse primeiro governo. Os discursos de Natal sobre futuras reformas e sobre medidas de estímulo à economia são concatenados e coerentes, mas não parecem passar de discursos, uma maneira de aproveitar o fim da janela com uma cantoria no peitoril. A Lava-Jato e lambanças de lavra própria tomaram de Temer todos os quadros mais próximos, aqueles em que confiava para coordenar o governo e negociar com o Congresso. Foram-se Geddel Vieira Lima e José Yunes, Eliseu Padilha está para sair, Moreira Franco subiu no telhado.
O PMDB nunca teve coordenação de governo como seu objetivo. Pelo contrário, nos últimos 20 entregou essa função para PSDB e PT. Seu objetivo é conseguir votos e vender apoio parlamentar. Coordenar governos de coalizão tem um alto custo. Em vez de colocar os melhores quadros em busca de votos para expandir a base congressual do partido líder, é preciso utilizá-los para produzir coordenação, para produzir agendas transversais, para dar uma cara mais ou menos uniforme e coerente à multidão de políticas governamentais. Do contrário, o que se tem é um ajuntamento e não um governo. O slogan do governo Temer ("Ordem e Progresso") e a mesquinhez visual de seu logotipo não passam de símbolo de sua total inaptidão para essa função coordenadora.
Ainda assim, o governo Temer tentou se colocar nessa posição da qual o PMDB se afastou desde pelo menos 1988, quando uma de suas costelas veio a formar o PSDB, um partido de quadros que pretendia justamente coordenar governos para além do arquipélago de interesses pemedebista. Raramente é cabível a autocitação, mas não há colunista que tenha passado incólume pela tentação. Que seja, pelo menos no texto de hoje. Apareceu escrito aqui em 18 de abril deste ano: "No final de 1992, quando, após o afastamento de Collor, Itamar Franco assumiu a Presidência, foram necessários seis meses até que FHC tomasse as rédeas do governo. A preparação do Plano Real tomou quase um ano inteiro. A situação atual é muito diferente. Mas a disputa em torno da figura que vai efetivamente liderar um governo Temer não poderá exceder os mesmos seis meses do caso do governo Itamar. Se pretender dirigir seu próprio governo, as chances de que Temer se mantenha no cargo diminuirão consideravelmente".
A última chance de sobrevivência para Temer é a formação de um novo governo a partir de fevereiro de 2017, sob o comando do PSDB. Os tucanos têm grande experiência em tomar governos pelo alto. É conhecida a história do veto de Mário Covas à entrada de FHC no governo Collor, movimento que salvou a futura carreira do ex-presidente do Real. Foi no vácuo do governo interino de Itamar Franco que o PSDB conseguiu finalmente chegar ao poder central. É o mesmo movimento que se vê agora, no governo Temer. Mas com algumas diferenças importantes.
Uma delas é que a decisão do PSDB de tomar o governo Temer foi feita às custas de um profundo racha interno. O emblema desse movimento foi a decisão de prorrogar por um ano o mandato de Aécio Neves como presidente do partido, um flagrante enquadramento das pretensões do grande vitorioso das eleições municipais de 2016, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. E, já que foi aberta a porteira da autocitação, o que apareceu neste espaço no dia 17 de outubro deste ano foi o seguinte: "Ao chamar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para uma 'conversa de amigos' na semana passada, Temer realizou o ato inaugural de uma negociação que tem como primeiro passo de sua construção contrarrestar a ascensão de Alckmin. Para isso, será necessário usar o poder federal para reequilibrar a balança do PSDB a favor de Aécio e contra o governo de São Paulo".
Outra diferença significativa é que o PSDB tem uma clara rota de fuga do governo que agora toma, um plano B. Se não conseguir imprimir ao governo Temer um rumo que mantenha vivas suas chances eleitorais em 2018, tem à mão o julgamento no TSE, que pode cassar a chapa eleita em 2014 e provocar uma eleição indireta pelo Congresso, afastando-se a tempo do naufrágio do governo que irá dirigir a partir de agora. Fracassando essas duas linhas de ação, volta ao jogo Geraldo Alckmin, o plano C. Parece estratégia demais para uma situação tão estruturalmente instável como a atual, parece cálculo demais para um cenário tão imprevisível quanto o que se tem. Mas é a única e a última cavalaria de que dispõe Temer para tentar se salvar. Uma cavalaria que pensa antes de tudo em salvar a si mesma.
fonte: Valor Econômico (19/12/16)

‘Tenentes de toga comandam essa balbúrdia jurídica’ (Luiz Werneck Vianna/entrevista)

• Segundo , pesquisador da PUC-Rio, MP e Judiciário alimentam crise política para reforçar seus interesses corporativos
Wilson Tosta - O Estado de S. Paulo
RIO - O cientista político Luiz Werneck Vianna, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, vê “uma inteligência” – a das corporações jurídicas, como o Ministério Público e o Judiciário – no comando da crise política que assola o País. “Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia”, diz, ao se referir à divulgação de casos de corrupção envolvendo políticos.
Para ele, procuradores e juízes são “tenentes de toga” – uma comparação com os jovens militares dos anos 1920 –, mas, diferentemente dos revolucionários fardados do passado, não têm programa além de uma “reforma moral” do País.
Leia a entrevista abaixo
• Os vazamentos de delações de executivos da Odebrecht caíram como uma bomba na classe política. O que podemos esperar da crise, que parece não ter fim?
Essas coisas não estão acontecendo naturalmente. Não são processos espontâneos. A esta altura, a meu ver, não há dúvida de que há uma inteligência organizando essa balbúrdia. Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia.
• Mas quem faz isso? O Ministério Público? O Judiciário?
Essas corporações tomaram conta do País.
• Estão se sobrepondo ao sistema político?
Sim, claramente. E também ganhando mais poder. Na defesa dos interesses públicos, reforçam suas conquistas corporativas. Então não se pode mexer na questão do teto salarial.
• Podemos concluir que a crise se prolongará, já que isso interessaria a essas corporações?
O fato é que se criou, nesses últimos anos, uma cultura corporativa muito poderosa. Se você fizer um recenseamento dessas corporações, dos seus encontros anuais, são milhares de profissionais que anualmente se reúnem em algum canto, em geral paradisíaco, para definir a sua agenda, do ponto de vista corporativo. E os partidos não têm penetração, não têm inclusão. São figuras mantidas à margem.
• Os partidos acabaram?
Não acabaram. Estão aí. Estão muito enfraquecidos e sendo objeto deste achincalhe.
• Mas as posições defendidas por esses setores têm sustentação na sociedade, não?
Esse andamento não foi previsto. Foi sendo percebido ao longo do processo. Uma coisa sabiam: que a conquista da mídia era estratégica. Se você pegar os textos que embasam as ações da Lava Jato, lá nos escritos do juiz Sérgio Moro, vai ver a percepção que eles tinham a respeito da mídia como dimensão estratégica. As ruas foram o inesperado, mas que aos poucos foi-se descobrindo como outra dimensão a ser trabalhada. Então, montou-se uma rede, que hoje já não atua mais espontaneamente. Esse processo é, a essa altura, governado. Imprime-se a ele uma certa direção. Agora, para quê, para onde, acredito que eles não sabem.
• O papel dessas corporações teria de ser revisto?
Só quem pode enfrentar essas corporações é o poder político organizado. Quando elas são atacadas, se defendem dizendo que na verdade quem está sendo atingindo é o interesse público. Conseguiram armar esse sistema que as tem protegido de crítica. A questão (da limitação) dos altos salários, por exemplo. Dizem que essas não são medidas corretivas, mas sim que penalizam o poder judicial. Quando eles se protegem da opinião pública mobilizando na outra mão a Lava Jato, ficam inatacáveis.
• O governo Temer sobrevive até 2018? Chegaremos às eleições?
Torço para que isso ocorra. Porque a destruição desse governo agora nos joga nas trevas. Destitui-lo para quê? Para fazer eleição direta? Mas como? Fazer eleição direta neste caos? Quem vai ganhar isso?
• Vivemos uma espécie de “Revolução dos bacharéis”?
Não, não, não. Tem uma metáfora melhor, a dos tenentes.
• Na Constituição faltam controles sobre essas corporações?
Em princípio, não. O problema é que as instituições têm de ser “vestidas” pelos personagens. E, a partir de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o País. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral.
• Mas o combate à corrupção não é importante?
Sem dúvida. Agora, política é política. Este Judiciário que está aí ignora a existência de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso, um ímpeto de missão.
• A atuação dessas corporações fortalece a negação da política?
Sim. Elas só existem desse jeito destravado, sem freios, porque as instituições republicanas recuaram. E o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso. Porque rebaixou os partidos, fez dos partidos centros de negócio.
20 de dezembro de 2016

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Partidos, intelectuais, democracia (Luiz Sérgio Henriques)

• Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência
Inimaginável qualquer nostalgia dos tempos duros do regime autoritário, mas é fato que, então, além de sonhar com a volta do irmão de Henfil, contávamos com referências seguríssimas que eram a garantia de uma transição sábia e prudente rumo à vida democrática. De fato, reconfortava ter ao alcance da vista personalidades laicas ou religiosas – um Barbosa Lima Sobrinho ou um dom Paulo Evaristo Arns – cuja presença, no mínimo, indicava o roteiro básico e assinalava o reencontro do Brasil consigo mesmo.
Não haveria mais exilados ou clandestinos, presos ou perseguidos políticos, fato raro em nossa História. Prestes e os comunistas, Brizola e os trabalhistas, para não falar do novo mundo sindical que se cristalizaria em torno de Lula e do PT, se fariam presentes nas ruas e nas instituições, ampliando estas últimas e dando-lhes plena legitimidade. Tempo, ainda, de elaborações sofisticadas, que, mesmo pagando o inevitável tributo às ilusões do momento, perguntavam-se, e respondiam positivamente, sobre as possibilidades da democracia em sociedades marcadas por imensas desigualdades. Ela seria – como se chegou a dizer numa fórmula de rara felicidade, trazida dos comunistas italianos – um “valor universal”, meio e fim dos processos de democratização e modernização.
No coração das trevas, as eleições de 1974 registraram o surgimento de uma elite dirigente em potencial, que, de fato, iria assegurar o governo do País dali a poucos anos. Políticos de gerações anteriores, como Ulysses, Tancredo e Montoro, misturavam-se a “jovens” de pouco mais de 30 ou 40 anos, como Itamar Franco, Pedro Simon e Marcos Freire. E nesse âmbito mais diretamente ligado à política profissional, o lugar privilegiado de gestação daquela promissora elite era, nem mais, nem menos, o velho MDB, o partido da “oposição consentida”.
Deve-se admitir que o MDB, um sucesso de público, como o comprovariam as sucessivas vitórias eleitorais, jamais teve fortuna crítica à altura. Ser “consentido” era já um estigma forte: quem estava no partido lutava só pelas “liberdades burguesas”, declinando de responsabilidades revolucionárias, tal como ensinavam a lição chinesa ou a cubana. Os fantasmas do voto nulo e da autodissolução o rondaram em conjunturas críticas. E seu sentido mais essencial – ter sido, desde sempre, o lugar de convergência de oposicionistas da primeira hora e dissidentes do regime, de liberais, comunistas do PCB e democratas em geral – talvez não haja sido apreendido pelos que viriam depois, inclusive e paradoxalmente as próprias figuras da esquerda nova.
Antes de mais nada, o PT. Construído ao longo de décadas em torno de um mito operário de “base”, o partido mostrou-se substancialmente alheio às tratativas da transição, como se sua mera existência ressignificasse toda a História e, por exemplo, o dispensasse de votar em Tancredo ou permitisse infantilidades antes de assinar a Carta de 1988. Trouxe ainda, como pecado de origem, uma cultura política que, enfatizando um “espírito de cisão” em relação à frente emedebista, excluía e separava, subordinava e impunha um mando. A afirmação “classista” inicial, que o distinguiria de “todo o resto burguês”, implicava uma das modulações clássicas do discurso populista, fundamentado na afirmação exasperada do “nós contra eles”. Uma lógica binária que marcaria as relações políticas, e não só elas, especialmente nos anos de poder incontrastado.
Houve algo de novo nas alianças partidárias a partir de 2003. Se observarmos sem indulgência, ocorreu menos uma homogeneização das práticas do partido dominante às da “velha política” do que a decapitação sistemática dos aliados do petismo e a introdução sistemática de modos agressivos de cooptação e subordinação: inicialmente, as legendas menores e, depois, o próprio PMDB. Assim, na hora de contribuir para renovar as elites, o petismo comportou-se de forma irresponsável. E se a capacidade de renovar ideias e práticas for o critério para avaliar uma força política, não há dúvida de que hoje estamos diante de um fracasso histórico de custosa reparação.
Verdade que ele teve diante de si partidos cujas direções estavam envelhecidas ou que, no caso do arqui-inimigo tucano, se dividiram entre lideranças inconciliáveis. Tais grupos, mesmo com a implantação “capilar” no território típica do PMDB ou com a orientação social-democrata (ou social-liberal) do PSDB, se comportaram de modo tradicionalíssimo e se desligaram progressivamente da vida associativa, dos centros de cultura e dos locais de trabalho. Têm votos e ganham eleições, elegem bancadas, governadores e até presidentes, mas são exércitos dispersos, sem capitães ou bandeiras capazes de gerar uma certa visão dos problemas razoavelmente difundida na sociedade.
Por isso, como diz José de Souza Martins, incorremos massivamente num tempo agônico de partidarização sem politização. Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência. Parece não falarmos a linguagem geral que consente a divergência e a pluralidade. Perdemos – quem sabe, momentaneamente – a ideia de que deve existir, por força das coisas, um terreno comum entre os contendores, algo, em suma, que permite explicitar radicalmente as divergências e manter como âncoras valores compartilhados e princípios de lealdade mútua.
Quando partidos e classes quase se confundiam e os antagonismos respondiam a uma lógica bruta, ainda assim houve quem tivesse a consciência de que a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruína generalizada. Mal começou, entre nós, a pesquisa sobre as razões por que o petismo, como “ideologia” e como prática, contribuiu tão pouco para o refinamento dessa consciência, a qual, porém, é condição inescapável para dirigir a mudança social contemporânea.
Fonte: O Estado de São Paulo (18/12/16)

Vai dar para esperar até 2018? (Marcos Nobre)

Sabe-se lá como, o governo Dilma conseguiu sobreviver a uma tempestade perfeita até o momento em que o ministro Teori Zavascki ordenou a prisão de Delcídio do Amaral, senador no exercício do mandato, líder do governo no Senado. Nesse mesmo dia 25 de novembro de 2015, a decisão do ministro foi referendada pela 2a. Turma do STF e confirmada em votação no Senado. A partir desse momento, o sistema político entrou em estado de pânico permanente.
A barbaridade jurídica perpetrada pelo STF com a prisão do senador abriu a caixa de Pandora das atrocidades jurisdicionais. Foi a senha e a chancela para a multiplicação das arbitrariedades em todos os níveis. E não apenas no Judiciário. Não por acaso, o acolhimento do pedido de impeachment de Dilma Rousseff por Eduardo Cunha aconteceu exatamente uma semana depois da prisão de Delcídio.
A interpretação do sistema político do episódio foi inequívoca: o governo Dilma não tinha condições de oferecer proteção a quem quer que fosse. Se mesmo parlamentares no exercício do mandato e com privilégio de foro podiam ser presos após o vazamento de uma gravação, ninguém poderia se considerar a salvo da exclusão direta e imediata do jogo. Foi quando o impeachment surgiu como tática para travar a Lava-Jato e enquadrar o Judiciário. O preço máximo que o sistema estava disposto a pagar era aquele já pago quando do processo do mensalão: circunscrição limitada, clara e prévia do círculo de mortos e feridos para que o restante pudesse se salvar.
A recente vitória de Renan Calheiros na queda de braço com o STF pode dar a ilusão de que o impeachment finalmente alcançou seu objetivo e que a Lava-Jato será travada, pelo menos no que diz respeito a quem tem privilégio de foro naquele tribunal. O contrário parece mais provável. O STF não tem força para fechar a caixa de arbitrariedades que ele próprio abriu. A última instância do Judiciário não pode desferir golpes abaixo da cintura constitucional e manter ao mesmo tempo a posição de árbitro imparcial.
A prisão de Delcídio foi o ponto de partida para a instauração de um ambiente de vale-tudo político que progressivamente nivelou as instituições por baixo. A decisão anulou a própria autoridade do STF, que tinha se posto até então na posição de poder moderador das múltiplas dimensões da crise. Um ano depois daquela prisão, tornou-se inteiramente visível a amplitude do estrago. O impeachment representou uma etapa de uma dinâmica em que a política foi progressivamente colocada à mercê da sanha vingadora das massas, em que qualquer instituição política é presumida culpada. A política é hoje embate de forças bruto e cru, sem árbitro preestabelecido e reconhecido como tal pelas partes envolvidas.
É nesse ambiente que se move com desenvoltura, por exemplo, o ministro Marco Aurélio Mello. No dia mesmo da prisão de Delcídio do Amaral, o blog de Cristiana Lôbo registrou declarações do ministro inteiramente compatíveis com sua atuação no recente caso Renan Calheiros. O ministro, que não participou da decisão da prisão de Delcídio por não fazer parte da 2a. Turma do STF, começou a preparar ali a liminar que concedeu em favor do afastamento do cargo do atual presidente do Senado. Disse Marco Aurélio sobre seu colega Teori Zavascki: "Sempre econômico nos adjetivos, foi firme na decisão; e nem precisava levar a decisão ao colegiado, aos demais colegas". Pode parecer brincadeira de gosto duvidoso, mas esse ambiente é aquele que Marco Aurélio avalia como o de "funcionamento pleno das instituições".
Se for possível estabelecer uma equação para a situação política atual, ela seria a seguinte: a ação contra Renan está para aquela contra Delcídio assim como o governo Temer está para o governo Dilma. O preço que o STF pagou por enquadrar Marco Aurélio no caso Renan foi a humilhação pública do tribunal e o fortalecimento de seu mais notório franco-atirador. Mais do que isso, cristalizou uma oposição que arrisca levar ladeira abaixo o governo Temer.
O afastamento de Dilma Rousseff funcionou segundo a lógica do antipetismo. A manobra tentada foi identificar o petismo com toda a corrupção, entregando o governo Dilma como uma espécie de troféu que deveria aplacar a fúria das massas mobilizadas pela Lava-Jato. Isso deveria permitir, em um segundo momento, promover algum tipo de anistia geral que zerasse o jogo. Acontece que todas as tentativas de implantar operações de salvamento geral fracassaram inapelavelmente. E nada indica que terão alguma chance de vingar no futuro.
O caso Renan cristaliza uma lógica binária, semelhante àquela do antipetismo, mas muito mais ampla agora. O ódio contra a política oficial é generalizado. E também irretrocedível na configuração atual. A lógica binária da disputa passou do antipetismo para o antissistema. Quem quiser sobreviver politicamente tem de se mostrar distante da política institucional. A mais recente decisão do STF o colocou na posição de cúmplice do sistema. A foto de Sérgio Moro entretido com Aécio Neves e tutti quanti provocou uma rachadura feia no seu pedestal antissistema. Se quiserem se manter no jogo, tanto o STF como a Lava-Jato terão de agir no sentido de tomar distância desses episódios recentes, colocando-se novamente como instâncias da antipolítica. Ao mesmo tempo, ao fazerem o que se espera que façam, vão apenas alimentar a instabilidade crônica da política oficial na direção do colapso do sistema.
O Brasil chegou a uma situação que, na Argentina da crise de 2001, encontrou sua formulação no "Que se vayan todos", na exigência de renúncia coletiva de todo político com mandato. Na Argentina, a crise se arrastou por quase um ano e meio, até a eleição presidencial de 2003. No Brasil não será diferente. Não há outra saída para o impasse atual senão a realização de eleições para a presidência da República e para o Congresso. O que não se sabe é se a convulsão social que está à espreita vai aceitar esperar até 2018. O sistema político parece continuar a acreditar que sim. É alta a chance de que vá errar uma vez mais.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (12/12/16)

domingo, 11 de dezembro de 2016

A maior crise desde o fim da ditadura (Fernando Luiz Abrucio)

A combinação de recessão com a desestabilização política por dois anos seguidos produziu um quadro desolador para o país. Voltamos ao cenário dos piores momentos dos governos José Sarney e Fernando Collor, quando não havia governabilidade e a economia estava muito mal. Mas mesmo nesses dois períodos o Brasil conseguiu, após algum sofrimento, sair do fundo do poço e, o mais importante, evitou que se instalasse uma crise institucional. Importantes lideranças políticas, sociais e judiciais estão agora namorando com o perigo. O bom senso e a parcimônia decisória estão dando lugar ao personalismo inconsequente e à falta de respeito entre os Poderes. Sem sair desse processo de esgarçamento político e institucional, não será possível retomar os rumos do desenvolvimento.
O tamanho da crise atual pode ser mensurado por três aspectos. O primeiro é a combinação de múltiplos fatores, o que gera uma tempestade perfeita. Não é apenas um mal momento do presidente da República, mas também do Congresso Nacional e de quase toda a classe política. As pesquisas de opinião revelam algo similar ao contexto argentino, ocorrido no começo da década passada, em que se dizia "que se vayam todos". Os principais partidos aparecem na Operação Lava-Jato e há um grande medo em relação à delação premiada da Odebrecht, gerando um clima de fim dos tempos entre os políticos.
Soma-se a isso a bancarrota dos Estados, quebrados numa proporção tal que grande parte deles não consegue honrar os salários dos servidores. Parcela importante dos municípios poderá entrar nesse clube dos desesperados no ano que vem. É importante lembrar que funcionários públicos constituem um contingente significativo em várias partes do país, com reflexos sociais imprevisíveis. Ademais, a crise na Federação pode levar a deterioração rápida da prestação dos serviços públicos básicos, num país em que a qualidade da gestão pública já não é das melhores.
Na lista de múltiplos fatores, deve-se acrescentar a crise econômica, persistente e com sinais ruins para todos os lados: recessão, desemprego elevado, baixa produtividade do trabalho, empresas em deterioração e taxas de juros absurdamente altas. Obviamente que é preciso fazer um rearranjo nos gastos do setor público, porém isso não trará ganhos de curto prazo. E mesmo que reformas melhorem as expectativas dos agentes econômicos (e sou a favor de determinadas reformas), por um bom tempo os brasileiros continuarão a perder emprego e renda. É um passo para a explosão social, essa sim com potencial de desestabilizar o poder político.
Para finalizar a tempestade perfeita, o choque entre os Poderes ganhou uma dimensão para além dos controles mútuos necessários a uma democracia - os "checks and balances" definidos pelos pais fundadores dos Estados Unidos. Decerto que o reforço do sistema de Justiça foi um avanço gerado pelas regras da Constituição de 1988. Também é verdadeiro que o Ministério Público e o Judiciário têm cumprido papéis importantes na melhora do país, incluindo aí a Operação Lava-Jato. Mas é igualmente correto dizer que tem havido exageros por parte de promotores, juízes e ministros do STF. A ânsia pela justiça, partindo de uma hipótese benigna, tem atropelado preceitos básicos da democracia e da convivência institucional.
Surge então o segundo aspecto, bastante alarmante: o país está namorando com a crise institucional. Enquanto vivia-se uma crise política, mesmo que em maiores proporções do que no passado recente, ainda havia a esperança de que no final as instituições dariam conta. Mas quando os Poderes batem cabeça, com decisões conflitantes e, pior, tomando medidas que aparentam represália em relação ao outro, o efeito pode ser a instauração de um vale-tudo institucional.
É importante, sem dúvida alguma, aperfeiçoar a legislação contra o abuso de autoridade, inclusive em relação aos atos dos operadores do sistema de Justiça. Mas colocar promotores e juízes como "culpados até prova em contrário", como fez o texto discutido no Congresso, é um desatino. Na mesma linha, uma decisão monocrática do STF afetar a definição da presidência do Senado é um ato desproporcional de poder. Não tenho nenhuma simpatia política por Renan Calheiros, mas o que está em jogo é um princípio institucional, e não as pessoas. Como dizia o grande filosofo italiano Norberto Bobbio, a garantia de uma boa democracia depende mais da garantia do governo das leis (das instituições) do que do governo dos homens.
A crise institucional também está noutro fator que, em geral, tem sido visto como positivo. Vou remar contra a corrente, mas é preciso dizer que não é alvissareiro quando membros não eleitos do sistema de Justiça começam a mobilizar as ruas em nomes de suas ideias e, cabe reforçar, interesses. O Ministério Público mobilizar a sociedade para montar um pacote contra a corrupção, juntamente com outros grupos sociais, não é um problema em si. Esse conjunto de medidas continha, é bom que se diga, coisas boas e outras flagrantemente antidemocráticas. Usar provas ilícitas e métodos controversos - para dizer o mínimo - para selecionar a burocracia de Estado não contribuem em nada para reduzir a corrupção e efetivamente cercearão os direitos individuais no país.
O problema da ação do Ministério Público começa quando ele mobiliza a sociedade para reagir ao voto no Congresso, considerando que só sua proposta na integra pode ser aprovada pelos legisladores - qualquer outra situação seria ilegítima, mesmo os deputados sendo eleitos pelo povo. Pior: membros da força-tarefa da Operação Lava-Jato ameaçaram sair do caso se suas ideias não fossem referendadas pelo Legislativo. A partir de então, o chamamento às ruas é de uma instituição que se comporta como um ente político, um verdadeiro partido político. Começa aqui uma crise institucional, relativa ao papel adequado das instituições. Em nenhum país do mundo uma organização formada por não eleitos pode ser o principal instrumento da democracia. Somente em nações governadas pelo autoritarismo isso ocorre e com resultados muito ruins.

O Ministério Público Federal, assim como o Judiciário e a Polícia Federal, tem cumprido um papel importantíssimo na Operação Lava-Jato. Mas as instituições de controle devem ficar no papel de fiscalizadores e não no de legisladores. Se alguns de seus membros quiserem exercer essa função, que concorram a eleições. Mas devem ser honestos desde já e apresentar publicamente seu interesse político, que será legítimo se não usarem os instrumentos de Estado para construir suas carreiras de "salvadores da pátria". Nenhum país desenvolvido e democrático foi salvo por líderes messiânicos advindos do sistema de Justiça. A democracia é um processo bem mais complexo e envolve uma multiplicidade de atores, que devem negociar suas pautas e produzir consensos possíveis. Qualquer outra concepção de democracia é, na melhor das hipóteses, ingênua, ou, na pior das hipóteses, autoritária.
As principais lideranças sociais, políticas e judiciais têm que começar a atuar, o mais rápido possível, para estancar a crise institucional. Ninguém ganha com ela, nem os que acham que vão substituir os "políticos corruptos" pois seriam incorruptíveis. Robespierre seguiu essa lógica, em nome até de bons ideais, só que os resultados não foram muito bons para os direitos humanos nem para a economia francesa da época. É preciso mais parcimônia, tolerância e diálogo para sair da crise.
Entretanto, aqui entra o terceiro aspecto que dá um caráter mais perigoso à crise atual: os líderes que temos não têm tido a temperança e/ou a legitimidade necessárias para agir contra a bola de neve que está nos esmagando. Do lado político, além de quase toda a classe estar desacreditada, aqueles que poderiam cumprir esse papel estão envoltos numa guerra fratricida desde a eleição de 2014. Polarizações e conflitos não são necessariamente ruins, mas se tornam dramáticos quando a radicalização impossibilita qualquer ponte entre as partes. Não temos um Tancredo Neves à disposição. Porém, será necessário que as principais lideranças sejam pressionadas pela sociedade para iniciarem um diálogo que nos leve, mesmo que paulatinamente, a sair da crise.
A questão que atrapalha essa proposta é que a sociedade também está muito cindida. E a persistência da crise econômica tenderá a tornar diversos atores mais céticos quanto à resolução do atual estado de coisas. Desse modo, as lideranças deveriam acreditar que as ruas são parte da democracia, mas não a esgotam. Aliás, o voto é até mais representativo que a mobilização social, pois envolve a todos (inclusive os não mobilizados), embora ele também não seja o único instrumento da política democrática. Recuperar as instituições políticas é melhor do que destrui-las, sempre. É por esse caminho que as lideranças sociais deveriam trilhar.
E não menos importante, por fim, é conclamar as lideranças judiciais a terem a parcimônia necessária para ajudarem na garantia da democracia. Se promotores e juízes ocuparem completamente o espaço da política, e por ação própria, o país será levado a uma crise institucional sem paralelos. Se forem democratas, deverão pensar nisso, urgentemente.
Fonte: Valor Econômico/Eu&Fim de Semana (10/12/2016)

O futuro dos partidos (Marcos Nobre)

A cúpula do Partido Republicano fez de tudo e mais um pouco para evitar que Donald Trump se tornasse o candidato à presidência. Viu o partido ser invadido e tomado por um outsider, sem conseguir impor um nome menos hostil. A máquina partidária perdeu o controle do processo. Mas venceu as eleições presidenciais.
A máquina do Partido Democrata não queria que Bernie Sanders vencesse Hillary Clinton na disputa pela indicação. Como no caso do Partido Republicano, também cerca de 30 milhões de pessoas participaram das primárias democratas. Em uma disputa acirrada, a cúpula usou a carta na manga dos chamados superdelegados para fazer prevalecer sua posição. A máquina se impôs. Mas o partido perdeu as eleições presidenciais.
Os EUA realizam primárias para a escolha de suas candidaturas presidenciais há muito tempo. A novidade são os movimentos de massa em favor de candidaturas inteiramente avessas às pretensões das cúpulas partidárias. Esse movimento não se restringe aos EUA, mas é uma tendência que vem se consolidando nos últimos anos em diferentes partes do mundo. Milhões de pessoas que veem nas disputas internas aos partidos políticos apenas um jogo de cartas marcadas decidiram atropelar os conchavos de sempre para defender posições que desafiam o poder das cúpulas.
Isso aconteceu na escolha de Jeremy Corbyn para a liderança do Partido Trabalhista inglês, em 2015, por exemplo. Experiências como as do Podemos, fundado na Espanha em 2014, ou do Syriza, fundado na Grécia dez anos antes, trilharam o caminho de tentar abrir as estruturas existentes antes de se institucionalizarem como partidos - plataforma de diferentes grupos, partidos e organizações. A partir de 2011, a Argentina começou a realizar primárias abertas, simultâneas e obrigatórias. Em outro modelo, o Chile fez o mesmo a partir de 2013. A direita francesa acaba de realizar com sucesso primárias para a escolha de seu candidato à eleição presidencial do ano que vem.
Pode parecer ficção científica para quem se tornou adulto a partir da década de 1990, mas no Brasil partidos já estiveram presentes na vida cotidiana das pessoas. Estruturas partidárias chegavam ao nível local, eram espaços abertos à elaboração de experiências e a diferentes formas de organização coletiva de ações e intervenções. Hoje, os partidos não estão mais na vida cotidiana das pessoas. As igrejas de diferentes denominações religiosas estão. Algumas organizações sociais que ainda conseguem manter as portas abertas também.
Partidos deixaram de ser braços da sociedade no sistema político para se tornarem braços do Estado na sociedade. Partido passou a ser sinônimo de partido no poder. E partido no poder chega na base da sociedade como escola, como posto de saúde. Quando a vida vai de mal a pior, partido é a escola que não funciona, é o posto de saúde precário, é o transporte de péssima qualidade, é o emprego que não aparece. É aí que secundaristas ocupam suas escolas, por exemplo. Para fazê-las funcionar. Não querem nem ouvir falar de partidos.
A primeira reação do raciocínio político convencional a esse estado de coisas costuma ser: basta votar na oposição na próxima eleição. Só que esse raciocínio ignora que a rejeição generalizada aos partidos é a recusa de uma política oficial apartada do cotidiano das pessoas. Em uma galáxia histórica muito distante, partidos canalizavam afetos, funcionavam como transformadores da raiva, do ódio e da frustração em energia política institucional. Hoje, não fazem mais do que tentar conter explosões de insatisfação. Na maioria das vezes, a única resposta que encontram é repressão policial. O que só reforça o círculo vicioso da rejeição à política institucional.
O raciocínio político convencional pode até aceitar que existe um divórcio duradouro e grave entre sociedade e sistema político. Mas, no mais das vezes, conclui daí que a saída é esperar passar o efeito da segunda chicotada da crise econômica mundial desencadeada em 2007, agravada no Brasil por uma crise política em estado crônico há já algum tempo. Passada a crise, o sistema político voltaria a funcionar como antes, os partidos como braços do Estado, o eleitorado como cliente de serviços e políticas públicas. Afinal, não haveria alternativa aos partidos como instrumento da sociedade no sistema político.
Pensar assim é miopia das mais graves no terremoto atual. Deixar tudo como está para ver como é que fica significa colocar em risco a própria democracia. Quando dar de ombros para a política institucional se torna a regra, quem consegue canalizar o ódio social para dentro do sistema político é quem joga contra as instituições democráticas, é a extrema direita. A alternativa hoje é entre aprofundar a democracia ou barbárie. É uma alternativa entre a mera vocalização da raiva e do sofrimento social pela extrema direita ou o aprofundamento da democracia, com a (re)abertura dos partidos para o cotidiano das pessoas.
É muito mais fácil dizer isso do que fazer. Porque significa que as cúpulas partidárias terão de colocar em jogo o controle que hoje têm em nome da própria sobrevivência dos partidos em condições democráticas. Partidos não apenas terão de aceitar ser atropelados pela massa cidadã que os vê hoje com desconfiança e mesmo com desprezo. Terão de se empenhar em convencer essas pessoas a atropelá-los, se não quiserem se tornar irrelevantes. O máximo a que cúpulas partidárias podem aspirar é perder o controle de maneira relativamente controlada.
Nos EUA, a cúpula do Partido Republicano está agora lutando para enquadrar Trump na lógica da política mainstream de Washington. A negociação dificilmente terminará com a rendição do presidente eleito, que tem de responder a um eleitorado que votou nele contra essa mesma lógica de Washington. O Partido Democrata está sob severo ataque por parte da enorme massa de pessoas que viu a maioria conquistada por Bernie Sanders sequestrada pela cúpula. Perseverar na mesma atitude é hoje apostar em uma progressiva irrelevância do partido. Não só nos EUA.
Fonte: Valor Econômico (05/12/16)

A República em estado de sofrimento (Marco Aurélio Nogueira)

Não há como fingir que está tudo normal. Não está: a República encontra-se em estado de sofrimento. Poderes apodrecem e autoridades institucionais estão sendo largadas ao léu. Entre o Estado democrático de direito e o sistema político há pouca harmonia e muita disjunção, como se faltasse algo.
O sistema político faz água, ameaça enfartar em cada curva do caminho. Falta-lhe quase tudo para funcionar de modo satisfatório: partidos com capacidade operacional, rumos a seguir, centros de coordenação e lideranças. Está ilhado, isolado da sociedade, atraindo críticas e vaias em abundância, pagando até mesmo um preço alto demais, como se fosse, em bloco, um agregado monocromático de canalhas e pessoas desqualificadas.
A política, que deveria coroar o sistema e dar-lhe vida, reverberando a Constituição e as boas práticas republicanas, foi empurrada para a margem.
A crise institucional é real, ainda que não se deva exagerar no diagnóstico. O paciente não é terminal, e ainda tem combustível para queimar. Mas o mal-estar entre as instituições é flagrante e se acentua a cada dia. O sistema balança e ameaça ruir ao sabor de uma brisa qualquer, um sopro leve. Pequenas marolas, que na “normalidade” seriam contornáveis com facilidade, provocam tsunamis perturbadores.
Legislativo, Executivo e Judiciário parecem não falar mais a mesma língua. Vivem trombando, cooperam pouco, competem demais. A crise derivada desse excesso de ruído e atrito, ao se reproduzir, espalha confusão por todos os lados, mina o pouco que há de confiança, corrói a esperança dos cidadãos e alimenta uma exasperação social que termina por se voltar sobre a própria crise, tornando-se componente dela e a impulsionando. As instituições basilares da República funcionam aos trancos, por espasmos, flertando com o improviso.
O “sangue nos olhos” contamina a sociedade civil, mina a solidariedade, a moderação e a serenidade. A indignação e a vontade social de que a justiça seja feita custe o que custar são, em momentos de crise como o atual, o maior inimigo da solução, até porque nascem de uma visão maniqueísta que vê o político – a dimensão sistêmica da política – como mal maior e a Justiça, como panaceia universal.
É por isso que, quando o STF se põe como guardião do poder moderador e contaria expectativas sociais de justiça, o mundo parece desabar e muitos brasileiros incrementam a raiva e a indignação.
Veja-se o último episódio. O açodamento de um juiz combina-se com a desobediência de um senador a um mandado judicial, e ambos, abraçados, mas de costas, quase põem fogo na República. A reação do STF foi sábia, mas onerosa para a institucionalidade e para a própria imagem do Tribunal. Reduziu Renan Calheiros ao devido lugar (a lateralidade, a impotência) e enquadrou Marco Aurélio Mello, mostrando a força de uma decisão coletiva, de um Colegiado. Foi o que se pôde fazer no curto espaço de dois dias e num quadro de extraordinária instabilidade.
Podemos todos gritar e espernear, com maior ou menor razão, com argumentos mais sofisticados ou menos, mas a verdade é que se apagou um incêndio, que só interessava aos que apreciam as altas temperaturas, acreditando que elas derretem as portas que vedam o futuro. No calor da exasperação, poucos percebem que o fogo só serve para queimar esperanças.
Como o clima é de exasperação e de má vontade com os tempos longos e complexos da política, como o clima é de crise da política e não só do sistema, como o clima é de aposta cega na função punitiva da Justiça, e não na sua função reguladora, compreende-se a irritação de tanta gente com os acontecimentos.
O ideal seria ir com calma. A pequena política está encurralada, terá de se reformular e poderá, nessa operação, ser ultrapassada pela grande política. Renan Calheiros expressa cada vez mais os estertores do pequeno mundo que, por erros e distrações acumulados pelos democratas progressistas, se assenhoreou do grande mundo e o submeteu a si.
Mas não se está andando para trás. Crises são também oportunidades: provocam terremotos, mas ensinam, ajudando a que se perceba o que pode ser descartado e o que atrapalha. Nunca como nos últimos anos se prendeu tanta gente graúda. A impunidade não está instituída. Ao contrário, regride de forma acelerada. Sabemos que a política precisa ser reformada. Aprendemos que a “responsabilidade fiscal” não é um garrote neoliberal. Bem ou mal, a democracia persiste e mostra suas vantagens.
A política não é preponderantemente luta pelo poder e muito menos luta para usar o poder em favor de interesses privados. Temos de nos empenhar para que vença a política como exercício de moderação e interesse coletivo. Ela tem sido muito pouco praticada por aqui. Mas não morreu.
O pior da crise não é a ruindade dos operadores, o personalismo exacerbado, a ausência de um mapa a ser seguido ou o conflito entre as instituições. É que não se consegue ver quem se qualificará para desatar o nó.
Fonte: O Estado de São Paulo (10/12/16)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Em meio à tempestade (Luiz Werneck Vianna)

Deu a louca no mundo e a roda do destino parece estar girando para trás. De um horizonte cosmopolita, que ainda ontem se podia divisar, estamos sendo devolvidos, por poderosos golpes inesperados, como o do Brexit dos ingleses e desse que nos atinge o queixo em cheio com a eleição de Donald Trump, ao espaço anacrônico do Estado-nação hobbesiano. A política ameaça regredir às trevas dos anos 1930, tendendo a convertê-la, como naquela década sombria, a instrumento exasperador da competição econômica por mercados que nos levou à hecatombe da 2.ª Guerra Mundial. Entre tantos sinais nefastos que se prenunciam – plausível uma vitória eleitoral da extrema direita na França –, estão aí as investidas contra a União Europeia e a ONU, visando a rebaixar seu papel civilizatório e recusar suas promessas em favor da concórdia e de paz entre os povos.
Os riscos a que estamos expostos não resultam, obviamente, de causas naturais, mas da imprevidência humana, que, mesmo advertida pelo lento derruimento de nossas instituições da democracia política a que inermes temos assistido, principalmente pelo esvaziamento dos partidos e da vida associativa, não foi capaz de reagir ao que havia de legítimo nas queixas e no sentimento de descrença do homem comum quanto a elas.
Não deixa de ser irônico que, diante de um diagnóstico quase consensual sobre a perda de centralidade do mundo do trabalho na cena contemporânea, tenha vindo de redutos tradicionais da vida operária, na Inglaterra do Brexit e dos EUA de Trump, um bom contingente de votos a favorecer a vitória desses dois movimentos recessivos. Não lhes faltaram motivos, pois ficaram excluídos do rol dos ganhadores com o processo da globalização, quer pelas transformações introduzidas nos processos produtivos que suprimiram postos de trabalho, quer pela transferência de fábricas dos antigos centros industriais para a periferia do nosso sistema-mundo.
Mais que minguar demograficamente, essas classes foram, em boa parte, esvaziadas do seu poder social e influência política, e, pior, suas gerações mais velhas, sem condições de adaptação a essas mudanças, foram relegadas ao limbo com o resultado de diluir sua outrora orgulhosa identidade, deixando-as vulneráveis à síndrome do ressentimento, cujos efeitos negativos ora testemunhamos em tristes episódios. A globalização, mais que um processo – que, aliás, vinha de muito longe –, foi também uma estratégia orientada para fins econômicos, diplomáticos e políticos na boa intenção de incentivar a cooperação internacional e criar as bases para uma sociedade cosmopolita.
Contudo seu sistema de orientação, tal como se evidencia na história da criação da União Europeia, confiou mais na capacidade da economia de produzir os resultados desejados do que nas dimensões integrativas da política e do social, que não avançaram na mesma medida. Por ironia, o script do século 19, em sua crença nos mecanismos benfazejos de uma economia que se autorregula, como nos textos do filósofo vitoriano Herbert Spencer, como que ressurgiu de modo encapuzado e contraditório em meados do século seguinte, momento em que o welfare State parecia experimentar seu auge. Passou-se ao largo da dura crítica em que Émile Durkheim, ainda em 1893, no clássico Da Divisão do Trabalho Social, sustentou com boas razões que, ao invés de nos trazer a solidariedade social que ela prometia, ainda mais fragmentaria o corpo social.
Não têm sido poucos os que denunciam, J. Habermas à frente – que não ignorou Durkheim em sua obra maior –, o déficit democrático que persiste como marca de origem da União Europeia, arquitetura que lhe veio da obra de elites ilustradas por cima da soberania popular, como um dos responsáveis pela ressurgência de temas e comportamentos que pareciam condenados à obsolescência, como a xenofobia e o nacionalismo, entre outras pragas que agora nos assolam.
Os alertas soam de todos os lados sobre os perigos de um cenário em que a economia se torne meio de projeção de poder dos Estados-nação, sob o registro do protecionismo e da autarquização dos mercados nacionais numa versão desastrada do populismo latino-americano. Contra isso já se contam instituições como a ONU e a própria União Europeia, que se espera atualize seu repertório às novas circunstâncias reinantes, além da consciência de que se torna cada vez mais necessário estimular a emergência de uma sociedade civil internacional. Utopias realistas nesse novo e ameaçador cenário se fazem cada vez mais ao alcance das mãos, a partir de processos já em curso, como os da legislação ambiental e os da mundialização do Direito, que abrem portas para uma sociedade cosmopolita, tão bem estudados pela pesquisadora francesa Meireille Delmas-Marty.
Ações políticas guarnecidas por governos de Estados poderosos podem refrear esse movimento, mas não têm o condão de fazê-los regredir porque há algo de irresistível neles. Aqui, no nosso canto latino-americano, não devemos apequenar-nos em meros espectadores do que se passa no mundo. Participar ativamente importa para nós consolidar e aprofundar as instituições da nossa democracia política, procurar as brechas no novo cenário internacional que se avizinha, tal como procedemos nos anos críticos de 1930, a fim de encontrarmos oportunidades para alavancar a economia e nos movermos no sentido de pacificar politicamente o País.
Se esses objetivos, antes da recente sucessão presidencial nos EUA, não contavam com soluções fáceis, eles parecem tornar-se ainda mais espinhosos depois dela. Com tirocínio político, que não nos faltou em outros momentos agudos da nossa História, podemos chegar a um bom porto. Em meio aos muitos perigos que nos rondam, inútil ficar com o olhar perdido em 2018. A hora da grande política é agora.
fonte: O Estado de São Paulo (04/12/16)

O país do avesso (José de Souza Martins)

Tentando compreender acontecimentos destes dias, vieram-me à lembrança expressões vulgares, que eu imaginava ultrapassadas, mas que parecem ter grande sentido popular nesta hora. Uma delas, muito usada há meio século, é “eles não se mancam” ou “eles não tem desconfiômetro”. Tudo para dizer que “eles”, quem quer que sejam, não percebem que o que estão fazendo é impróprio e descabido, descabimento que já chegou à consciência da maioria. Nos dias de hoje, eles não percebem que são bem menores do que pensam ser. Uma outra expressão antiga é a de que “pr’aquele ali, não caiu a ficha”. Alusão ao uso de fichas em telefones públicos. Quer dizer que a pessoa fala ao telefone sem perceber que a ligação não foi completada, pois a ficha inserida no dispositivo próprio não caiu no recipiente de fichas para acionar o telefone. Fala, portanto, para ninguém. Ou fala sozinha. São expressões que dizem respeito à desconexão entre quem fala e quem deveria ouvir, entre quem age e o suposto destinatário da ação. Uma situação de descontinuidade e desencontro, ou desrespeito, própria de pessoas que supostamente estão no mesmo mundo mas que vivem em mundos diferentes, os de lá não se consideram daqui.
Uma outra expressão que me veio à mente é “Você sabe com quem está falando?” É expressão bem antiga, dos tempos da República Velha, anteriores à Revolução de Outubro de 1930 que, caminhando para a ditadura, pôs fim à presunção dos régulos de província, os pais da pátria, que julgavam tudo poder e podiam. Expressão que perdura há mais de um século. É para dizer que o meu direito de prestar atenção no que ocorre e de me dirigir a quem age de maneira imprópria esbarra no infundado poder dos mandões que em sua conduta ainda agem como senhores de gado e gente. Não só agem, mas podem punir, reprimir, satanizar, diminuir e anular quem se atreva a achar que é igual e cidadão com direitos reconhecidos na Constituição e nas leis. Deputados e senadores não raro consideram o voto como renúncia do eleitor à sua cidadania em favor do eleito.
Os acontecimentos políticos dos últimos meses e, particularmente, dos últimos dias nos indicam que o carrancismo da República Velha persiste e insiste. Eles, os que decidem por nós, gostemos ou não, não perceberam que nos últimos quatro anos o País sofreu profundas mudanças políticas. Os alijados ainda não compreenderam que não foram injustiçados, que sua suposição de que o poder ainda lhes pertence é equivocada, que, na verdade, a população deles se cansou. Os substitutos perceberam menos ainda, pois não compreendem que o povo, ao caminhar eleitoralmente em direção diferente da dos que estavam no poder, não caminhou para os braços das oposições de então. Grandes enganos interpretativos assombram o Brasil. Estamos em face do abismo.
Quando das manifestações pelo impeachment da presidente da República na Avenida Paulista, alguém teve a má ideia de levar para lá o governador do Estado. Supunha que a multidão de rua, ao protestar contra os petistas, estava optando pelos tucanos. De um lado e outro, ingenuamente, acharam que era uma guerra de “mortadelas” e “coxinhas”. A multidão de rua, desde 2013, está optando contra o sistema político. Dessa opção, não escapa ninguém.
Nas mudanças, o sistema político não se legitimou. O novo governo federal impõe ao País, mais do que propõe, medidas draconianas cuja principal vítima será a população, no pressuposto de que a culpa pelo descalabro econômico, pelos gastos descabidos, pelo mau uso do dinheiro público, é culpa da vítima. Os deputados e senadores não fizeram um único gesto de renúncia a seus descabidos e escandalosos privilégios para dizer simplesmente ao povo que se reconheciam parcialmente responsáveis pela situação crítica e que abriam mão dos benefícios descabidos para dar o exemplo. Ao contrário, para eles, a ficha não caiu. Continuaram desfrutando dos privilégios, verdadeiro insulto à população. Não há como convencer os aposentados e os aposentáveis de que uma vida de trabalho, privações e contribuições para assegurar-lhes uma velhice que não fosse humilhação, humilhação será.
O Congresso não tem titubeado nem tem tido a dúvida política necessária para debater o que significa comprometer por 20 anos a história futura do País na incerteza da política econômica de um governo que é, literalmente, apenas um governo provisório e transitório, que legalmente só poderá durar no máximo dois anos. Na Câmara dos Deputados aprovam-se medidas de combate à corrupção que apenas nos dizem que corruptos há os bons, outra expressão antiga que volta melancolicamente às nossas incertezas. Já não são os políticos os suspeitos, mas suspeita é a Justiça. O Brasil se torna oficialmente corrupto. Não lhes caiu a ficha de que, na mesma hora, na Praça dos Três Poderes, uma multidão de 12 mil pessoas, na maioria jovens, outra geração, a dos sem futuro, gritava e depredava, contra o vazio que na mesma hora era aprovado tanto na Câmara quanto no Senado.
Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (04/12/16)

O debate à esquerda (Alberto Aggio)

Dentre os vários ensinamentos que a história e a sociologia política nos legaram está a noção de que “conceitos são palavras em seus contextos”. Tanto mais se o conceito em questão guarda uma polissemia construída historicamente.
É esse precisamente o caso da noção de “esquerda”, assimilada como um conceito que, no plano político, deve ser pensado de maneira relacional. Assim, em relação à esquerda talvez não se deva buscar nem uma normativa fora da história nem uma suposta evolução conceitual que derive em significados absolutos e imutáveis.
Olhando historicamente, é constatável que a esquerda pode, muitas vezes, estar ausente ou ser muito rarefeita num determinado sistema de forças políticas, tornando difícil sua identificação. Não é incomum que a esquerda se mostre dividida em vários grupos, sem que se possa dizer qual deles é mais representativo ou autêntico. Também não são poucas as ocasiões em que a esquerda se expressa como uma força antagônica ao sistema social, ou como conciliatória no sistema político, não se descartando até mesmo uma combinação, às vezes surpreendente, entre ambas.
Desnecessário dizer, portanto, que estamos diante de um universo de possibilidades quase infinito.
Em função da crise vivenciada pelo PT e do debate que está provocando, nota-se que não raro emergem equívocos de interpretação a respeito dos problemas de identidade da esquerda. Por vezes vemos predominar nas intervenções de intelectuais e políticos um reiterado dogmatismo, ao se sugerirem diversos invólucros para abrigar o que seria uma “verdadeira esquerda”, como uma espécie de Graal capaz de dirigir as massas que, em tese, estariam dispostas a se manter vinculadas ao PT ou ao que vier a emergir da sua crise.
Há problemas de diagnóstico no enfrentamento da crise do PT e dos destinos da esquerda brasileira. Além do corporativismo, do personalismo e do reconhecimento do que agora se chama de “reformismo fraco” promovido pelo lulismo, justificadamente levantados, há questionamentos mais amplos a respeito da visão totalitária presente em parcelas da esquerda, da sua inclinação ao adesismo e, por fim, do seu viés populista.
A retomada do tema do totalitarismo dá a impressão de um recuo no tempo. É curioso observar que a parcela da esquerda brasileira que há anos rechaça práticas do totalitarismo seja desconsiderada no debate, especialmente aquela que assumiu como central a perspectiva da “democracia como valor universal”.
Imaginava-se que o PT também havia cumprido esse percurso, mas depois se percebeu que entre seus dirigentes havia mais retórica do que convicção nessa direção. De resto, felizmente, a esquerda que valida práticas totalitárias é, entre nós, residual. Surpreende, contudo, termos de retornar a tal ponto para pensarmos numa “reconstrução da esquerda”. Talvez esse seja um forte indicativo das limitações intelectuais que esse campo sofre para avaliar o fracasso do petismo e os desafios do futuro.
O mesmo se dá com tema do adesismo, uma ideia banal presente no imaginário esquerdista. Trata-se de uma definição de esquerda a partir do seu status antissistema, de sua eterna vocação anti-institucional. Suspeita-se da incorporação da esquerda ao sistema da democracia representativa e da afirmação de uma “esquerda de governo”, quer como líder de uma coalizão, quer como um dos partidos coligados de um governo democrática e constitucionalmente instituído.
Esse fantasma martiriza a esquerda por se temer uma identificação com a social-democracia ou com um “reformismo” que busque soluções positivas por meio de reformas institucionais, de programas sociais universalistas e de transformações culturais democráticas e emancipadoras. Na velha linguagem, o que há é o temor de que a esquerda administre o capitalismo, como se essa fosse a questão definidora no nosso tempo.
Novamente há um retorno a uma abordagem antiga, tornando inviável um diagnóstico mais preciso da crise e dos elementos teóricos que devem ser mobilizados para a reconstrução da esquerda, especialmente diante de um cenário de ruínas deixado pelo petismo e de um contexto mundial cheio de sobressaltos e riscos para o País.
O populismo, por fim, é um problema mais profundo. Trata-se de um conceito fracassado na interpretação da história latino-americana. Contudo o que chamamos hoje de populismo, vindo da esquerda ou da direita, ultrapassa suas origens, fronteiras e seus marcos históricos de referência, manifestando-se essencialmente, e em perspectiva, como uma política de rechaço à democracia. Para se afirmar como “antielitista” o populismo mobiliza o conceito de “democracia iliberal” para relativizar seu rechaço aos sistemas democráticos do nosso tempo.
Caracterizado como ideologia ou apenas como uma retórica, o fato é que a contraposição entre populismo e democracia indica que não poderá haver uma esquerda democrática que compactue ou coqueteie com o populismo. As experiências recentes do bolivarianismo, que arrasaram a economia da Argentina e da Venezuela, comprovam tal evidência.
No Brasil, esse problema é visto de soslaio e se perde num escapismo que não consegue dar conta de explicar que as razões do fracasso do PT repousam mais no colapso do esquema mafioso de poder e de uma política econômica desastrosa do que da imposição de um “populismo orgânico”. O PT, de bom grado, deixou-se assenhorear por Lula e hoje vive para defendê-lo. Sendo impossível deslocar seu protagonismo, Lula passou a ser um poderoso obstáculo para que a esquerda, a partir do petismo, se reinvente no País.
O debate em torno do futuro da esquerda brasileira deve ser mais exigente e se pôr à altura dos desafios do nosso tempo, buscando um novo lugar no mundo para o Brasil, e não se pautar por um catálogo antigo dos pecados cometidos pela esquerda histórica.
(*) Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp
fonte: O Estado de São Paulo (29/11/16)