domingo, 24 de junho de 2018

Para que campanha (Marcus André Melo)

Há três argumentos rivais na ciência política sobre o comportamento eleitoral. O primeiro, conhecido como voto programático (“issue voting”), é que os eleitores avaliam as políticas defendidas pelos candidatos e escolhem aquele que apoia suas políticas preferidas. Os eleitores olham para a frente: votam no candidato que irá implementar o que julga ser o melhor programa.
Nessa abordagem convencional, os eleitores vão às urnas como se estivessem no supermercado: fazendo um check-list de medidas programáticas e candidatos, e escolhendo em quem votar. O eleitor examina o programa de —digamos, Marina Silva— e conclui, como um analista de mercado político: “ela é minha candidata”.
O segundo argumento é que o eleitor olha para trás: avalia o desempenho do candidato ou alguma característica individual sua, por exemplo, sua probidade. Conhecido no jargão como voto retrospectivo, esse argumento prevê que o eleitor pune ou premia desempenhos.
O terceiro argumento inverte o voto programático: o eleitor escolhe candidatos para depois adotar as políticas que defendem (o que é conhecido como “follow the leader”). O eleitor escolhe candidato ou candidata por razões que serão discutidas em outra coluna.
Em relação à descriminalização da posse de drogas, o eleitor tucano raciocina que “se é o FHC que está defendendo, deve ter uma boa razão”. Os eleitores escolhem Bolsonaro por ser “contra tudo que está aí” para depois examinar seu programa. Ou no caso dos eleitores de Lula, “se é o Lula que está propondo a reforma da Previdência”, ela deve fazer sentido.
O argumento do voto retrospectivo foi muito difundido nos anos 1960, quando as pesquisas concluíram que o eleitor típico era desatento e tinha baixíssimo conhecimento sobre políticas. É um “ignorante racional” que utiliza toda a informação disponível para avaliar se seu bem-estar melhorou no passado recente, mesmo que o faça com vieses e utilizando “atalhos informacionais”.
O terceiro argumento é analisado em “Follow the leader? How Voters Respond to Politicians’ Policies and Performance” (“Siga o líder? Como Eleitores Respondem às Ações e ao Desempenho dos Políticos”), de Gabriel Lenz (Stanford University).
Contra a abordagem convencional, há conjunto robusto de análises experimentais e quantitativas que dá ampla sustentação empírica. Lenz sustenta que ele não é inconsistente com o voto retrospectivo.
Se esse argumento é verdadeiro, a campanha eleitoral não terá a função propalada de fazer o candidato expor propostas que serão avaliadas pelos eleitores. Programas não importarão: apenas a reputação e a confiança dos eleitores estarão em jogo.
(*) Marcus André Melo é professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pela Sussex University.
Fonte: Folha de São Paulo (18/06/18)

Resiliência encarcerada (Fernando Limongi)

A Copa começou e ninguém está nem aí. Pelo menos é o que dizem as pesquisas. O Brasil está estranho, para lá de estranho. O pessoal que foi às ruas com a camisa da seleção para protestar não se anima a torcer. Mas o bicho vai pegar se o time acertar e aí o velho fanatismo desperta. Nas eleições, dá-se o inverso, agora é a hora de demonstrar a paixão e marcar posição. Mas, conforme o desfecho se aproximar, o realismo e o cálculo falarão mais alto.
Por enquanto, a opção por alternativas radicais prevalece. Bolsonaro e Lula mantêm a liderança nas pesquisas, mas nem um e muito menos o outro têm chances reais de chegar à final. Para Lula, dado que não poderá ser candidato, o realismo é inevitável. Quem herdará seus votos? O PT quer crer que a questão inexiste e se afinca à crença do poder demiúrgico de seu líder; que sua indicação produzirá o milagre da transferência dos votos. A estratégia de Bolsonaro não é menos irracional: o confinamento autoimposto dos tiros com silenciador.
Os dados da mais recente pesquisa do Datafolha indicam a resiliência da clivagem política sobre a qual gira a política brasileira de 2006 em diante. Bipartidárias desde 1994, as eleições presidenciais ganharam contornos sócioeconômicos claros na reeleição de Lula. Basicamente, o PT tem mais votos ente os mais pobres, enquanto o PSDB entre os mais ricos.
A natureza da relação dos dois partidos com seus eleitores, entretanto, não é a mesma. Quando perguntados se têm um partido, boa parte dos eleitores que votaram em Lula e Dilma se dizia petista. Já os que votaram em Serra, Alckmin e Aécio diziam não ter preferência partidária. Pesquisas acadêmicas recentes e as análises do Datafolha mostram que a despeito de não se declararem tucanos, boa desses eleitores se dizia antipetista.
Assim, política brasileira e, em especial a disputa presidencial, passou a girar em torno dessa clivagem política, uma competição entre os simpatizantes e antagonistas do PT, entre a esquerda e a direita, 'mortadelas' e 'coxinhas', ou como quer que se queira denominá-los.
Os dois grupos têm mais ou menos a mesma força, algo como um terço do eleitorado. Isso significa que os eleitores do centro, que não se colocam em um desses campos, são decisivos. Portanto, para vencer as eleições, é preciso conquistar as preferências do seus simpatizantes naturais e, em um segundo momento, se mostrar palatável para o centro.
Pois bem, olhados contra esse pano de fundo, os dados do Datafolha indicam que a clivagem 'coxinhas'-'mortadelas' continua dando as cartas. Bolsonaro atrai os eleitores mais ricos, Lula os mais pobres. O homem da caserna é o candidato com maior apoio entre os 'coxinhas' e Lula entre os 'mortadelas'. A grande mudança é o fato de o PSDB ter perdido o controle sobre o voto do bloco que representou nas eleições anteriores.
Nas simulações do Datafolha, Bolsonaro chega a ter 30% dos votos entre os entrevistados com renda superior a dez salários mínimos, o mais alto estrato da amostragem, mas que representa apenas 3% do eleitorado. No outro lado do espectro social, entre os mais pobres e menos escolarizados, o seu desempenho é sofrível. Além disso, entre as mulheres, independente da renda e da educação, Bolsonaro não tem votos. No máximo, tem 10% da preferência entre as mulheres.
Difícil saber se esse eleitor extremado aguardava um candidato ou se a radicalização recente deu vida a uma nova direita. Seja como for, o fato é que o PSDB deixou de ser o desaguadouro natural das forças que se opõem ao PT. Em parte, o partido é vítima de sua própria estratégia, uma vez que sob a liderança de Aécio Neves e outros menos votados, cerrou fileiras com a oposição radical a Dilma.
Nessa empreitada, que culminou com o impeachment de Dilma e o apoio que garantiu sobrevida a Michel Temer, o PSDB perdeu apoio entre os 'coxinhas' moderados e não conquistou o dos radicais. Por isso, o candidato do partido não decola. O problema, portanto, não é de nomes, mas do partido. Hoje, Bolsonaro é o preferido da direita, mas as limitações do candidato são evidentes e isso explica porque, a despeito da liderança nas pesquisas, não atrai apoios para ampliar seu eleitorado.
Lula ainda é o candidato mais forte entre os 'mortadelas', com 38% dos votos entre aqueles cuja renda não ultrapassam dois salários mínimos, estrato onde se concentram 46% do eleitorado. O PT tem razões para comemorar, pois o partido parece ter conseguido recuperar apoio entre seu eleitorado tradicional que em 2016 o abandonara.
Entretanto, com a condenação e prisão do ex-presidente, o partido perdeu seu candidato natural e precisa decidir como proceder. Por enquanto, quer crer que Lula controla esse eleitorado, que, em outubro, seus eleitores seguirão sua indicação.
Os riscos dessa estratégia irrealista são evidentes. Lula não tem (e, é bom esclarecer, nunca teve) controle sobre esse eleitorado. Ao insistir em manter a candidatura de seu líder, o partido se isola e corre o risco de alienar o capital eleitoral reconquistado. O PSB já deu mostras que não pretende embarcar na canoa furada armada pelos estrategistas petistas.
A eleição ainda não começou. Gira em falso, em torno de candidaturas encarceradas. O jogo começa para valer com a realização das convenções partidárias que, por força da lei, devem acontecer até o início de agosto, quando as peças se ajustarão ao tabuleiro e o jogo começa. Lula e Bolsonaro caem na fase grupos, não chegam ao mata-mata.
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap
Fonte: Valor Econômico (18/06/18)

O terremoto de Junho de 2013 foi sufocado e não oxigenou a política brasileira.(Luiz Werneck Vianna/entrevista)

O “terremoto” de Junho de 2013 não foi capaz de propiciar mudanças substanciais na sociedade brasileira. “A sociedade ficou igual, o governo e o legislativo não providenciaram mudanças, e tudo isso terminou no impeachment, como uma derivação natural, uma falta de reação a um grande sinal de que algo precisava mudar”, avalia o sociólogo Luiz Werneck Vianna na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ao fazer um balanço das manifestações que ocorreram cinco anos atrás.
Apesar de as jornadas de 2013 terem expressado o desejo por uma mudança na política, com o slogan “Vocês aí em cima não nos representam; queremos uma outra política”, a mensagem não foi compreendida à direita e à esquerda, ao contrário, as manifestações assustaram os governantes, que sufocaram as possibilidades de oxigenação da política. Essa reação, adverte, “levou a um distanciamento ainda maior entre partidos e a sociedade, e a uma indiferença, sobretudo da juventude, em relação à política”, porque “não se aproveitou aquele movimento que vinha de baixo, com tanta intensidade, para renovar o sistema político, para oxigená-lo. Abafou-se a força daquele movimento e o resultado disso foi o enfraquecimento da política, dos partidos e do fenômeno político enquanto tal”, resume.
A principal consequência de Junho de 2013, na avaliação do sociólogo, foi uma mudança de rota política, com o fim do governo Dilma e a introdução de uma nova lógica na condução da política econômica, “uma política econômica para a qual não estávamos preparados”. “Isso significa uma ruptura, um afastamento e uma distância muito grande com a política centrada no Estado, com a qual vivemos desde 1930. Nós estamos vivendo agora uma nova configuração do Estado-Sociedade sem que a sociedade tenha pensado nisso, esteja querendo isso. Aliás, há candidatos que preconizam a volta do status quo anterior, quer dizer, a volta à experiência do governo de Dilma Rousseff, que foi uma experiência desastrosa para o país, com desemprego e inflação altíssimos”, menciona.
Cinco anos após as manifestações, Werneck pontua que o país vive “um momento de possibilidade efetiva de os sindicatos lutarem por mais igualdade entre capital e trabalho e por mais igualdade na vida social. Essa é a mudança mais importante que temos à nossa frente para realizar. Ela depende de os setores subalternos começarem a se auto-organizar e a lutar por seus direitos no sentido de diminuir o padrão de desigualdade da sociedade brasileira. Isso leva ao conflito, leva à luta. É para essa luta que temos que nos preparar. O Estado não vai trabalhar – e nem tem como – para que a igualdade social ou políticas de igualdade social se estabeleçam. Isso tem que ser feito pelos próprios interessados: os trabalhadores. É essa pequena reflexão que temos que fazer quando pensamos nas possibilidades que estão abertas para a democracia brasileira”, conclui..
Confira a entrevista:
IHU On-Line — Que balanço faz de Junho de 2013, cinco anos depois?
Luiz Werneck Vianna — As sociedades democráticas, quando conhecem pequenos abalos, têm mecanismos de sintonia com eles e mudam, procuram identificar a fonte desses abalos e mudam. Quando uma sociedade não é tão democrática assim, nem um terremoto como aquele foi capaz de propiciar mudanças: a sociedade ficou igual, o governo e o legislativo não providenciaram mudanças e tudo isso terminou no impeachment, como uma derivação natural, uma falta de reação a um grande sinal de que algo precisava mudar. E como esse sinal grande não foi registrado, metabolizado e assimilado, entramos numa descendente que terminou no impeachment, que é sempre um processo doloroso, que deixa marcas, as quais estamos experimentando agora.
IHU On-Line — Nada mudou desde Junho de 2013 para cá, ou houve mudanças em decorrência do impeachment?
Luiz Werneck Vianna — As jornadas de Junho foram uma sinalização forte, mas nada se fez para mudar o curso dos acontecimentos que estavam sendo desenhados nessas mesmas jornadas de 2013. As manifestações levaram a uma mudança, mas não a uma mudança controlada, e sim a uma mudança que acabou sendo precedida pelas instituições democráticas para o impeachment, que faz parte da nossa Constituição.
O impeachment introduziu outra lógica: nós nos desprendemos da política anterior, que deu sinal de exaustão, e foi isso que 2013 quis dizer — “não nos representam”. Junho de 2013 deu as costas ao sistema e aos partidos políticos, deu as costas à política econômica que o governo Dilma praticava e abriu-se a possibilidade de outra política econômica, uma política econômica para a qual não estávamos preparados. Isso significa uma ruptura, um afastamento e uma distância muito grande com a política centrada no Estado, com a qual vivemos desde 1930. Nós estamos vivendo agora uma nova configuração do Estado-Sociedade sem que a sociedade tenha pensado nisso, esteja querendo isso. Aliás, há candidatos que preconizam a volta do status quo anterior, quer dizer, a volta à experiência do governo de Dilma Rousseff, que foi uma experiência desastrosa para o país, com desemprego e inflação altíssimos.
IHU On-Line — Além dessas mudanças políticas que menciona, Junho gerou consequências sociais ao longo desses cinco anos?
Luiz Werneck Vianna — É difícil de qualificar. Mas Junho de 2013 levou a um distanciamento ainda maior entre partidos e a sociedade, e a uma indiferença, sobretudo da juventude, em relação à política. Não se aproveitou aquele movimento que vinha de baixo, com tanta intensidade, para renovar o sistema político, para oxigená-lo. Abafou-se a força daquele movimento e o resultado disso foi o enfraquecimento da política, dos partidos e do fenômeno político enquanto tal.
IHU On-Line — Como avalia a greve dos caminhoneiros que aconteceu no final do mês passado?
Luiz Werneck Vianna — É um acontecimento que deve ser levado a um passivo desse desmonte dos partidos, dos sindicatos — os sindicatos não estiveram presentes com tanta força nessa movimentação dos caminhoneiros. Por toda parte assistimos a um processo de desinstitucionalização e isso enfraquece a democracia e a vida política, e torna a vida social imprevisível, sujeita a chuvas e trovoadas, flutuando de lá para cá sem nenhum sistema de orientação visível. Qual é o regimento dessa greve dos caminheiros para a democracia brasileira? Zero, negativo. Para os sindicatos? Zero, negativo.
IHU On-Line — Mas por que ela recebeu apoio de grande parte da população?
Luiz Werneck Vianna — Porque tudo que seja contra a política e contra esse governo está com apoio da população. A mídia tem tido um papel muito negativo em todos esses processos: perde a complexidade dele, trabalha de modo positivo-negativo, parte do suposto de que está tudo errado; tudo errado não está. Muitas das medidas que foram assumidas pelo governo que sucedeu ao de Dilma são ajuizadas e estão sendo bem-sucedidas.
IHU On-Line — Quais, por exemplo?
Luiz Werneck Vianna — A política econômica, por exemplo. Existem medidas de natureza democrática, como a reforma da Previdência ante as desigualdades brasileiras que perpetuam. Qual é a previdência de um magistrado e qual é a previdência de um operário? É uma diferença abissal. O sistema previdenciário mantém as desigualdades sociais. O nosso inimigo real agora, aliás, há muito tempo, são as desigualdades sociais, elas é que impedem um bom andamento da democracia brasileira. E os setores altos da população, que dominam as rédeas do Estado, têm sido capazes de defender, com suas fortíssimas corporações, todos os seus interesses, enquanto o sindicalismo dos setores subalternos perdeu força. Inclusive porque, quando dos governos do PT, eles foram trazidos para dentro do Estado, controlados pelo Estado e perderam autonomia.
Tenho a impressão de que agora estamos iniciando um caminho de volta, de autonomia da vida sindical, que é fundamental para lutar contra as desigualdades sociais. Sindicatos livres, autônomos, fortes e aguerridos que sejam capazes de forçar, como já ocorreu nas grandes democracias, um processo de igualação social mais efetivo. A social-democracia nasceu assim na Europa.
Os anos 30 nos trouxeram a legislação social e com ela direitos sociais do mundo do trabalho, mas não para todos; o mundo do campo ficou fora. Isso foi feito com uma condição que veio a ter uma importância fundamental: a de que os sindicatos que ganharam direitos foram mantidos sob uma tutela estatal que não concedeu autonomia aos sindicatos e, consequentemente, livre movimentação para lutar por melhores salários. A política salarial de lá até recentemente, passando pelo regime militar, pelo governo Juscelino Kubitschek e por períodos democráticos, foi a de restrição de movimentação dos trabalhadores, inclusive em certos momentos, negando até o direito de greve. Isso fez com que os direitos fossem concedidos e mantidos a um mínimo sem que a luta sindical pudesse ampliá-los.
Nós vivemos um momento de possibilidade efetiva de os sindicatos lutarem por mais igualdade entre capital e trabalho e por mais igualdade na vida social. Essa é a mudança mais importante que temos à nossa frente para realizar. Ela depende, a meu ver, de os setores subalternos começarem a se auto-organizar e a lutar por seus direitos no sentido de diminuir o padrão de desigualdade da sociedade brasileira. Isso leva ao conflito, leva à luta. É para essa luta que temos que nos preparar. O Estado não vai trabalhar – e nem tem como – para que a igualdade social ou políticas de igualdade social se estabeleçam. Isso tem que ser feito pelos próprios interessados: os trabalhadores. É essa pequena reflexão que temos que fazer quando pensamos nas possibilidades que estão abertas para a democracia brasileira.
IHU On-Line – Mas o enfrentamento das desigualdades depende dos sindicatos nos dias de hoje? Na atual configuração do mundo do trabalho, os trabalhadores ainda têm interesse em sindicatos?
Luiz Werneck Vianna – O sindicalismo está fraco e ele se enfraqueceu por essa política que veio dos anos 30, mas essa política tem que ser interrompida. Ao meu ver o que a esquerda tem que fazer é dar todo o poder aos sindicatos, para ficar numa fórmula fácil. É preciso reforçar a vida sindical e a vida associativa em geral e isso foi anunciado de maneira meio torta pelo movimento de Junho de 2013, só que isso não encontrou respostas e terminamos com a política da presidente Dilma, que acabou sendo interrompida porque levou a um desastre político, econômico e social.
IHU On-Line – Por que neste ano de eleições não estão surgindo grandes manifestações como aquelas de Junho de 2013?
Luiz Werneck Vianna – Não estão, o que não quer dizer que não haja possibilidade para que a nossa crise seja melhorada, para que encontremos alternativas para ela. Estamos procurando, meio em cima da hora, saídas que não sejam nem uma volta à política anacrônica anterior, nem a interrupção da vida política e social brasileira pela direita. O sinal positivo que ainda não deu seus frutos foi o Manifesto "Por um polo democrático e reformista", lançado pelo senador Cristovam Buarque e pelo deputado federal de Minas Gerais, Marcus Pestana. Ainda tem tempo de isso fertilizar o solo árido em que nos encontramos.
IHU On-Line – Como, na sua avaliação, partidos, movimentos e políticos à direita e à esquerda compreenderam e tentaram oferecer respostas à insatisfação política que emergiu em Junho de 2013?
Luiz Werneck Vianna – A direita reagiu de forma absolutamente negativa, invocava repressão e tudo mais. A esquerda institucionalizada — o PT — viveu 2013, reagiu contra 2013, se sentiu ameaçada por 2013. A esquerda não entendeu que era necessário instituir mudanças que abrissem o sistema político para os de baixo. Eles estavam dizendo claramente: “Vocês aí em cima não nos representam; queremos uma outra política”. Eles não disseram: “Não queremos política”. Os jovens de 2013 disseram: “Queremos outra política, uma política que nasça de baixo, que admita mais participação na elaboração das políticas públicas”. Para mim foi isso que 2013 quis dizer.
Eu era estudante, ainda secundarista, quando uma greve contra o aumento da passagem dos bondes afetou a capital federal onde à época era a sede do governo da República. O que Juscelino [Kubitscheck] fez? Chamou a liderança do movimento estudantil: o presidente da União Nacional dos Estudantes - UNE foi chamado ao Palácio, foi negociado com ele e o movimento acabou. Com a tempestade que ocorreu em 2013, não se mexeu um dedo para se procurar uma alternativa; é diferente. O PT se achava o senhor, o titular dos movimentos sociais e foi ameaçado por esse movimento espontâneo da juventude e não soube responder. Procure a presença do PT em 2013. Não encontraremos. É isto: ele não se aproveitou de um movimento de regeneração e de democratização da vida social, se fechou em copas e continuou a ser exatamente o que era. E era exatamente isso que a sociedade estava dizendo: mude, e ele não mudou. Na esteira disso, o que tivemos? Um segundo governo Dilma, que foi ruim, e o impeachment.
Agora é hora de um novo começo, mas esse novo começo tem que começar pela reflexão. Nesse sentido, o tema da entrevista é muito relevante porque nos faz refletir, e não há saída para nós sem a reflexão.
(*) Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Werneck acaba de lançar seu mais novo livro, Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (Brasília: Fundação Astrojildo Perreira, 2018).
14 de junho de 2018

quinta-feira, 14 de junho de 2018

A realidade esquizofrenizada (Ricardo Rangel)

Caminhoneiros e transportadores conseguiram subsídio, controle de preços e cartel. O setor privado, que reclama do ambiente de negócios e da complexidade tributária, agrava o ambiente e aumenta a complexidade. E o governo, que persegue o ajuste fiscal e a retomada do crescimento, inviabilizou o ajuste, derrubou a perspectiva de crescimento e fez o dólar disparar (o que aumenta o preço do diesel).
Os donos dos postos dizem que para repassar o subsídio, só reduzindo o ICMS (o setor privado, que reclama... etc.). Os contratantes dizem que, nesse preço, não dá para contratar. Nem os transportadores gostaram: parece que com a tabela da ANTT fica mais barato transportar explosivo do que leite (o governo revogou a tabela, depois revogou a revogação).
A confusão nos transportes ofuscou, talvez, a notícia de que o Brasil teve, em 2016, 62 mil mortes violentas, num aumento de 6% sobre o ano anterior.
A equivocada e fracassada política de combate às drogas está na raiz da violência, mas a direita, que é quem mais se queixa do problema, recusa-se, com o auxílio das igrejas católica e evangélicas, a sequer falar do assunto. Cigarro, cachaça e rivotril, pode; maconha, não pode. Por quê? Mistério. Gente que tem dependente na família defende uma legislação que não poupou seu parente da dependência, mas pode lhe dar o inferno do encarceramento.
A esquerda reclama da violência e da corrupção da PM, mas torce o nariz para investimentos que a tornem mais técnica e menos brutal, e opõe-se à intervenção, que visa a depurá-la. A direita, que exige ordem acima de tudo, parece apoiar a PM de forma cega, e seus setores mais radicais defendem a insubordinação militar (a desordem absoluta) e votam num candidato que defende tortura (a ilegalidade suprema).
Só educação eleva o nível socioeconômico da população, mas a esquerda, que denuncia as condições de vida do povo, é contra premiar bons professores, o que melhoraria o ensino. O crime é aliado dos baixos níveis de escolaridade, mas a direita, que reclama do crime, não reclama do ensino deficiente.
A esquerda defende os direitos humanos, mas parece crer que há humanos mais humanos do que outros; a direita parece crer que há humanos e subumanos, e que a PM sabe quem é quem. A esquerda denuncia que os presos vivem amontoados, mas, opõe-se à construção de presídios, o que melhoraria a situação.
Está provado que quanto mais criminosos leves prendemos, mais violência criamos (quem entra em presídio sempre adere a uma facção criminosa), mas a direita quer prender até os ladrões de galinha. Já a esquerda parece querer soltar até os assassinos seriais. Resultado: prendemos quem deveria ficar solto e deixamos solto quem deveria estar preso.
Outra notícia ofuscada pela crise dos transportes foi a divulgação do Plano Estratégico da Intervenção Federal: o combate ao crime deve custar, nos próximos dez meses, um bilhão de reais. O Rio ainda não recebeu um tostão (e ninguém sabe se ou quando vem esse bilhão), mas o setor de transportes vai receber, em apenas dois meses, dez vezes mais do que nós. Cada país escolhe suas prioridades.
Quem disse (Deleuze?) que “é preciso esquizofrenizar a realidade” deveria vir ao Brasil.
Esta semana faz três meses que Marielle foi assassinada.
Fonte: O Globo (11/06/1*)

Ideias fora do tempo (Demétrio Magnoli)

Há quatro décadas, investigando o fermento liberal na obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz inventou as "ideias fora do lugar". Dias atrás, na tentativa de refazer o cenário eleitoral, os tucanos inventaram as ideias fora do tempo.
O manifesto "Por um polo democrático e reformista" conclama "liberais, democratas, social-democratas, democrata-cristãos e socialistas democráticos" à união contra "populismos radicais, autoritários e anacrônicos". Seus 17 itens são sementes de um discurso capaz de seduzir a maioria dos eleitores, órfãos de representação política. Mas o tempo passou na janela e a notória Carolina não viu.
As "ideias iniciais para alimentar o debate", como o manifesto classifica suas proposições, traçam fronteiras com Bolsonaro (defesa da liberdade e da democracia) e com Ciro (busca do equilíbrio fiscal). Lá está a plataforma reformista nos campos da economia (Previdência, tributação) e das instituições (reforma do Estado, reforma política). O combate à pobreza é conectado à ampliação da produtividade e à qualificação dos serviços públicos (educação, saúde).
O texto enfatiza o combate à corrupção e à criminalidade, evidenciando que esses temas fundamentais não devem ser entregues à sanha do discurso demagógico. Contudo, no atual estágio da corrida eleitoral, tudo isso soa como operação da campanha de Alckmin.
Inicialmente firmado pelos tucanos FHC, Aloysio Nunes e Marcus Pestana e pelo senador Cristovam Buarque, do PPS, o manifesto apresenta-se como ponto de partida de uma "obra coletiva envolvendo partidos políticos e lideranças da sociedade civil". No universo onírico instalado por essas palavras, a eleição presidencial surge como horizonte distante: o ponto de chegada.
De fato, como o tempo não para, a fragmentação do centro político já se estratificou em diversas candidaturas. Nessas circunstâncias, "unidade" é o eufemismo para um chamado a improváveis renúncias eleitorais em favor do candidato tucano.
Rodrigo Maia e Henrique Meirelles são candidatos especulativos. DEM e MDB não usarão recursos escassos para investidas fadadas ao fracasso. Mas suas decisões sobre coligação dependerão das sondagens de opinião. Por outro lado, Marina e Alvaro Dias são candidatos firmes: eles não miram necessariamente o Planalto, mas a viabilização eleitoral de seus partidos.
A minirreforma política aprovada pelo Congresso ameaça inviabilizar a participação dos pequenos partidos no pleito de 2022. Os dois candidatos não sacrificarão seus projetos partidários no altar etéreo do manifesto da Carolina.
A maioria dos cientistas políticos profetiza que a próxima eleição presidencial terminará reiterando o modelo de todas as anteriores, desde 1994, polarizadas entre PSDB e PT. O argumento é que, apesar de tudo, prevalecerão as máquinas partidárias e uma inércia sistêmica.
A profecia acalenta as esperanças de Alckmin e pode até revelar-se correta, mas origina-se menos da análise objetiva que dos interesses profissionais dos analistas: os partidos tradicionais e seus candidatos, sempre é bom lembrar, formam o núcleo do mercado de trabalho dos cientistas políticos. No fim das contas, é a hipótese alternativa, de uma eleição de crise, mais parecida com a de 1989, que provocou o lançamento do manifesto tucano.
Desde a reeleição de FHC, no longínquo 1998, o PSDB desistiu de formular ideias políticas.
Sob os governos lulopetistas, acuado pelo discurso populista, trancou-se na jaula estreita da denúncia da corrupção. O manifesto seria uma retomada do fio partido e, talvez, a fonte de uma rearticulação do centro político --se produzido no rescaldo das eleições municipais de 2016.
O PSDB preferiu, porém, aguardar que o Planalto caísse no seu colo graças à inércia do sistema político. Agora é tarde: suas belas ideias perderam-se nas dobras do tempo.
Fonte: Folha de S. Paulo (09/06/18)

Encanto radical (César Felício)

Há uma queda de braço entre especialistas eleitorais, relevante para se tratar neste espaço porque diretamente relacionada com a capacidade de se traçar prognósticos eleitorais. Fatores conjunturais terão força suficiente para quebrar um fenômeno de longa duração no Brasil, que é a polarização PT/PSDB?
Há todo um arcabouço que blinda o sistema político brasileiro de intervenções externas, ou que pelo menos tenta blindá-lo. A desproporção de forças na distribuição dos fundos públicos e do tempo de rádio e televisão, a eleição casada com a renovação de governos estaduais, assembleias legislativas e Congresso, o pouco tempo de campanha. Trata-se de uma catedral minuciosamente erguida, ano após ano, para expurgar o novo e produzir um moto perpétuo entre os mesmos de sempre.
No livro "O Voto do Brasileiro", Alberto Carlos Almeida leva essa premissa ao paroxismo. Ninguém vai tão longe quanto ele ao afirmar que quem quer que o PT ou o PSDB apresente como candidato tende a estar no segundo turno, dado ao peso do primeiro no Nordeste e do segundo no Sul-Sudeste, que eleitoralmente se equivalem.
Os tucanos contam com São Paulo e Paraná, os petistas reinam na Bahia e no Ceará, Minas Gerais é um pouco dividida e assim por diante. É a luta entre os que têm pouco dinheiro e dependem muito do Estado contra os que têm renda alta e não precisam da máquina pública. Simples assim. "Nossas eleições presidenciais são previsíveis" é a primeira afirmação feita pelo autor, para quem o padrão de voto inaugurado em 2006 "é permanente".
Almeida se arrisca bastante, mas não é o único a fazer essa aposta. Muitos analistas políticos pensam mais ou menos dessa maneira e essa também é a crença, no caso muitíssimo interessada, de boa parte da elite política brasileira.
Para outra corrente de analistas, o problema deste tipo de visão, de tomar a ciência política por uma matriz matemática, é desconsiderar o processo. "Esse tipo de conta funciona muito bem para eleição de deputado. Você tem ondas de informação que a análise de dados e números das eleições anteriores não pegam", diz o professor Carlos Melo, do Insper.
Ele em seguida enumera as variáveis desestabilizadoras da análise desde 2014: Lava-Jato, impeachment, o escândalo da JBS, a mais prolongada recessão econômica da história, o líder das pesquisas na cadeia. "Acho um pouco de loucura pensar que isso tudo não descola a eleição presidencial do padrão anterior", comentou.
Há realmente motivos para pensar que essa será uma eleição sem precedentes. Até o momento a pré-campanha traz poucas novidades. Quem já foi candidato anteriormente viveu dias melhores em outras ocasiões. É uma regra que vale para Marina Silva, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Fernando Collor, Guilherme Afif e até Luiz Inácio Lula da Silva. Todos contam com perda de eleitorado em uma perspectiva longa de tempo. Ao menos por ora, não agregaram.
Entre as novidades, há dois que conquistaram aderência: Alvaro Dias e Jair Bolsonaro. Todos os demais inexistem. O primeiro, com desempenho consistentemente bom nas pesquisas, disse que sua candidatura não é inamovível. Negocia algo, que ainda não está muito claro. Bolsonaro representa uma mudança de patamar no eleitorado radical de direita.
Candidatos como ele não são inéditos. O integralista Plínio Salgado conquistou 8,5% em 1955. Enéas Carneiro teve 7% em 1994. O deputado tem nas pesquisas mais ou menos o dobro disso. E no caso de Bolsonaro, se o teto pode parecer baixo, o piso é alto: ele consegue na pesquisa espontânea percentual de voto próximo ao obtido na estimulada.
Alckmin ganhou concorrentes sólidos à direita, é o que anota Carlos Melo. Este é um fenômeno absolutamente novo. O PSDB se preparava desde 2014 para fazer a sua conversão para o neoconservadorismo, trabalhado que estava nas redes sociais e afinado no discurso anti-Estado e anti-PT, quando o tanque de Bolsonaro e a cidadela sulista erguida por Alvaro Dias empurraram os tucanos de volta para o centro.
O mais angustiante em ser um candidato de centro é que o centro, como discurso político, não tem como pautar o debate. O que é exatamente ser "do centro" em relação ao aborto? ou na questão da reforma da Previdência? ou em relação à maioridade penal? o que é um modelo de saúde pública "de centro"? o que existe são candidatos, que, por uma questão de estratégia política, evitam tomar definições sobre um ou mais temas, ou, por uma questão de contingência, armam alianças carregadas de contradições.
Quem está ao centro, em um primeiro turno, caminha no éter. Deus vomita o que é morno, e não o frio ou quente, já diz o livro do Apocalipse. Como irá ditar o ritmo da eleição quem trafega no meio termo?
Existe uma disjuntiva nesta eleição: o contraste entre a ruptura e a permanência. Em um ambiente perturbador brasileiro, é razoável pensar que o voto por algum tipo de ruptura encontra ressonância. Bolsonaro e em alguma medida Dias, mesmo estando no "metier" desde os anos 80, conseguem ser vistos como novidades.
Há outra dicotomia, que se nutre dos efeitos de uma crise econômica inaugurada em 2014. Sem esperança em relação ao futuro, voltam-se os olhos com vigor para o passado. Seja ao ontem representado por Lula ou ao anteontem do regime militar, simbolizado por Bolsonaro. Não se trata do governo Lula real ou do que foi de fato o regime militar, mas a versão idealizada dos dois. É o lulismo e o militarismo tal qual se apresentam em determinados segmentos do imaginário popular. O passado é um refúgio.
Se na faixa "azul" apareceu concorrência aos tucanos, o caos se instalou no outro universo, o mundo "vermelho". É nítido o movimento de migração de Lula para o voto branco ou nulo. O lulismo declina, inexoravelmente, sem que seus concorrentes na esquerda e na centro-esquerda se fortaleçam. Nos últimos dois meses, desde a prisão de Lula, todo o trabalho do PT foi evitar a tomada hostil de seu território pelos partidos que concorrem nas faixas de esquerda e centro-esquerda. Travou o jogo.
A pesquisa telefônica do Ipespe, encomendada pela corretora XP Investimentos, projetou pela primeira vez o potencial de transferência de votos do ex-presidente. De cada três votos do lulismo, um está indo para Fernando Haddad, professor da USP, raro exemplo de prefeito de capital, que, tentando a reeleição, não conseguiu ir para o segundo turno.
A pesquisa não examinou - e poderia tê-lo feito - qual a transferência de votos que poderia haver para outros nomes. Sugere, entretanto, que se algo da antiga polarização sobreviver, será no sentido de marcar ainda mais a radicalização do cenário.
Fonte: Valor Econômico (08/06/18)

Infortúnios políticos (José Antonio Segatto)

Há momentos em que a História parece repetir-se, reavivando vestígios e elementos do passado. Muitas das ações e proposições histórico-políticas, incluídas as extemporâneas, insistem em sobreviver, em prosseguir influenciando e direcionando a intervenção de organizações, movimentos, protagonistas. Karl Marx, ao analisar o fardo de determinadas ideologias e práxis pretéritas no presente, lembrou certa feita que, em muitos casos e ocasiões, “a tradição de (...) gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”; e posteriormente completou, ao advertir que “somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos”.
Uma amostra indicativa desse fenômeno pode ser situada na conduta do Partido dos Trabalhadores (PT) na atual conjuntura. Suas ações e retórica apresentam aproximação e mesmo equivalência às do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos anos 1948-54. Em 1945, no bojo do processo de democratização, o PCB conquistou a legalidade e transformou-se num partido de massas e de caráter nacional-popular.
Chegou a ter 200 mil filiados, adquiriu um porcentual eleitoral significativo, criou uma imprensa com diversos jornais e revistas, conquistou o apoio de extensos setores do proletariado urbano, das camadas médias e da intelectualidade. Fez-se presente na luta pela democracia com uma política de “união nacional, dentro da lei e da ordem, para a consolidação democrática”, assentada num “regime republicano progressista e popular”, como a definiu seu então venerável líder, Luís Carlos Prestes.
O período de legalidade foi, no entanto, curto – os reflexos da guerra fria, juntamente com as pressões de forças conservadoras, acarretaram a ilegalização do PCB (1947). Clandestino e perseguido, isolou-se e adotou uma política sectária, de confrontação e desdém pela liberal-democracia. Enformado por um marxismo dogmático e vulgar, retomou o projeto nacional-libertador com apelo insurrecional. Com uma retórica estridente e intolerante, passou a insultar os adversários chamando-os de “agentes do imperialismo” e/ou “do latifúndio”, “direita fascista”, “traidores do povo”, “vendilhões da pátria”, “escribas da imprensa reacionária”, “lacaios da burguesia”, além de outros termos desabonadores. Essa política começou a ser superada em meados dos anos 1950, quando iniciou um processo renovador – sob os influxos da desestalinização da URSS (1956) – que o levaria a valorizar a democracia, a ação política institucional e a via pacífica para o socialismo.
Fundado na luta contra a ditadura, o PT, por sua vez, foi constituído por segmentos sociais diversos. Generosamente amparado pela mídia, sua política se fundamentou, inicialmente, num radicalismo liberal (contra o Estado), no corporativismo de resultados e no exclusivismo partidário (rejeição de alianças e autoafirmação). Na passagem dos anos 80 para os 90, experimentou metamorfose significativa: incorporou concepções nacional- desenvolvimentistas de base estatal, absorveu contingentes consideráveis de membros da burocracia pública, acomodou-se às vantagens do sindicalismo corporativo, passou a flertar com setores insignes do empresariado, aproximou-se do castrismo e, posteriormente, do bolivarianismo e encetou um projeto de poder. A seguir, alçado ao poder central, governou com um consórcio de partidos fisiológicos e patrimonialistas, por meio da partilha do aparato estatal e de seus proveitos, da cooptação de entidades e movimentos e de políticas públicas clientelistas – sua identidade de esquerda e seu protagonismo impetuoso foram substituídos pelo pragmatismo e pelas conveniências políticas momentâneas.
No momento em que esse arranjo de poder entrou em crise e o PT foi dele excluído, seus dirigentes e militantes, adjuntos e satélites passaram a vituperar os coligados de véspera. Consternados com a destituição do mando, com a autuação de líderes acusados de mercadejar e/ou se apropriar de fundos públicos, com a corrosão de sua credibilidade e com a redução de sua capacidade mobilizatória, reanimaram seu peculiar instinto de animosidade contra os valores, normas e instituições democráticas. Seu vezo persecutório foi extremado com ataques à Justiça (facciosa, a serviço do imperialismo), à imprensa (burguesa, monopolista), ao Congresso (golpista), aos liberal-democratas (neoliberais, direitistas), etc. Com oratória ruidosa, desferiram impropérios de todo tipo contam os que ousaram e ousam não pensar como eles. Para os petistas, esses atos se justificam, pois estamos vivenciando um verdadeiro estado de exceção. A condenação e a prisão de seu “grande líder” – convertido em redentor – haveriam, disseram petistas, de provocar uma comoção inédita no País, com resultados imprevisíveis, que poderia até despertar ímpetos sediciosos em devotos e/ou correligionários e em movimentos populares que, com seus “exércitos” de sem-terra e sem-teto, incendiariam o Brasil.
Essa conduta política rebelde e intolerante parece não ter encontrado ressonância na sociedade – indicativo disso foi a considerável perda de votos e de representação nas eleições municipais de 2016. É também nítido o decréscimo de seu poder mobilizador e de sua faculdade de persuasão político-ideológica, além de ter reduzidas sua inserção e sua influência na sociedade civil e política.
Guardadas as devidas diferenças de época histórica e as particularidades político- ideológicas, bem como de formação e composição de cada um dos partidos em foco, fato é que o PT parece reencarnar muito dos fundamentos da práxis comunista e de sua cultura política, absorvendo concepções e práticas, palavras de ordem e gritos de guerra remotos. Mas se essa política já havia evidenciado seu anacronismo há cerca de sete décadas, sua exumação e concretização no presente é um mero simulacro de um passado infausto.
(*) Professor titular de sociologia da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (06/06/18)

A polarização que não cede (Alberto Aggio)

Em artigo nesta página (20/4), Fernando Gabeira tratou de um tema essencial aos candidatos às próximas eleições presidenciais: ganhar ou perder votos. Não aconselhou estratégias, mas advertiu ser preciso pensar na principal personagem desta eleição, a sociedade, traumatizada pela violência ou pela deriva de seus antigos líderes.
O tema objetivo dos candidatos configura-se como algo um pouco mais complexo para a sociedade. Importante seria pensar o que é ganhar ou perder para a sociedade. Uma vitória eleitoral não define tudo e tampouco uma derrota eleitoral se torna obrigatoriamente uma derrota histórica. A luta pela democracia e ela mesma não se resumem a números. Mais do que a conquista do voto – que tem toda a importância –, é preciso verificar, junto à sociedade e em nome dela, que tipo de vitória ou derrota os contendores estão dispostos a vivenciar.
A virtù de um candidato e de sua corrente política estaria na justa relação entre a conquista do voto e a perspectiva histórica que os anima. Trata-se de uma complexa construção histórica que demanda leitura competente da realidade, orientação ampla capaz de agregar diversos setores, além de tenacidade, paciência, prudência e vigor, até alcançar o objetivo final.
A título de exemplo, em determinadas circunstâncias, a vitória pode advir e superar uma derrota anterior, de caráter histórico. Nesse caso, é possível verificar a trajetória de atores políticos vitoriosos que conseguiram superar equívocos de orientação estratégica e, num contexto mais favorável, refizeram seus caminhos e compuseram alianças capazes de lhes dar condições de crescer, não importando os mecanismos adotados para enfim alcançarem seus objetivos. Essencialmente, essa foi a trajetória dos “companheiros de armas” do PT, que nas décadas de 1960 e 1970 optaram pela luta armada e depois, sem autocrítica pública, diga-se, conseguiram chegar ao poder na aurora do novo século. A vitória eleitoral desse grupo, como sabemos, não se configurou como uma vitória histórica e orgânica. O ex-ministro José Dirceu, condenado em diversos crimes de corrupção, assim como Dilma Rousseff, afastada da Presidência da República por um processo de impeachment legítimo e legal, são hoje expressões residuais que nem no PT recebem a guarida devida, para além da retórica de praxe.
Ao contrário desses personagens, então vitoriosos, que não produziram mais do que um “pensamento curto” sobre o País, houve aqueles que, derrotados por um golpe verdadeiro (1964), foram fecundos na leitura a respeito do esgotamento do regime militar, que adviria paradoxalmente do seu êxito, como escreveu Armênio Guedes, em 1971, e construíram a grande estratégia que orientou as oposições a derrotarem o autoritarismo em meados da década de 1980. Vitoriosos na sua estratégia política contra a ditadura, os comunistas do PCB foram derrotados ao serem tragados pelas mudanças do tempo histórico e pela inação de um grupo dirigente incapaz de acompanhá-las. Não é o caso aqui de apresentarmos, nem sequer sumariamente, as razões da derrota. Mesmo porque as razões da vitória, provisória e invertebrada, daqueles que alcançaram o poder em 2002 ainda estão mergulhadas em enigmas que aos poucos as instituições da democracia brasileira vão decifrando.
Em meio a vitórias efêmeras, derrotas amargas, frágeis avanços e oportunidades perdidas, o País vive uma democratização falhada que compõe o pano de fundo da crise atual. A “polarização patológica” entre PSDB e PT, nas palavras de Luiz Sérgio Henriques, acabou se transformando num método, em desserviço ao País. E isso precisamente num momento em que era possível que se desencadeasse entre nós uma acumulação histórica de cultura cívica jamais vivenciada. Reitera-se, por assim dizer, a cena observada por Luiz Werneck Vianna ao se referir à transição democrática da década de 1980 como “um processo em busca de um ator”. De fato, na resistência ao autoritarismo nos unimos, assim como no início da transição, que terminou com a fragmentação das forças democráticas para por fim, na democracia, nos enredarmos numa polarização nefasta, improdutiva e paralisante.
Talvez não seja correto dizer que, como país, estejamos condenados a perder sempre, mas é tenebroso anotar que os avanços democráticos alcançados até agora estão sob risco diante de uma polarização que não cede e se reconfigura em novos termos. É verdade que um dos polos, o PSDB, desapareceu enquanto tal, mas o que ainda martela o “nós contra eles” permanece e se radicaliza ao buscar convencer a sociedade de que só o seu retorno ao poder é capaz de dar uma alternativa ao País. E isso depois do desastre da recessão e do desemprego promovido por eles, além da prisão por corrupção dos seus principais líderes. É espantoso!
Recentemente, contudo, o cenário se remodelou com o surgimento de um novo polo que atravessa a sociedade civil e a opinião pública, impactando milhões de pessoas. É um polo bifronte, uma espécie de Janus disforme, fundado no republicanismo que emergiu no contexto das manifestações de 2013 e, em especial, das que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Uma de suas vertentes é o rechaço à política e aos políticos em geral. A outra persegue o bem comum em luta antagônica à corrupção. A primeira derivou do antipetismo e se espraiou como antipolítica. A segunda expressa o sentimento difuso de milhões e não se desconecta das instituições democráticas. Por meio delas trava sua batalha ética, mas ainda guarda um desprezo pela política. Não se configura como uma expressão partidária e talvez não se deva mesmo esperar isso dela.
Há visivelmente uma cultura política autoritária transversal aos dois polos ou a parte deles, enquanto a cultura democrática, ainda frágil entre nós, busca permanecer viva na expectativa de candidatos e votos.
(*) Historiador, é professor titular da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (04/06/18)

Contra a aventura autoritária (Sergio Fausto)

O espectro da desordem deixou-se entrever nas últimas semanas. Com a greve dos caminhoneiros cresceu o medo de eventual colapso da ordem pública, sentimento instrumentalizado pelos que clamam por “intervenção militar já”.
Historicamente a direita preferiu a ordem à liberdade, quando julgou aquela ameaçada. Foi assim em 1964. O movimento que pôs fim ao período democrático iniciado em 1945 não foi uma revolução, como querem seus adeptos. Tampouco uma quartelada. Contou com apoio civil relativamente amplo e se assentou num projeto de poder voltado para a modernização conservadora do País.
Hoje parte da direita aposta na candidatura de Jair Bolsonaro. Corre o sério risco, se vitoriosa, de perder a liberdade sem obter a ordem. O ex-capitão é antes parte do problema que da solução para um país que clama pelo restabelecimento da autoridade pública. Representa o autoritarismo em estado primitivo, ao estilo “tiro, porrada e bomba”. É uma criatura pré-política, incapaz de compreender os requisitos mínimos para a estabilidade da ordem pública numa sociedade complexa e desigual como a brasileira.
O Brasil e o mundo de hoje não são os mesmos do início da década de 1960. O poder difundiu-se, descentralizou-se, democratizou-se. Reconcentrá-lo em moldes autoritários, supondo que assim se restabeleceria uma ordem política e moral estável e conservadora, é pesadelo de uma noite de verão. Subir nessa canoa é embarcar numa aventura.
Bolsonaro não é Humberto de Alencar Castelo Branco. A diferença de patente na hierarquia militar não é a única que marca a imensa distância entre o ex-capitão e o falecido marechal.
Castelo Branco era membro da elite miliar que emergiu no pós-guerra. Tinha trânsito e prestígio no establishment americano, na alta oficialidade das Forças Armadas brasileiras e conexões com a elite empresarial e burocrática do País. Bolsonaro é um deputado apagado, com produção legislativa pífia, mais conhecido por sua indisciplina quando militar da ativa e pelo raciocínio raso quando solicitado a falar sobre políticas e propostas de governo. No exterior é visto como uma figura folclórica, na melhor das hipóteses.
Preocupado em inibir o surgimento de caudilhos militares, fonte de instabilidade política na América hispânica, Castelo Branco acabou com a posição de marechal e marechal do ar na hierarquia militar e fixou tempo máximo de 12 anos para permanência no generalato. Bolsonaro quer restabelecer a ordem social entregando armas, até fuzis, à população... Deve ter-se inspirado em Chávez, caudilho militar venezuelano que armou os que, a seu ver, eram os homens e mulheres de bem da Venezuela.
Castelo Branco entronizou uma equipe econômica de alta qualificação técnica: Otávio de Bulhões, Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen. Liberais todos, os dois primeiros com larga trajetória prévia no alto escalão do Estado. Bolsonaro arrumou um economista ultraliberal, craque em formulações abstratas, sem nenhuma experiência de governo. A dupla Campos-Bulhões era parte orgânica do grupo castelista. Paulo Guedes é um enfeite útil à candidatura de Bolsonaro.
O Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (Paeg) resultou de longo amadurecimento dentro do núcleo econômico do grupo castelista. Reformas econômicas foram feitas sob o tacão da ditadura.
Bolsonaro já declarou “não entender porra nenhuma de economia”. Quando se pronunciava sobre a matéria, defendeu fuzilar o então presidente Fernando Henrique por privatizar a Vale do Rio Doce. Guedes vê Bolsonaro como instrumento a proporcionar-lhe a realização do sonho juvenil de ser o czar da economia para “privatizar tudo”. Essa bizarra aliança, se bem-sucedida, estouraria como bolha de sabão ao primeiro choque com a realidade política brasileira. Ninguém fará reformas liberais no Brasil “na marra”, felizmente. Ditadura nunca mais.
O restabelecimento da autoridade política no Brasil é fundamental. O Estado democrático depende em última instância de a sociedade aceitar como legítimos os termos de troca entre o que entrega em tributos e o que recebe em serviços, bem como entre o que entrega em obediência às leis e o que recebe em segurança de que seus direitos serão garantidos pelo poder estatal.
É crescente a percepção de que há uma desproporção nesses termos de troca, agravada pela má distribuição social da carga tributária e do gasto público e pelo desequilíbrio na imposição de lei ao cidadão comum e aos “poderosos”. A Lava Jato vem corrigindo esse desequilíbrio, mas com um efeito colateral negativo: a disseminação de visões radicalmente depreciativas sobre o Brasil e sobre a política.
Mexer nos termos da equação de que depende a legitimidade da autoridade pública democrática exigirá muito engenho e arte, pois as condições não são favoráveis. A sociedade odeia a política quando mais dela precisa. Embala quem quer rasgar de vez o desgastado pacto social da redemocratização, que presidiu os últimos 30 anos da vida brasileira, quando mais necessário é quem saiba renová-lo reconhecendo os novos padrões de legitimidade exigidos pelas transformações econômicas, políticas e sociais desse período, no Brasil e no mundo.
É tarefa para várias mãos e várias vozes, mas que requer liderança política. Democrática, nos métodos, nas palavras, nas atitudes, na condução de um processo de reforma cujo âmago diz respeito à equidade do pacto fiscal-tributário, à aplicação igualitária da lei, à eficiência na prestação dos serviços públicos, à honestidade pessoal e à transparência republicana na gestão da coisa pública.
Não é hora de lamentar a falta de “grandes políticos” ou de aderir ao exercício estéril de “falar mal do Brasil”. Não temos outro país para chamar de nosso. Chegou o momento de construir um pacto pela ordem democrática para conter o risco da aventura autoritária.
Fonte: O Estado de São Paulo (03/06/18)