segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Entrevista Renato Lessa (Anpocs)

30/10/2011
'Quem faz a faxina é a lógica mafiosa', diz cientista político

UIRÁ MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A CAXAMBU (MG)

A queda do ex-ministro Orlando Silva (Esporte) não tem relevância individual, mas se torna importante por evidenciar um padrão de ocupação do espaço público que funciona dentro de uma lógica mafiosa, afirma o cientista político Renato Lessa, 57.

Para Lessa, professor de teoria política da Universidade Federal Fluminense, o governo de coalizão brasileiro favorece o exercício da política na base da chantagem, e as demissões de ministros não alteram em nada o cenário.

Até porque, diz ele, quem faz a "faxina" não é a presidente Dilma Rousseff, mas a "própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa".

Lessa participou nesta semana do 35ë encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG), onde conversou com a Folha. Veja abaixo a entrevista.
Rafael Andrade/Folhapress
Cientista político Renato Lessa
Cientista político Renato Lessa

Folha - Durante debate sobre análise de conjuntura na Anpocs, o sr. disse que faria uma provocação e afirmou que o Brasil não tem conjuntura. Por quê?

Renato Lessa - É que nós sempre associamos a ideia de conjuntura a um tempo de curto prazo, volátil e marcado pela precipitação dos acontecimentos. Um tempo animado, no qual muitas coisas acontecem, coisas inauditas, imprevisíveis, surpreendentes.

Pense na Primavera Árabe ou na troca de prisioneiros palestinos por um soldado israelense, por exemplo. São momentos que têm a capacidade de reconfigurar todo o campo político daquela sociedade. A isso chamei de conjuntura ativa, um acontecimento com capacidade de provocar mudanças.

Agora, é claro que o Brasil tem uma conjuntura Ðporque conjuntura é um pedaço de tempoÐ, mas não uma que obedeça a esses requisitos. Olhando para um retrato 3 x 4 da política, o que aparece é a reiteração de padrões de longo e médio prazo.

Daí por que falei em conjuntura passiva. Não há na política brasileira sinais de inovação.

Essa ausência de conjuntura está ligada a este governo em particular ou o cenário já está desenhado há mais tempo?

Pensando bem, é um cenário que já se apresenta há algum tempo. Ocorre que tivemos um presidente que fabricava conjunturas. Lula foi o animador da República. Muito mais que um presidente de coalizão, era um presidente de animação. Ele ocupava o epicentro da política e produzia seu próprio acontecer na vida pública.

E agora?

Com o estilo Dilma, houve certa rotinização do exercício da Presidência. Há a constatação de que o país passa por uma experiência de invisibilidade da política e presença de uma grande coalizão que não é movida pela contribuição substantiva dos quadros dos partidos, mas determinada pela necessidade de acomodar aliados que supostamente vão votar com o governo.

Mas um governo dessa natureza é vulnerável à chantagem o tempo todo. Há uma lógica da sabotagem. As entranhas do governo são exibidas a partir de fogo amigo, a partir de lógicas que, tecnicamente falando, são mafiosas.

Nesse sentido, a queda do ex-ministro [do Esporte] Orlando Silva é previsível dentro desse padrão de política. Não há nada a comentar especificamente quanto à queda desse ministro, porque ela não tem relevância individual. Tem relevância apenas na medida em que nos ensina a perceber a reiteração de um certo padrão de ocupação do espaço público brasileiro.

Que o senhor considera mafioso?

Sim. Mas é bom deixar claro: estou usando o termo ªmafiosoº em sentido técnico. Não estou acusando ninguém de ladrão, de dom Corleone. Estou me referindo a esse sistema de divisão de butim e de informação que vaza quando algum acordo prévio não foi cumprido.

O interessante é que parece operar no governo uma espécie de cordão sanitário, como se fosse claro o que é poroso à predação e o que não pode ser. A gestão do desenvolvimento social e a da economia, por exemplo. É como se houvesse dois círculos: aquilo que o governo precisa para governar e aquilo que precisa para compor a base de apoio. Há certa noção do que não deve ser vulnerável a essa cultura da coalizão.

Isso o sr. atribui ao perfil da presidente Dilma?

O estilo Dilma é "low profile", mas ela sabe exatamente como o governo se compõe. Por sua experiência, ela sabe como a salsicha é feita. Na medida em que as entranhas do governo são expostas, essa cozinha mal cheirosa é exposta, ela tem a atitude: "isso não vai dar certo". É como se, já na primeira denúncia, ela soubesse como vai acabar. E ela espera o fim da fita.

É uma maneira aparentemente alheia ao processo, ela não atua, não demite o ministro, não faz um escândalo midiático exibindo um rigorismo heroico, mas uma paciência na qual espera algumas semanas, num "timing" quase repetido e ao fim do qual acontece o inevitável.

Ou seja, a própria lógica das interações chantagistas é capaz de executar o serviço. A faxina não é a presidente quem faz. Quem faz a faxina da República é a própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa.

A presidente espera a conclusão do processo e, quando acaba, ela segue o barco. O problema não é curado, ela apenas resolve o episódio. É uma posição curiosa: deixa que o corpo feneça, mas o ambiente da doença não é alvo prioritário.

Mas se não há novidade nessa demissão em particular, o fato de terem havido seis em tão pouco tempo de governo não constitui um fato novo, inaudito?

Sim, mas é uma novidade atenuada pela reposição. A margem de manobra para fazer dessa novidade uma verdadeira novidade é muito reduzida, porque não altera a cultura e o ambiente que produzem ministros vulneráveis a acusações tais que sua permanência se torna impossível.

As demissões não alteram o cenário. Não alteram o fato de que é um governo de ampla coalizão, com partidos divididos em amplas facções.

Mas esse não é um problema da coalizão em si, certo?

Não, é da natureza da versão que o presidencialismo de coalizão adotou a partir da redemocratização. Isso introduz um viés conservador na política que é quase invencível. A mecânica da coalizão exerce sobre a política o efeito conservador. O âmbito da inovação política é muito pequeno, porque é uma política que em grande medida tem que estar a serviço da manutenção da coalizão, uma coalizão que se repõe.

O principal objetivo da coalizão não é viabilizar governo com determinados programas, é permanecer enquanto coalizão, tem um interesse própria na autoconservação. É essa prioridade da autoconservação que produz esse efeito conservador na política.

O ponto que eu acho importante é que há uma operação da política o tempo todo na gestão dessa coalizão. Não é fácil manter uma coalizão dessa, e tanto que ela dá mostra de que, apesar de ter enorme maioria na base, não é confiável.

O governo, no fim, faz em grande medida um esforço de autogoverno, de governar a si mesmo.

Qual seria a saída?

Não sei nem sei se há saída, se depende de um truque genial de invenção institucional. Isso tem a ver também com dinâmicas sociais e culturais de longo prazo. Tem a ver com despolitização social grande, com persistência de partidos políticos que são agência de captura de sufrágio, e não instituições de socialização e politização...

A política sugere a imagem de uma coisa descolada, autárquica, mais autarquia e menos representação.

A oposição colabora para esse cenário?

É muito difícil fazer oposição a esse modelo político.

O PT fez ao FHC, e o modelo era o mesmo.

Mas fundamentalmente porque havia um partido político que ainda não era parte sistêmica da cultura da grande coalizão. Partido cuja energia oposicionista estava sustentada na crença de que era um partido da sociedade, que fazia um bom assalto democrático ao governo oligarquizado. Era um ator político que também era um ator social. Não existe mais isso.

Tirando esse fato que você bem lembrou, é um ambiente ruim, porque a grande coalizão é porosa, é como se ela fosse ilimitada. Não se põe o problema da coalizão mínima necessária para vencer. Ela é expansiva.

O exemplo é o PSD, que é um dreno na oposição. Sujeitos políticos entram num partido que não é nem de centro nem de esquerda nem de direita e deixam de ser a ponta visível de uma oposição conservadora de direita a um governo determinado.

Tem que haver uma oposição conservadora, temos que ter o espectro todo representado. O sistema da grande coalizão absorve e deixa pouco espaço para quem fica de fora.

E José Serra, que...

Esse é um caso curioso. Serra foi de certo modo vitorioso, porque tem uma expressão eleitoral com quase 40 milhões de votos. Isso não é pouca coisa, é um capital político extraordinário.

Mas o que a oposição faz com esse capital político? Como o interpreta? É como se fosse algo instantâneo que se esvai no momento seguinte à eleição.

Há uma oposição que não está à altura de seu próprio sucesso eleitoral. A oposição tem que ser capaz de formular objeções substantivas à política em curso no país.

É patético que a oposição se limite a ler um recorte de jornal no púlpito do Senado. O ator político precisa interpretar, sugerir, exercer inteligência sobre essas coisas.

Nesses dez primeiros meses de governo Dilma, o sr. identifica alguma agenda que lhe seja própria?

O que estou chamando de conjuntura passiva tem a ver com esse âmbito pequeno da política, mas não significa dizer que outras coisas não estejam ocorrendo fora desse retrato 3 x 4.

Há uma gestão da política macroeconômica, uma política voltada para a redução dos juros. Há uma orientação específica, uma concepção sobre como o país deve tocar sua própria vida econômica diante de uma crise internacional.

Aí há realmente escolhas importantes. Escolhas políticas, estratégicas. Aí sente-se que há um governo, uma direção, não é uma loucura, uma aventura.

O primeiro grande erro de Dilma ( Renato Janine Ribeiro)

Nomeando ministro do Esporte o deputado Aldo Rebelo, artífice da maior derrota do seu governo no Congresso, a presidente Dilma Rousseff comete seu primeiro grande erro. Ela premia a indisciplina, pois deixara clara sua discordância do projeto pró-ruralista do Código Florestal, redigido justamente por Rebelo. Mas primeiro precisamos analisar melhor como a presidente vem lidando com os problemas ministeriais.

Com a troca no ministério dos Esportes, chegam a seis os ministros que Dilma substituiu, em poucos meses. Isso não é anormal. Demora, para um governante articular seus ministros. Fiquei sabendo que a presidente, ao nomeá-los, lhes explicou que este ano, devido aos cortes orçamentários que afetaram todas as Pastas, não cobraria performance. Em 2011, só sairia "quem fizesse bobagem". Mas em 2012 ela exigiria desempenho.

Assim tem sido. As críticas estridentes dos artistas à ministra da Cultura não a derrubaram. Mas, se um ministro não responde bem à conjuntura difícil, ele sai. Dilma não deixa aumentar o desgaste. Ele pode sair por indisciplina, como Nelson Jobim, ou por não esclarecer denúncias de corrupção. Não sabemos se é culpado. Sabemos que ficou insustentável sua permanência no poder.

Nomeando Aldo, Dilma premia a indisciplina

Até aí, está certo. Mas há um dado adicional. Nenhuma substituição surpreendeu a nação por seu impacto. Entrou só um peso pesado, Celso Amorim, mas no lugar de outro peso pesado, Jobim. Nos outros casos, entraram pessoas com menor destaque que o substituído - Gleisi Hoffmann é menos conhecida do que Antonio Palocci. Isso ainda é aceitável. A discrição pode ser uma virtude. Aliás, aqui Aldo Rebelo é exceção. Seu perfil é bem superior ao de Orlando Silva. Ele é o maior nome do PCdoB.

Mas o problema começa agora: pelo menos no Turismo e nos Esportes, ficou claro que a Pasta pertence ao partido. Há ministérios que são feudos. Sai o denunciado, mas a agremiação conserva a vaga. Pior: quando o novo ministro do Turismo decidiu nomear uma pessoa competente para uma secretaria, seu próprio partido exigiu uma indicação política. Ou seja, o partido não se responsabiliza pelos erros, talvez graves, cometidos numa Pasta que ele ocupa. O Executivo arca com o ônus de fazer a máquina funcionar. O partido, só com os bônus. Pois tem a garantia de que, por pior que seja o nome indicado, só terá de substituí-lo por outro, que lhe conserve cargos e convênios.

Isso enfraquece a presidência da República. O PCdoB, partido que viceja graças ao PT, impôs a Dilma o nome de Aldo Rebelo. É um político capaz. Presidiu a CPI da CGF. Também presidiu a Câmara. Foi um bom ministro. Conseguiu, pertencendo a uma legenda outrora radical, negociar com todo o espectro político - tanto que foi cogitado, no governo Lula, para o ministério da Defesa, sem que isso incomodasse os militares. Não recearam que Aldo mandasse investigar as mortes de seus correligionários na guerrilha do Araguaia. Em suma, mostrou-se hábil, moderado e até conservador.

Tão conservador que seu partido agora ocupa a secretaria de Esporte do prefeito de S. Paulo, aliado de José Serra; tão conservador que foi Aldo Rebelo quem montou a versão pró-ruralista do Código Florestal... Conseguiu que praticamente a Câmara inteira votasse contra os ambientalistas. Quem perdeu na ocasião foram o PV, mas também o PT e a presidente Dilma. (O PSDB votou com os ruralistas, apesar de ter querido namorar Marina Silva no segundo turno presidencial, em 2010). Trazer Aldo para o governo é esquecer tudo isso, o que não condiz com a imagem exigente e severa da chefe de Estado.

Isso torna ainda mais vulnerável o ministério do Meio Ambiente, um dos menos prestigiados pelos governos petistas. Não são poucas as dificuldades que a atual ministra tem enfrentado, embora conte com o apoio dos ambientalistas. A primeira titular petista da Pasta, a senadora Marina, acabou rompendo com Lula e, em 2010, teve uma votação impressionante. Portanto, se os verdes têm pouca bala na agulha no plano institucional, se agora Marina e o PV se digladiam, se desde a eleição ela e eles foram esquecidos e quando se fala em oposição se pensa apenas na mais tradicional, o PSDB, nem por isso eles carecem de poder de fogo. Podem mobilizar a opinião, nacional e internacional. Um projeto consistente e empolgante para o futuro do Brasil passará, necessariamente, pela questão ambiental. Os ambientalistas, estejam no Meio Ambiente, na Ciência e Tecnologia, em ONGs ou na oposição, desempenharão um papel importante em nosso futuro próximo.

O que fará Aldo Rebelo, no ministério, ao se tornar colega de pessoas que enfrentou, em decidida oposição a nosso futuro? Político capaz, possivelmente será um gentleman com a colega do Meio Ambiente. Evitará confrontá-la no que disser respeito ao Código Florestal, até porque sua missão agora é outra. Mas tudo isso está longe de ser uma boa saída.

Há uma saída que poderia reduzir os danos. Ela é improvável. Mas consistiria em Aldo, por iniciativa própria ou por determinação presidencial, aproveitar o enorme cabedal de simpatias que construiu junto aos ruralistas para convencê-los a recuar, a ceder. Até o momento, quem perdeu foram os ambientalistas. Se o novo ministro agir no plano politico para desfazer parte pelo menos do que ajudou a montar, em termos de descaso com o meio ambiente, pode ser que neutralize vários aspectos negativos que apontei. Mas continuam valendo minhas outras críticas. Dilma premiou a indisciplina, garantiu a um minipartido seu feudo ministerial e não responsabiliza os parlamentares pelos erros de seus indicados. Ela devia ter sido firme. Não foi.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Dia D. Dia de Carlos Drummond de Andrade

Poema de Sete Faces

(Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo, vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

domingo, 30 de outubro de 2011

O modernismo visto do avesso (entrevista Luís Augusto Fischer)

RESUMO Para crítico gaúcho, ler a "Formação da Literatura Brasileira" à luz da bibliografia recente evidencia seus "pontos cegos": a ancoragem em São Paulo, Minas e Rio; a redução de Machado de Assis ao "instinto de nacionalidade"; e a omissão de significativas realidades econômicas e culturais do interior do país.

RAFAEL CARIELLO

A história da literatura brasileira, tal como é ensinada nos manuais e reproduzida na universidade, arma-se sobre uma lógica "centralista, centrípeta e excludente", traços que partilha com a organização política e econômica do país, afirma Luís Augusto Fischer, 53. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele é um dos principais nomes da nova geração de críticos literários no Brasil.
É preciso, portanto, reescrevê-la, conclui o autor de "Literatura Brasileira: Modos de Usar" (L&PM) e "Machado e Borges" (Arquipélago). O modelo (e ao mesmo tempo grande adversário) de sua empreitada é a obra canônica sobre a constituição de um sistema literário no Brasil desde o século 18, a "Formação da Literatura Brasileira", do crítico Antonio Candido, 93.
Fischer, que se diz um "candidiano", enxerga "pontos cegos" na análise do mestre, "centrípeta e centralista", por ler a constituição da tradição literária no país do ponto de vista de São Paulo e, mais exatamente, do modernismo de Mário e Oswald de Andrade. Para superá-la, o gaúcho se vale da historiografia recente, que mostra um país, na colônia e no império, mais complexo e plural do que aquele que emerge das análises de uma economia monoliticamente escravista e agroexportadora, até o século 19. Nesse panorama social distinto, usa os instrumentos analíticos de Candido e busca sistemas "regionais" e nacionais que articulem obras, público e autores, para além do descrito na "Formação".





Em artigo recente, você afirma que a concepção de formação da literatura brasileira de Candido tem pontos cegos. Quais são alguns deles?
Primeiro, lembro que a "Formação da Literatura Brasileira" tem como subtítulo "Momentos Decisivos", em alusão ao arcadismo e ao romantismo. Então, o primeiro ponto cego ?presente, mas invisível no enunciado e inalcançável pela lente em ação- é outro momento decisivo, o modernismo: Candido só consegue armar sua equação crítica e seu ponto de vista por estar estabelecido no ângulo modernista de leitura do mundo.
Na introdução, está dito que o autor se identificou com o ponto de vista dos primeiros românticos e a partir disso releu aqueles momentos decisivos. Creio que a identificação só subsiste porque a visão do nacional por parte daqueles românticos tem muito a ver com a dos modernistas paulistas, ambos relendo o país, sua literatura, a representação da vida nacional, a fim de constituir uma interpretação nova do Brasil.

E quanto a Machado de Assis?
Machado é outro ponto cego, não porque Candido não soubesse de sua importância formativa e excelência estética, mas porque não dispunha do instrumental teórico capaz de descrevê-las (esta teoria será construída por seu discípulo Roberto Schwarz, na esteira do mestre e com lente adorniana).
Talvez se deva dizer que Machado é um ponto cego por ser o ponto de fuga da armação conceitual, no sentido geométrico. Ao conceber a "Formação", Candido estava identificado com o Machado do "Instinto de Nacionalidade", que estabeleceu uma perspectiva evolucionista ao declarar que uma literatura não tem "grito do Ipiranga": se faz aos poucos. Em sentido estrito, os dois pontos cegos mais relevantes, a meu juízo, são os que dizem respeito a totalidades que Candido naturaliza: Brasil e Europa. Onde se lê Europa, no livro, quase sempre se deve ler França. Embora fosse o farol da cultura letrada brasileira, não era a única fonte do pensamento. Basta ver Machado, que deu o salto decisivo de sua carreira pela emulação do romance inglês.
Onde se lê Brasil, estamos lendo de fato Rio e Minas, a partir de São Paulo, porque as variedades de fora deste circuito são apagadas.

Por quê?
Em atitudes de vanguarda, há pouco espaço para sutilezas, e os dois pontos de apoio histórico de Candido (o romantismo, de modo deliberado, e o modernismo paulista, implícito) são de feição vanguardista, ao menos em um ponto: são processos com empenho ideológico, literatura a serviço de causas. No primeiro caso, definindo a nacionalidade autônoma no Rio; no segundo, a nacionalidade moderna em São Paulo.

Como se dá esse processo?
Veja o caso da naturalização do Brasil. Se tomarmos uma figura de referência por momento, Alencar e Mário de Andrade, os dois por sinal com grandes afinidades ideológicas, veremos que ambos julgam incorporar a variedade regional em sua obra -Alencar extensivamente, em vários romances, Mário intensivamente, em "Macunaíma". Nesses exemplos se vê que a ideia de Brasil estava encarnada na visão de seus talvez principais agentes, que se dispensavam, por assim dizer, de atentar para a difusa diversidade do país.
Pode-se armar uma equação representativa: o Machado crítico está para o romantismo, para Alencar, como o Candido da "Formação" está para o modernismo, para Mário de Andrade; e os dois conjuntos compartilham uma visão centralista, centrípeta, excludente, que está no DNA da organização do Brasil desde Portugal.

Há pontos cegos também no que se refere à historiografia ou à visão da história da Colônia e do Império em que se baseia Candido?
Vejo com interesse as interpretações de Jorge Caldeira. Sua "História do Brasil com Empreendedores" (2009) aprofunda a crítica a uma tradicional explicação do passado nacional, aquela posta de pé por Caio Prado Jr. Caldeira mostra que Prado Jr. generalizou uma visão da Colônia e do Império em que traços como escravismo e latifúndio, centrais na produção de açúcar e café em regime de "plantation", foram tomados como verdadeiros para o todo do país.
Ocorre que, nos diz esse autor, no vasto "hinterland" que se estendia de São Paulo para norte, oeste e sul, que por certo contava com escravidão e latifúndio, imperava uma organização muito diversa, baseada no que Caldeira, liberal sem temor ao nome, chama de empreendedorismo.
Não é só a velha dualidade entre sertão e litoral, ou sociedade de mercado e "plantation": este livro e o anterior "A Nação Mercantilista" mostram várias articulações entre as duas formações históricas e afirmam que 86% do PIB brasileiro às vésperas da Independência era mercado interno, contra 14% externo, e que a larga maioria da população era de homens livres.
É uma senhora alteração de perspectiva. Onde entra Candido nessa conta? O caso é que seu livro mais claramente voltado a uma descrição histórica, a "Formação", depende, mesmo indiretamente, daquela visão de Prado Jr. Em que medida? É preciso avaliar em detalhe. Mas me parece instigante pensar que a "Formação" é concebida a partir de São Paulo, mas versa sobre o passado literário ligado ao universo de Minas Gerais no período do ouro e ao mundo da "plantation" fluminense.
Nos termos de Caldeira, o ponto de vista histórico da "Formação" é aquele formulado na cidade-síntese do mundo empreendedor e com base na ideologia que melhor exprime esse mundo, o modernismo de combate, o modernismo de "Macunaíma"; mas o livro de Candido se ocupa do mundo cuja síntese é o Rio, a cidade que, como descreve Caldeira, é o oposto do mundo empreendedor, dominado pela mentalidade de gente que "se julga identificada com a modernidade, desde que haja garantias que ela seja um privilégio", em suas palavras, o mundo que Machado reprocessa criticamente em sua ficção e que Roberto Schwarz descreveu com precisão.

Que perspectivas se tornam possíveis ao considerarmos essa historiografia mais recente?
O modernismo paulista, tanto na produção literária quanto na crítica e na historiografia, homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira ao custo de apagar diferenças relevantes. Creio que seja possível diagnosticar processos interessantíssimos de formação do sistema literário e cultural no país, que agora são invisíveis em função do monopólio modernistocêntrico. Muitas perguntas serão formuláveis, muitas descrições novas serão possíveis. Qual o tamanho dos sistemas não hegemônicos, que na pressa modernista ficaram reduzidos ao rótulo de "regionais"? Qual sua função? Qual sua capacidade de gerar leitores? Como funcionam os casos de formações não hegemônicas que partilham materialidade histórica e formas culturais com outras línguas e culturas?

Como responde a essas perguntas?
Pensemos no caso do Sul, com tanta identificação social e estética com os países do Cone Sul, ou na grande comarca da Amazônia. Qual o lugar de Monteiro Lobato no processo real de criação de leitores? Que peso teria a resposta a essa questão na avaliação do cânone escolar de hoje?
Qual o sentido de sua oposição ao projeto modernista, que ele viu nascer e crescer, mas não chegou a ver hegemônico? Qual o nexo entre a poesia moderna e a poesia simbolista, que é forte mas se tornou invisível pela militância exclusivamente antiparnasiana de Mário de Andrade?
Mais genericamente, o que poderemos dizer da criação letrada oriunda do mundo do "sertão"? Ele é igual ao do mundo da "plantation"? Ele fala a mesma língua, ao longo do tempo? Quer dizer: me parece que temos muito para pensar e descrever, em favor de deixar aparecer mais nitidamente a produção literária feita em língua portuguesa no Brasil: mais estilos, mais vozes, mais textos, mais práticas de leitura terão direito à existência no plano da crítica e da historiografia.

Como reavaliar a obra de Candido no contexto em que as ideias de "nação" e "nacional" parecem perder força?
Há um novo momento no que se refere à noção de nacional. No campo literário, a entrada em cena da internet tem consequências fortes. Muda a relação da produção literária e intelectual com as antigas demandas do nacional. O que não significa que tenha desaparecido. Para além de seus méritos como história e crítica, a "Formação" manterá sua vigência enquanto o projeto modernista tiver força. E ele a mantém. Basta ver a homenagem a Oswald na Flip deste ano, em que, com algum excesso, foi tido até como precursor dos tuítes. A flamante escritora argentina Pola Oloixarac declarou, tomada por aquela inveja que São Paulo dá nos portenhos descolados de hoje, que Oswald de Andrade foi "muito mais original" que Jorge Luis Borges, comparação que diz mais sobre a percepção da força de São Paulo até na sofisticada Buenos Aires do que sobre os autores implicados.

República destroçada (Marco Antonio Villa)

Em 1899 um velho militante, desiludido com os rumos do regime, escreveu que a República não tinha sido proclamada naquele mesmo ano, mas somente anunciada. Dez anos depois continuava aguardando a materialização do seu sonho. Era um otimista. Mais de cem anos depois, o que temos é uma República em frangalhos, destroçada.

Constituições, códigos, leis, decretos, um emaranhado legal caótico. Mas nada consegue regular o bom funcionamento da democracia brasileira. Ética, moralidade, competência, eficiência, compromisso público simplesmente desapareceram. Temos um amontoado de políticos vorazes, saqueadores do erário. A impunidade acabou transformando alguns deles em referências morais, por mais estranho que pareça. Um conhecido político, símbolo da corrupção, do roubo de dinheiro público, do desvio de milhões e milhões de reais, chegou a comemorar recentemente, com muita pompa, o seu aniversário cercado pelas mais altas autoridades da República.

Vivemos uma época do vale-tudo. Desapareceram os homens públicos. Foram substituídos pelos políticos profissionais. Todos querem enriquecer a qualquer preço. E rapidamente. Não importam os meios. Garantidos pela impunidade, sabem que se forem apanhados têm sempre uma banca de advogados, regiamente pagos, para livrá-los de alguma condenação.

São anos marcados pela hipocrisia. Não há mais ideologia. Longe disso. A disputa política é pelo poder, que tudo pode e no qual nada é proibido. Pois os poderosos exercem o controle do Estado - controle no sentido mais amplo e autocrático possível. Feio não é violar a lei, mas perder uma eleição, estar distante do governo.

O Brasil de hoje é uma sociedade invertebrada. Amorfa, passiva, sem capacidade de reação, por mínima que seja. Não há mais distinção. O panorama político foi ficando cinzento, dificultando identificar as diferenças. Partidos, ações administrativas, programas partidários são meras fantasias, sem significados e facilmente substituíveis. O prazo de validade de uma aliança política, de um projeto de governo, é sempre muito curto. O aliado de hoje é facilmente transformado no adversário de amanhã, tudo porque o que os unia era meramente o espólio do poder.

Neste universo sombrio, somente os áulicos - e são tantos - é que podem estar satisfeitos. São os modernos bobos da corte. Devem sempre alegrar e divertir os poderosos, ser servis, educados e gentis. E não é de bom tom dizer que o rei está nu. Sobrevivem sempre elogiando e encontrando qualidades onde só há o vazio.

Mas a realidade acaba se impondo. Nenhum dos três Poderes consegue funcionar com um mínimo de eficiência. E republicanismo. Todos estão marcados pelo filhotismo, pela corrupção e incompetência. E nas três esferas: municipal, estadual e federal. O País conseguiu desmoralizar até novidades como as formas alternativas de trabalho social, as organizações não governamentais (ONGs). E mais: os Tribunais de Contas, que deveriam vigiar a aplicação do dinheiro público, são instrumentos de corrupção. E não faltam exemplos nos Estados, até mesmo nos mais importantes. A lista dos desmazelos é enorme e faltariam linhas e mais linhas para descrevê-los.

A política nacional tem a seriedade das chanchadas da Atlântida. Com a diferença de que ninguém tem o talento de um Oscarito ou de um Grande Otelo. Os nossos políticos, em sua maioria, são canastrões, representam mal, muito mal, o papel de estadistas. Seriam, no máximo, meros figurantes em Nem Sansão nem Dalila. Grande parte deles não tem ideias próprias. Porém se acham em alta conta.

Um deles anunciou, com muita antecedência, que faria um importante pronunciamento no Senado. Seria o seu primeiro discurso. Pelo apresentado, é bom que seja o último. Deu a entender que era uma espécie de Winston Churchill das montanhas. Não era, nunca foi. Estava mais para ator de comédia pastelão. Agora prometeu ficar em silêncio. Fez bem, é mais prudente. Como diziam os antigos, quem não tem nada a dizer deve ficar calado.

Resta rir. Quem acompanha pela televisão as sessões do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e as entrevistas dos membros do Poder Executivo sabe o que estou dizendo. O quadro é desolador. Alguns mal sabem falar. É difícil - muito difícil mesmo, sem exagero - entender do que estão tratando. Em certos momentos parecem fazer parte de alguma sociedade secreta, pois nós - pobres cidadãos - temos dificuldade de compreender algumas decisões. Mas não se esquecem do ritualismo. Se não há seriedade no trato dos assuntos públicos, eles tentam manter as aparências, mesmo que nada republicanas. O STF tem funcionários somente para colocar as capas nos ministros (são chamados de "capinhas") e outros para puxar a cadeira, nas sessões públicas, quando alguma excelência tem de se sentar para trabalhar.

Vivemos numa República bufa. A constatação não é feita com satisfação, muito pelo contrário. Basta ler o Estadão todo santo dia. As notícias são desesperadoras. A falta de compostura virou grife. Com o perdão da expressão, mas parece que quanto mais canalha, melhor. Os corruptos já não ficam envergonhados. Buscam até justificativa histórica para privilégios. O leitor deve se lembrar do símbolo maior da oligarquia nacional - e que exerce o domínio absoluto do seu Estado, uma verdadeira capitania familiar - proclamando aos quatro ventos seu "direito" de se deslocar em veículos aéreos mesmo em atividade privada.

Certa vez, Gregório de Matos Guerra iniciou um poema com o conhecido "Triste Bahia". Bem, como ninguém lê mais o Boca do Inferno, posso escrever (como se fosse meu): triste Brasil. Pouco depois, o grande poeta baiano continuou: "Pobre te vejo a ti". É a melhor síntese do nosso país.

Historiador, é professor da universidade federal de SÃO CARLOS(UFSCAR)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Maranhão 66 (Glauber Rocha)

O avesso do avesso - Nelson Motta.
Está bombando no YouTube e provocando acessos de gargalhadas e deboches um filme de sete minutos em preto e branco com o prosaico título Maranhão 66.
Aparentemente é um documentário sobre a posse de José Sarney no governo do Estado, feito por encomenda do eleito. Mas é assinado por Glauber Rocha.

Com 35 anos, cabelos e bigode pretos, Sarney discursa para o povo na praça, num estilo de oratória que evoca Odorico Paraguaçu, mas sem humor, à sério, que o faz ainda mais caricato e engraçado. Sobre seu palavrório demagógico, Glauber insere imagens da realidade miserável do Maranhão, cadeias cheias de presos, doentes morrendo em hospitais imundos, mendigos maltrapilhos pelas ruas, crianças esquálidas e famintas, enquanto Sarney fala do potencial do babaçu.

Só alguém muito ingênuo, ou mal-intencionado, poderia imaginar que Glauber Rocha fizesse um filme chapa branca. Em 1964, com 25 anos, ele tinha se consagrado internacionalmente com Deus e o diabo na terra do sol e vivia um momento de grande prestígio, alta criatividade e absoluto domínio da técnica e da narrativa cinematográfica. E odiava a ditadura que Sarney apoiava.

O filme dentro do filme é imaginar o susto de Sarney quando o viu. Em vez de filmar uma celebração vitoriosa, Glauber usou e abusou da vaidade e do patrocínio de Sarney para fazer um devastador documentário sobre um arquetípico político brasileiro.
Glauber dizia que o artista também tem de ser um profeta; mas a sua obrigação é de profetizar, não de que as suas profecias se realizem. O discurso de Sarney e as imagens de Maranhão 66 são os mesmos do Maranhão 2011, num filme trágico, cômico, e, 46 anos depois, profético.

Para assistir o filme (antes que seja tarde), acesse:

O cemitério de Praga, de Umberto Eco.

Umberto Eco mescla ficção e História em 'O cemitério de Praga'

Por Kelvin Falcão Klein

O novo romance de Umberto Eco, “O cemitério de Praga”, tem todos os elementos que nos acostumamos a ver em um livro de Dan >kern 0pt
Por conta da trama policialesca, do clima de mistério e da alta vendagem que alcançou desde o lançamento, “O cemitério de Praga” tem sido comparado a outro grande sucesso de Eco, “O nome da rosa”. Ao contrário deste último, cuja história se passa em 1327, no isolamento de um mosteiro, “O cemitério de Praga” é mais recente: ocupa-se principalmente dos últimos 50 anos do século XIX, lidando principalmente com a efervescência social e cultural de Paris (que Walter Benjamin mais tarde definiria como “a capital do século XIX”). A obra conta a vida de Simone Simonini, um exímio falsário que, a serviço do poder da vez, produz documentos inverossímeis. Um deles acabaria dentro do panfleto antissemita “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, “explicando” os passos de um hipotético complô de rabinos para conquistar o mundo.

Ao fim da leitura, é impossível não se impressionar com a quantidade de referências movimentadas por Eco para a realização do romance. O autor inclusive acrescenta uma nota final, afirmando que a única personagem ficcional é o protagonista, Simonini — todos os outros são reais, e fizeram e falaram aquilo que fazem e falam em “O cemitério de Praga”.

O livro está construído como um best-seller: uma história repleta de assassinatos e reviravoltas, temperada com uma série de eventos históricos vistos dos bastidores, com direito a revelações indiscretas acerca dos hábitos de $igualmente históricas (Garibaldi, Napoleão, Victor Hugo).

Em algumas passagens, há um didatismo um pouco enfadonho, que torna as descrições longas demais, como em um verbete enciclopédico ou um livro de divulgação científica. Há, em “O cemitério de Praga”, uma compulsão em descrever todas as ligações possíveis, deixando os nexos entre eventos e pessoas perfeitamente visíveis, como se o autor não estivesse disposto a deixar tantos anos de pesquisa à mercê de um leitor despreparado (e diante da erudição de um medievalista com décadas de experiência e leituras, quem não está despreparado?).

A sucessão de volteios da narrativa deixa o leitor um pouco atordoado: os maçons se misturam aos satanistas, que por sua vez são confrontados com os anarquistas, os antissemitas, os mesmeristas e os jesuítas, tudo isso costurado pela perspectiva de um diário bastante lacunar de um homem — Simonini, $por delírios esquizoides, nos quais se imagina ser outro homem, o abade Dalla Piccola — que, eventualmente, também registra sua visão dos fatos em outro diário.

Contudo, talvez seja possível observar, no meio desse acúmulo de informações, uma reflexão acerca dos caminhos e possibilidades da História, ou ainda, sobre os limites da historiografia. Há uma série de menções, pela boca das personagens, ao caráter postiço do poder e da governabilidade: uns dizem que “não se neutralizam os espiões matando-os, mas passando-lhes notícias falsas”; outros dizem que é “melhor não possuir nenhum segredo, mas aparentar possuí-los”.

Ou seja, em “O cemitério de Praga” vemos uma preocupação constante em marcar o caráter fabricado e artificial dos fatos históricos — fre$tomados como mentiras muitas vezes repetidas. Simonini reconhecido por sua habilidade na falsificação de documentos, precisa mostrar serviço aos seus empregadores do governo. Chega à conclusão que, se denunciasse um complô, sua reputação aumentaria bastante: “O que torna fidedigno um informante da polícia?”, ele se pergunta. “A descoberta de um complô. Portanto, ele deveria organizar um complô para poder denunciá-lo”. É o que vemos, a partir de caminhos diversos, em livros como “Alvo noturno”, de Ricardo Piglia (autor de um texto sobre “teoria do complô”, publicado na edição número 2 da revista “serrote”), ou em várias obras dos norte-americanos Don DeLillo e Thomas Pynchon.

Talvez por trás da fachada de thriller histórico, “O cemitério de Pra$” guarde uma lição das repetições da História e de quão ingênuos são nossos tempos, que seguem adiante sem aprender com os erros do passado (ou sequer conhecê-los) . Essas recorrências temporais já ocupam Eco pelo menos desde “O nome da rosa”, de 1980: no suplemento que escreveu à obra (“Pós-escrito a ‘O nome da rosa’”, de 1984), Eco afirma que toda vez que alguém reclamou sobre a excessiva “modernidade” de alguma passagem, o trecho em questão era sempre uma citação direta a algum texto do século XIV.

“O cemitério de Praga” é um livro de entretenimento, que pode ser usufruído sem maior problematização acerca da “repetição da História como farsa”. Muitos críticos italianos atribuíram sua alta vendagem no país não apenas ao seu apelo folhetinesco, mas também à revisão e retomada que Eco faz da história italiana do século XIX (especialmente as campanhas de Garibaldi na Sicília e os confrontos de suas tropas com os austríacos). Mas há mais: o principal apelo de “O cemitério de Praga” é o de oferecer uma visão detalhada da gênese de um livro controverso e amplamente difundido ao longo do século XX, “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. Fruto de uma série de colagens, “Os Protocolos” deram sustentação “documental” para o reforço do antissemitismo europeu no início do século XX (era livro de cabeceira de Hitler, sendo inclusive citado em “Minha luta”).

Um ponto a ser ressaltado na realização do romance é sua aparente distância do contemporâneo, quando, na realidade, Eco explora temas do presente (paranoia, conflitos religiosos, estados de exceção, intolerância) em um cenário já codificado historicamente, para melhor mostrar os disparates e os absurdos, só visíveis depois da ação do tempo. “A principal característica das pessoas”, afirma um personagem anarquista de nome Léo Taxil, “é que elas se dispõem a acreditar em tudo” — todo poder instituído, continua a narrativa, se baseia na manipulação da credulidade; e são algumas constatações desconfortáveis como essa que perduram depois de toda pirotecnia de “O cemitério de Praga”.

KELVIN FALCÃO KLEIN é doutorando em Teoria Literária na UFSC
O cemitério de Praga, de Umberto Eco. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Editora Record, 480 páginas. R$ 49,90.

sábado, 29 de outubro de 2011

Royalties e República (Kleber Galveas)

Meu primeiro passaporte (1966) parecia uma caderneta de fiados do armazém. Na capa dura verde, as armas da república e a procedência: Estados Unidos do Brasil.
O segundo passaporte veio corrigido: Republica Federativa do Brasil.
Em nosso país os Estados sempre estiveram juntos; não fomos unidos, mas repartidos, nascemos gêmeos ou de uma ninhada republicana. Isto ajudou a manter a nossa integridade territorial e a prevalecer o sentimento de fraternidade.
O federalismo se justifica por harmonizar tendências diversas inerentes às diferentes regiões do país, promovendo desenvolvimento equilibrado, igualdade social e garantindo o ir e vir de todos os brasileiros. Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo remetem para os cofres da União quantias que chegam a ser 10 vezes maiores que o montante do investimento federal em seus territórios. Enquanto quase todos os outros estados recebem muito mais do que contribuem. O caso do ES é radical. Saem daqui para o Tesouro Nacional quase R$ 10 bilhões, e recebemos menos de R$ 1 bilhão em investimentos.
A navegação foi o principal meio de transporte do sec. XVI ao sec. XX, devido à nossa localização costeira, sempre recebemos muitos imigrantes. Estatísticas mostram que em São Mateus (1875) residia pelo menos um cidadão de cada um dos Estados brasileiros. No último censo fomos campeões no quesito imigração. Hoje, são “novos capixabas” residentes aqui, mais de um milhão de cidadãos nascidos em outros estados. Embora nossa estrutura seja precária, a convivência é harmoniosa.
Na segunda metade do século passado, com a quebra do café no Brasil e a “vassoura de bruxa” destruindo o cacau no sul da Bahia, a industrialização do ES foi acelerada para criar empregos atendendo a uma grande massa de desempregados que chegou às nossas cidades.
Crescemos desordenadamente. Inchamos. Adoecemos. Submetemos nosso ar, solo e água ao interesse nacional: assim, construíram as megaempresas exportadoras, que geram IPI (imposto federal). O grande e rápido fluxo de imigrantes trouxe problemas que não conhecíamos, e os que já existiam se multiplicaram em número e grau. Somos campeões em violência e derrotados em educação
Com a sangria de recursos feita pelo Governo Federal, não conseguimos arrumar a casa para receber bem aqueles que chegam. Não podemos atender às demandas crescentes nas áreas de: segurança, saúde, educação, habitação, transporte, saneamento... O que prejudica a todos.
Rousseau propôs a antítese entre o cidadão e o burguês: burguês não é o nobre nem o rico, é o egoísta que se ocupa dos próprios interesses para atender a sua vontade particular; enquanto o cidadão procede observando a vontade geral.
Deputado federal é cidadão da República. Deve pensar e agir a favor do país como um todo. Representando seu estado, contribui para formar o pensamento e juízo nacional, de acordo com a tradição republicana.
Acredito que Deputados e Senadores refletindo sobre a ética republicana de integração nacional, e sendo o país governado por uma presidenta com forte histórico socialista, há de prevalecer a atitude cidadã sobre o espírito egoísta deste precedente burguês extemporâneo, que pretende subtrair direito adquirido, tumultuando a ordem e o progresso nacional.
Os royalties do petróleo são o capital necessário para minimizar os problemas sociais multiplicados por mantermos ampla cooperação republicana, braços estendidos para dar e coração aberto para receber nossos irmãos.
Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 www.galveas.com 10/2011

O suicídio de Steve Jobs (Álvaro Pereira Júnior)

Uma autoconfiança desmedida, de quem se julga mais poderoso que a própria natureza

Foi o que mais me chamou a atenção, no dia em que Steve Jobs morreu: em meio ao fluxo feroz de informações típico da CNN, o médico Sanjay Gupta, também repórter e apresentador do canal, disparou: "Há relatos de que, logo depois de descobrir que tinha câncer no pâncreas, Jobs não aceitou o tratamento indicado, e tentou controlar a doença apenas com uma dieta especial".

Nos dias seguintes, não se falou muito sobre isso, ou pelo menos não vi nem li. Mas, aos poucos, a situação foi se aclarando. Era aquilo mesmo: Jobs achou que driblaria a doença gravíssima à base de alimentos e energia cósmica. O biógrafo oficial, Walter Isaacson, revelou que houve até consultas a curandeiros.

Em nenhum lugar li uma descrição tão apavorante da doença de Jobs, e de como ele lidou com ela, como na reportagem "A Medical Gamble" ("Uma Aposta Médica", ou "Jogando com a Saúde", em tradução aproximada), de Sharon Begley, na "Newsweek".

Begley conta como Jobs atrasou o tratamento nove meses, enquanto tentava a tal dieta. E como, quando não havia mais o que fazer a não ser operar, ele foi submetido a uma cirurgia de nome assustador, "pancreatoduodenoctomia", descrita como uma das mais "complicadas e arriscadas" de toda a medicina, "mais do que cirurgia do cérebro". Mas já era tarde para uma cura efetiva.

A relutância de Jobs, sua recusa em aceitar os tratamentos prescritos a mortais comuns pode ser explicada, é claro, pelo viés psicológico. Um ego tão colossal que esmaga a razão. Uma autoconfiança desmedida, de quem se julga mais poderoso que a própria natureza (ou que Deus, conforme o gosto do leitor).
Mas não me arrisco nessa seara, muito mais bem explorada, neste mesmo espaço, por outros colunistas.
Prefiro falar de como a atitude de Jobs me parece típica da área onde ele nasceu, viveu e prosperou: o Vale do Silício, região de San Francisco, norte da Califórnia.

Por que talvez em nenhum outro ponto do planeta convivam tão colados o conhecimento científico de ponta e o misticismo. Ou, pior ainda, a mistura perversa de ciência e crendice (por exemplo: usar o conhecimento científico da composição dos alimentos para, a partir daí, acreditar que eles, sozinhos, sejam capazes de curar uma doença agressiva e fatal).

Os laboratórios de Stanford e Berkeley, as duas melhores universidades da região, revolucionam a física, fazem avançar a medicina, ampliam nosso conhecimento sobre o cosmos, desvendam as entranhas atômicas das moléculas.

Mas, nas ruas dessas mesmas cidades, viceja o pensamento "alternativo". Xamanismo, energizações, meditação, tudo isso encontra espaço ali. E tudo movido à ingenuidade e ao paternalismo tão característicos de americanos bem-intencionados. Segundo essa linha de pensamento, se algo é exótico, propalado por pessoas de sotaques estranhos, vindas de lugares distantes, então deve ser bom.

No Vale do Silício, impera o capitalismo em estado bruto (ou selvagem, de novo conforme o gosto de quem lê). Investidores tão ricos quanto impiedosos descarregam fortunas em novas empresas, que surgem às centenas e tentam entregar resultados em meio ao ambiente mais criativo e competitivo do mundo.
No entanto, a poucos quilômetros dali, nas esquinas das ruas Haight e Ashbury, em San Francisco, está o berço do movimento hippie, da paz, do amor e do desdém pelo conforto material.

Outra cidade da região, Berkeley, viu nascer, nos anos 60, o movimento pela liberdade de expressão, crucial na construção do pensamento contestador americano.

Mas foi na mesma Berkeley, nos laboratórios de Glenn Seaborg (Nobel em 1951), que se desenvolveram algumas das pesquisas mais importantes sobre a química dos elementos radiativos, essenciais para a fabricação da bomba atômica.

Jobs era filho dessas contradições californianas.

Difícil imaginar o convencional e "nerdy" Bill Gates, ex-aluno de computação em Harvard, recorrendo a dietas anticâncer e a xamãs, caso tivesse uma doença grave. Basta lembrar das centenas de milhões de dólares que a Fundação Bill e Melinda Gates destina à pesquisa médica (Jobs não tinha nenhuma atividade filantrópica conhecida).

Para se tratar, Jobs percorreu o mesmo caminho intuitivo e arriscado que usava para conceber seus produtos. Só que, dessa vez, seu oponente não era o mercado, que ele tão bem dominava, mas células tumorais em replicação descontrolada. Embate perdido, uma espécie de suicídio.
29/10/2011, Folha de São Paulo,

A lição que Tancredo deixou (Zuenir Ventura)

Por mais imperfeita que seja, a democracia ainda é a maior construção da nossa sociedade civil no século XX. Uma demonstração de como foi essa (re)conquista está no mais recente documentário de Silvio Tendler, “Tancredo, a travessia”, uma viagem que reconstitui a história que vai do golpe militar de 64 até a morte, em 1985, daquele que foi sem ter sido — eleito primeiro presidente civil após a ditadura, Tancredo morreu antes de tomar posse. O filme emociona ao devolver os principais momentos do período.

Alguns são tristes, como as imagens do povo chorando nas ruas, num comovente pranto coletivo como só se vira 30 anos antes, com o suicídio de Getulio Vargas. Outros são de júbilo, como a campanha das Diretas Já, que levou para as praças das principais cidades do país milhões de pessoas em festivas passeatas e comícios, num espetáculo cívico de causar inveja aos Indignados de hoje e de nos fazer chorar de saudade de nós mesmos.

Entre as cenas dramáticas, está a da doença. Foram 38 dias de agonia, com sete cirurgias seguidas, opiniões divergentes e a tentativa de esconder a gravidade do estado de saúde do presidente. Nunca tantos médicos erraram tanto com o mesmo doente e ao mesmo tempo.Finalmente, no dia 21, em Brasília, Tancredo protagonizou um dos episódios mais frustrantes da História do Brasil. Numa data carregada de simbologia — execução de Tiradentes, descoberta do Brasil, transferência da capital para Brasília — ele subiu a rampa do Palácio do Planalto, depois de 21 anos de luta contra o regime militar, nos ombros dos cadetes, morto. Em vez da tão sonhada posse, o velório.

Até hoje se deve a esse articulador de consensos o exemplo de que um líder político pode ser esperto sem deixar de ser honesto, hábil sem apelar para trapaças.

A trajetória de contradições do novo ministro do Esporte fez o colunista Juca Kfouri chamá-lo de “o médico e o monstro”, por ter sido “brilhante” quando presidiu a CPI da CBF e ter mudado “ao chegar ao poder”. Mudou tanto que, como relator do Código Florestal, o ex-presidente da UNE virou ídolo dos desmatadores. Por esse desempenho, seu partido passou a ser considerado uma espécie de UDR do B, em referência ao movimento de Ronaldo Caiado, agora aliado. Aliás, um dos primeiros parabéns que o político comunista recebeu foi da líder ruralista Kátia Abreu, que no twitter aplaudiu o governo pela escolha.O novo ministro, que promete moralizar a pasta investigando todas as denúncias de corrupção, terá como trabalho inicial apurar o que há de verdade na acusação feita pelo policial João Dias Ferreira (o mesmo que derrubou Orlando Silva) de que o irmão de Aldo, o vice-presidente do PCdoB-DF Apolinário Rebelo, está envolvido no já denunciado esquema de desvio de recursos no Ministério do Esporte.
Fonte: O Globo

Os diferentes sotaques da música brasileira (Patricia Palumbo)

Existe um ditado antigo que diz: “Quem sai aos seus não degenera”. Como todo dito popular tem aí uma dose de sabedoria vinda da observação e, claro, um outro tanto de bobagem, porque sabemos que não existe nada tão absoluto. No entanto, falando de música brasileira podemos identificar acentos ou sotaques dos mais antigos nos artistas contemporâneos e esse é um exercício que adoro fazer.

Quando me encantei por Cazuza, perdidamente, percebi em suas canções qualquer coisa de Dolores Duran. Isso me intrigava e não perdi a chance de perguntar quando pude. Bola dentro. Fiquei feliz em saber que ele conhecia muito a obra dela e ainda as derramadas interpretações de Dalva de Oliveira e Maysa. Um compositor de baladas e de rock and roll. Maravilhoso, não é?

A mesma alegria eu sinto quando ouço de Patricia Polayne, compositora de Sergipe, que usou a célula rítmica do coco de Aracaju pra fazer seu som com produtor pernambucano, clima brit pop do Cocteau Twins e letras que lembram cordel falando de circo e de amor.

Naná Vasconcelos, que já correu o mundo mostrando sua música e tocou com os maiores feras do jazz, nunca se esquece dos maracatus de Dona Santa que ele frequentava assombrado ainda bem menino nos ombros da mãe. As alfaias e as caixas de Pernambuco também estão na percussão de Eder o Rocha, do Mestre Ambrósio, e no tambor que Karina Buhr usa para compor, mesmo que seja canção de amor – pois é do ritmo que vem o som e o ritmo veio das ruas do Recife.

São muitos os sotaques, como se diz no Boi do Maranhão. Rita Ribeiro e Zeca Baleiro dançavam nessas festas. Zeca tem uma canção que eu gosto especialmente chamada Boi de Haxixe: “Quando piso em flores / Flores de todas as cores / Vermelho sangue, verdeoliva, azul colonial / Me dá vontade de voar sobre o planeta / Sem ter medo da careta / Na cara do temporal...”: música que homenageia as festas juninas de São Luiz – que tem outra cor e outro som. Nas rodas tem pandeirão que esquenta o couro na fogueira, tem sotaque de orquestra, de matraca e de zabumba.

Rita também honra a tradição de sua terra cantando os sambas de seu Antonio Vieira, compositor popular, elegante e educado senhor que tive o prazer de conhecer. São dele Banho Cheiroso, Tem Quem Queira e Cocada, músicas que fazem parte do repertório mais feliz dessa maranhense de voz privilegiada.

O País agora está descobrindo a música do Pará. A mistura do carimbó com a guitarrada e os computadores. Vem com força amazônica a geração de Gaby Amarantos e Felipe Cordeiro, que fazem música com forte acento regional, contaminam novas produções pelo País afora e rendem suas homenagens aos mestres Pio Lobato e Dona Onete.

Do Ceará veio a guitarra personalíssima de Fernando Catatau – que tem sido requisitado por nove entre dez novas vozes femininas, produziu Arnaldo Antunes e acaba de se reunir com Fagner em show histórico no Sesc Pompeia em São Paulo. Linda ideia. Das velas do Mucuripe à solidão paulistana de um cidadão instigado. Tradição e modernidade.

Mas não é só de Nordeste que vive a nossa mistura. Filipe Catto é um jovem cantor gaúcho que reverencia Lupicínio Rodrigues na dramaticidade e na ironia de seu repertório. Ele faz música de cabaret pop e transforma o rock dos conterrâneos do Cachorro Grande em canção. Seu primeiro disco, Fôlego, acaba de sair.

Karina Zeviani em breve lançará seu primeiro CD em terra Brasilis. Amoça saiu de Jaboticabal, correu o mundo como modelo, cantou com o Thievery Corporation e no descoladíssimo Nouvelle Vague.

Quando compõe é a menina que corria atrás da banda. Vem aí um trabalho lindo, sereno, simples como as coisas do interior. E quem fala de seu quintal fala para o mundo.

Tudo isso é parte da diversidade cultural brasileira que se reflete na música popular. Quando falo da tradição não é para ser careta, mas é para reconhecer, para ter na mão o fio da meada que dá nesse amálgama de que fala Jorge Mautner. Nenhum povo faz isso tão bem e o mais bonito da época que estamos vivendo é que temos acesso a essa produção tão incrível quanto diversa.

Lembro quando Fernanda Porto gravou Baque Virado, parceria com a pernambucana Alba Carvalho: “Ouço batuques e maracatus na TV, que país é esse que a gente nunca vê?” Foi-se o tempo. Tá tudo aí pra quem quiser ver. E ouvir.

O Brasil e a Democracia

Cai o índice de apoio dos brasileiros à democracia. De 2010 para 2011 o Brasil registra uma queda é de nove pontos percentuais.
É o que aponta a 16ª edição da pesquisa Latinobarómetro, levantamento anual feito pela Corporación Latinobarómetro, em 18 países da América Latina.
A queda é mais acentuada no Brasil do que a média da região. No Brasil, a taxa de apoio cai de 54% para 45%, enquanto a média da região caiu de 61% para 58%.
A presidente do instituto, a economista Marta Lagos, atribui o fato principalmente ao impacto da crise econômica mundial nos países pesquisados. Já, quanto ao índice brasileiro, acredita ter relação com a mudança de governo.
"O combate de Dilma contra a corrupção expõe um problema político. Além disso, há uma distinção do discurso dela em relação ao de Lula. Enquanto ele dizia que combateria os problemas do povo, ela diz que combaterá os problemas da política."

Conforme a pesquisa do Latinobarómetro, o presidente mais bem avaliado da América Latina é o colombiano Juan Manuel Santos (75%), seguido de Dilma (67%) e do equatoriano Rafael Corrêa (64%).

Ainda conforme o levantamento do Latinobarómetro, Uruguai e Costa Rica lideram o ranking que indica os países cujos habitantes mais se consideram democráticos. Neste, o Brasil está em 10ª . Ambos também são os que mais rechaçam a ideia de um governo militar.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

De Orlando para Aldo Rabelo.

Nessa manhã, no twitter, Orlando Dias saudando Aldo:
"Bom dia @ aldorebelo Deus ilumine teus caminhos ".
Definitivamente: Já nao se fazem Comunistas como antigamente.
Pois é, Orlando: em outros Tempos, os Comunistas buscavam Iluminar os caminhos buscando referência e citações em Marx, Engels e Lenin.
Já o PCdoB construiu, ao longo do processo, iniciado com sua dissidência do PCB em 1962, sua própria tríade: Stalin, Mao e Enver Hoxha. Representavam a chamada Linha justa teórica.
Ou esse pessoal do atual PCdoB não entendeu o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico ou já deixou de ser materialista e marxista.

Para analistas, coalizão 'suja' dificulta faxina

Segundo eles, mudanças têm esbarrado na governabilidade, que depende das alianças e da divisão de cargos

Alessandra Duarte

CAXAMBU (MG).Um governo que passou a ser associado à faxina, mas tem de conciliá-la com alianças "sujas" justamente para funcionar. Para cientistas políticos e sociólogos presentes ao 35º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu (MG), a queda do quinto ministro da presidente Dilma Rousseff por denúncias de irregularidades é um sinal da contradição do governo atual entre uma imagem de limpeza e uma coalizão não tão limpa assim.

"Uma tentativa de combinar governo limpo com política suja" foi a definição dada pelo professor da Universidade de Brasília (UnB) Luis Felipe Miguel.

Segundo Miguel, o governo Dilma, apesar de ter mostrado "mais intolerância" com a corrupção do que seu antecessor, precisaria lidar com disputas que passaram a ocorrer mais dentro do arco de alianças:

- É disputa por fatias de poder do Estado - afirmou Miguel. - O que o governo tem feito é dizer: "A gente afasta a corrupção do Executivo, pune, mas ao mesmo tempo a governabilidade depende do apoio dos partidos, que depende da concessão a congressistas, que depende do loteamento de cargos". O PT abandonou sua trajetória de tentar criar novas formas de fazer política.

Dilma tenta um "divórcio ético" do governo Lula

Também apontando para as disputas dentro das próprias alianças do governo, o cientista político Renato Lessa, da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirmou que estariam aí os motivos para a onda de crise nos ministérios de Dilma:

- Não é porque aumentou a investigação, ou porque aumentou a sensibilidade social para esse tipo de conduta, mas porque algo não foi cumprido em algum lugar, aí vêm as denúncias.

- Com menos partidos, poderia haver governabilidade com alianças mais reduzidas. Não haveria essa loteria dos ministérios que se tornou a ocupação das pastas - avaliou o sociólogo do Iesp/Uerj Glaucio Soares, destacando que Dilma tenta fazer uma espécie de "divórcio ético" com o antecessor.

- Há um divórcio ético entre o presidente que saiu e a que entrou, que se reflete na não aceitação por parte da presidente atual de deslizes, talvez crimes.

Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina, Yan Carreirão diz que o mal maior, na crise no Esporte, não seria o governo dar o comando da pasta para um partido, mas ter entregado a pasta inteira "de porteira fechada":

- Convidar para participar de ministérios partidos que são de sua coalizão é algo que ocorre em outros países democráticos. O que parece ter acontecido, porém, ao longo do governo Lula e continuando agora, é a prática do ministério de porteira fechada. E, aí, o governo passa a ter menos controle sobre o que acontece no ministério. Um caminho para melhorar esse quadro, além de compor um ministério não só com indicações partidárias mas também pelo conhecimento técnico, é tentar o fim dessa prática da porta fechada - disse Carreirão, para quem "seria mais prudente" que o substituto de Orlando Silva não seja do PCdoB: - As denúncias não foram só contra ele, mas contra a sigla.

Para Renato Lessa, trocar o partido que conduz o do Esporte não teria o efeito de livrar a pasta de novos esquemas de corrupção - pelo fato de que o problema principal não está no PCdoB, mas no próprio modelo de funcionamento do governo:

- É um sistema de coalizão que leva a uma política predatória, de apropriação. Nesse sistema, o PCdoB passou a se comportar como mais um partido. Agora, é a vez dele. Mas é da lógica dessa coalizão que esse tipo de conduta ocorra. Faz parte do modelo do experimento político brasileiro atual, que é a grande coalizão, com um número de ministérios inteiramente desproporcional às necessidades práticas do governo.

O abandono, pelo PCdoB, de seu perfil histórico ideológico também foi destacado por Glaucio Soares:

- O PCdoB acabou no Araguaia. O que se tem agora é um monte de contador de histórias. Nesse presidencialismo de coalizão, os ministérios foram partidarizados, e este (Esporte) caiu nas mãos de um partido bem ruizinho, que agora tem uma área que passa a ter importância, pelos eventos que o Brasil sediará (Copa e Olimpíadas). Hoje, a implantação do que é fisicamente necessário para esses eventos está atrasada. Se não melhorar, o atraso fica irremediável.

FONTE: O GLOBO

A lógica é de governo limpo com política suja", diz analista

Cristian Klein

Caxambu - Diferente de Luiz Inácio Lula da Silva, no estilo, na simpatia que desperta nas elites, mas chefe de um governo de continuidade e conservador. Foi assim que o cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), sintetizou os dez primeiros meses da presidente Dilma Rousseff, no debate de anteontem à noite sobre a conjuntura política, no encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

"A principal qualidade da presidente em relação ao antecessor é sua reação aos escândalos. É sua marca distintiva. Todos que caem são homens do Lula. Mas as demissões seguem a lógica de um governo limpo com política suja que depende do loteamento de cargos", disse Miguel.

O professor da UnB afirmou que Dilma enfrenta pouca oposição, seja pelo enfraquecimento dos partidos ou por ter origem na classe média. Enquanto Lula ainda causava temor ou teria pouca identificação com as elites, Dilma não seria alvo da mesma antipatia. Mostra disso seria o destaque dado pela imprensa a suas visitas a museus nas viagens ao exterior, em contraste com o anti-intelectualismo do ex-presidente.

Essa característica que a diferenciaria de Lula, porém, não altera, defendeu Miguel, o caráter de continuidade de seu governo, que também estaria sendo marcado mais por políticas de inclusão do que de transformação.

"Por isso, Dilma é lulista, apesar das diferenças de estilo. É um lulismo que traz a vantagem de não exigir que se engulam sapos. É um lulismo, podemos dizer assim, frogless [sem sapo]", ironizou, em menção ao apelido de sapo barbudo, dado a Lula pelo governador do Rio, Leonel Brizola, morto em 2004.

Renato Lessa, da Universidade Federal Fluminense, criticou a coalizão de governo que viveria em estado de natureza, de uma luta de todos contra todos, como descreveu o filósofo inglês Thomas Hobbes (1558-1679), no clássico "Leviatã".

"Hoje vemos a política como predação, o que naturaliza o fogo amigo e práticas mafiosas, expressas em frases como "vou contar para todo mundo"", disse, em referência às chantagens dos aliados para manter ou ampliar o poder. Lessa considerou a demissão de Orlando Silva como consequência desse modelo: "Foi a vez do PCdoB. É lamentável porque os comunistas deram o sangue na ditadura. É uma erosão do patrimônio democrático brasileiro."

O repórter viajou a convite da Anpocs

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Orlando na Estação Finlândia (Demétrio Magnoli)

A Igreja da Libertação anunciou uma opção preferencial pelos pobres. O PCdoB definiu uma opção preferencial pelo Esporte. Brasil afora, nas esferas federal, estadual e municipal, o partido almeja o controle do ministério e das secretarias do Esporte. Não é o Homem Novo, mente sã em corpo são, que os comunistas fieis à herança stalino-maoísta pretendem fabricar. A preferência obsessiva obedece a uma estratégia centralizada de financiamento do aparato partidário com dinheiro público. O jogo funciona assim: os gestores públicos do partido repassam recursos a ONGs de fachada, administradas por militantes subordinados ao partido, que pagam pedágio ao partido. Orlando Silva não é uma ilha isolada, mas apenas o ponto focal de um arquipélago assentado sobre uma vasta plataforma submarina.

O Ministério do Esporte funciona como duto de desvios ilegais de dinheiro público para recipientes particulares. As eventuais responsabilidades criminais do ministro só podem ser estabelecidas no curso de um processo, mas suas responsabilidades políticas estão à vista de todos. Por menos, caíram os ministros Antonio Palocci (PT), Wagner Rossi (PMDB), Pedro Novais (PMDB) e Alfredo Nascimento (PR). Qual é o motivo da longa sobrevida de Orlando Silva?

O governo cedeu à máfia chamada Fifa no principal, que é a legislação de licitações, mas simula uma resistência em temas periféricos, como a meia-entrada e as proibições estaduais à venda de cerveja nos estádios. O PCdoB e a camarilha de porta-vozes informais financiados pelo lulismo na internet exibem Orlando Silva como um paladino da luta contra Joseph Blatter e seus asseclas nativos. A patética encenação só ilude os tolos: se Dilma Rousseff quisesse proteger a soberania nacional das forças de ocupação da Fifa bastaria declarar que as leis do país não estão em negociação.

Agnelo Queiroz comandou o Ministério do Esporte, tendo seu correligionário Orlando Silva como secretário-executivo, antes de trocar (ao menos formalmente) o PCdoB pelo PT e se eleger governador do Distrito Federal. Toda a meada do esquema de desvios de recursos, cujas raízes se encontram na gestão de Queiroz, poderia ser desenrolada a partir da demissão do atual ministro. Nos bastidores, circulam ameaças de exposição do governador na trama de seu antigo partido. A extensão das repercussões do escândalo é uma causa circunstancial, secundária, da resiliência de Orlando Silva.

O PT inscreveu-se na paisagem política brasileira como desaguadouro recente da tradição da esquerda. A marca de origem, sua fonte insubstituível de legitimidade, reflete-se na aliança histórica com o PCdoB, o único remanescente significativo da árvore do "socialismo real" no país. Hoje, o PT faz coligações com qualquer partido conservador disposto a intercambiar seu apoio ao projeto de poder petista por cargos no aparato estatal. Contudo, justamente por compartilhar os palácios com Sarney, Barbalho, Calheiros, Collor et caterva, o PT precisa conservar a narrativa mitológica que desempenha funções identitárias cruciais. Os congressos petistas devem mencionar o "socialismo" com ênfase tanto maior quanto mais próximo do grande empresariado estiver o governo. A aliança com o PCdoB deve ser preservada mesmo à custa da imagem de "faxineira da corrupção" construída pela presidente em desgastantes atritos com o PMDB e o PR. As motivações simbólicas são a liga do sólido alicerce que sustenta Orlando Silva.

Uma conferência estadual do PCdoB, no Rio de Janeiro, sexta passada, serviu como palco para a articulação partidária em torno da defesa do ministro. No evento, em meio a cartazes de protesto contra a "mídia golpista", o presidente do partido, Renato Rabelo, comunicou que recebera um telefonema no qual Lula transmitiu o grito de guerra: "Vocês têm que resistir, o ministro tem que resistir." O ex-presidente expressou solidariedade prévia a todos os ministros afastados do governo Dilma sob suspeitas de corrupção, mas em nenhum dos casos anteriores operou como agitador público. No affaire Orlando Silva, ele não age em proveito de uma personalidade ou um partido, mas no interesse de um princípio político.

A corrupção estatal tem a finalidade invariável de produzir fidelidades políticas, soldando um bloco de poder. No Brasil, a corrupção tradicional se realiza na moldura arcaica do patrimonialismo, transferindo dinheiro dos cidadãos para o patrimônio de particulares. O lulo-petismo aprendeu a conviver harmoniosamente com esse padrão de corrupção, mas tende a desprezá-lo. Poucas vozes se ergueram em defesa de Palocci, suspeito de traficar influência para multiplicar seus bens privados. Em compensação, o poder lulo-petista estimula uma nova modalidade de corrupção: a transferência de recursos públicos para partidos e entidades que prometem conduzir o povo ao porto do futuro. Segundo a tese implícita, a administração do Estado deve se subordinar ao primado da política, traduzida como um movimento rumo à realização de uma verdade histórica superior. Obviamente, as engrenagens da corrupção de novo tipo também enriquecem operadores tradicionais, mas tal fenômeno é interpretado como um dano colateral inevitável.

De volta do exílio, em abril de 1917, Lênin desembarcou do vagão de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado, para anunciar a chegada da revolução proletária. Há tempo, o PCdoB renunciou de fato ao socialismo. Entretanto, fatos não importam nos domínios da mitologia política. Numa mensagem à conferência do PCdoB, Orlando Silva mencionou a guerrilha do Araguaia e citou uma carta do poeta stalinista Pablo Neruda ao PC chileno: "Neste momento, me sinto indestrutível, porque contigo, meu partido, não termino em mim mesmo." O ministro faz parte dos homens da Estação Finlândia. Por isso, o lulo-petismo tentou declará-lo "indestrutível" e sua demissão decorreu da intervenção do STF.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

PSD a DRU e o neogovernismo,

Desvendado o segredo de polichinelo da política brasileira: PSD estreia no Congresso com voto pró-governo. Os deputados do PSD resolveram aprovar o projeto da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que dá liberdade à presidente para gastar como quiser 20% dos recursos orçamentários.
A DRU é aquela mutretazinha que permite a União deixar de cumprir os gastos obrigatórios com a educação. É sinônimo de menos educação e salário menor para o professor.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Cineclube Filmes na Ilha e "Ex-isto" - Paulo Leminski

Marcos Valério Guimarães, Instituto Geração, convidando para a inauguração, nesta quinta, 27 de outubro, 19 h,do Cineclube Filmes na Ilha.

É um espaço para filmes e debates, para a fruição e a produção crítica. Sobre temas que sobreponham, interponham, façam conversar, os campos da filosofia, da arte (no seu momento contemporâneo) e da psicologia com o campo audiovisual, produzindo reflexões críticas acerca do acesso do público às obras audiovisuais, tanto do ponto de vista de sua materialidade de produção e distribuição, quanto do ponto de vista de sua formulação como obra expressiva.

O Cineclube fica na sede do Centro de Desenvolvimento Humano Ser Vivo, no Centro histórico de Vitória: Rua Nestor Gomes, 235, Centro. Foi financiado pelo Edital 012-2011 da Secretaria de Cultura do ES e tem a parceria do Instituto Geração e do Centro de Desenvolvimento Humano Ser Vivo. É realizado pelo cineclubista Marcos Valério Guimarães.


Para abrir a programação, a obra do cineasta Cao Guimarães, “Ex-Isto”, produção do Itaú Cultural, da série Iconoclássicos, com o ator João Miguel. Uma livre leitura da obra de Paulo Leminski, “Catatau”: o filme propõe um ponto de partida interessante: e se René Descartes, o símbolo da racionalidade, tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau, o colonizador holandês de Pernambuco?

Um Secretário sem educação (Juca Magalhães)

A confusão começou mesmo quando desabou a chuva. Até então eu estava me sentindo um corredor em fim de maratona, ou então quando você chega em casa, entra no elevador e se dá conta de uma vontade inexplicável, premente, autoritária de correr pro banheiro... Mas quando a chuva caiu...

O sujeito atravessou a multidão - que oscilava fácil e velozmente entre ordem, resignação e revolta – e começou a gritar com as moças do balcão:

- Minha filha, você não está entendendo! Eu vou entrar nesse avião é agora!! – Falava e olhava à sua volta, um dos que seus olhos meio esbugalhados encontrou foram os meus. Não sei porque ele fazia isso, fico aqui me perguntando. Era como se quisesse mostrar ao redor que ele sim era quem sabia lidar com aquela situação e que, consequentemente, não era uma ridícula “vaquinha de presépio” como todos os demais que pacientemente esperavam uma solução.

O sujeito tinha um sotaque nordestino carregado como aqueles que a gente só vê no cinema ou nas novelas, “vice”? Tinha uma cabeça chata e calva que, dado o sotaque, lhe conferia um ar correto, como fora uma caracterização tradicional do personagem para aquela cena. De repente, em meu tédio conformado, esqueci dele. Lembrei quando ele desferiu uma tapa estrondosa no balcão e gritou que era Secretario de Educação de... Obviamente era um Estado do Nordeste... João Pessoa? É esse que tem a capital em Natal? Se for, então era esse. Ora vejam só: um Secretário de Educação...

Mamãe era boba que nem essas pessoas que gostam de viajar à Paris para comprar perfumes, vinhos e roupas. Ela sempre contava divertida o caso da amiga que, isso lá nos anos setenta, pegou um produto numa loja de conveniência na “Chanselises” e colocou na bolsa “esquecendo-se” de pagar. Na hora de sair da loja foi abordada gentilmente pelos seguranças que estavam ali justamente para ativar a memória dos mais desavisados. A mulher achou um absurdo ser incomodada e protestou em bom português com tempero capixaba:

- Vocês não podem fazer isso comigo! Eu sou primeira dama de Aracruz!!!

Não sei bem o que o tal do Secretário “cabra-macho” queria em seu “piti” monumental. Talvez que o Aeroporto abrisse para levá-lo embora, que a chuva parasse com aquela má vontade dela e deixasse os aviões voltarem a pousar e decolar, que o caos virasse ordem, que o mundo finalmente se dignasse a girar ao seu redor porque um governador do nordeste o escolhera para representar a Educação não só em sua terra, mas em todo o país como ele bem o demonstrava ao inverso.

Depois de arrepiar para cima das meninas novinhas da Gol, no que ele auferia um incerto prazer masculino de poder, acabou indo para outra sala conversar com o gerente. Tinha já uns dois ou três caras de terno com fones o cercando quando isso aconteceu. Esqueci dele novamente, aliás, esquecemos. Quando passamos uma perrengue daquelas temos tendência a fazer amizades temporárias. Foi o Rodrigo que, passados sei lá, duas horas, lembrou.

- E aquele cabra esporrento que fim será que levou?

- Eu sei lá... - Nem queria saber, só queria ir embora para casa, mas isso não aconteceria tão cedo.

- Será que deram um jeito de colocar ele num vôo? – Com aquela chuva, pensei, só se fosse pro avião cair e depois colocar a culpa na divina providência.

Era por volta de sete da noite, eu estava do lado de fora do Aeroporto de Manaus esperando a Van que nos levaria ao hotel e conversava com o pessoal da Gol, quando o cara reapareceu, rodeado de alguns assessores, um até simpaticamente me pediu fogo para acender um cigarro, daí não pude deixar de ouvir a conversa que se seguiu.

- Olha aqui minha filha, aquela sua amiga hoje escapou por pouco de tomar umas lambadas, vice? Ela escapou por pouco! – Como ele tinha costume de falar e olhar para mim eu, já de saco cheio e estourado, comentei em voz alta pra todo mundo ouvir:

- Êh cabra macho hein? – Seus olhos esbugalharam minha pessoa e eu completei sorrindo, mas quase chamando pra porrada. – Bater em mulher é covardia rapá!

Demonstrando mais inteligência do que educação, dessa vez ele deu as costas e foi embora. Isso era por volta de sete da noite e o meu vôo só sairia às quatro da manhã... Depois ponderei com meus botões que eu fora bastante inconseqüente em minha abordagem corrosiva, não costumo fazer essas coisas, como disse, estava cansado como um corredor no fim da maratona que descobre que tem dez quilômetros extras para percorrer. É nessas horas que mora o perigo e que todo descuido pode ser fatal.

Tranquila e infalível como Bruce Lee (Luiz Eduardo Soares)

Enquanto a taxa nacional média de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8%, o país entope penitenciárias de jovens pobres, não violentos

Os primeiros nove meses do governo Dilma, na segurança pública, foram decepcionantes.

A decepção decorre do contraste entre as expectativas suscitadas pelos excelentes nomes escalados para enfrentar o desafio e a postura da presidente, que prefiro descrever a qualificar, por respeito ao cargo e à sua biografia.

O começo foi alvissareiro, com a nomeação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que encheu de esperança até os céticos.

O primeiro ato do novo ministro justificou o otimismo. Foram convidados Regina Mikki e Pedro Abramovay para as secretarias de segurança e de políticas para as drogas.

Escolhas irretocáveis, cujos significados prenunciavam avanços. Some-se a isso uma vitória do ministro ao obter o deslocamento da secretaria responsável pela política sobre drogas para o Ministério da Justiça. Ainda que o ideal fosse inseri-la no Ministério da Saúde, tratava-se de um passo positivo da maior importância.

Na sequência, mais um alento: em entrevista ao "O Globo", Pedro mostrava quão perversa vinha sendo a escalada do encarceramento no Brasil, cujas taxas de crescimento já eram campeãs mundiais: desde 2006, o tipo penal que concentrava o foco das ações repressivas correspondia à prática da comercialização de drogas ilícitas sem armas, sem violência, sem envolvimento com organizações criminosas.

De meados dos anos 90 até hoje, passamos de 140 mil a mais de 500 mil presos. Em termos absolutos, só perdemos para a China e para os Estados Unidos. Era preciso mudar a abordagem do problema.

Por aí ficou Pedro, mas já era suficiente para disseminar o entusiasmo em tantos de nós.

Enquanto a taxa média nacional de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8% (92% dos homicidas permanecem impunes, nem sequer são identificados nas investigações policiais), o país entope penitenciárias de jovens pobres, com baixa escolaridade, não violentos, que negociavam drogas no varejo.

Ao condená-los à privação de liberdade em convívio com grupos profissionais e organizados, que futuro estamos preparando para eles e para a sociedade?

Não há uso mais inteligente para os R$ 1.500 mensais gastos com cada jovem preso que não cometeu violência? É preciso impor limites, mas também ampará-los na construção de alternativas.

Veio a primeira frustração: a presidente ordenou ao ministro que desconvidasse Pedro Abramovay. A ordem presidencial caiu como um raio, fulminando a confiança que se consolidava e expandia.

Enquanto isso, o Brasil continua sendo o segundo país do mundo em números absolutos de homicídios dolosos -em torno de 50 mil por ano-, atrás apenas da Rússia.

Para reverter essa realidade dramática, uma equipe qualificada do ministério trabalhou todo o primeiro semestre na elaboração de um plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos, valorizando a prevenção mas com ênfase no aprimoramento das investigações.

Um plano consistente e promissor, que não transferia responsabilidades à União, mas a levava a compartilhar responsabilidades práticas. Em meados de julho, chegou a data tão esperada: o encontro com a presidente. O ministro passou-lhe o documento, enquanto o técnico preparava-se para expô-lo.

Rápida e eficaz, tranquila e infalível como Bruce Lee, a presidente antecipou-se: homicídios? Isso é com os Estados. Pôs de lado o documento e ordenou que se passasse ao próximo ponto da pauta.

Luiz Eduardo Soares é antropólogo, autor de "Justiça" (Nova Fronteira, 2011). Foi secretário nacional de Segurança Pública (2003).

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Lula para sempre (Marco Antonio Villa)

Luiz Inácio Lula da Silva não é um homem de palavra. Proclamou diversas vezes que, ao terminar o seu mandato presidencial, iria se recolher à vida privada e se afastar da política. Mentiu. Foi mais uma manobra astuta, entre tantas que realizou, desde 1972, quando chegou à diretoria do sindicato de São Bernardo, indicado pelo irmão, para ser uma espécie de porta-voz do Partidão (depois de eleito, esqueceu do acordo).

A permanente ação política do ex-presidente é um mau exemplo para o país. Não houve nenhuma acusação de corrupção no governo Dilma sem que ele apoiasse enfaticamente o acusado. Lula pressionou o governo para não "aceitar as pressões da mídia". Apresentou a sua gestão como exemplo, ou seja, nunca apurou nenhuma denúncia, mesmo em casos com abundantes provas de mau uso dos recursos públicos. Contudo, seus conselhos não foram obedecidos.

Não deve causar estranheza este desprezo pelo interesse público. É típico de Lula. Para ele, o que vale é ter poder. Qualquer princípio pode ser instrumento para uma transação. Correção, ética e moralidade são palavras desconhecidas no seu vocabulário. Para impor a sua vontade passa por cima de qualquer ideia ou de pessoas. Tem obtido êxito. Claro que o ambiente político do país, do herói sem nenhum caráter, ajudou. E muito.

Ao longo do tempo, a doença do eterno poder foi crescendo. Começou na sala de um sindicato e terminou no Palácio do Planalto. E pretende retornar ao posto que considera seu. Para isso, desde o dia 1 de janeiro deste ano, não pensa em outra coisa. E toda ação política passa por este objetivo maior. Como de hábito, o interesse pessoal é o que conta. Qualquer obstáculo colocado no caminho será ultrapassado a qualquer custo.

O episódio envolvendo o ministro do Esporte é ilustrativo. A defesa enfática de Orlando Silva não dependeu da apresentação de provas da inocência do ministro. Não, muito pelo contrário. O que contou foi a importância para o seu projeto presidencial do apoio do PCdoB ao candidato petista na capital paulista. Lula sabe que o primeiro passo rumo ao terceiro governo é vencer em São Paulo. 2014 começa em 2012. O mesmo se repetiu no caso do Ministério dos Transportes e a importância do suporte do PR, independentemente dos "malfeitos", como diria a presidente Dilma, realizados naquela pasta. E, no caso, ainda envolvia o interesse pessoal: o suplente de Nascimento no Senado era o seu amigo João Pedro.

O egocentrismo do ex-presidente é antigo. Tudo passa pela mediação pessoal. Transformou o delegado Romeu Tuma, chefe do Dops paulista, onde centenas de brasileiros foram torturados e dezenas foram assassinados, em democrata. Lula foi detido em 1980, quando não havia mais torturas. Recebeu tratamento privilegiado, como mesmo confessou, diversas vezes, em entrevistas, que foram utilizadas até na campanha do delegado ao Senado. Nunca fez referência às torturas. Transformou a casa dos horrores em hotel de luxo. E até chegou a nomear o filho de Tuma secretário nacional de Justiça!!

O desprezo pela História é permanente. Estabeleceu uma forte relação com o símbolo maior do atraso político do país: o senador José Ribamar da Costa, vulgo José Sarney. Retirou o político maranhense do ocaso político. Fez o que Sílvio Romero chamou de "suprema degradação de retrogradar, dando, de novo, um sentido histórico às oligarquias locais e outorgando-lhes nova função política e social". E pior: entregou parte da máquina estatal para o deleite dos interesses familiares, com resultados já conhecidos.

O desprezo pelos valores democráticos e republicanos serve para explicar a simpatia de Lula para com os ditadores. Estabeleceu uma relação amistosa com Muamar Kadafi (o chamou de "amigo, irmão e líder") e com Fidel Castro (outro "amigo"). Concedeu a tiranos africanos ajuda econômica a fundo perdido. Nunca - nunca mesmo - em oito anos de Presidência deu uma declaração contra as violações dos direitos humanos nas ditaduras do antigo Terceiro Mundo. Mas, diversas vezes, atacou os Estados Unidos.

Desta forma, é considerável a sua ojeriza a qualquer forma de oposição. Ele gosta somente de ouvir a sua própria voz. Não sabe conviver com as críticas. E nem com o passado. Nada pode se rivalizar ao que acredita ser o seu papel na história. Daí a demonização dos líderes sindicais que não rezavam pela sua cartilha, a desqualificação dos políticos que não aceitaram segui-lo. Além do discurso, usou do "convencimento" financeiro. Cooptou muitos dos antigos opositores utilizando-se dos recursos do Erário. Transformou as empresas estatais em apêndices dos seus desejos. Amarrou os destinos do país ao seu projeto de poder.

Como o conde de Monte Cristo, o ex-presidente conta cada dia que passa. A sua "vingança" é o retorno, em 2014. Conta com a complacência de um país que tem uma oposição omissa, ou, na melhor das hipóteses, tímida. Detém o controle absoluto do PT. Usa e abusa do partido para fortalecer a sua capacidade de negociação com outros partidos e setores da sociedade. É obedecido sem questionamentos.

Lula é uma avis rara da política brasileira. Nada o liga à nossa tradição. É um típico caudilho, tão característico da América Hispânica. Personalista, ególatra, sem princípios e obcecado pelo poder absoluto. E, como todo caudilho, quer se perpetuar no governo. Mas os retornos na América Latina nunca deram certo. Basta recordar dois exemplos: Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón.

Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

domingo, 23 de outubro de 2011

Privilégio à custa de assédio (Debora Diniz)

Em final dos anos 90 fui morar no Japão. Estudava japonês e uma das primeiras palavras que minhas colegas me ensinaram foi chikan. Estranhei, pois jamais havia cruzado com essa palavra em meus manuais de "15 minutos diários de japonês", tampouco nos mangás que lia compulsivamente. Chikan é o personagem ao qual todas as jovens que andam de metrô nas grandes cidades são tristemente apresentadas - o voyeur, o abusador, o tarado do metrô. Poucas semanas em Tóquio ou Osaka foram suficientes para corporificá-lo: um homem de meia-idade que se vale do trem lotado ou quase vazio para lançar-se às mais variadas cenas de masturbação ou abuso sexual. Em geral ele age à noite e sozinho. O primeiro chikan que vi me emudeceu. Eram pouco mais de 10 da noite e eu voltava para casa. Não fui sua vítima, mas testemunhei uma jovem adolescente com saias pregueadas da escola fugindo ao vê-lo de calças abertas.

Passei a andar no vagão das mulheres sempre que saio à noite. Seja em Tóquio, na Cidade do México, em Nova Délhi ou no Rio. O recente caso de uma estudante de 21 anos molestada por um advogado no metrô de São Paulo denuncia o chikan paulistano. Um trem lotado e uma mulher jovem o encorajaram a agir. A moça desmaiou de pânico. Há quem diga que para contornar a persistência do abuso e a universalidade dos chikans a saída seriam os vagões só para mulheres. Enquanto espero o metrô em horários de pico já ouvi a tese de que o vagão feminino seria um privilégio indevido em uma sociedade que não discrimina homens e mulheres. Esse é um falso e superficial julgamento sobre as razões para a segregação espacial no transporte. O vagão de mulheres institucionaliza a violação de um direito fundamental da igualdade de gênero: o direito à mobilidade. O medo do abuso, da violência sexual ou da injúria sexista é uma barreira permanente para as mulheres no direito à mobilidade livre.

A existência de espaços públicos segregados denuncia dois absurdos da vida social: a discriminação e a violência. Há sobreposições entre os dois, pois são intensidades de um mesmo fenômeno de não reconhecimento da igualdade. Assim foi a história do racismo nos Estados Unidos ou na África do Sul: calçadas separadas ou linhas no piso do ônibus indicavam a organização do espaço em dois polos - o dos negros e o dos brancos. A razão para a segregação era o racismo, uma perversa ideologia que sustenta a inferiorização dos corpos pelas cores e origens. Mas é também a violência o que justifica a segregação espacial por sexo. Os vagões para as mulheres são a institucionalização do medo, o reconhecimento da persistência da violência sexista. Resolvem a desigualdade pela proteção que segrega. Para uma mulher não ser importunada ou violada por um chikan, a saída seria resignar-se à segregação. Não somos bem-vindas em todos os espaços, pois somente no vagão para as mulheres estaríamos livres dos abusadores. Há uma lógica perversa na proteção pela segregação: parte-se da certeza de que o sexismo é a regra, a violência dos homens contra as mulheres deve ser suportada e a melhor forma de proteger as mulheres é afastá-las do convívio universal no espaço público.

O direito à mobilidade livre é o que garante às mulheres o exercício de atividades prosaicas da vida cotidiana, como o trabalho, a educação, o cuidado dos filhos ou o lazer. Mobilidade é diferente de acessibilidade aos meios de transporte. Às mulheres não é negado o direito de ir e vir, como ocorre em algumas sociedades fundamentalistas, mas o direito de mover-se no espaço público livre da violência sexista. Sentir medo ao estar no espaço público é corporificar a violência sexista e reconhecer a segregação como regra de sobrevivência justa. São meninas e adolescentes a caminho da escola, mulheres trabalhadoras ou em momentos de lazer que se identificam com os vagões para as mulheres. São mulheres que voluntariamente optam pela segregação com medo da violência. O vagão para as mulheres deve ser um anúncio público do sexismo, deve nos envergonhar por denunciar a desigualdade e a violência e, o mais importante, deve nos provocar a encontrar alternativas mais eficientes para romper com a violência de gênero.


DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA , DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE , BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS, GÊNERO - O Estado de S.Paulo

sábado, 22 de outubro de 2011

O economicismo como cultura da época (Marco Aurélio Nogueira)

Muito do sucesso teórico do marxismo se deve à tese de que o modo de produção, a economia, determina o modo como se vive e se organiza a vida social. Boa parte da hostilidade contra ele, também.

Seus adversários sempre usaram essa tese para condenar as ideias de Marx, atribuindo a elas, entre outras coisas, uma crônica incapacidade de compreender diversas questões tidas como mais relevantes: a liberdade, a autonomia da política e da cultura, o valor da democracia. Condena-se Marx, também, por seu amor pela revolução e por seu radicalismo, mas a principal frente de combate a ele sempre foi a da denúncia de seu determinismo.

Uma rápida passagem pelo noticiário cotidiano, porém, revela o quanto há de falsidade e hipocrisia nessa denúncia. Tudo passou a ser economia e a ser lido como expressão da economia. As diferentes nuanças da vida social, as aspirações populares, as disputas entre os partidos políticos, o desempenho governamental, tudo se converteu em derivação do econômico. Os mercados tornaram-se donos de nosso destino e modelam nossas instituições, condutas e expectativas existenciais.

Lutas e movimentos da sociedade civil são modulados pela dinâmica, pelas falhas gritantes e pelos malefícios da economia. Greves continuam a ser feitas sem a consideração dos prejuízos que causam aos que dependem dos serviços paralisados. Wall Street é "ocupada" para forçar instituições financeiras a reduzir seus excessos e a assumir a responsabilidade pela crise. Todos nos indignamos diante da voracidade com que o dinheiro invade a política, desvirtua os partidos e corrompe políticos e servidores públicos. Queremos reduzir o "custo Brasil" para aumentar a produtividade e pagar menos impostos. Imploramos por mais desenvolvimento e produção. Olhamos para 2014 e vemos a Copa estritamente pelos cifrões que serão gastos ou arrecadados com ela.

Estamos enredados nas malhas do mercado.

Aliviado de suas generosas dimensões humanistas, separado da dialética que o faz conceber a vida como uma totalidade histórica articulada, dinâmica e contraditória, esvaziado da ênfase no valor do trabalho e na capacidade de autodeterminação dos sujeitos, o marxismo foi assimilado como caricatura. Travestido em seu contrário, vaga pelo mundo capitalista atual. Todos se tornaram inconscientemente "marxistas": passaram a achar que nada mais importa a não ser a voz dos mercados e que tudo o que respira deve ser modelado pelo ritmo da economia. O economicismo tornou-se cultura da época. Temos à disposição teorias econômicas da democracia, do comportamento político, da religiosidade, da cultura e da personalidade. E os Estados parecem não ter outra meta a não ser a conquista do mercado mundial.

Há uma incomensurável distância entre o marxismo de Marx e esse marxismo caricato e inconsciente que trafega por aí, quase como senso comum. A começar da ideia mesma de economia. Marx jamais a reduziu aos mercados ou à produção em sentido estrito. Sua teoria fala em economia política, em relações sociais de produção, e sempre afirma que é preciso ligar e articular a economia com capacidades sociais, instituições políticas, ideias e ideais. Não pensava que tudo derivava da economia, mas sim que a economia determinava em última instância o modo de vida, ou seja, admitia sem dificuldades que o modo de vida também reagia sobre a economia e a determinava. Não imaginava haver uma via de mão única ligando a economia ao resto da vida, mas sim, precisamente, uma interação dialética, em nome da qual seria possível conceber a liberdade e a autonomia dos sujeitos e, assim, pensar em maneiras de fazer a vida ficar melhor e mais humana. Era essa a revolução radical com que ele sonhava, algo bem diferente da irrupção violenta e sanguinária dos trabalhadores contra o capital, que muitos a ele atribuem.

Olhando a realidade atual, nenhuma pessoa sensata pode dizer que Marx não estava certo. Ninguém pode negar que o mundo está torto e fora de controle por excesso de mercados e de economia.

Devidamente expurgado dos fanatismos fundamentalistas e dos excessos doutrinários que o contaminaram, o grandioso legado teórico e político do marxismo ainda é o melhor antídoto contra este rebaixamento geral da vida, contra esta maldição que ameaça até mesmo a busca da felicidade, ao convertê-la no prazer de consumir e de ganhar mais e melhores salários.

Claro, sempre será preciso dar a Marx o que é de Marx, ou seja, reconhecer seus limites e suas falhas, perceber a deformação que sofreram algumas de suas ideias, o mau serviço que prestaram quando foram convertidas em ideologia de Estado ou verdade política. Além disso, o marxismo é mais do que Marx, completou-se, deformou-se e se corrigiu ao longo do tempo, incorporando novas dimensões e novos conceitos. Foi assim que chegou ao século 21.

A crise do marxismo está em boa parte determinada pelo economicismo extremado de várias das suas vertentes, que, paradoxalmente, transbordou no economicismo generalizado de seus adversários e que hoje comanda a vida. Nada indica que seja uma crise terminal. Passa-se o mesmo com o capitalismo, aliás. Sua crise atual tem componentes que a aproximam de uma crise sistêmica, da qual, precisamente por sua abrangência, podem emergir sociedades menos desiguais, menos produtivistas, mais humanas e generosas.

É sinal de bom senso e honestidade reconhecer os méritos e a vitalidade do marxismo. Na presente fase histórica, ele pode ser decisivo para que encontremos uma maneira de nos libertarmos da tirania dos mercados e do econômico. Como Marx diria se estivesse a ver o nosso mundo, é nos momentos mais difíceis que as grandes teorias mostram seu valor e sua utilidade.

Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

O pêndulo, a centralização e a República (Luiz Werneck Vianna)

Seria de supor que algumas correntes liberais brasileiras, ao menos as de "casco duro" - para se utilizar de uma expressão jocosa introduzida pelo ex-presidente Lula em nosso vocabulário político -, manifestassem alguma relação de empatia com a posição firmada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma vez que no cerne da controvérsia sobre que papel deve desempenhar o Conselho Nacional de Justiça no controle do exercício da magistratura está a antinomia centralização/descentralização, que, desde o Império, acompanha a nossa História.

No caso, uma vetusta tradição liberal, cuja mais incisiva formulação se tornou clássica com a publicação de A Província, em 1870, de Tavares Bastos, uma denúncia dos males da centralização administrativa, que ainda ecoa no não menos clássico da nossa bibliografia liberal Os Donos do Poder (1958), de Raimundo Faoro, denúncia que, a partir de outros porta-vozes, vai ressurgir nas lutas contra o autoritarismo político do regime militar e encontrar tradução nas demandas municipalistas dos movimentos políticos e sociais apresentadas ao legislador constituinte de 1988.

A Carta de 1988, redigida num tempo em que ainda se ouviam as vozes de Tancredo Neves e de Ulysses Guimarães - "as pessoas vivem nos municípios e não na União" -, além de fazer girar o pêndulo em favor da descentralização, combinava a democracia representativa com a de participação e abrigava, em nome da justiça social, postulações de direito material, protegidas constitucionalmente por alguns instrumentos criados com essa finalidade. A igualdade, pela primeira vez em nossa História, encontrava estatuto próprio como um ideal coletivo a ser perseguido por políticas de Estado.

A igualdade tem suas urgências e os recursos para atendê-las eram e são escassos. Nada de surpreendente, portanto, que os tempos subsequentes à promulgação da Carta de 88, que nos trouxe de volta a descentralização, depois de décadas de vigência do princípio que lhe era oposto, comecem a assistir, agora num cenário de democracia política institucionalizada, ao movimento do pêndulo em direção à centralização administrativa, diante de uma sociedade cada vez mais enredada nas agências estatais e dependente delas.

Tais efeitos perversos da afirmação da agenda da igualdade não são incomuns, constatados por dois dos maiores fundadores da teoria social moderna, Tocqueville e Marx, que, malgrado a radical diferença existente entre eles, convergiram no diagnóstico - o primeiro, em O Antigo Regime e a Revolução, o segundo, em O 18 Brumário de Luis Bonaparte - de que a asfixiante centralização que tomou conta da sociedade francesa após a Revolução de 1789 - a revolução da igualdade - era um dos seus frutos negativos. Para ambos, porém, a centralização não é filha, em linha direta, da igualdade, mas da falta de República e da livre vida associativa que lhe é própria. Sem ela as postulações por igualdade são interpretadas pelo Estado que as concede à sua discrição e a partir de um cálculo em que suas conveniências são levadas em alta conta, entre as quais a de sua política de legitimação.

A revolução democrática brasileira, que tomou forma na Carta de 88, resultou da articulação de uma ampla coalizão política, que, em suas lutas por liberdades civis e públicas, abriu passagem para a emergência de uma vigorosa movimentação dos setores subalternos em torno dos seus interesses, logo que começaram a se emancipar dos controles coercitivos a que estavam sujeitos. Tal movimentação persistiu ao longo do processo de transição para a democracia e da sua subsequente institucionalização, mantendo a esfera pública sob pressão, inclusive em suas manifestações eleitorais, no sentido de reforçar as postulações por direito material que procediam de várias regiões da vida social.

Com a escora dos fundamentos constitucionais igualitários, essas pressões se fizeram irresistíveis. Diante da escassez de recursos da Federação e dos imperativos de urgência reclamados pela sociedade, mesmo que na ausência de um plano definido, inicia-se, então, um novo giro em favor das tendências centralizadoras. Seu carro-chefe será o das agências públicas de âmbito nacional, como o Sistema Único de Saúde (SUS), decididamente uma política igualitária de largo alcance, que se torna um paradigma dominante em termos de outras políticas sociais, como no caso das políticas de educação e de segurança, para não falar das políticas assistenciais do tipo do programa Bolsa-Família, todas com baixa ou nenhuma participação ativa da sociedade.

De modo quase invisível à percepção imediata, tem-se instalado uma estatolatria doce, justificada e legitimada por sua destinação social. Nessa batida, sem sequer se mencionarem os graves problemas tributários, a Federação cede espaços à União e a sociedade abdica de sua autonomia em favor do Estado. A tendência à centralização torna-se universal e não poupa nenhuma região da vida social: há problemas de segurança, chamem-se as Forças Armadas, embora o Haiti não seja aqui; há corrupção no Judiciário, apele-se ao Conselho Nacional de Justiça, passando por cima das Corregedorias dos tribunais, tidas de antemão como suspicazes, e sem que sequer se esbocem tentativas de mobilização das corporações profissionais dos operadores do Direito e de setores da sociedade a fim de exigirem exemplar correição.

A República democrática tem seus custos sociais e políticos e um dos mais elementares deles é o de criar e preservar as condições para a auto-organização do social, com a sociedade e suas instituições empenhadas na solução dos seus problemas e desafios, forma com que nem sempre se chega mais rapidamente ao objetivo, mas, como o demonstra sobejamente a nossa já longa experiência republicana, é muito melhor e mais segura.

Professor-pesquisador da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO