O escritor Josué Montello, no romance Largo do Desterro, faz delicioso relato sobre o dia do Entrudo em São Luís do Maranhão, no final do século 19, dia em que comemorava seu centenário o Major Taborda. Ao tomar a carruagem, em companhia da filha, para ir à igreja assistir à missa comemorativa de seu aniversário, o major já encontra o cocheiro, Chico Bento, embriagado. Descreve, então, os percalços do caminho: "ao comprido da Rua da Palma os limões-de-cheiro e as cabacinhas voavam sobre a carruagem... na volta da Rua Santana, um balde de água apanhou em cheio o Chico Bento... na direção do Largo do Quartel e da Rua dos Remédios crescia o ruído dos bumbos e das caixas de rufos, acompanhando a cantoria das caninhas verdes, dos baralhos e dos blocos de mascarados. O major olhava em frente, trombudo... a filha ponderou: Não adianta o senhor se zangar. Hoje é carnaval... Um frade gordo, imensamente barrigudo, dançava à frente dos cavalos, requebrando-se a estalar os dedos, a sacudir para os lados as ancas avantajadas, cantando..."
O Entrudo foi a brincadeira pela qual pessoas dos mais variados extratos, na terça-feira de carnaval, jogavam líquidos e farinha pelas janelas das casas ou em provocações durante desfile pelas ruas, com muita alegria e batuque. Espalhavam-se as escaramuças pelas cidades, em confrontos campais por vezes grosseiros, mas sempre em busca de divertimento.
Ainda no século 19 começaram os desfiles de mascarados, os cordões com fantasiados os mais diferentes a dançar em fila reunindo diabos, anjos, príncipes, palhaços, bruxas, mendigos esfarrapados ao som de tambores e em obediência a um mestre cujo comando se dava por meio de apitos. No Rio de Janeiro apareceram os cordões dos bairros, como foi exemplo o cordão Destemidos do Catete ou o Triunfo da Glória.
Mais tarde, na primeira década do século 20, com o surgimento do automóvel, aparece o corso, formado por veículos abertos a desfilar, com os foliões a provocar os demais, lançando confetes, serpentinas ou flores a exemplo do carnaval de Nice, que perdurou até os anos 50. Cheguei a participar de corso nas Avenidas Nove de Julho e Paulista, onde imperava a alegria e se misturavam confete e lança-perfume. Era divertido.
Desde o final do século 19, no entanto, organizaram-se os primeiros bailes de carnaval. Lembra Helenise Monteiro Guimarães, em artigo na coletânea Carnaval em Múltiplos Planos, o baile do Imperial Theatro D. Pedro II em 1879, no Rio de Janeiro. Ganham fama, na década de 1920 e 1930, os bailes do Teatro Municipal do Rio e do Hotel Copacabana Palace, com fulgurantes concursos de fantasia, que consagraram o museólogo Clovis Bornay.
Malgrado houvesse uma divisão das formas de divertimento conforme a classe social, com os corsos e bailes mais frequentados pelas categorias ricas da sociedade, enquanto nos cordões de rua predominavam as pessoas pobres e a pequena burguesia, o carnaval, como ressalta Roberto DaMatta, era um tempo em que se reduziam as distâncias sociais, a se poder visualizar por trás de um mendigo um nobre; por trás de um príncipe um pobre homem; por trás de uma estrela de cinema uma pobre mulher.
Como escreveu Jorge Amado, em artigo no livro de fotografias de Claudio Edinger, havia uma intensa participação popular, enquanto mais recentemente a população passou de partícipe a mera testemunha. Os desfiles se tornaram apresentações gigantescas a ser vistas pelo povo, nos sambódromos ou na televisão. A explosão de alegria popular desapareceu, as brincadeiras cessaram para surgir apenas o espetáculo.
O carnaval significava, também, um momento de expansão da permissividade, em que o rigor das proibições e dos interditos, especialmente no campo sexual, se flexibilizava às vésperas da entrada da Quaresma, época de preparo para a ressurreição do Senhor. A Quaresma, a começar na quarta-feira de cinzas, significava abstinência, penitência e caridade, mês e meio durante o qual se deveria limitar a fruição dos prazeres da carne, seja como alimento seja como atividade sexual.
O âmbito do proibido se reduzia. O correto a ser seguido pelas pessoas em geral ganhava elasticidade. Sair à rua para jogar água no vizinho, vestir-se o homem de mulher grávida, embebedar-se, saírem as mulheres semidespidas, provocantes nos bailes e nos desfiles, beijarem-se os casais em plena rua, tomar banho de mar ou de chafariz fantasiados eram permissividades acolhidas naturalmente nos dias de carnaval.
Essa catarse às vésperas da Quaresma formava um contraponto curioso entre a flexibilização do proibido e o rigor das contenções a serem respeitadas no mês e meio que se seguiria à "terça-feira gorda". Esse contraste não deixou de existir com a mudança dos costumes no plano moral, com redução da repressão sexual e a autonomia das mulheres diante do machismo que permitia às mulheres apenas uma sexualidade contida, restrita ao casamento e de forma a não se escandalizar o "anjo da guarda".
A liberdade de se unirem homem e mulher sem ser pelo casamento, o reconhecimento de dignidade dos divorciados, a queda do tabu da virgindade não desfaziam a importância do pudor, da contenção pública dos comportamentos, da preservação da vida privada, do respeito à própria sexualidade a não ser vivida como libertinagem. O carnaval perdurava a partir dos anos 70 como momento de maior permissividade.
Mas hoje a exposição pública a que as pessoas se permitem pela internet e pela televisão, de que é exemplo o BBB, e a vivência sem limites da sexualidade retiram do carnaval o caráter de expansão sadia da espontaneidade. Quando tudo é permitido, não há razão para flexibilizar o proibido. Como era bom o carnaval dos corsos, e não do espetáculo. Tinha, de outra parte, sentido dizer: "não se zangue, é carnaval", o que justificava a permissividade ampliada por uns poucos dias.
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
Nenhum comentário:
Postar um comentário