quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Por uma nova oposição (Hubert Alqueres)

Mais do que nunca o Brasil vai precisar de uma oposição capaz de cumprir a missão delegada pelas urnas de fiscalizar o governo e cobrar a execução do seu programa e promessas eleitorais. Essa responsabilidade aumenta diante das incógnitas sobre como se comportará o presidente eleito, que emite sinais em direções diferentes.
De um lado, Jair Bolsonaro assume compromissos de seguir rigidamente a Constituição, de respeitar e defender as liberdades, o que é altamente positivo. De outro, incita e mantém o anátema, ameaçando desafetos e de fazer represálias a órgãos de imprensa, o que é extremamente preocupante.
Não se discute, portanto, a importância da existência de uma oposição forte e atuante. Isto é da democracia. O que está em debate é que tipo de oposição o Brasil precisa para superar a radicalização e polarização dos últimos quatros anos e, assim, poder equacionar seus problemas em um ambiente democrático.
As urnas fizeram da oposição um território sem dono. No novo quadro, é impreciso falar na oposição como um corpo único. O mais correto é apontar oposições, pois existem projetos distintos em campo.
O discurso de Fernando Haddad ao final da apuração dos votos foi decepcionante, mais um vexame numa campanha lamentável, e deixou claro o caminho a ser seguido pelo PT: hegemonizar a oposição com a narrativa de que o país marcha para o fascismo e que para barrá-lo impõe-se uma “frente antifascista”, sob o seu tacão, claro. Essa falácia subestima a resiliência de nossas instituições, entre as quais as Forças Armadas, e agride os quase 60 milhões de eleitores que elegeram o novo presidente.
A chantagem da “frente antifascista” não funcionou no segundo turno e tem bem menos apelo agora. Não gratuitamente Ciro Gomes rechaçou de pronto a proposta, com o seu grito de independência: “PT, nunca mais!”
O Partido dos Trabalhadores propõe uma oposição antiga, analógica, cujas concepções foram derrotadas pelas urnas exatamente por seu arcaísmo. Mantém inalterado seu discurso mistificador do golpe contra Dilma Rousseff, da prisão “injusta” de Lula, do “nós contra eles”, que o Brasil tanto cansou e rechaçou nas urnas. Enfim, quer a oposição prisioneira de um presidiário.
O projeto petista continua com a cabeça nos anos 50, no “nacional-desenvolvimentismo” e nos tempos da guerra-fria, quando os Estados Unidos eram vistos como o grande polvo imperialista a explorar os povos oprimidos.
Exatamente por isto, seus teóricos não tem uma explicação para uma constatação extremamente incômoda. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a direita nacional-populista venceu com os votos das áreas mais atrasadas e dos grotões. No Brasil aconteceu exatamente o contrário: a direita venceu nos polos dinâmicos do capitalismo brasileiro (urbano e agrário) e foi a esquerda que saiu vitoriosa no eixo inverso. O que há de progressista nisso?
O Brasil precisa de outro tipo de oposição.
Uma oposição moderna, digital, antenada com os resultados das urnas, capaz de dar respostas às demandas do país. As urnas abriram espaço para uma oposição construtiva, que morda e assopre, apoie e critique, para usar a definição do cientista político Marco Aurélio Nogueira.
As urnas também abriram espaço para uma oposição que se contraponha ao hegemonismo do PT, pautada na defesa dos valores democráticos liberais na política, na economia e nos costumes, na intransigente defesa do Estado laico, no enfrentamento das desigualdades, e de um modelo econômico e ambientalmente sustentável.
Nesse barco cabe o pessoal da socialdemocracia, ambientalistas, liberais, democratas de diversas colorações, socialistas, movimentos cívicos e identitários, coletivos, pessoas sem partido ou definições ideológicas, mas identificadas com a democracia.
Na essência, trata-se de se constituir um novo centro político, cujo grande desafio hoje é superar sua dispersão em várias siglas partidárias, quem sabe por meio de uma nova formação política.

Depois do segundo turno: a terceira margem (Giuseppe Cocco)

"O primeiro desafio, portanto, para analisar o fenômeno denominado 'nova direita' é inseri-lo nessa série real de acontecimentos, e não o tratar como uma simples entidade abstrata que emergiria do conservadorismo profundo existente no Brasil ou de uma manipulação em massa organizada por empresários mal-intencionados"
O artigo é de Giuseppe Cocco, professor titular da UFRJ, doutor pela Sorbonne (Paris I), autor de Glob (AL) com Antonio Negri (2005), MundoBraz (2009) e KorpoBraz (2015), entre outros livros, participa da rede Universidade Nômade.
Eis o artigo.
Apenas constatar o tamanho do desastre é constatar o óbvio
É limitar-se ao desalento. Comecemos então pelo fim. A organização de um campo de resistência democrática tem por condição número um reconhecer não somente as ameaças, como também a ambivalência do resultado eleitoral. Particularmente, é preciso apreender a recusa em conferir uma quinta vitória ao PT e a Lula. Esta recusa nos indica que o desafio é estar no campo de lutas democráticas para além do petismo. A incapacidade de afirmar esse campo de lutas dissociado do PT e capaz de emergir como alternativa democrática à candidatura de Bolsonaro foi o que levou o antipetismo a reagrupar-se à direita do espectro político-partidário. Uma direita de novo tipo, permeada de elementos de extrema-direita, que fermentou ao longo dos últimos quatro anos.
O sucesso do antipetismo não é somente eleitoral. A heterogeneidade do antipetismo encontrou na figura de Jair Bolsonaro a representação de um movimento realmente capaz de derrotar o PT e com enorme força na sociedade brasileira. Diante dessa constatação, não adianta condenar esse movimento, esperando que ele se esfume pela força do argumento racional e moral. Em vez disso, precisamos entender como pôde se tornar majoritário nos últimos anos, como ele funciona, o que lhe dá vitalidade, e então como lutar para desviá-lo de suas características autoritárias.
Temos, assim, duas tarefas complementares: 1. Apreender as resistências difusas, evitando as tentativas de mistificá-las através de caricaturas pseudo-heróicas inseridas no lugar das lutas. 2. Realizar uma reflexão de fôlego sobre a derrota de praticamente todas as tentativas de construir uma terceira via potente. A resistência que nos falta precisa estar em outro lugar, numa terceira margem que só as lutas e as políticas por um novo marco de proteção social podem constituir.
Depois de mim, o dilúvio
Entrever e criar possibilidades de resistência passa pela análise crítica dos últimos anos. Foi o sucesso da estratégia petista nesse período que, paradoxalmente, nos levou ao abismo. O nefasto resultado eleitoral é o desfecho do turno que começou em 2014, depois da pacificação do levante de junho de 2013. Ao longo dos últimos 5 anos, grande parte do campo da esquerda negou-se a fazer a crítica ao PT e ficou no conforto aparente das soluções que o Lulismo lhe oferecia. Lula e o PT foram assim montando uma política de chantagem sistemática. Defender o PT deixou de ser uma opção, e sim uma obrigação política, moral e civilizatória. Essa estratégia é organizada a partir de um duplo dispositivo: por um lado, toda força alternativa ao lulismo é inviabilizada; por outro, o pior é produzido incessantemente, numa piora interminável. Inicialmente, a operação foi pacificar o ativismo que ocupou as brechas do levante de junho de 2013. Se o verde amarelo passou a ser obrigatório na “Copa das Copas” (julho de 2014), a partir do ano seguinte se tornaria imoral: o estigma de “coxinha” colou na pele de todo contestador do “bom governo do PT”.
E graças ao marketing baseado em fake news de outubro de 2014, destruiu-se a candidatura de Marina Silva, por ela, eventualmente, representar uma alternativa, impondo Aécio Neves como o candidato ideal ao qual se opor. Em seguida, transformou-se o teatro da negociata do impeachment em “Golpe”. Depois de diluir a mobilização crítica em um oportuno e instrumental frentismo de refundação (Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, sempre com Lula à frente) e acompanhar com condescendência a emergência de candidaturas que deveriam “unificar” a esquerda, Lula e o PT passaram a rasteira na única delas que tinha que tinha chances de ter algum peso eleitoral: Ciro Gomes.
Nas eleições de 2014 era compulsório votar, mesmo que sob a boa consciência do voto crítico, contra a “volta do neoliberalismo”. Durante o impeachment de 2016, a mobilização passou a ser contra nada menos que um golpe. Em 2018, o voto obrigatório no PT virou um voto da “civilização contra a barbárie“. Esse mecanismo irresponsável permitiu que a urgente crítica ao PT fosse sempre adiada pelas “urgências” que o próprio PT produziu em série. Nunca é “momento de criticar o PT”.
Até que o lobo chegou
De um estelionato a outro, a esquerda foi relativizando a corrupção, operando com cinismo as fake news e tratando como normal se aliar a candidatos “golpistas” (como Eunício Oliveira e Renan Calheiros) para conquistar votos no sertão nordestino, e assim “levar” a quinta eleição nacional seguida (sem sequer uma aliança ou coalizão). Desta vez, o Lulismo viu-se diante do reflexo de si mesmo. Não a transparência desarmada de Marina Silva, e nem a malandragem de Aécio Neves, e sim um movimento real, capaz de dar voz à recusa popular ao PT e de mobilizar eficazmente o mesmo volume de deturpações: o feitiço virou contra o feiticeiro. Para não ser responsabilizado pelos erros e por seus crimes, o PT continuamente denunciava a chegada do lobo. Finalmente, o Lobo apareceu e a maioria escolheu o próprio lobo: Haddad e o PT sequer conseguiram aparecer para a maioria dos eleitores como uma verdadeira alternativa diante de um adversário assustador. A novidade que parecia ter sido exorcizada em 2013, ressurgiu e se impôs. No entanto, não é o PT que corre o risco de ser devorado pelo Lobo, mas a multidão dos pobres e minorias, a começar pelo Nordeste que se manteve fiel ao PT.
Do mundo das lutas para a luta de mundos: as guerras culturais
A auto-vitimização que permite ao PT “julgar os outros e não ser julgado” tem outra consequência: a mobilização em defesa da “Vítima” feita por um grande número de intelectuais progressistas (professores, agentes culturais, artistas), através de uma perspectiva distorcida: não são mais as lutas para entender o mundo, mas a perspectiva do PT que define as lutas. Essa inversão falsifica a materialidade das lutas em guerras culturais que a nova extrema direita mostrou saber conduzir melhor do que ninguém. Desta perspectiva, a introdução da política de cotas para negros e pobres nas universidades públicas deixou de ser o produto do movimento autônomo dos pré-vestibulares e passou a ser uma gentil concessão do lulismo; o Bolsa Família deixou de ser visto como embrião de reconhecimento da potência produtiva e subjetiva da multidão dos pobres, e passou a ser uma dívida infinita que os pobres teriam com o paternalismo de Lula; o financiamento dos pontos de cultura tampouco deixou de ser apreendido como uma ruptura do clientelismo que permite reconhecer a autonomia criativa difusa no território e passou a ser um subsídio petista ao qual é preciso reiterar lealdade. Na esteira dessas inversões, chegamos ao paroxismo de mobilizar questões de garantismo jurídico e do abolicionismo penal para criticar as operações de repressão à corrupção e para defender os dirigentes de um conglomerado partidário que durante 13 anos deixou multiplicar, de maneira exponencial, a população carcerária em condições inaceitáveis.
O resultado é evidente: ao passo que a hegemonia da esquerda esvaziava a autonomia dos movimentos o campo das lutas foi paulatinamente sendo capturado pela direita. Essa tendência foi evidenciada pela greve autônoma dos caminhoneiros em maio de 2018, já denotando o descolamento total das redes capilarizadas de politização em relação aos aparelhos de esquerda. Pior, as lutas dos movimentos negro, indígena, LGBT passaram a ser qualificadas pelas normas abstratas que definem esses direitos e não o contrário; isto é, passaram a ser definidas antes pelo guarda-chuva partidário do que pelo protagonismo social que elas exprimem e pela capacidade de auto-organização de que são capazes.
A onda global e o Brasil
A vitória de Jair Bolsonaro não significa que todos os votos sejam de extrema direita. O pior dos erros seria qualificar todos os seus eleitores de fascistas. Precisamos entender com cuidados suas componentes. Esse trabalho será fundamental nas lutas por vir em defesa da democracia. A nova direita, no nível global, aparece hoje como um movimento antiglobalização que promete proteção por meio da construção de novos muros e se organiza em torno da produção de bodes expiatórios: os imigrantes, as diferenças e até a China. Para isso, a nova direita usa as contradições e limites da globalização (como a perda de estatuto das classes médias e dos trabalhadores industriais) por meio de uma polarização sistemática e criação de falsos conflitos. As guerras culturais são, pois, dispositivos fundamentais de mobilização social e eleitoral da nova direita. Quando olhamos para a situação no Brasil, podemos constatar elementos comuns e ao mesmo tempo algumas especificidades. Em comum, temos a prática das guerras culturais e as propostas em termos de segurança. Ao mesmo tempo, a polarização aqui não precisou ser inventada pela nova direita, mas foi fornecida de graça pela lógica irresponsável e demagógica da esquerda em defender o indefensável: sua corrupção generalizada, por um lado, e a gravíssima crise econômica, por outro.
O primeiro desafio, portanto, para analisar o fenômeno denominado “nova direita” é inseri-lo nessa série real de acontecimentos, e não o tratar como uma simples entidade abstrata que emergiria do conservadorismo profundo existente no Brasil ou de uma manipulação em massa organizada por empresários mal-intencionados. Esse fenômeno também deve ser explicado por uma mútua implicação destrutiva advinda da polarização. Enquanto a esquerda passou a se caracterizar cada vez mais por seus símbolos e bandeiras (a trincheira vermelha), grupos conservadores como o MBL passaram a pautar uma cruzada moral que identificava na própria esquerda os elementos de degeneração social, familiar, cultural, etc. Um dos resultados danosos dessa operação, alimentada pelos dois lados foi a identificação de todas as lutas minoritárias com o desgaste profundo do lulismo, armadilha na qual estamos presos ainda hoje. Outra dimensão foi o crescimento de tendências militaristas e autoritárias que passaram a representar esse ideal de moralização do Brasil a partir da erradicação de tudo aquilo que se identifica com a esquerda, incluindo os modos de vida minoritários.
O fenômeno Bolsonaro, inexpressivo em 2015, pode ser identificado, no entanto, a partir de quatro vetores que surgiram nesse ciclo: 1. à tendência do impeachment de se apresentar como uma grande estratégia de “salvação” de todas as elites políticas e partidárias, com respaldo de uma parte do STF; 2. à busca de uma nova ordem e um novo pacto diante do aprofundamento das dimensões econômico-sociais da crise, mesmo por meio da constituição de uma nova autoridade feita “por cima”; 3. à resposta e veto às campanhas exasperadas e falsas protagonizadas pelo lulismo em sua tentativa de sobrevivência, e ao cinismo constitutivo do governo Temer e seus aliados; 4. ao sucesso do front moralizador que identificou as lutas das minorias à esquerda. Precisamos avançar nessas reflexões e pretendemos apresentar logo alguns desdobramentos de análise.
Resistências
Retomando o início do texto, afirmamos que a constituição de um campo de resistência democrática carece, em primeiro lugar, de perscrutar, participar e investir em lutas que incluem também a recusa à hegemonia do PT e que possam desconstruir a falsa polarização. Assim, trata-se não apenas de aceitar, mas de acelerar o processo de esvaziamento dos signos e tendências gregárias e autocomplacentes da esquerda, para mergulhar nas cartografias das lutas, na atenção aos desejos que compõem as nascentes subjetivas deste momento.

Como 2018 mudou a forma de fazer política no Brasil? (Jean-Philip Struck)

A campanha de Jair Bolsonaro (PSL) soube usar como nenhuma outra o potencial das redes sociais. Sem dinheiro e estrutura partidária, ele já vinha há pelo menos três anos direcionando esforços para aumentar a sua popularidade nas redes.
A iniciativa ganhou mais robustez a partir da greve dos caminhoneiros, em maio. E com o aumento da presença de Bolsonaro nas redes, também cresceu a disseminação de notícias falsas. Ao longo de 70 dias de campanha, três agências de checagem apontaram que, dos 123 boatos analisados, 104 prejudicavam o petista Fernando Haddad (PT) - e consequentemente beneficiavam Bolsonaro.
Até mesmo a família do presidenciável participou da divulgação de mentiras. Dois filhos do ex-capitão chegaram a divulgar notícias falsas atribuindo a elaboração de um "kit gay" por parte de Haddad à época em que ele era ministro da Educação.
Uma pesquisa Datafolha apontou que quase metade dos eleitores que usam o WhatsApp diz acreditar nas notícias que recebem pelo aplicativo. Para 47%, as informações que chegam são confiáveis.
O problema é que pesquisas apontam que boa parte desse conteúdo não deveria ser digno de confiança. Um levantamento realizado entre 16 de setembro e 7 de outubro que monitorou 347 grupos de WhatsApp de cunho político mostrou que apenas 8% das imagens poderiam ser classificadas como verdadeiras.
O próprio Judiciário admitiu que não estava preparado para lidar com tal volume de fake news. A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rosa Weber, chegou a afirmar que desejava "imensamente que houvesse uma solução pronta e eficaz" para combater os boatos. "Nós ainda não descobrimos o milagre."
Intimidação à imprensa e violência
Casos de violência em eleições não são uma novidade no Brasil, mas este pleito teve casos barulhentos de agressões e até de tentativa de assassinato. Em setembro, Jair Bolsonaro (PSL) foi vítima de um ataque a faca por um homem que apresentava problemas mentais. Em março, uma caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então pré-candidato do PT, foi alvo de tiros quando passava pelo Paraná.
Os casos de violência também foram notáveis entre o eleitorado. Dezenas de casos de agressão por motivações políticas foram registrados pelo país - muitos deles partiram de simpatizantes de Bolsonaro. Na Bahia, um homem foi assassinado após ter declarado voto em Haddad. O próprio Bolsonaro se eximiu inicialmente de condenar as ações.
Ele disse que lamentava a violência, mas que não tinha como controlar seus apoiadores. Os episódios chamaram a atenção das Nações Unidas, que manifestaram preocupação e apelaram para que os líderes políticos condenassem qualquer forma de violência no pleito.
Jornalistas também foram alvo de agressões físicas e linchamentos virtuais ao longo da campanha. Segundo a a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), ao longo do ano foram pelo menos 137 casos de agressão em contextos partidários ou políticos.
Destes, 60 envolveram violência física. O restante envolveu casos de assédio pela internet, como a divulgação de fotos e dados de profissionais e disseminação de boatos envolvendo o nome deles, estimulando ataques em massa nas redes.
Candidaturas espartanas
Com a proibição de doações por parte de empresas em 2015, a expectativa é que o novo fundo público de campanhas tivesse papel decisivo no pleito, beneficiando grandes partidos e políticos com mandato. No entanto, o candidato que venceu a corrida presidencial declarou oficialmente ter gasto apenas 2,5 milhões de reais. Um contraste com Dilma Rousseff, que declarou gastos de mais de 300 milhões em 2014.
Jair Bolsonaro também ficou bem atrás nos gastos em relação ao seu adversário no segundo turno, Fernando Haddad (PT) e os principais derrotados na primeira rodada. O petista gastou - combinado com a candidatura barrada do ex-presidente Lula - 53,3 milhões de reais.
O mesmo ocorreu com várias candidaturas ao Congresso. Recursos robustos não garantiram a eleição de diversos candidatos, enquanto nanicos com pouca estrutura e verba acabaram recebendo votações expressivas. Ao contrário de 2014, a maior parte dos partidos com mais recursos também não garantiram bancadas maiores na Câmara. Essa nova tendência atingiu em cheio o PP, MDB, PSDB e PR.
O PSL, que elegeu 52 deputados, teve a eleição "mais barata" para a eleger uma bancada expressiva na Câmara. Foram gastos pouco mais de 7 milhões de reais, ou 142 mil reais por eleito. Já o PP, que elegeu 37 deputados, gastou 64,5 milhões, ou 1,7 milhão de reais por eleito. O deputado federal mais votado de 2018, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), arrecadou cerca de 200 mil reais. Em 2014, o deputado mais votado havia gasto 1,9 milhão de reais.
Padrões similares também ocorreram no Senado. Em Minas Gerais, a campanha fracassada ao Senado da ex-presidente Dilma Rousseff arrecadou 4,2 milhões de reais. Foi praticamente o mesmo valor arrecadado pelos dois candidatos combinados que foram eleitos.
TV perde importância
Em julho, o presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB) formou uma aliança com dez partidos. A coligação acumulou 43% de tempo da propaganda na TV no primeiro turno. Logo atrás de Alckmin, o PT acumulou 19% do tempo total no primeiro turno. Henrique Meirelles, do MDB, ficou logo atrás, com 16%.
Desde que foi criado nos anos 1960, o horário eleitoral na TV e no rádio foi encarado por décadas como uma ferramenta fundamental para uma campanha bem-sucedida. Os partidos explicitavam isso direcionando boa parte dos seus recursos com propaganda televisiva. Em 2014, a campanha de Dilma Rousseff direcionou cerca de 80 milhões de reais para a produção de propagandas na TV e no rádio.
No entanto, em 2018, dois candidatos que direcionaram boa parte dos seus recursos para a TV obtiveram resultados pífios no primeiro turno. Alckmin, dono do maior latifúndio televiso, obteve menos de 5% dos votos. Meirelles, 1%. A TV ajudou Fernando Haddad a se tornar mais conhecido e a colar sua imagem em Lula, mas ao final do primeiro turno, o petista ficou atrás de Jair Bolsonaro (PSL), que contava com apenas oito segundos de TV.
Alckmin, por exemplo, somou no primeiro turno seis horas de exposição em cada um dos canais abertos. Não houve efeitos sobre suas intenções. Já Bolsonaro, que acumulou meros 10 minutos, chegou a saltar mais de 10% entre o início e o fim do horário eleitoral no primeiro turno.
No início de outubro, pesquisa Datafolha apontou que o horário eleitoral na TV e no rádio foi apontado como "muito importante" por 33% dos eleitores. Já 40% deles afirmaram que ele não tem nenhuma importância. Foi o menor percentual em uma lista que incluiu itens como "conversa com familiares e amigos" e as "notícias na TV, no rádio e nas redes sociais".
Uma eleição sem Lula
Desde a volta das eleições diretas em 1989, a influência e o carisma de Lula fizeram parte do cotidiano das eleições nacionais. Ele concorreu diretamente em cinco pleitos. Em dois, teve papel como "grande eleitor" emprestando seu apoio e participando ativamente da campanha do candidato presidencial do PT da vez. Em 2018, no entanto, pela primeira vez Lula não participou diretamente de uma campanha presidencial. Em abril, foi preso.
Cinco meses depois, teve a candidatura à Presidência barrada pela Justiça Eleitoral. Na prisão, se viu impedido de tomar parte em atos de campanha do seu substituto e apadrinhado, Fernando Haddad. Seu papel acabou sendo nos bastidores, longe dos palanques. Lula também não conseguiu emprestar sua imagem a outros candidatos petistas que concorreram ao Congresso e aos governos estaduais.
Sem a presença da sua principal figura e acossado pelo antipetismo de parte do eleitorado, o PT encolheu na Câmara a níveis semelhantes ao que tinha em 1995. No primeiro turno das eleições presidenciais, Haddad ainda teve o pior desempenho de um candidato petista desde 1998. A sigla ainda encolheu no Senado e nas Assembleias estaduais.
Uma nova força nacional
Impulsionado pelo fenômeno Bolsonaro, o PSL, sigla nanica que o candidato se filiou em março, se tornou a segunda maior força na Câmara Federal, com 52 deputados, e elegeu quatro senadores. Antes do pleito, não contava com nenhum senador e tinha eleito apenas um deputado em 2014. O crescimento espantoso da sigla mudou drasticamente a correlação de forças na Câmara. O PSL avançou, sobretudo, sobre o espaço do MDB e do PSDB, siglas que por décadas foram influenciaram decisivamente as pautas do Congresso.
Com essa nova dimensão, o PSL vai se tornar a partir de 2019 uma das siglas mais ricas do país. Vai contar com a maior fatia do fundo partidário e a segunda maior porcentagem do fundo público de campanhas, além do segundo maior tempo de propaganda na TV.
Deixando a condição de nanico, o partido deve chegar com força nas eleições municipais de 2020. Em 2016, o partido elegeu apenas 30 prefeitos pelo país. Levando em conta a divisão do fundo partidário em 2017, o PSL deve passar a receber no mínimo 72 milhões de reais por ano. Em 2017, a parcela do partido mal passou de 6 milhões de reais.
Esse novo quadro ainda pode ter o efeito de atrair para o PSL deputados eleitos por nove siglas menores que não ultrapassaram a nova cláusula de barreira e que ficarão sem acesso ao fundo partidário a partir do ano que vem. Se isso se confirmar, a bancada bolsonarista têm chances de ultrapassar os petistas como maior grupo da Casa em 2019.
Derrota de figurões
A onda de renovação que varreu o Congresso no primeiro turno também atingiu em cheio velhos caciques e figuras conhecidas da política nacional. Entre eles estão nomes do PSDB, PT, MDB e PR.
No MDB, até mesmo o presidente da sigla, Romero Jucá (RR), que atuou como líder dos governos FHC, Lula, Dilma e Temer, perdeu sua vaga de senador. O mesmo ocorreu com o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) e os senadores Edison Lobão (MDB-MA), Roberto Requião (MDB-PR), Garibaldi Filho (MDB-RN) e Valdir Raupp (MDB-RO), figuras que por décadas tiveram posição de destaque na casa.
Entre os petistas, a lista de derrotados inclui os senadores Jorge Viana (PT-AC), Lindberg Farias (PT-RJ) e outros nomes que pareciam apostas seguras para conquistar uma cadeira, como Eduardo Suplicy (SP) e a ex-presidente Dilma Rousseff (MG).
No PSDB, os derrotados incluem os senadores Cássio Cunha Lima (PB) e Paulo Bauer (SC), além dos ex-governadores Beto Richa (PSDB-RJ) e Marconi Perillo (PSDB-GO), que se lançaram para vagas na Casa. Outros derrotados incluem a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e Cristovam Buarque (PPS-DF).
Vários clãs familiares também acumularam derrotas. Roseana Sarney (MDB) fracassou em sua tentativa de se eleger mais uma vez para o governo do Maranhão. Seu irmão, o deputado Sarney Filho, que está no Congresso desde os anos 1980, perdeu uma disputa para o Senado.
No Rio Grande do Norte, pela primeira vez desde os anos 1970, o núcleo central das famílias Alves e Maia ficaram sem representantes no Senado. No Rio de Janeiro, as famílias Cabral e Picciani também viram representantes fracassarem nas urnas.
Derrocada do PSDB e do MDB
Após 24 anos sem lançar à Presidência um candidato próprio, o MDB resolveu apresentar neste pleito o ex-ministro Henrique Meirelles (MDB). Já o PSDB lançou Geraldo Alckmin, veterano da disputa presidencial de 2006. Filiados a partidos que foram atingidos em cheio pela Lava Jato e associados com o impopular Temer, os dois tiveram desempenho pífio.
Meirelles obteve 1,2%. Atropelado pela candidatura do direitista Jair Bolsonaro (PSL), Alckmin conseguiu menos de 5% dos votos, de longe o pior desempenho do tucanos desde 1989, quando disputaram sua primeira eleição presidencial.
Para piorar, o mau desempenho dos dois candidatos frente a Bolsonaro se refletiu no Congresso. Em relação à eleição de 2014, o MDB encolheu de 66 para 34 cadeiras na Câmara, recuo de 48%. No Senado, também acumulou uma série de derrotas e vai começar 2019 com 12 senadores, ainda a maior bancada da Casa, mas com seis membros a menos do que a atual.
Nunca o MDB foi tão pequeno em ambas as Casas do Congresso desde os anos 1980. Em dez estados, não elegeu sequer um deputado federal. Uma marca inédita. Nas duas últimas eleições, a sigla sempre conseguiu eleger no mínimo um representante por Estado. Nos pleitos anteriores a 2010, o número de estados sem um deputado federal emedista nunca passou de dois.
Já o PSDB encolheu de 54 para 29 deputados federais em relação ao pleito de 2014 (-46%). Passou de terceira maior bancada para a nona. Ficando atrás do PSD, PR, PSB e PRB (partido ligado à Igreja Universal). Nem mesmo em 1990, dois anos após a sua criação, o PSDB havia conseguido eleger tão poucos deputados. No Senado, mais encolhimento. A sigla deve começar a próxima legislatura com nove senadores, três a menos do que hoje.
(*) Deutsche Welle, 30-10-2018.

A maior vitória da direita na história política brasileira (Roberto Dutra/entrevista)

Ao analisar o resultado das eleições presidenciais, o sociólogo Roberto Dutra pontua que "trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na igreja, na escola, no partido, em tudo. Precisaremos de tempo para fazer uma análise cuidadosa deste resultado e de seu significado político".
O sociólogo reflete também sobre os principais desafios de Bolsonaro como presidente. “O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise”, diz. E questiona: “Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise?”
IHU On-Line – Que avaliação faz do resultado das eleições presidenciais e qual é o seu significado político?
Roberto Dutra - Trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na igreja, na escola, no partido, em tudo. Precisaremos de tempo para fazer uma análise cuidadosa deste resultado e de seu significado político, mas alguns aspectos do processo eleitoral permitem pontuar o seguinte:
Trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade – Roberto Dutra
1) O sistema político passa por transformações estruturais muito importantes, como a introdução de novos meios de difusão e comunicação, com efeitos que ainda não podemos vislumbrar bem. A relação entre candidatos, eleitores e organizações políticas muda com isso, mas não sabemos exatamente em que direção. Aparentemente, organizações e candidatos enraizados nestas organizações perdem protagonismo no sistema. Quando o jornalismo de massa e a TV se tornaram decisivas para os processos eleitorais, isto produziu mudanças estruturais importantes no sistema político. As redes sociais parecem provocar mudanças semelhantes no mundo todo, com especificidades locais, como o uso do Whatsapp na campanha brasileira. Mas esta vitória de Bolsonaro e da direita foi impulsionada por, pelo menos, dois outros fatores.
2) O primeiro deles é o processo de demonização da política desencadeado pelo “mensalão” e mais fortemente pela operação Lava Jato e reverberado como antipetismo pelos meios de comunicação, especialmente pela Rede Globo. A Lava Jato trouxe prejuízos enormes para o sistema político e a democracia. Seus efeitos potencialmente positivos são muito duvidosos. Não teve efeito estruturante no sentido da redução da corrupção, mas apenas efeito destrutivo sobre as organizações e elites políticas. Assim como na Operação Mãos Limpas da Itália, na Lava Jato o resultado foi a eleição de um político “antissistema”, com pouco apreço pela democracia. O nosso bufão, porém, é muito mais perigoso que o Berlusconi. A Lava Jato representa uma visão moralizadora aberrante que destruiu relações de confiança na troca de apoios e no ajuste informal de interesses, bloqueando a capacidade do sistema político em produzir decisões coletivamente vinculantes com o alcance e a eficácia necessários para um combate institucionalizado da corrupção.
3) O segundo fator são os erros do campo progressista. O ex-presidente Lula é o grande derrotado destas eleições. Sua estratégia de transformar a eleição em um plebiscito sobre o PT, e especificamente sobre sua própria condenação, foi ingrediente decisivo para a vitória de Bolsonaro. No PT, o antipetismo foi subestimado e rechaçado como puramente reacionário. E não é. Existem setores médios e populares que têm razões para não se sentirem representados pelo PT. Não são necessariamente tolos ou imbecis por não gostarem do PT, como se costuma dizer nesta sociologia moralista cujo esporte predileto é xingar a classe média.
Ao ignorar a força do antipetismo, o PT e Lula subestimaram a força potencial de Bolsonaro. A derrota não era necessária, como agora alguns querem fazer crer. Era difícil, mas era possível. Além disso, setores da esquerda contribuíram para que a disputa presidencial se transformasse em uma “guerra cultural”, o melhor cenário para Bolsonaro, que assim não precisou discutir seu programa ultraliberal na economia e na política social.
A esquerda precisa abandonar o messianismo lulista, mas também a linguagem da política identitária, que a afasta de sua base potencial, as classes populares e médias. O problema com a chamada política identitária não é o conteúdo de suas pautas, mas sim a forma de sua política, sua concepção do que é o próprio agir político. A luta contra as desigualdades de gênero e de orientação sexual são, por exemplo, pautas centrais para os progressistas. A questão é a forma de ação política e a visão estratégica envolvida. Neste aspecto, a política identitária, difundida quase sempre a partir dos centros de ciências humanas das universidades, empreende uma moralização duradoura da política, adotando e cultivando o pior da herança da geração de 1968.
A política identitária consiste, basicamente, em poses emocionais e dramatizadas que tomam o lugar da preocupação política em agregar forças. O critério passa a ser quem tem a moral do seu lado, e não quem consegue reunir apoio. Esta moralização duradoura da política ignora a peculiaridade da política, que é a possibilidade de construir coletividades para além das identidades morais existentes. A esquerda deveria simplesmente abandonar esta forma de atuação que reduz a política à moral e compromete fortemente as chances de recuperar o terreno perdido para a direita.
Vejo, por exemplo, com muita preocupação o comportamento hipermoralizado de parte da militância petista em não reconhecer devidamente a vitória de Bolsonaro, como se qualidades morais negativas que podemos atribuir ao candidato fossem mais importantes que o rito sagrado do voto, pelo qual ele foi consagrado. Espero não ver nem ouvir “fora Bolsonaro!” de gente responsável. Rechaçar moralmente este resultado e, pior ainda, os segmentos sociais que deram suporte a ele, é dar continuidade à troca indevida de política por moral, criando o ambiente ideal para que Bolsonaro prossiga com sua “guerra cultural” e encurrale cada vez mais os progressistas.
IHU On-Line – Quais serão os desafios de governabilidade do presidente eleito?
Roberto Dutra – O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise. E vai ter que recalibrar as expectativas difusas e bastante contraditórias que gerou na população: redução de impostos e melhoria nos serviços públicos, redução da violência e armamento irracional da população, discurso de unidade nacional e postura autoritária que nega o direito de existência da oposição e da esquerda. Sem recalibrar essas expectativas, o governo torna-se rapidamente impopular e isso terá repercussões negativas no congresso e na governabilidade. Mas isso exige inteligência política para transpor o ambiente de ignorância e intolerância que o próprio Bolsonaro criou. Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise? Creio que não será capaz. Se for capaz, estará jogando o jogo democrático. Por isso, torço contra minha própria observação enquanto sociólogo.
IHU On-Line – O que esperar do governo eleito?
Roberto Dutra – É uma pergunta muito difícil. Nós, cientistas sociais, somos famosos por nossa incapacidade de prever sequer o futuro adjacente. Isso é assim mesmo. Devemos aceitar e nos contentar com a construção de cenários possíveis. Para isso, o mais importante é saber se e quando Bolsonaro vai recalibrar as expectativas, apresentando concretamente o que vai fazer, quando e como. Lembremos que ele não foi a debates no segundo turno, se recusando a discutir suas intenções para o país. Pediu um cheque em branco e lhe foi dado. Agora nos resta ver como ele vai preencher este cheque e quem vai pagar a conta.
Precisamos saber duas coisas:
1) se ele vai aprender a jogar o jogo democrático ou vai continuar sendo o militar tosco que sempre foi. O poder corrompe, dizem. Mas quem sabe não seja capaz de dar alguma qualidade a uma pessoa já tão desqualificada? e
2) se ele vai mesmo adotar a política econômica e social ultraliberal de Paulo Guedes ou se vai inventar alguma gambiarra que não seja tão cruel como o prometido.
(*) Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea.

Carta de Olavo de Carvalho em 2006 anunciava as discussões do Brasil de hoje (João Brizzi e Fabricio Pontin)

Em junho de 2006, Olavo de Carvalho estava em um beco sem saída.
Ele havia se mudado há pouco mais de um ano para os Estados Unidos, época em que também perdeu sua coluna no jornal O Globo. Seu estilo bonachão e irônico, um estranho cruzamento da sofisticação clássica com a gritaria patriótica de Enéas Carneiro, não tinha feito muitos amigos para Olavo nos círculos intelectuais.
Parece estranho imaginá-lo andando entre jornalistas, mas Olavo acumulava passagens por Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, entre outros. Em dado momento dos anos 90, chegou a trocar farpas com Muniz Sodré, um dos fundadores da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Apesar dos desafetos criados, Olavo teve todo o tempo do mundo para estudar seu alvo – a esquerda brasileira – com alguma proximidade.
Planos traçados, o filósofo escreveu, no dia 20 de junho de 2006, uma carta pedindo doações pela internet para terminar um livro.
Identificando o inimigo
“Desde que cheguei aos EUA, em maio de 2005, assumi como dever pessoal, fora e independentemente do meu trabalho de correspondente jornalístico e da preparação do livro A Mente Revolucionária, informar ao maior número possível de jornalistas, intelectuais, empresários e políticos americanos a verdade sobre o estado de coisas no Brasil, a abrangência dos planos do Foro de São Paulo, a aliança entre partidos de esquerda e organizações criminosas, a colaboração ativa e essencial do governo Lula na revolução continental cujas personificações mais vistosas são Hugo Chávez e Evo Morales.”
No espaço de uma década, a ideologia de Olavo conseguiu derrubar um presidente e eleger outro.
Como diabos um intelectual marginalizado e exilado consegue influenciar, longe do Brasil, um movimento e se torna um dos maiores atores da direita na história recente do Brasil?
Para compreender isso precisamos, antes de mais nada, fazer algo que é proibido dentro dos altos círculos intelectuais brasileiros. Teremos de reconhecer alguns méritos de Olavão.
Entre 1994 e 1996, o escritor lançou uma uma triologia mezzo filosófica mezzo crítica à esquerda, na qual ele diz que a “elite formadora da opinião pública” teria aparelhado universidades, veículos de comunicação e o raio que o parta na missão de instaurar a mentalidade comunista sobre a incauta população brasileira. Na carta em que pede doações, ele explica as intenções do livro, nunca publicado e que teria objetivo imediato de “conscientizar a elite americana da loucura que faz ao dar suporte político, jornalístico e financeiro a organizações latinoamericanas de esquerda” que conspirariam “no sentido de manter uma ajuda bilionária sem a qual a revolução comunista na América Latina morreria de inanição”.
Olavo vai adiante e explica como, nos Estados Unidos, aprendeu o que é democracia:
“A democracia não dá liberdade a ninguém. Apenas dá a cada um a chance de lutar pela liberdade. A gente percebe isso, materialmente, na coragem e disposição de combate com que tantos americanos, hoje, se erguem contra o establishment esquerdista chique e não raro conseguem vencê-lo usando os meios postos à sua disposição pelo Estado de direito. Esses meios estão também ao alcance de quem deseje restabelecer a verdade sobre o Brasil.”
Para além disso, o filósofo goteja nomes famosos – Rockefeller, Foro de São Paulo, Ford e por aí vai – na missão de estabelecer ligações financeiras e políticas que justificariam a tal ascensão da esquerda no Brasil.
De certa forma, é como se a carta de Olavo fosse recitada a cada defesa de Bolsonaro, a cada fala de Kim Kataguiri pelo MBL e a cada briga no Zap da família. Mas se A Mente Revolucionária nunca saiu, como ele conseguiu espalhar a palavra?
O período de transição
No mesmo ano, Olavo começou a publicar o True Outspeak, podcast que usava para comentar política e cultura. Mas foi só em 2009 que ele deu início ao que seja, talvez, seu trabalho mais importante: o Curso Online de Filosofia.
Olavo reconheceu uma carência enorme de orientação por parte não apenas de jovens de direita, mas de jovens – ponto. Olavo ofereceu uma saída com uma linguagem sofisticada o suficiente para que o seu alvo não se sentisse burro, mas engraçada o suficiente para que ele se sentisse legal, e ofereceu isso nos termos da internet. Olavo criou fóruns de discussão, fazia crônicas semanais temáticas junto com apostilas de orientação intelectual falando dos clássicos gregos em uma linguagem acessível.
Olavo, acima de tudo, entregava (e ainda entrega!) um excelente produto que dava retorno ao investimento feito pelo aluno.
Imaginem a surpresa de seus estudantes. Este cara que está nos Estados Unidos e manja de filosofia, misticismo, política e fala um monte de palavrão, esse cara responde minhas mensagens!, fala comigo como se eu fosse uma pessoa normal!, diz que eu sou inteligente!
Diante da postura intelectual dos baluartes da alta cultura nacional, que perdem tempo falando mal de funk enquanto vomitam lugares comuns sobre psicanálise e ignoram qualquer manifestação ou sentimento popular como uma espécie de sujeira acrítica, Olavão oferece uma alternativa: um mecanismo de inclusão dentro de uma espécie de alta cultura alternativa, algo que é, ao mesmo tempo, uma contracultura e uma comunidade onde transitam pessoas que acreditam ter acesso a um caminho alternativo – e melhor! – para pensar o mundo.
Eram quatro os livros na mesa de Jair Bolsonaro durante o primeiro discurso do Presidente eleito: a ‘Bíblia Sagrada'; a constituição brasileira de 1988; ‘Memórias da Segunda Guerra Mundial’, de Winston Churchill; e ‘O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota’, de Olavo de Carvalho.
Até 2013, o olavismo era consideravelmente periférico, ainda que bem-sucedido. Entre 2006 e 2013, Olavo alimentou seus fóruns, fez visitas guiadas para seu bunker nos EUA, editou livros e organizou transmissões semanais em áudio e vídeo com sucesso absurdo. Também reeditou seus trabalhos de leitura dos clássicos (especialmente o Jardim das Aflições, livro da trilogia que o próprio Olavo ainda encara como sua magnum opus), e foi editado por Felipe Moura Brasil, influenciador político da Jovem Pan e O Antagonista, em O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota, coletânea de escritos seus.
Este último foi um divisor de águas: lançado em 2013, chegou às prateleiras das livrarias ao mesmo tempo em que o pessoal de verde e amarelo vagarosamente começava a aparecer nas ruas e a bater panelas. De repente, a frase “Olavo tem razão” aparecia em protestos. Figuras em preto e branco com o Olavão fumando eram carregadas por jovens que agora repetiam incessantemente uma ladainha sobre Foro de São Paulo, doutrinação gayzista-comunista e a presença de cloro na água para emascular nossos jovens – essa última é do Doutor Fantástico, mas vá lá. O livro teve mais de 300 mil cópias vendidas; mais de 12 mil alunos passaram pelas fileiras de seus cursos.
O estrago ainda era ignorado, mas já estava feito.
Olavo hoje
De lá para cá, Olavo deixou de ser uma figura periférica para gradualmente se tornar a figura intelectual mais importante e influente do Brasil. Essa frase não vai nos fazer nenhum novo amigo nas universidades públicas, mas dane-se: Olavo de Carvalho se torna a figura intelectual mais importante e influente do Brasil ao entender que existe um movimento carente de uma linguagem que possa criar aderência rápida, que possa capturar a imaginação das pessoas sem grandes complicações e que, sobretudo, não ofenda as pessoas as chamando de burras – ou, para ser mais preciso, dizendo a todos que são burros, menos a seus seguidores.
Olavo detesta Gramsci. O velho marxista italiano admirado por muitos dos ideólogos do PT, inclusive, é um dos alvos mais constantes de ataque por parte do Olavão. Desde 1994 alguém – não nós – ouve o Olavão falando da nova classe intelectual, da multiplicação de uma hegemonia de esquerda, e usando os conceitos de Gramsci para acusar o governo Fernando Henrique Cardoso, ou Lula, ou Dilma, desta ou daquela nova e relevante conspiração para dominar tudo que a sociedade civilizada considera importante. É irônico, portanto, que Olavo, mais que ninguém no Brasil de hoje, se encaixe tão bem com o que Gramsci chamava de “intelectual orgânico” – aquele que se mantém conectado aos dilemas que o originaram.
Olavão, ao verificar que não havia clima para o tipo de discurso que ele andava fazendo ali no início dos anos 2000, fez um movimento estratégico para criar esse clima. Ele explora vulnerabilidades do nosso sistema educacional e da própria configuração do nosso ensino superior; ele explora a atitude classista da alta intelectualidade carioca e paulistana que teima em discutir esse ou aquele detalhe na obra Adorno e não se dá conta que está alienando uma fatia enorme da população que teria, inclusive, potencial de colaborar para a construção de uma universidade realmente plural.
É fácil acusar seus admiradores de serem burros, manipulados, idiotas. Mas fazer isso é garantir uma manada de novos admiradores ao Olavo. É fácil dizer que Olavo é maluco, pirado, que ele comete erros na interpretação do livro Z da Metafísica de Aristóteles no Imbecil Coletivo, ou que a interpretação que ele faz deste ou daquele aspecto da fenomenologia husserliana é completamente inaceitável. Tudo isso é muito fácil. E também estúpido.
O leitor de Olavo está feliz da vida que alguém esteja falando com ele sobre todos esses temas ao mesmo tempo que fala sobre política, religião, mostra foto dos cachorros, vai caçar, admite que errou ou que acertou e ainda por cima lacra muito nos debates com esquerdopatas. O leitor do Olavo tem uma comunidade de afeto, política e intelectual, que ele dificilmente teria conseguido em qualquer universidade, especialmente nos termos que o professor oferece: uma inclusão sem conversão automática. É uma conversão gradual, voluntária, comunitária. Quando visto de perto, o fenômeno é absolutamente espantoso.
Agora, em 2018, Olavo pauta a direta e, indiretamente, a linguagem de Bolsonaro no horário eleitoral e tem impacto relevante em alguns dos deputados federais mais votados em São Paulo. Olavo virou um guru para toda a nova direita que se consolidou nestas eleições. Essa consolidação do discurso de Olavo, que passou da insignificância para a periferia e da periferia para o mainstream talvez tenha atingido seu ponto mais alto no último capítulo dessa novela ridícula, com Caetano Veloso atacando Olavo por ser autoritário e pedindo a “mobilização daqueles que não concordam com esse tipo de discurso”.
Caetano agora – quem diria? – ocupa posição periférica no discurso cultural brasileiro. Ele precisa surfar a onda de Olavo para tentar aparecer para além de seu público podre de rico sedento por rimas ricas.
O ataque soa como um ato de desespero, fruto da percepção de que uma oportunidade foi perdida; uma tentativa de entrar correndo num trem que já passou. Caetano agora – quem diria? – ocupa posição periférica no discurso cultural brasileiro. Ele precisa surfar a onda de Olavo para tentar aparecer para além de seu público podre de rico sedento por rimas ricas. Caetano Veloso, um dos grandes símbolos da alta cultura, que já foi notícia até quando estacionou o carro no Leblon, precisa apelar para ser reconhecido por Olavo como alguém digno de discussão para realmente aparecer.
Exausto, ele declara no final da carta:
“Preciso de ajuda já. Não quis pedi-la antes de chegar ao meu limite. Já cheguei. Por favor, me ajudem a salvar a honra do Brasil. Não quero chegar à velhice extrema pensando que vim de um país que se deixou estrangular sem exercer nem mesmo o direito de espernear. Quero exercer esse direito até o fim, com esperneadas vigorosas que pelo menos deixem o assassino da pátria com uma inesquecível dor na bunda.”
Se ele era uma piada, cabe perguntar quem está rindo agora.
A cultura agora é do Olavão. A gente só vive nela.
(reportagem de João Brizzi e Fabricio Pontin, publicada por The Intercept Brasil, 29-10-2018.)