sexta-feira, 28 de junho de 2013

No susto (Marina Silva)




Diz Ricardo Goldenberg, no livro "Política e Psicanálise": "O leão só salta uma vez, dizem os caçadores, para significar que não terão segunda chance se atirarem fora da hora. O instante não dá outra oportunidade, a surpresa cobra soluções de improviso, no susto".

As manifestações nas ruas do Brasil nos colocam uma grata surpresa: o atual modelo político, além de desautorizado pelo repúdio na polifonia das multidões, também está sendo descontinuado, desconstruído e, ao menos simbolicamente, sepultado. Isso pode assustar, mas devemos nos alegrar por termos chegado a um ponto de virada, em que é possível fazer a história fora do museu, deixar a velha e estagnada repetição que nos condena a andar sem sair do lugar.

Tenho dito e repetido: é hora de metabolizar, não de capitalizar. Para além das reações, podemos construir respostas, reelaborando, sobretudo, os improvisos que a surpresa do momento nos obriga a fazer e colocando em debate as soluções dadas no susto.

De nada adianta o frenesi de anúncios com pompa de grandes soluções, sem a sincera disposição de ver e perceber, de escutar e compreender o que dizem as manifestações. Se formos capazes de ver mais que a superfície, o que fizermos terá maior altura e profundidade.

Nossa nova visão deve se traduzir numa agenda de país, não numa mera pauta de reivindicações. Essa agenda nos fará evitar o que vinha ocorrendo a olhos vistos: o sacrifício dos valiosos ganhos econômicos e sociais dos últimos anos em função do atraso do sistema político e da baixa qualidade de nossa representação.

Uma agenda para o Brasil sustentável pode ser feita com todos, a partir do novo termo de referência dado nas ruas. Os que anunciam ventos da mudança acordaram os que dormiam em berço esplêndido na Esplanada. Agora, todos têm diretrizes para trabalhar.

Exemplos? A reforma política não deve ser para garantir a estabilidade de quem já tem poder, mas para melhorar a representação e ampliar a participação. O pacto federativo deve dar a Estados e municípios novas responsabilidades mas também novos meios para cumpri-las. A educação não deve ter só a promessa de recursos quando jorrar o petróleo do pré-sal, mas metas a serem alcançadas agora. A saúde, não só médicos visitantes, mas a revisão do sistema para ampliar a capacidade instalada. Além de arquivar a PEC 37, devemos ter instituições mais transparentes. Em tudo podemos ir mais alto e mais fundo.

É preciso estender às ruas o "nós" que responde à pergunta: quem escolherá as perguntas? Devemos ouvir quem já fornece ideias --como a conferência proposta pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

Basta reconhecer que o poder --se não está com todos-- é de todos. Sem susto.

Marina Silva, ex-senadora

Fonte: Folha de S. Paulo

quinta-feira, 27 de junho de 2013

"A disputa política está nas ruas” (Rudá Ricci/entrevista)







“Trata-se de uma onda juvenil, de classe média”, que forma uma força “irresistível que carrega de tudo junto. Algo como um carnaval político e acredito que esta é a melhor maneira de analisarmos o que ocorre”, diz Rudá Ricci à IHU On-Line, ao comentar as manifestações que tomaram as ruas brasileiras.
De acordo com ele, a tensão entre os manifestantes e a polícia é acentuada porque as "polícias não estão acostumadas a este tipo de conflito de rua, de natureza democrática. Enfrentam o tráfico organizado e situações onde está nítido, para eles, onde está o divisor de águas de conduta moral. Alguns, por convicção ideológica, acreditam que se trata de baderna. Mas não duvido que tenham uma ponta de dúvida ao ver aquela massa de dezenas de milhares de pessoas que avançam pelas ruas, incluindo mães que seguram as mãos de seus filhos pequenos".
Ricci também comenta o plebiscito proposto pelo governo e afirma que "é a maneira mais inteligente de a energia que está nas ruas efetivamente se expressar e orientar a reforma política”. E dispara: "A questão, agora, é de construção de uma engenharia política adequada. Está em questão a composição e escolha dos constituintes. Teremos candidatos avulsos, não filiados a partidos?"
Confira a entrevista.
Que motivos atribui às manifestações que estão acontecendo em todo o país, e por quais razões as manifestações mais expressivas estão acontecendo em Belo Horizonte?


Rudá Ricci – Trata-se de uma onda juvenil, de classe média. Como toda onda, forma-se uma força irresistível que carrega de tudo junto. Algo como um carnaval  político e acredito que esta é a melhor maneira de analisarmos o que ocorre. Começou com a articulação do Movimento pelo Passe Livre – MPL que surgiu em 2005, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial – FSM. Este ano, já haviam realizado várias manifestações em capitais. O estopim de tudo foi a manifestação de São Paulo. A violência da PM indignou a todos e já no sábado era visível pelas redes sociais que a onda emocional se alastrava pelo país, principalmente nas regiões onde há maior nível de instrução: centro-sul do país e litoral nordestino. No início da semana seguinte, na manifestação de São Paulo, a situação já era outra, e o MPL perdeu o controle e liderança. Na quarta, teve início a disputa de pautas.
Partidos
Anonymous Brasil lançou uma pauta de cinco pontos, relativamente conservadora (ao menos os cinco pontos), e vários comitês de crítica aos gastos realizados para organização da Copa do Mundo lançaram as suas. No dia seguinte, foi a vez dos partidos. Aí veio o desastre, revelando que os maiores partidos do Brasil estão absolutamente desconectados das ruas. O presidente nacional do PT lançou uma “onda vermelha” (quando os líderes das mobilizações sugeriam branco, verde e amarelo) e colocou em risco a integridade dos militantes. Até hoje, Rui Falcãodeve desculpas aos militantes sinceros e abnegados de seu partido. O PT tinha a obrigação de estar nas ruas, mas não disputando com os manifestantes.
Depois, veio o PPS com sua propaganda gratuita, justamente quando explodia, na quinta à noite, manifestações muito violentas em Brasília e no Rio de Janeiro. Uma falta de sensibilidade e timing político revelador. O PSDBoscilou e até agora tenta ajustar o tom, já que a rua nunca foi seu forte. A onda seguinte foi promovida pela presidenteDilma, quando lança seus cinco pactos. O ponto mais importante foi o do plebiscito e reforma política. Saiu das cordas e foi para o centro do ringue. Todas as forças políticas, partidos e sociedade civil, estão se debruçando até agora para dizer o que pensam desta pauta. Até parte da imprensa esqueceu seu papel e entrou neste jogo como militante. Agora é saber como fazer a ponte entre a rua e a negociação da mudança, sem desmobilizar os manifestantes, numa ponte entre a democracia direta e a representativa.
Talvez, seja o momento do que nós, sociólogos, denominamos de “representação delegada”, aquele representante que não tem autonomia para mudar o que a assembleia que o elegeu definiu.
Como entender a violência nessas manifestações de BH? Quais são os grupos envolvidos nesses conflitos?
Rudá Ricci – Temos dois focos muito nítidos e já identificados. O primeiro, um grupo de anarquistas alimentados pela teoria da “ação direta”. Como o nome já sugere, trata-se de forçar a mudança sem os recursos indiretos (judiciário ou parlamento). Há uma vertente não violenta e outra, violenta, orientada para desestabilizar as instituições e enfrentar a lógica política e econômica dominante. O outro segmento são setores da inteligência policial. Há vários depoimentos de professores universitários e médicos que acusam estas ingerências que objetivavam provocar situações de conflito nas manifestações do último sábado. Estão disponíveis na internet, inclusive no meu blog.
Como essas manifestações “abalam” a estrutura interna da Polícia Militar?
Rudá Ricci – Não abalam, mas criam muita tensão e sentimento de orfandade entre os praças e todos os suboficiais. Algo que não é novo na história das forças de segurança pública do nosso país. No sábado passado, a tensão foi muito forte porque o Alto Comando da PM orientava para o não confronto.
Ocorre que nossas polícias não estão acostumadas a este tipo de conflito de rua, de natureza democrática. Enfrentam o tráfico organizado e situações onde está nítido, para eles, onde está o divisor de águas de conduta moral. Alguns, por convicção ideológica, acreditam que se trata de baderna. Mas não duvido que tenham uma ponta de dúvida ao ver aquela massa de dezenas de milhares de pessoas que avançam pelas ruas, incluindo mães que seguram as mãos de seus filhos pequenos.
O que seria mais correto é evitarmos o contato direto. Não há motivo algum para tentar romper a linha divisória estabelecida, mesmo que seja uma afronta à soberania nacional. A demonstração de força já foi dada. O recuo de governantes e parlamentares é nítido.
Agora é necessário ter inteligência política e saber alterar as estruturas de representação e decisão políticas. Se assegurarmos esta mudança, estes limites impostos pela FIFA nunca mais ocorrerão. Caso contrário, ficam as demonstrações infantis que se revelarão efêmeras.
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Num primeiro momento após se pronunciar sobre as manifestações, o governo propôs uma Assembleia Constituinte, mas depois desistiu e sugeriu um plebiscito com perguntas diretas sobre reforma política. Como vê essa mudança de propostas?
Rudá Ricci – Oficialmente, o governo não desistiu. Trata-se de uma leitura de alguns órgãos de imprensa. Deverá até desistir, mas isto é interpretação até o momento. Nós, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política desejamos o plebiscito porque é a maneira mais inteligente de a energia que está nas ruas efetivamente se expressar e orientar a reforma política. Contudo, a constituinte exclusiva, além de não ser uma certeza jurídica, pode ser uma armadilha para que a velha estrutura da política nacional se refaça, como ocorreu no momento seguinte ao impeachment do Collor. A questão, agora, é de construção de uma engenharia política adequada. Está em questão a composição e escolha dos constituintes. Teremos candidatos avulsos, não filiados a partidos? Também se discute se o processo seria o plebiscito, a montagem do colegiado de elaboração da reforma política e, depois, um referendum. O fato é que a leitura institucionalista, que muitas vezes abomina as ruas, quer dar poderes ao atual Congresso Nacional para conduzir a reforma. Além deste Congresso ter refutado, na prática, a reforma política, sua legitimidade está sendo questionada nas ruas. O que os institucionalistas não compreendem é que podem estar ateando fogo na gasolina.
Que avaliação faz do pronunciamento da presidente na última sexta-feira? Quais foram os pontos altos e baixos do discurso?
Rudá Ricci – O ponto fraco foi o primeiro item. O que significa, afinal, equilíbrio fiscal. O Fórum Brasil do Orçamentoquestiona a base do que se denomina de responsabilidade fiscal que foi construída a partir do objetivo de pagamento da dívida externa. Algo que o Brasil não conseguiu reduzir efetivamente. Os cálculos da Auditoria Cidadã da Dívidasão muito nítidos a este respeito. O FBO lançou, anos atrás, a proposta de Lei de Responsabilidade Fiscal e Socialque redefine os princípios da responsabilidade fiscal. A proposta tramita na Câmara Federal e sugere a definição de “mínimos sociais” no ciclo orçamentário, além do monitoramento da sociedade civil sobre sua observação, sob pena do governante (nas três esferas do poder Executivo) ser responsabilizado.
O ponto forte foi a proposta de plebiscito e constituinte para a reforma política, a despeito da sua validade jurídica. A presidente voltou ao centro do ringue, justamente num momento em que todos governantes pareciam paralisados. Agora, todos discutimos esta pauta, numa evidente retomada de protagonismo do governo federal. Trata-se de interpretar o jogo político, não as tecnicalidades jurídicas. Não podemos inverter esta leitura. É possível corrigir erros técnicos, desde que tenhamos clara a estratégia e os objetivos centrais que unem os brasileiros.
Em que medida essas manifestações são também uma reação à gestão do PT no governo?
Rudá Ricci – É uma reação a todos os governos e partidos, o que inclui o PT. No caso do PT, o governo Lula cometeu dois erros políticos. Primeiro, retirou os canais sociais por onde as demandas das ruas se organizavam e eram transformadas em pautas. Estou citando ONGs, pastorais sociais, sindicatos, entidades de representação e mobilização social. Todas ingressaram na estrutura de Estado ou passaram a terceirizar serviços públicos através de convênios. Na prática, aquele canal por onde a população tinha sua insatisfação acolhida foi interditado. O segundo erro foi abdicar do papel histórico dos governos de esquerda, que é sua ação pedagógica, o confronto com valores conservadores. Veja o caso do governo Hollande, que não é marcado por uma identidade absoluta com um projeto de esquerda. Hollande enfrenta o tema do casamento homoafetivo. Mesmo enfrentando a ira de segmentos sociais, sabe que é seu papel político abrir esta reflexão e garantir direitos civis. Lula não enfrentou nenhuma agenda polêmica porque decidiu estabelecer a conciliação de interesses em sua gestão.
Dilma Rousseff insinuou que seria mais engajada, mas foi recuando ou reduzindo estas agendas como prioridades de governo. Este vácuo abriu uma enorme lacuna entre o ideário petista e o que ocorria, efetivamente, nas ruas. Há sinais claros de avanço de valores conservadores, até mesmo fundamentalistas, entre camadas populares, grande parte que teve sua condição de renda e consumo catapultadas nos últimos dez anos. Neste momento, as ruas, do ponto de vista sociológico, exigem a reconstrução destes canais de expressão social na política. E, do ponto de vista do PT, exigem que o partido se reapresente ao cotidiano dos brasileiros. O PT está colhendo os frutos de sua burocratização acelerada. Não é só a esquerda que perde com esta guinada, a própria democracia brasileira perde. É isto que as ruas nos revelam.
Como o senhor avalia a reação do Estado brasileiro diante de tais manifestações?
Rudá Ricci – Ele ainda tenta organizar a mudança de agenda. Mas a grande questão é que esta mudança altera os acordos internos com aliados e até mesmo a estrutura de comando político, que tem na figura dos deputados federais o centro da rede de relações que une agências estatais aos municípios. Os convênios estabelecidos entre prefeituras e ministérios ou bancos federais fez dos municípios uma tábula rasa, onde encontramos os mesmos programas federais do Oiapoque ao Chuí. Esta lógica está em questão, ainda que indiretamente, pelas ruas.
Como avalia o discurso presente nessas manifestações? Pode haver uma mudança política no país e no mundo de modo geral diante da crítica acerca dos partidos e da estrutura política?
Rudá Ricci – Acredito que as ondas de manifestações sociais de massa do século XXI estão dando seus recados. Os partidos revelam exaustão como estruturas de representação e não estão inseridos no cotidiano dos cidadãos. São estruturas do século XIX, afinal. Fico surpreso com o tom fatalista das vozes mais conservadoras, quase religiosa, dos que afirmam que sem partidos cairíamos no fascismo ou anarquismo. Não está em questão a necessidade de mediação social, de representação, mas se a forma partidária não seria anacrônica. O que vimos na Primavera Árabe e, agora, no Brasil, é uma forma de convocação e mobilização muito mais poderosa que as formas clássicas (ou modernas) de organização política. Aliás, não só de convocação e mobilização, mas também de vazão de demandas as mais variadas. Agora saberemos se são, também, capazes de agregar demandas e formular agendas nacionais. Mas a estrutura de rede (“structural holes”) parece ser mais eficiente e adequada à fragmentação social deste século. O certo é que vivemos uma transição. O que obriga a um olhar atento sobre tendências e possibilidades abertas. Além de nós.
(Por Patricia Fachin)

Rudá Ricci  é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo  PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas  Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara, e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém(Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp), entre outros.

Por que um plebiscito? (Cristian Klein)



Nenhum passo da presidente Dilma Rousseff é dado neste momento sem o balanço de riscos e oportunidades para a eleição no ano que vem. Chegar em 2014 com uma resposta já dada à crise - nos termos populares das ruas - seria como transformar limão em limonada. O pior cenário para Dilma é começar a campanha tendo de explicar à população (ou para parte dela) porque nada foi feito para atender ao clamor dos manifestantes, na maior crise política dos últimos anos. Precisa criar uma vacina para o veneno pronto da oposição, embora haja descontentamento com toda a classe política.

Ainda pior é não conseguir estancar a queda de popularidade - iniciada antes dos protestos - e cuja previsão é que fique em patamares mais baixos depois dos distúrbios deste mês. Por isso, Dilma agiu rápido. Tão rápido que seu pacote de medidas parece não ter tido tempo de ser processado.

Ao sucesso do pronunciamento em cadeia de rádio e TV, na sexta-feira, seguiu-se um excesso de confiança que já é responsável por, pelo menos, dois equívocos. Primeiro, veio a sugestão de convocar uma constituinte exclusiva para tratar da reforma política. Sem conversa prévia com o Congresso, a solução foi rechaçada pelo PMDB - que viu na proposta ameaça de bolivarianismo e contra-atacou com a chantagem de defender o parlamentarismo, caso a ideia fosse à frente. É só uma amostra da encrenca que o assunto poder dar. Advogados constitucionalistas e a OAB jogaram a pá de cal e lembraram que a Carta de 1988 não prevê constituintes específicas.

Risco é o de se criar um Frankenstein institucional

Diante da necessidade de apresentar uma resposta à sociedade, o governo sugere agora um plebiscito. É outra solução fadada à decepção. Diferentemente da consulta popular de 1993 - sobre regime (monarquia x república) e sistema de governo (presidencialismo x parlamentarismo) - um novo plebiscito sobre reforma política trataria de alternativas muito mais complexas. Em 1993, as escolhas eram praticamente dicotômicas. Desta vez, o que está em questão é um sistema de regras de difícil entendimento para a maioria da população. Há opções que só fazem sentido se associadas a outras e aquelas que não são necessariamente excludentes.

A primeira pergunta, como já está sendo sugerida, seria: voto em candidato ou só em partido? Ocorre que sistemas eleitorais não se resumem a estes polos. No distrital misto alemão, por exemplo, o eleitor dá dois votos: um no partido e outro no candidato. No proporcional de lista aberta brasileiro, ao votar no candidato o cidadão também está votando no partido (ou coligação) - e por isso Enéas, Tiriricas, Malufs e Garotinhos ajudam a eleger candidatos menos expressivos. Na lista flexível (Áustria, Bélgica, Dinamarca etc), é possível votar no partido ou no candidato.

E o que ocorreria caso o plebiscito aprovasse um sistema de votação nominal com o financiamento público exclusivo de campanha, que só se justifica com o voto em partidos? É certo que o Congresso ainda daria corpo às escolhas feitas pelo plebiscito. Mas o risco é ficar limitado a juntar partes que, com boa probabilidade, formariam um Frankenstein institucional.

Os manifestantes que foram às ruas querem mudanças. Mas não necessariamente sabem qual é o exato caminho para se chegar até elas. No limite, se for para atendê-las, por que não acabar com os partidos? Trata-se do mito da vontade popular. O próprio desenrolar dos protestos mostrou para uma nova geração - que fez seu batismo cívico ao sair do Facebook e ir para o asfalto - as contradições da imaginada "volonté générale".

Não havia consenso nas propostas pinceladas na miríade de cartolinas erguidas. O caldeirão ideológico entornou a partir do momento em que as propostas temáticas - e mais ou menos consensuais como tarifa de transporte baixa, mais educação, mais saúde etc - deram lugar à contestação do status quo. Ativistas de esquerda do Movimento Passe Livre viram sua bandeira e capacidade de mobilização servirem, supostamente, a causas da direita, como o impeachment da presidente. O mesmo dissenso que há no Congresso fragmentado, há na sociedade (des)organizada. A necessidade de instituições políticas - até hoje não inventaram nada melhor que os partidos - para canalizar as demandas ficou patente. Deu-se o recuo.

Jogar para a população a formatação de uma reforma política tem outra desvantagem. Seria, mais uma vez, um atestado de que o Congresso não consegue fazer o seu próprio trabalho. Nem no assunto que lhe diz mais respeito. Dá razão aos magistrados quando o Judiciário decide usurpar funções do Legislativo.

É verdade que a reforma política, há tempos na pauta, não é aprovada pela inércia natural dos políticos. Eles, como se sabe, não querem mudar as regras do jogo enquanto estão ganhando. É assim aqui e em qualquer lugar do mundo. Só saem do estado de inação quando há a conjunção de fatores inerentes - uma evidente insatisfação com o sistema - e contingentes, ou seja, graves crises econômicas ou políticas, como a que eclodiu neste mês. Dificilmente surgirá oportunidade melhor do que esta para se fazer uma reforma política. Dificilmente haverá tanta probabilidade de se cometer um equívoco.

Em países como a Nova Zelândia, por exemplo, uma reforma política foi realizada a partir do trabalho de dois anos de uma comissão que identificou os principais problemas. Feito o diagnóstico, seus integrantes foram ao "mercado". Conheceram de perto o funcionamento de sistemas eleitorais de alguns países e adotaram o distrital misto alemão.

É essa a tarefa a ser feita no Brasil. Mas qual é o diagnóstico? As manifestações mostraram duas grandes queixas: a má qualidade dos serviços públicos (inclusive a violência policial, que catalisou todo o resto) e a crise de representatividade. A segunda tem a ver com a primeira. E com a sensação de impunidade. O problema é que a população simplesmente não consegue se livrar de notórios corruptos. E não há reforma política que resolva isso. É a Justiça. São as imunidades, os TCUs, as licitações não fiscalizadas, a lentidão dos magistrados. É a pizza da CPI do Cachoeira. É a Delta. É a tentativa de burlar a mal nascida Lei da Ficha Limpa.

Não adianta plebiscito, nem transformar corrupção em crime hediondo, como acaba de fazer o Senado, e deixar tudo o mais intocado.

Fonte: Valor Econômico

terça-feira, 25 de junho de 2013

O movimento que pareceu sair do nada (Renato Janine Ribeiro)



Há movimentos que saem do nada? Ninguém esperava que o Passe Livre mobilizasse assim a nação. Mas isso não significa que tais manifestações sejam um completo enigma. O que não se pode é prever se e quando se darão, nem quais serão seus resultados. Ou seja, não se sabe do seu antes nem do seu depois. Mas vou comentar o que se sabe delas.

Primeiro, este tipo de grande movimento que parece vir do nada começa com o maio de 68 francês, que é além disso o seu paradigma. No dia 15 de março daquele ano, o jornalista Pierre Viansson-Ponté lamentava que "a França [estivesse] entediada", conformista. Uma semana depois, a repressão a protestos contra a guerra do Vietnã e à entrada de rapazes nos quartos das alunas da Universidade de Nanterre detonava o movimento que, rapidamente, cresceu.

Esses movimentos vão bem além de suas causas imediatas. Estas se repetem dezenas de vezes, sem nada resultar. E de repente, a explosão. Que é um acontecimento muito maior que suas possíveis causas. Acontecimento, em inglês, é "happening"; ora, nas línguas latinas, desde os anos 1960 chamamos de "happening" uma grande festa, às vezes promovida por artistas, que tem as características de acontecer só uma vez, não tendo ensaios nem podendo ser repetida. Um acontecimento máximo, um acontecimento em estado puro. Daí, que esses eventos únicos sejam festas. Quem participou dos muitos movimentos de 1968 - na França, em Nova York ou na Califórnia, na Alemanha, na então Tchecoslováquia ou no Brasil - viveu esse clima de festa. Quem se manifestou pelas Diretas-Já em 1984 ou pelo impeachment de Collor, em 1992, festejou nas ruas. Daí, um tom de alegria. As pessoas descobrem que a política pode ser alegre.

A revelação de que a política pode ser alegre

Por isso, ocupam as ruas. A causa imediata das manifestações foi o transporte público de péssima qualidade, que impõe aos pobres o gasto de quatro a oito horas por dia para ir e vir do emprego - uma segunda jornada de trabalho, não paga em dinheiro e que onera a saúde física e mental dos trabalhadores. Mas vejam o simbolismo: estão falando do transporte, isto é, do movimento (e reclamando contra a lentidão, a falta de movimento). "A vida é movimento", dizia em 1651 o filósofo Thomas Hobbes. Estão reclamando da estagnação, que é morte, e clamando pela vida. Uma política que clame por causas ligadas à vida é coisa rara. Não é a política das instituições, não é a da governabilidade, não é a do Parlamento.

E assim a causa imediata funciona como um ímã. Ela atrai tudo o que seja "do bem". Os manifestantes lhe agregam a demanda pela saúde, pela educação e até pelas palavras de ordem que não são da ordem, mas da liberdade, como o célebre "é proibido proibir" do 68 francês, ou o "seja realista, exija o impossível". Tudo adquire as cores das grandes mudanças, daquelas que não aparecem no dia a dia, mas surgem como uma revelação, uma epifania, um momento em que se descobrem novas potencialidades para o mundo e para a vida com o outro, para o viver-juntos. Por isso mesmo, cintila sempre a perspectiva de que uma outra política, mais vital, é possível.

Nem tudo são flores. O Brasil padece de uma cultura política fragílima. Anos de pregação segundo a qual todos os nossos problemas decorrem da corrupção - convicção esta que é uma marca clara da ignorância política - fazem muitos acreditarem que o outro, aquele que discorda deles, não pode ser uma pessoa honesta. Muitos ignoram o que significam democracia e política, a saber: há divergências sérias na condução dos assuntos públicos, que cabe ao voto resolver, mas dentro do respeito ao outro. Chamar o outro de ladrão ou bandido é destituí-lo dos direitos políticos e considerá-lo criminoso. Isso não deveria acontecer, salvo exceções comprovadas de crimes cometidos, entre petistas e tucanos, entre republicanos e democratas, entre trabalhistas e tories. Mas acontece, no Brasil, com alarmante frequência. Daí que, quando as ruas se abrem para o imaginário, uma parte dele seja agressivo e violento. Cito um ativista do Passe Livre, que esteve dia 21 no debate que coordenei no Instituto de Estudos Avançados da USP: a direita e o crime, disse ele, estão hackeando nossos movimentos.

E o "day after"? A revelação de que você pode ocupar as ruas, de que por algumas horas pode tirá-las dos carros e fazer uma festa ali é tão poderosa que corre o risco de ser apenas uma catarse, uma pausa no meio de uma vida que antes e depois será conformista. Muitos manifestantes de 1968, das Diretas ou do impeachment lembram esses momentos como apenas uma festa, mas que em nada mudou suas vidas. Ganharam liberdade sexual, é tudo. Será uma pena se assim for. Epifanias devem mudar, sim, a vida de quem as tem. Você não pode ter uma revelação e não se converter... Que os políticos procurem conduzir "business as usual" é até compreensível, mas as pessoas que sentiram o gosto do diferente deveriam inseri-lo em suas vidas.

Isso, mesmo sabendo, o que é bastante amargo, que a curto prazo quem colhe os frutos não é quem os semeou. A Primavera Árabe, obra de jovens democratas, levou ao poder gente conservadora, como os extremistas da Tunísia e do Egito. Maio de 68 conduziu, em junho daquele ano, à vitória eleitoral da direita. Mas hoje ninguém lembra a direita francesa da época, e todos recordam os estudantes, os jovens, o mês de maio. A sociedade muda. E, assim como 1968 se deu em pelo menos três continentes, de 2011 para cá pode estar surgindo uma segunda onda dessas manifestações tão vitais: com a Espanha, países árabes, Turquia e Brasil, elas parecem estar-se espraiando pelo mundo. O que virá desta segunda onda?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

O pós-protesto (José Roberto de Toledo)



Mesmo antes de o gás lacrimogêneo baixar, algumas consequências da onda de manifestações são visíveis. A saber:

1) Dilma Rousseff está pagando o pato. A presidente não era o alvo das manifestações tempestivas, mas virou seu para-raio. Sua popularidade caiu e continua caindo. No IndiPop do Estadão Dados, que faz uma média de pesquisas de avaliação divulgadas ou não, seu saldo de aprovação (ótimo+bom menos ruim+péssimo) caiu 18 pontos desde março. Só na semana passada, foi de 45 para 40 pontos. Os protestos reforçaram a tendência de queda (blog.estadaodados.com/indipop).

2) A classe média tradicional cansou de Dilma e do PT. A perda de popularidade de Dilma ocorre em todas as regiões e segmentos, mas se concentrou na classe média tradicional. Foi ela, e não os emergentes, que se insurgiu nas ruas. No Sul, no Sudeste e entre quem ganha mais de 10 salários Dilma está num patamar típico de reta final do primeiro turno presidencial. É como se a presidente já tivesse sofrido o desgaste típico de uma campanha eleitoral com ataques e denúncias da oposição.

3) Revolta contra partidos cria espaço para aventuras. Dilma e o PT perdem mais porque têm mais a perder. Mas a revolta é contra os partidos em geral, e a incapacidade do atual sistema político de produzir resultados. Assim, não necessariamente os partidos de oposição, como o PSDB, vão se beneficiar do desgaste dos rivais. Está aberta a porta para salvadores da pátria.

4) Protestos reabriram cenário de 2014. Até poucas semanas atrás, Dilma era franca favorita a se reeleger no primeiro turno. Agora, age para consolidar sua candidatura dentro do próprio partido, contra a turma do "volta Lula". Mais partidos deverão lançar candidatos a presidente, tentando capitalizar parte do descontentamento. A briga é pela outra vaga no segundo turno, porque uma ainda é dos petistas.

5) Manifestações viraram arma para todos os lados. O PT e a esquerda perderam o monopólio das manifestações de rua. Quem saboreou o reconhecimento público e a vitória de suas reivindicações (afinal, revogaram o aumento da passagem, a presidente teve que dar satisfações na TV) aprendeu que tem outras formas de fazer valer seus interesses além do voto. Engajamento tende a aumentar; novas lideranças, a aparecer.

6) Reforma política não é para políticos. A discussão sobre a necessidade de reformar a política deixa de ser assunto exclusivo para políticos profissionais. Novas ideias de representação, diminuindo o poder dos partidos, ganham força. A proposta de financiamento público de campanha está enterrada: dar mais dinheiro de impostos para políticos aparecerem bem na TV é capaz de provocar uma nova onda de protestos.

7) Procura-se um slogan que mobilize todos. A personalização do consumo chegou à política. Motes universais como "combate à fome" já não bastam. As manifestações "pós-20 centavos" mostraram uma enorme pulverização dos desejos. Se alguém conseguir uni-los sob um mote único, larga com grande vantagem sobre os rivais. Mas talvez esse slogan não exista.

8) Quem agrada gregos desagrada troianos. Dilma fez o que era esperado dela ao dar a cara para bater em rede de TV. Tentou transformar a agenda negativa em positiva, recolocando em pauta, por exemplo, a destinação do dinheiro do pré-sal para a educação. Mas quando falou em trazer milhares de médicos do exterior, cutucou um vespeiro. Os nacionais reagiram nas redes sociais e é capaz de irem às ruas. Agora é assim.

9) Espiões sabem menos que as redes sociais. Os órgãos de "inteligência" do governo não previram nada do que aconteceu no Brasil. Caíram em desgraça, por obsoletos. Não é à toa que Obama é fã de bisbilhotar e-mails, SMS e toda forma de comunicação eletrônica. 007 agora é hacker.

10) Não tem décima. "Abaixo os números redondos!"

A nova democracia representativa (Gil Castello Branco)



Há quinze dias, um dos principais estudiosos dos movimentos sociais na era da internet, o sociólogo espanhol Manuel Castells, realizou palestra na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e afirmou que o atual modelo democrático está esgotado. Em sua opinião, as manifestações por meio das redes sociais surgem de reações indignadas a fatos considerados injustos. Articulam-se de forma virtual, mas em seguida ocupam as ruas.

A tese explica como no Brasil transbordou a insatisfação popular que acuou políticos, partidos e governos. Embora alguns digam que aos participantes falta uma "causa", sobram razões para o descontentamento.

Na web as manifestações já eram abundantes, embora desprezadas por aqueles que deveriam respeitá-las. A petição virtual para impedir a posse de Renan Calheiros como presidente do Senado obteve 1,6 milhão de assinaturas, mas foi ignorada pela enorme maioria dos senadores. As escolhas do deputado Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e de dois mensaleiros condenados para integrarem a Comissão de Constituição e Justiça beiraram o acinte, tal a quantidade de e-mails contrários. No Facebook, ao qual 74 milhões de brasileiros estão conectados, circulam milhares de mensagens diárias pelo arquivamento da PEC 37 - que proíbe as investigações do Ministério Público - e das propostas que reduzem os efeitos da Lei da Ficha Limpa. Somam-se ao desagrado virtual a inflação em alta, os 39 ministros, os gastos públicos exorbitantes para o Mundial e a corrupção nossa de cada dia. A previsão do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, de que o julgamento do mensalão ainda poderá demorar dois anos, colocou mais gasolina na fogueira. Nesse cenário de crise entre representantes surdos e representados revoltados, vaiar Dilma foi a catarse.

Assim, prefeitos e governadores, de diferentes legendas, apressaram-se em baixar as calças e as tarifas para frear o levante. O presidente da Câmara adiou a votação da PEC 37. A presidente da República, desta vez vestida de amarelo, fez pronunciamento repleto de obviedades e meias verdades.

Em relação à construção dos estádios da Copa, por exemplo, Dilma afirmou que "jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a saúde e a educação". De fato, nos R$ 7,1 bilhões previstos não há recursos do "orçamento federal". Mas, além dos R$ 3,8 bilhões financiados pelo BNDES (em condições especiais de prazos e juros), existem recursos próprios de governos estaduais (R$ 1,5 bilhão), municipais (R$ 14 milhões) e do Distrito Federal (R$ 1 bilhão). De outras fontes provêm R$ 820 milhões. Como as unidades da Federação não fabricam dinheiro, verbas públicas estão custeando arenas em detrimento de áreas prioritárias, o que justifica a indignação da sociedade. Afinal, com esses recursos seria possível construir oito mil escolas, adquirir 39 mil ônibus escolares, construir 2.842 km de rodovias ou erguer 128 mil casas populares.

Em relação ao "pacto nacional pela mobilidade urbana", é mais do mesmo. Em janeiro de 2010, o ex-presidente Lula, tendo a ex-ministra da Casa Civil ao lado, lançou o "PAC da Mobilidade Urbana da Copa", com 47 projetos que iriam melhorar o trânsito nas 12 cidades-sede. Paralelamente, desde 2002 existe no Orçamento Geral da União o programa "Mobilidade Urbana". Em onze anos foram autorizados R$ 8,4 bilhões e aplicados somente R$ 1,6 bilhão (19%). Será que agora vai?

A presidente também cobrou dos outros Poderes, estados e municípios a efetiva implantação da Lei de Acesso à Informação. Paradoxalmente, passaram a ser classificados como sigilosos os gastos de suas viagens ao exterior. Além disso, o orçamento da União está a cada dia mais opaco.

Assim, urge ouvir atentamente o que reclamam mais de 1 milhão de pessoas, além do Movimento Passe Livre. O discurso conservador e o diálogo habitual com as entidades chapas-brancas - há muito cooptadas pelo Poder com cargos e verbas - já não surtem o efeito de outrora. A democracia hipócrita faliu.

No mundo, tal como diz Castells, os partidos políticos tradicionais, tanto à direita quanto à esquerda, estão perdendo a legitimidade. Na Itália, o Movimento 5 Estrelas, partido organizado pelas redes e com discurso contrário à política convencional, é hoje uma das principais forças eleitorais no país. Os novos tempos demandam novas formas de participação dos cidadãos nos processos de decisão do Estado. No Brasil não será diferente.

Fonte: O Globo

domingo, 23 de junho de 2013

O que vem depois da queda da tarifa? (Luiz Eduardo Soares)



Há uma semana escrevi sobre o movimento pelo "passe livre" (www.luizeduardosoares.com), chamando a atenção para o fato de que o novo surpreende e assusta, porque rompe a estabilidade das expectativas, coloca em xeque nossos esquemas cognitivos, revela a precariedade da ordem social e evoca o espectro de nossa finitude. Somos levados a reconhecer que não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos "realidade" é débil e movediço. Por isso, o desconhecido tende a suscitar em nós reações defensivas e explicações que funcionam como a confirmação do que já se sabe - ou se supõe saber. Se o propósito é conhecer, devemos buscar, com humildade, a compreensão autorreflexiva e a desnaturalização das descrições correntes. Até porque todo esforço de entendimento é também ação política.

Na sequência, expus o que sabia e, mais importante, formulei perguntas sobre o que não sabia. Descrevi as cadeias metonímicas que conectam questões conjunturais a dilemas estruturais - as desigualdades como pano de fundo -, e analisei o diálogo tácito do movimento com o imaginário global e o vocabulário das ocupações, formando uma espécie de hipertexto virtual, tecido por citações recíprocas. Finalmente, concluí com otimismo: "A força da multidão foi reencontrada por jovens e cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua - não verbalizada - e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria - como o negativo ou o avesso - de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. (...) Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. (...) De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reinvenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar".

Fiz o que sugeri: uni-me ao coro na rua. Haveria muito a dizer, mas não quero ocupar o espaço com o depoimento do velho peregrino, percorrendo a Rio Branco acossado por memórias de outras jornadas. Prometo poupá-los do tom confessional. Entretanto, antes de mudar o canal, mantenho a primeira pessoa para compartilhar o que vi, assombrado e comovido. Assisti a uma cena inverossímil: lado a lado, 100 mil pessoas em festa celebravam o estar ali e evocavam o que ainda não é, enquanto, silenciosa e inadvertidamente, sepultavam o que havia sido, seguindo o doloroso cortejo no funeral do PT.

A imagem dupla - épica, no lado A, trágica, no verso - me ocorreu pela via dos cinco sentidos e da emoção, mas firmou-se, analiticamente. Era isso mesmo. O argumento é simples: a maioria dos presentes era estudante. A UNE esteve lá, bem no centro da praça, no meio da festa, sob a forma de uma ausência fulgurante e um silêncio estridente, preenchidos pelo protagonismo emergente dos jovens indignados. O novo personagem coletivo nasceu sobre os despojos da entidade, descaracterizada pela cooptação dos governos petistas e pelo aparelhismo do PCdoB. E onde estavam tantos outros personagens coletivos de nossa dramaturgia política popular e democrática? Muitos deles trocaram a autonomia pelas benesses do poder, sem perceber que a cooptação esteriliza. O preço dos privilégios é a impotência.

Ao PT que venceu, o país deve muito. Os governos Lula, e mesmo Dilma, ficarão na História como marcos fundamentais na redução das desigualdades. Contudo, quais têm sido suas contribuições para o aprimoramento da democracia e para a mudança das relações entre Estado e sociedade, governos e movimentos sociais?

Pode-se ostentar a arrogância tecnocrática e abraçar Maluf, porque os fins sempre justificariam os meios? Os apologistas petistas do pragmatismo ilimitado não se deram conta de que os meios são os fins, quando a perspectiva adotada é a confiança da sociedade no Estado, em especial a credibilidade do instituto da representação. Hoje, tantos que acreditaram na dignidade da política vagam sem norte como zumbis da desilusão. E a juventude procura um caminho para chamar de seu. São dez anos de PT no poder: uma geração não o conheceu na oposição e não sabe o que é um grande partido de massas, não cooptado, comprometido com as causas populares e democráticas, entre elas e com destaque a reinvenção da representação política e a confiança na participação da sociedade como antídoto ao autoritarismo tecnocrático. Por mais que se façam críticas pertinentes à forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.

No momento em que emerge o novo protagonismo, com compreensível mas perigosa repulsa por tudo o que de longe soe a partido, deparamo-nos com o vácuo oceânico produzido pelo esvaziamento do PT como agente político independente, esvaziamento por sua vez provocado pela sobreposição entre Estado, governo e partido.

O Movimento pelo Passe Livre declarou à nação que o rei está nu, proclamou em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, exibindo o mais escandaloso desprezo pela opinião pública. O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças deem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu - e aprofunda-se, celeremente - entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se.

E o futuro? O movimento omnibus tem diante de si os mais variados cenários, e outros a inventar. Seu destino provavelmente dependerá de sua capacidade de diferenciar a crítica política da crítica à política, e de não confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, em qualquer formato. Essas distinções provocarão divisões internas profundas e inconciliáveis, que já estão aflorando. Toda essa magnífica energia fluirá para o ralo do ceticismo, abrindo mais um ciclo de apatia? A indignação encontrará traduções autoritárias e ultraconservadoras? Múltiplos afluentes seguirão cursos inauditos, nos surpreendendo com sua criatividade e mudando o país, no âmbito da democracia? As respostas não dependem só do movimento, mas também dos que não têm participado e das lideranças governamentais e parlamentares.

E as polícias? O debate sobre a desmilitarização está posto. É urgente incluir na agenda a refundação do modelo policial brasileiro, para estender à segurança pública a transição democrática. Polícia é tema decisivo. Se o relacionamento entre a sociedade e o Estado está no epicentro do movimento, as polícias também estão. Afinal, o policial uniformizado na esquina é a face mais tangível do Estado para a maior parte da população. Não haverá democracia enquanto o Brasil for campeão da brutalidade policial contra negros e pobres.

Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, professor da UERJ

Fonte: Prosa / O Globo (22/06/13)

A polissêmica voz das ruas (Marco Aurélio Nogueira)



Pode haver dificuldade para compreender o que anda a ocorrer nas cidades brasileiras desde o início de junho. Mas não faltam teorias, pesquisas e conceitos. O que falta e análise política, análise concreta da situação concreta: humildade, trabalho paciente, espírito indagador e disposição metodológica para articular a estrutura e a superestrutura, a sociedade e o Estado, os interesses, as classes, os valores, a correlação de forças, de modo a que se alcance uma visão de conjunto das molas que fazem com que as pessoas tomem partido e ajam, buscando captar ao mesmo tempo suas implicações e possíveis repercussões.

Isso acontece porque os teóricos sociais não são imediatamente analistas políticos nem a academia é o loais mais adequado para que se façam análises políticas. Essas proliferam com mais facilidade na vida política organizada, onde a correlação de forças ganha materialidade e explicita sua lógica. Fora dela, preponderam boas intenções, poesia, abnegação e ética da convicção, uma racionalidade específica. Se faltam quadros intelectuais, espaços de reflexão e adensamento cultural para a democracia organizada, se os partidos deixaram de ser usinas de ideias e valores, então a análise política sofre para respirar, confundindo-se com a vocalização midiática de solidariedades, com o cálculo eleitoral ou com a crônica jornalística.

Daí a sensação de que os protestos não estão a ser compreendidos, a surpresa diante da rapidez com que eles se espalharam pelo País, causando arrepios e estupor nos políticos e júbilo e entusiasmo em muitas faixas da população. Daí o defensivismo conservador de tanta gente, movida ou pelo medo ou por uma visão elitista da história.

A polissêmica e vibrante voz das ruas, que agora atingiu alto e bom som, tem que ver com a emergência de um novo modo de vida e o esgotamento de um modo de fazer política. Associa-se a uma percepção social de que sociedade está excluída da are-m pública e quer nela ser reconhecida e dela participar. Há muita luta por identidade e reconhecimento no momento atual, além de muito desejo de participação.E tem que ver, sobretudo, com uma correlação de forças que se sedimentou no País ao longo das últimas décadas, formatou um modelo de crescimento e de ascensão social, prometeu mundos e fundos, obteve algumas conquistas, mas criou muitas ilusões e muita insegurança, jogando a sociedade numa armadilha, da qual ela agora mostra querer se libertar.

As vozes dos protestos são amplas, ligam-se por fios que vão da postulação de direitos à contestação da maneira como o País, os Estados e os municípios vêm sendo governados. Escapam ruidosamente da polarização PT x PSDB, mostrando que ela não faz mais sentido. Veem nesses partidos os responsáveis principais pela consolidação de uma prática política que afastou a sociedade do Estado e se mostrou inoperante para renovar e requalificar a política, a democracia e a vida institucional.

São jovens na maioria da ("Velha") classe média porque são eles que têm mais informação, maior disponibilidade e mais energia contestadora. Até certo ponto, também são eles que têm mais a perder (ou menos a ganhar) com a reprodução do estado de coisas atual, que lhes cortou as perspectivas. Mas não são somente eles. Há jovens e não tão jovens que representam outros segmentos, há os que vão às mas por solidariedade ou para demonstrar repulsa à violência, assim como há os que fazem isso por motivações eleitorais e os que vão para zoar, quebrar ou fazer festa. Todos de algum modo dizem: queremos um futuro, que vocês, políticos, empresários, partidos, estão nos impedindo de ter. Não estão totalmente errados.

As vozes são polissêmicas porque nelas cabe tudo. Não há tema ou problema que lhes passe despercebido. São assim porque os problemas sociais são enormes e porque o movimento que as embala não aceita hierarquias, comandos ou planejamento - não tem lideranças nem dirigentes, ainda que este ja organizado e siga algum tipo de plano.

Nessa polissemia que se auto-organiza estão a beleza e a força dos protestos, aquilo que lhes dá impulso e oxigênio. É um avanço político extraordinário que as vozes das ruas estejam sendo | ouvidas. Elas poderão ser a plataforma de lançamento de um novo ciclo democrático no País. O ruído, o atrito, o conflito, a contestação desempenham, assim, papel eminentemente de alerta, de advertência, que somente os pobres de espírito e inteligência poderão desprezar.

O recuo dos prefeitos e governadores no caso das tarifas prova ao mesmo tempo a força do movimento e o despreparo do sistema político. Pode ser um exagero dizer isso, mas tudo leva a crer que não se poderá mais governar como antes. O silêncio dos políticos é constrangedor. A arrogância das cúpulas e das elites - de direita, centro e esquerda - terá de arrefecer. Entramos em outra dimensão. O próprio movimento terá de se reposicionar, após as primeiras conquistas. Na medida em que vierem à tona os desdobramentos da contestação, formas mais organizadas haverão de surgir, sob pena de os protestos serem engolidos por outras dinâmicas. Uma agitação não constrói decisões: pede e exige, mas precisa de articuladores (políticos, partidos, gestores) para que se formate uma agenda. Para que reivindicações cheguem ao Estado, não bastam as redes sociais. Não se trata de lideranças, mas de instâncias que coordenem, processem e lancem pontes para o Estado.

Se o feiticeiro ativou forças com sua magia, não se deve deixar que ele perca o controle sobre elas. O pior que pode acontecer é o movimento desenhado nas mas ser capturado pelo sistema, pelas "forças da reação" ou pela estupidez dos desmiolados.

As mas não têm dono nem voz uníssona e uma hora ou outra baterão no teto. E, quando isso acontecer, poderão se deixar arrastar pelo primeiro demagogo que souber seduzi-las. Populistas de plantão estão de olho nelas. Como sempre.

Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

Fonte: O Estado de S. Paulo (22/06/13)

Poderes e corrupção (Roberto Romano)



As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.

O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas umas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, láficando por breve tempo, sem apoio político.

Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Paralevarasérioa democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é umprocesso no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age comolobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.

Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento. Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador", elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haj a nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".

Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.
As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juizes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais. Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.

Filósofo, professor de ética e filosofia na Unicamp

Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Aprendizado essencial (Marina Silva)



Ninguém deveria estar surpreso, sabíamos que iria ocorrer. A internet ajuda a mudar tudo: a cultura, os negócios, as comunicações. Por que só a política não seria afetada?

Carlos Nepomuceno diz que três fatores ajudaram a transformar o mundo: a impressão em papel, a Revolução Francesa e a independência dos EUA. Eles compuseram a realidade de dois séculos e nos trouxeram até aqui, mas são insuficientes para configurar um mundo com 7 bilhões de pessoas e uma ferramenta que quebra as estruturas convencionais para intermediar a informação, a internet.

Tenho falado, aqui mesmo na Folha, daquilo a que chamo movimentos de borda. Eles se afastam do centro político estagnado, das instituições enrijecidas, das disputas por dinheiro e poder. Neles predomina um ativismo autoral, não mais dirigido por partidos ou lideres carismáticos. A presença destes é residual e produz incômoda sensação de oportunismo. Não há comando único, há relação horizontal e lideranças móveis: hoje lidero, amanhã sou liderado; hoje sou arco, amanhã sou flecha.

Esse ativismo não tem porto, carrega sua âncora e estaciona onde quer. Basta ver quantos sites temporários há na internet, usados numa mobilização ou num momento.

O essencial é perceber o que está latente. Não são os 20 centavos no Brasil, as árvores da praça na Turquia, ou qualquer demanda simbólica visível. O que está em pauta é a democratização da democracia. As pessoas não querem ser meros espectadores, lugar em que foram colocadas pelos partidos que detêm o monopólio da política. Querem ser protagonistas, reconectar-se com a potência transformadora do ato político.

Deve-se reconhecer esse desejo e respeitar o sujeito político que surge. Muitos se apressaram em desqualificar os novos movimentos, os abaixo-assinados, a campanha de defesa das florestas, a solidariedade aos índios, o "Fora Renan". Agora se esforçam para descobrir uma forma de interlocução, mas mantendo a ansiedade de liderar, usurpar, controlar.

Não basta dar 20 centavos para tirar o incômodo da sala. O que está havendo é significativo: no país do futebol, durante a Copa das Confederações, as pessoas protestam contra o custo dos estádios e dizem que queremos nosso dinheiro em saúde e educação.

O Brasil pode aprender a fazer diferente: nem transição eterna e lenta nem ruptura brusca, mas o diálogo produtivo e criativo da democracia ampliada. Temor de vandalismo? Ora, cultivemos uma cultura de paz. Prefiro sentir-me representada pelas pessoas que estão nas ruas, dizendo o que não querem, a exigir que tenham projetos definidos.

Não há salvadores da pátria, há homens e mulheres que trabalham juntos. Que seja este nosso aprendizado essencial, nossa maior mudança.

Marina Silva, ex-senadora

Fonte: Folha de S. Paulo

O movimento da hora presente (Luiz Werneck Vianna)



Eppur si muove mas ao contrário do movimento da Terra, que não sentimos, na frase famosa de Joaquim Nabuco, este movimento que aí está não dá para não perceber. Em cima, em baixo, nas grandes capitais, nas periferias, no coração do Brasil, lá em Belo Monte, entre os índios, os sem-teto, os sem-terra, nas corporações profissionais e entre os estudantes, de dentro dessa crosta encardida que, há anos, a tudo abafava há sinais de vida nova.

Os interesses e as ideias de cada qual são díspares, desencontrados uns dos outros, como seria de esperar numa sociedade que não mais reflete sobre si, que destituiu a política da sua dignidade e converteu os partidos políticos em instrumentos sem vida, máquinas eleitorais especializadas na reprodução política dos seus quadros.

Os acontecimentos recentes em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades - especialmente no caso paulista - somente na aparência podem ser tomados como um raio em dia de céu azul. Igualmente enganoso seria compreendê-los como um mero, embora significativo, episódio de políticas públicas de transporte urbano.

As reportagens dos meios de comunicação, em particular as da imprensa escrita, têm trazido à luz a identidade social de algumas lideranças desse movimento de ocupação popular das ruas, não poucas cursando universidades de elite, para as quais o aumento irrisório nas tarifas dos transportes não teria como explicar a reação, à primeira vista desproporcional, aos poucos centavos acrescidos a seu preço.

A memória política talvez ajude a pensar o caso em tela: no segundo ano do governo de Juscelino Kubitschek, em 1956, um movimento de estudantes durante vários dias tomou as ruas na chamada greve dos bondes, no Rio de Janeiro, então capital federal, e seu alcance foi de tal natureza que se temeu a iminência de uma crise institucional. A crise foi contornada politicamente, com o próprio presidente Kubitschek intercedendo junto ao presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), a quem recebeu em seu gabinete presidencial.

Nesse registro, o que vale notar é que aquela movimentação estudantil transcendia a sua motivação declarada, o aumento do preço das passagens, encobrindo um malaise -sintoma que não escapou das sensíveis antenas políticas do presidente - que se arrastava desde o suicídio do presidente Getúlio Vargas e a subsequente turbulenta sucessão presidencial, em meio a golpes e contragolpes de Estado.

Não há exagero em sustentar que a feliz solução daquela crise - exemplar em termos de sua orientação democrática - vai estar na raiz da afirmação dos movimentos sociais nos anos subsequentes, os chamados "anos dourados", que viram nascer formas expressivas do moderno na cultura brasileira, como no Teatro de Arena, no Cinema Novo e na Bossa Nova, manifestações para as quais a UNE e o seu Centro Popular de Cultura desempenharam um não pequeno papel.

Foi assim que, de modo imprevisto e paradoxal, a modernização das estruturas econômicas do Brasil, desencadeada por clecisões discricionárias do Poder Executivo - os "cinqüenta anos em cinco" -, pôde se tomar compatível, numa sociedade dominada pelo tradicionalismo, com a emergência do moderno com as postulações que lhes são intrínsecas de autonomia da vida social.

O paralelo com a situação atual não é arbitrário: hoje, tal como nos anos 1950* vive-se um tempo de acelerada modernização promovida por indução da ação estatal, que vem revolvendo as suas estruturas sociais e ocupacionais e provocando o realinhamento, em curto espaço de tempo, da posição de classes e de estratos sociais.

Entre tantos processos dessa natureza, deve ser notada a nova configuração das chamadas classes médias, na esteira do processo de desenvolvimento capitalista do Brasil e da mobilidade social que a acompanha, inteiramente distintas, em termos de mentalidade e de inscrição no mercado, das que as antecederam.

Como inevitável, tais transformações vêm repercutindo no sentido de enriquecer as agendas de demandas sociais, como se verifica com o tema da mobilidade urbana que somente agora chega à ribalta. Contudo, esse ângulo tópico é apenas a ponta mais sensível das atuais manifestações -muitas delas mal escondendo a carga de fúria de que são portadoras - que irrompem por toda parte em diferentes cenários, não apenas urbanos.

Porém, sem dúvida, estamos longe das Praças Tahir, do Egito, e Taksim, da Turquia. Os movimentos sociais que emergem diante de nós não estão confrontados com um regime autoritário - vive-se na plenitude das liberdades civis e públicas.

Há, no entanto, um componente novo nessa movimentação social a requerer precisa identificação, a que o repertório de interpretação corrente nos últimos anos não concede acesso. A chave somente se fará disponível quando se compreender que se está diante de uma insurgência democrática em favor do reconhecimento de novas identidades sociais e de direitos de participação na vida pública, especialmente das novas gerações.

A hora da política está chegando e, com ela, a da remoção das instituições e práticas nefastas que a têm degradado, tal como nesta forma bastarda de presidencialismo de coalizão sob a qual se vive, engessando a moderna sociedade brasileira no passado e no anacronismo destes novos coronéis da vida republicana.

Há riscos na hora presente, e um dos maiores deles é o de não agir no sentido de evitar que a juventude se distancie dos valores da democracia, o que pode vir a ocorrer por intervenções desastradas dos atuais governantes. O desfecho de 2013 não pode repetir o de 1968.

Luiz Werneck Vianna, sociólogo, professor-pesquisador da PUC-Rio

Fonte: O Estado de S. Paulo (18/06/13)