terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ano Novo na cor da paz (Carlos Drummond de Andrade)


Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.

O Brasil pode dar certo? (Renato Janine Ribeiro)



Ética e gestão, os dois pilares da boa política

Nenhum inglês rico completava a educação, nos séculos XVII e XVIII, sem o "Grand Tour", uma longa viagem ao continente europeu para conhecer cidades e artes. (O mais ilustre dos preceptores desses moços foi o filósofo Thomas Hobbes, que assim conheceu René Descartes.). Seria bom, hoje que a Europa está ao alcance da classe média, que nossos jovens a visitassem para aprender o que é uma realidade socialmente justa. Ao menos no núcleo duro da Europa Ocidental - França, Alemanha, Benelux, Escandinávia - uma cultura basicamente socialdemocrata se implantou após a Segunda Guerra e ainda resiste, formando um modelo de sociedade até hoje insuperado, superior ao nosso e ao norte-americano.

Levantei no Facebook a questão que considero a mais relevante para o Brasil: por que países devastados, como a Alemanha de 1945, ou atrasados, como a Espanha de 1975, conseguiram "dar certo" - e nós não? As respostas racharam. Em geral, quem se situa à "esquerda" protestou contra a ideia de "dar certo", sustentando que nem os europeus vão bem nem nós, tão mal. Já quem se diz liberal receitou reformas econômicas, como a desregulamentação da atividade empresarial (o exemplo mais comum). Entendo que essas são duas formas de não responder à pergunta mais importante sobre a sociedade brasileira.

Começo discutindo as reações mais à esquerda.

Primeiro, o que é uma sociedade "dar certo"? Entendo:

1) um sistema de saúde eficiente e justo. Eficiente: que todos sejam atendidos bem, em prazo razoável, pelo menos para a maioria esmagadora das moléstias. Justo: ninguém receie que uma doença possa destruir sua renda ou patrimônio; a sociedade, pelo imposto (em especial, o de renda da pessoa física), cobrirá os gastos de saúde. Imaginem como esse ganho em termos de saúde melhorará as aposentadorias. Ninguém precisará passar a vida acumulando para o dia em que pagará 2 mil reais de plano de saúde, mil de remédios e ainda consultas e cirurgias.

2) uma educação de qualidade, gratuita ou quase. A importância inédita que a sociedade contemporânea atribui à educação tem duas grandes metas. Primeira: proporcionar, a todos, condições de concorrer em certa igualdade, neutralizando o bônus que a riqueza confere a alguns (e o bônus negativo que a pobreza inflige à maioria). Segunda: deixar que aflorem as mais variadas competências. Nunca houve sociedade rica e complexa como a atual. Ela precisa de competências mais variadas do que sociedades que só repetiam o passado. Hoje há mais espaço para cada um seguir sua vocação. Uma educação boa realiza vocacionalmente o indivíduo e capacita-o, se mostrar dedicação e empenho, a se projetar economicamente.

3) um transporte público bom, em grande parte - pelo menos nas maiores cidades - sobre trilhos. Na Grande Paris, mesmo no horário de pico dificilmente se gasta mais de uma hora e quinze para ir de uma ponta dos subúrbios a outra - com ou sem acidentes na rota. O transporte coletivo deve ser subsidiado, porque traz vantagens para a cidade, preservando-a da destruição operada por carros e avenidas. O Brasil é perverso: subsidia o carro privado, com isenção de impostos e construção de vias; por que não o transporte coletivo, que é mais saudável?

4) uma segurança pública decente, com policiais que respeitem o cidadão em vez de ameaçá-lo, e sejam dispostos e capacitados a apurar crimes.

Todos estes pontos associam ética e eficiência, valores e gestão. Todos tratam do que é mais justo socialmente, e do que é mais eficaz, virtude esta que geralmente associamos à economia e à administração. A fusão da ética com a eficiência é o segredo - que aguardamos - da boa governança.

Poderia falar da cultura, que aprimora qualidades humanas e capacidades profissionais, e das cadeias, que em vez de educar para o crime deveriam recuperar os detentos (como nas prisões rurais autogeridas de Minas Gerais, tema de recente reportagem do Valor), mas fico no "minimum minimorum". No Brasil, já seria uma revolução.

Esta satisfação das necessidades dá à Europa uma tranquilidade no convívio cotidiano. Se no Brasil as pessoas furam fila e passam pelo acostamento, em parte é pela crença de que "não vai haver o suficiente para todos": precisamos garantir o nosso, antes que a oferta se esgote. Mas, quando há bastante para todos, isso não é necessário. A vida fica melhor. O valor disso não tem preço.

Por isso, estranhei tanta gente que se diz de esquerda fechar os olhos ao desastre social que é nosso atraso nestes pontos. Os avanços petistas na inclusão social apenas tornam prioritária a construção de uma sociedade social-democrática (pouco a ver com o que propõe nosso partido de nome socialdemocrata). As faixas exclusivas de ônibus recentemente abertas em São Paulo fazem parte dessa mudança, mas que precisa ir além do emergencial - como as cotas, o elogiado Bolsa Família - e se tornar estrutural.

Estes anos, aumentou o dinheiro para os pobres consumirem, mas não houve um salto real nas funções distintivas do poder público. É paradoxal. O partido mais acusado de estatista promoveu um crescimento que beneficiou os pobres, sem tirar dos ricos. Talvez esteja se esgotando essa conciliação de classes. Talvez por isso, os conflitos sociais se tornem ásperos.

Discutirei, na semana que vem, o que a centro-direita propõe para o país dar certo.
........
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico (30/12/13)

sábado, 28 de dezembro de 2013

O ano que não terminou (Marco Aurélio Nogueira)



Um ano como 2013, que conheceu protestos do porte dos de junho, não poderia terminar como começou. Não poderia, mas à primeira vista foi o que ocorreu.

As ruas de junho falaram muitas coisas. Suas vozes verbalizaram uma insatisfação que não se imaginava presente no País, cantado em verso e prosa como em franco processo de expansão da renda e do consumo, dando passos de gigante para a frente e prestes a se tomar um dos grandes do mundo. Potencializadas pelas redes sociais, turbinadas pela violência policial e pegando todos de surpresa, as vozes fizeram-se ouvir. Os prefeitos das capitais cancelaram os aumentos da tarifa do transporte urbano, um dos estopins da mobilização.

A presidente convocou cadeia de rádio e TV, disse "estou ouvindo vocês" e acenou com cinco pactos políticos para começar a responder às mas. O gesto inteligente revelou iniciativa, mas pouco produziu de concreto. Dele sobrou somente o Programa Mais Médicos, que se ajustou bem ao cenário nacional e ajudou o govemo federal a recuperar parte da popularidade perdida. O programa que poderia ter sido o carro-chefe da recuperação do SUS, porém, ficou no meio do caminho.

Queimou-se uma oportunidade. É fácil criticar os governos e constatar que eles não souberam reagir às mas de junho. Mas os governos, que têm seus défícits próprios - técnicos, políticos, operacionais são estruturas integradas ao sistema político, dependentes dele, não tendo como ser muito melhores do que ele. E no Brasil o sistema é ruim demais. Falta-lhe quase tudo o que se espera de um organismo que existe para funcionar como esteio da democracia política e ponte pela qual trafeguem e sejam processadas as demandas e aspirações populares.

O sistema prejudica os governos, bloqueando eventuais predisposições que gestores possam ter de abrir canais de negociação com a sociedade.

O padrão, o volume e a forma de expressão das demandas também determinam a qualidade das respostas governamentais. Houve um pouco de tudo nas ruas de junho, mas não houve quem dispusesse as diferentes reivindicações numa agenda que pudesse ser traduzida politicamente e determinasse as ações governamentais. O próprio movimento das ruas não mostrou particular capacidade ou interesse de dialogar com o poder: denunciou o que não está bom, mas não indicou caminhos para mudar. Teve caráter mais explosivo e espasmódico do que construtivo. A velocidade e a expressividade foram sua marca, não a paciência ou a "guerra de posição". Ao depararem com um muro de silêncio no Estado, os protestos dispersaram-se e o que sobrou acabou por se confundir com escaramuças mais agressivas e violentas.

O ano de 2013 mostrou que as relações entre o Estado (governos e sistemapoiítico), o mercado e a sociedade civil estão carentes de encaixe e de coordenação.

O poder de agenda de cada um desses polos é desigual: sobra no mercado, falta no Estado e na sociedade civil. Há mais competição e luta pela vida que política. Não espanta que tudo pareça solto, sem rumo, fora de controle.

Passado o primeiro choque, o sistema político recompôs-se e o País submergiu no ritmo irritante de antes. Mostrou-se perigosamente indiferente às ruas, como se estivesse a alimentá-las e a pedir que voltem a agir.

No chão da vida, 2013 continuará pulsando, a invadir 2014 com questões não resolvidas. Não dialogou com elas, não decodificou seus sinais, não demonstrou nenhuma capacidade de iniciativa e interação. Deu-se o mesmo com os governos. O mundo institucional permaneceu fechado ao mundo social.

Os motivos, as pulsões e as circunstâncias que levaram milhões de brasileiros às ruas em junho permanecem intocados. Na ausência de respostas do sistema político, de providências governamentais e de ganhos organizacionais dos próprios manifestantes, as ruas refluíram e hibernaram. Mostraram sua juventude, sua forma política surpreendente, seu ativismo midiático que se vale de redes sociais e celulares. Não encontraram pontes e braços que as projetassem para o centro do Estado, porque os que estão no Estado não conseguem sentir as ruas e quem está nas ruas não acredita que o Estado esteja interessado em ouvir ou dialogar. As ruas hibernaram, mas permanecem vivas, em condições de mobilização latente, fiéis ao mix de hipermodernidade, injustiça e caos que as qualifica.

Por isso, quando saímos da primeira percepção, constatamos que 2013 não terminou do mesmo modo: foi contagiado pelos protestos de junho, ainda que o sistema político não se tenha dado conta disso. O ano, a rigor, não terminou, pois aquilo que o distinguiu fez com que ele se projetasse, invadisse e condicionasse o ano novo, transferindo para ele um bom lote de questões não resolvidas.

É ilusório achar que a bonança prevalecerá depois da inesperada tempestade. A insatisfação de parte expressiva da população mistura-se hoje com a resignação tradicional e com um encantamento submisso ao poder do Estado. A combinação dessas três vertentes político-culturais - a insatisfação, a resignação, o encantamento - é nitroglicerina pura. Desaguará de algum modo nas eleições de 2014.

Isso não quer dizer que as urnas do próximo ano beneficiarão as oposições. Antes de tudo, as oposiçôes seduzem pouco, não inspiram confiança, não sugerem um futuro diferente. No meio delas, porém, há dinâmicas de novo tipo, que poderão cumprir importantes funções de oxigenação e democratização. Uma eventual vitória situacionista não será mero prolongamento da situação atual. A conservação das posições políticas não significa estagnação política, especialmente se se levar em conta a alta taxa de problemas do País e tudo o que nele se mexe.

O ano que desponta trará consigo novas oportunidades para que se recomponham as relações entre Estado e sociedade. 2013 está prestes a acabar, mas não a terminar, a não ser no calendário. No chão da vida, continuará pulsando, a invadir 2014

Bom ano-novo para todos.

Marco Aurélio Nogueira, professor titular de teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo

"Sustentabilidade está fora da pauta de 2014" (José Eli da Veiga/entrevista)



Vanessa Jurgenfeld

SÃO PAULO - O economista José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), diz que ainda nenhum pré-candidato à eleição presidencial de 2014 adotou o desenvolvimento sustentável como prioridade.

Para Veiga, os políticos em geral, na verdade, não sabem o que significa desenvolvimento sustentável e não perceberam que a sustentabilidade se tornou um valor equivalente a outros, como igualdade e liberdade. Diz que aquele que tem o desenvolvimento sustentável como prioridade deveria ter a ciência e a tecnologia como principal área no seu governo. "O Brasil infelizmente é uma nação infantil em ciência e tecnologia. Não acordou para a importância da educação científica", afirmou, em entrevista ao Valor. "Teve uma época em que falar de educação de qualidade era muito importante porque houve um acesso grande e estava faltando qualidade fosse qual fosse. Não estamos discutindo isso agora. Estamos discutindo uma estratégia para o Brasil", acrescentou.

Os próprios royalties do pré-sal, afirma o economista, não deveriam ter sido vinculados à educação de maneira geral, mas sim à ciência e tecnologia, incluindo educação. "É impressionante que a gente fale 'segunda lei da termodinâmica' e ninguém nunca tenha ouvido falar", disse, sobre alguns dos problemas do ensino no país.

Veiga foi um dos fundadores do Rede Sustentabilidade, que acabou não tendo a candidatura da ex-ministra Marina Silva aprovada. Em breve, ele pretende ajudar a dupla Eduardo Campos-Marina na elaboração de propostas. Mas faz uma ressalva: "Só entrarei na campanha se Campos vier a encarnar um projeto que conteste o atual governo pela esquerda".

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O sr. acha que os possíveis candidatos de 2014 vão ter foco no desenvolvimento sustentável?

José Eli da Veiga: A minha impressão é que eles não sabem o que é desenvolvimento sustentável, exceto a Marina. Mas a Marina não é mais candidata à Presidência. Tenho minhas dúvidas de que forma Eduardo Campos (PSB) entende isso. Eu não o conheço bem. E também acho que o discurso dele [Campos] não está suficientemente conhecido para saber até que ponto leva em consideração o desenvolvimento sustentável. Mas a minha impressão geral é que, com raras exceções, os políticos ainda não chegaram lá. Desenvolvimento sustentável para eles ainda é uma coisa um pouco vaga. Na verdade, não perceberam que a sustentabilidade se tornou um valor equivalente a outros como igualdade e liberdade.

Valor: O sr. achou a aliança de Marina Silva com Eduardo Campos acertada?

Veiga: Acho que em primeiro lugar todo mundo ficou surpreso e ele [Campos] não escapou disso. Houve muitos relatos na imprensa. Até o momento em que Marina soltou isso naquela reunião, ninguém imaginava. Foi realmente uma grande surpresa. A Marina observou a trajetória dele, como foi sua a atitude em relação à criação do Rede, o fato de ele ter como secretário do meio ambiente em Pernambuco um nome muito ligado à Marina (Sérgio Xavier, do PV, que foi uma pessoa-chave para colocar a Marina no PV em 2010). Acho que ela tinha referências de que isso [aliança com Eduardo Campos] poderia ser coerente.

Valor: E está coerente, na sua opinião? Há uma busca de Campos pelo apoio do agronegócio, por exemplo. Como fica essa equação com uma ambientalista como vice?

Veiga: Acho que a gente está pagando um preço pelas pessoas usarem essa expressão "agronegócio" sem mais.

Valor: Como assim?

Veiga: Se você pegar os que são colocados como os principais representantes do agronegócio, nenhum é do agronegócio. São da agricultura. Agronegócio em principio é, por exemplo, a Natura.... Isso é que é agronegócio, porque é uma empresa do setor transformador de produtos que têm origem na natureza. Quando você vê cálculos econômicos, como o do PIB do agronegócio, nele entra até indústria farmacêutica. No entanto, quando você vai ver, Roberto Rodrigues é fazendeiro, é agrônomo. O presidente da Rural [Sociedade Rural Brasileira (SRB)] é proprietário de terra. O que criou o problema com a Marina, o deputado Ronaldo Caiado, é médico, mas é basicamente um especulador fundiário. Esse pessoal que tem gado no centro-oeste não é nem agricultor. O que é a agricultura no Sul do país comparada com o que é um fazendeiro de gado no Centro-oeste? São coisas completamente diferentes.

Valor: O sr. está se referindo a latifundiários?

Veiga: É que essa palavra está muito carregada. Então, em geral, evito usá-la Mas, assim, proprietário de terra que ganha mais com a valorização da terra do que com o negócio....

Valor: Mas qual a relação disso com Campos? Ele está buscando essas pessoas?

Veiga: Suponho que ele saiba que neste discurso do agronegócio se escondem muitas coisas. Tem desde anjo até bicho-papão e tudo usa o rótulo de agronegócio. Mas, na verdade, você não pode tratar da mesma forma um empresário produtivo e eficiente da agricultura basicamente do Sul e Sudeste da mesma forma que você lida com um grande fazendeiro de gado do Centro-Oeste. No Centro-Oeste, grande parte do cerrado foi ocupada de maneira absolutamente predatória. Já foi. Essa briga toda que teve em torno do novo Código Florestal não era tanto para saber o que vai acontecer daqui para frente. É que eles queriam que nós, como sociedade, aceitássemos e convalidássemos que eles destruíram as áreas de preservação permanente e puseram capim, que é a coisa mais absurda, contra qualquer regra agronômica.

Valor: Depois do capim não dá mais para recuperar...

Veiga: Pior, algumas dessas áreas vão para desertificação. O fato é que destruíram áreas de preservação permanente [APPs] adoidado e quiseram, com o Código Florestal, legitimar isso. A briga foi essa. Então, a bronca que existe contra a Marina e contra nós todos que pensamos em sustentabilidade - e eu não sou ambientalista - é o fato de que a discussão era para que não fosse legitimado o que fizeram e que eles fossem colocados a recuperar essas áreas. Qualquer agrônomo, mesmo que seja de extrema direita, concorda comigo. Da mesma forma que eu - contrariamente a muitas pessoas do chamado ambientalismo - entende que, se uma área tem um potencial (alta aptidão agrícola), é normal que seja desmatada. Teria que existir um mecanismo de compensação, que se ainda a gente hoje tiver áreas com florestas mas que tenham um solo de alta aptidão agrícola, compense a gente desmatar essas, desde que sejam recuperadas outras. Já as áreas que têm baixa aptidão agrícola deveriam ser todas reflorestadas. As áreas de preservação permanente não têm aptidão agrícola alguma. São margens de rios, nascentes. Aí que está o conflito.

Valor: Poderia explicar melhor o conflito?

Veiga: Na agricultura, tem dois tipos de rentabilidade: a rentabilidade corrente, que é essa em função do teu esquema produtivo, mas você tem também uma rentabilidade patrimonial alta, que costuma ser mais importante do que a produção em si. Hoje um agricultor que consiga tirar uma rentabilidade comparável ao que ocorre em outros setores, como o financeiro, é herói. Esse cara não tem absolutamente nada a ver com os caras que contestam a Marina.

Valor: Mas muitas pessoas os veem unificados em torno do termo agronegócio.

Veiga: Existe um espírito de corpo criado neste setor que é surpreendente. Recentemente, teve uma entrevista do Roberto Rodrigues, que é um dos mais arejados do setor, e ele deixou isso muito claro. Ele sabe que Caiado não tem nada a ver com ele, mas eles têm uma espécie de pacto, de que eles jamais aceitam uma coisa que os diferencie. Querem falar como uma coisa só, um setor, um corpo. Então, há um jogo aí. Usam essa expressão agronegócio, mas, na verdade, é o setor agropecuário.

Valor: Campos e Marina estão selecionando apoios nesse grupo?

Veiga: Não sei se estão selecionando. O discurso da Marina é pelo aumento da produção pela produtividade e não pela área. Quantos desses caras topam isso? Os agricultores tecnificados em geral estão buscando isso, eles topam. Quem não vai topar é o sujeito que só ganha dinheiro se fizer uma pecuária ultraextensiva, sem gerar nenhum emprego, onde basta um empregado e a única coisa que ele vai fazer é dar sal ao gado e ficar esperando o dia em que vai levá-lo para o abatedouro. Esses caras não têm nenhum plano de aumentar a produtividade. Pelo contrário. Sequer querem aumentar a produção. Preferem manter esse esquema rentável, principalmente se vier uma valorização das terras.

Valor: Não há então uma contradição, Campos e Marina estão buscando aqueles que são favoráveis a um projeto verde?

Veiga: O ideal, evidentemente, seria poder dizer quem dentro desse bloco é da agricultura sustentável porque eles seriam mais sensíveis a uma candidatura deste tipo. Mas ainda não está muito clara essa diferenciação. Nas lideranças do dito agronegócio, esse pessoal ligado à sustentabilidade morre de medo dos outros. Morre de medo de dizer alguma coisa que possa contrariar a Katia Abreu [presidente da CNA]. Então, não é fácil. O que Campos tem tentado fazer é que todo mundo que topa conversar, ele vai conversar. E eles [Campos e Marina] não vão fechar com ninguém. Farão uma plataforma e vão apresentar para todos e depois esperar no que vai dar.

Valor: Acha que a candidatura de Campos é em prol do desenvolvimento sustentável?

Veiga: A da Marina teria sido com certeza. A do Eduardo Campos, se eu disser que sim, vai ser partidarismo. Ele tem sido extremamente cauteloso nos discursos. Não noto que ele é o candidato do desenvolvimento sustentável, por enquanto. Pode até vir a ser.

Valor: A Marina, sendo vice, não tem força para a candidatura dele ter essa bandeira?

Veiga: Tem estímulo, mas esbarra em muita coisa. A imprensa tem procurado mostrar isso quando diz que ele ganhou essa vitamina, com apoio da Marina, mas já tinha compromissos estaduais que não vão nesta direção. Particularmente, aqui em São Paulo, por exemplo, se o PSB resolver mesmo manter essa aliança que tem com os tucanos, acho que isso descaracteriza completamente a candidatura dele aqui. Eu, por exemplo, não vou fazer campanha para Campos se isso significar apoio ao Geraldo Alckmin [governador de São Paulo]. E como eu deve ter uma torcida do Flamengo.

Valor: Há dois economistas que são importantes nesta candidatura de Marina e Campos - o André Lara Resende e o Eduardo Giannetti da Fonseca. Podem trazer essa agenda do desenvolvimento sustentável?

Veiga: Sim. Eu conheço bem os dois. Acho que eles têm uma identificação grande com a Marina. Não notei ainda se eles têm a mesma identificação com o Campos. Não deram nenhum sinal.

Valor: Algumas pessoas estão considerando esses economistas como ortodoxos...

Veiga: Acho que essa divisão ortodoxo e heterodoxo, no caso particularmente deles, está superada. Não é por aí que a gente vai entender o que eles pensam. O Eduardo Giannetti, principalmente quando voltou do doutorado na Inglaterra, foi visto como um cara extremamente ortodoxo. Mas pergunta para todo mundo que diz que ele é ortodoxo se leu os livros dele. Se você lê "O Valor do Amanhã" e diz que ele é um economista ortodoxo, isso é estranho. O Lara Resende pode até ser que pudesse ser considerado economista ortodoxo lá atrás. Mas, agora, é o contrário. Está no extremo oposto. Esteve recentemente no Instituto FHC e fez uma crítica pelo lado da neurociência, da escolha racional. Foi um bombardeio ao ortodoxismo. Então, dizer que um cara como Lara Resende hoje possa ser classificado como ortodoxo é falta de informação brutal. Hoje ele é uma dos mais radicais críticos ao ortodoxismo que dispomos no Brasil.

Valor: Que mudanças em direção ao desenvolvimento sustentável o eleito em 2014 deveria ter?

Veiga: Para alguém que é pelo desenvolvimento sustentável, a primeira questão que tem que surgir é ciência e tecnologia. Não temos a mínima chance de nada no futuro sem que seja dada prioridade total à pesquisa científica e tecnológica voltada à inovação. Vivemos numa nação que não acordou para a educação científica. A população não vigia a escola para saber se ela está preparando seus filhos para daqui dez ou 20 anos. Não tem assunto mais importante. Tinha que ser a espinha dorsal da proposta. Não adianta falar que em educação de qualidade. Não é o mesmo.

Valor: Como avalia a ciência e tecnologia no governo Dilma?

Veiga: O governo Dilma até não foi dos piores. Foi muito ruim no início do governo Lula, com Roberto Amaral (PSB). Foi péssimo. Mas não se trata de avaliar se o Ministério da Ciência e Tecnologia e desempenha bem ou não. Não é isso. Por exemplo, há pouco tempo discutiu-se a vinculação dos royalties do pré-sal à educação. Deveriam ter sido vinculados à ciência e tecnologia, incluindo educação.

Valor: Ficou muito aberta a definição?

Veiga: Falar de educação de qualidade era muito importante porque houve acesso grande e estava faltando qualidade fosse qual fosse. Não é disso que se trata agora. Estamos discutindo uma estratégia para o Brasil. Qualquer país que saiu da periferia não tem outra explicação a não ser essa. O caso mais badalado é o da Coreia do Sul. Todos esses países quase inviáveis, como Cingapura, fizeram isso.

Valor: A prioridade para ciência e tecnologia vai ocorrer nessa formação de Campos e Marina?

Veiga: Não vejo isso no discurso do Campos. Mas eles têm um trunfo. Por incrível que pareça, se você olhar para 15 anos atrás, um foi ministro da Ciência e Tecnologia (Campos) e outro foi ministro do Meio ambiente (Marina), que é o símbolo da sustentabilidade no Brasil. Então, quer dizer, não tem coisa melhor. Mas eu não estou vendo eles explorarem esse lado.

Valor: O sr. está ajudando na formulação de propostas da união Campos-Marina?

Veiga: Vou ajudar. Recentemente, o que fizeram foi soltar um site em que as pessoas podem ler texto básico e fazer sugestões. Dessa fase não participei. Mas eu estou disponível. Mas desconfio que muita gente nesse movimento não tenha a mesma visão de que a ciência e a tecnologia deva ser o eixo de tudo.

Valor: Vai participar da campanha eleitoral?

Veiga: Pretendo me empenhar muito na campanha caso essa pequena coalizão realmente desafie a candidata do centrão fisiológico (Dilma) pela esquerda. O inverso do que forçosamente ocorrerá com a candidatura Aécio, que peitará o centrão pela direita. Em suma: ajudarei na formulação das propostas que a Rede submeterá à coalizão, mas só entrarei na campanha se Campos vier a encarnar um projeto que conteste o atual pela esquerda. Se por qualquer razão isso não puder ocorrer, será mais produtivo, além de gratificante, esticar meu estágio anual de pesquisa no exterior para pensar no projeto do Rede para 2016.

Fonte: Valor Econômico (27/12/13)

As ruas e a democracia (Mauro Malin)



O publicitário que forjou o mote do Repórter Esso, noticioso de saudosa memória, desaparecido do rádio em 31 de dezembro de 1968 – “Testemunha ocular da História” –, certamente não conhecia, ou não acatava, o provérbio russo segundo o qual “Ninguém mente mais do que uma testemunha ocular”. Testemunhas oculares da rebeldia de junho-julho de 2013 – o processo mais importante ocorrido em décadas na sociedade brasileira – foram jornalistas das mais diferentes mídias, convencionais ou não. Da qualidade de seus relatos dependeu o grau de afastamento da realidade que marcou as percepções coletivas dos acontecimentos e suas conexões (as percepções individuais são infinitas e infinitamente discordes entre si). Depende o grau: afastamento houve, em qualquer hipótese.

O trabalho jornalístico é crucial e qualquer exame da situação do país não pode prescindir dele. Mas está longe de resolver sozinho o desafio de entender o que acontece. É preciso analisar e interpretar os fatos. Isso é o que faz de modo muito seguro o utilíssimo livro As ruas e a democracia – Ensaios sobre o Brasil contemporâneo, de Marco Aurélio Nogueira, editado pela Fundação Astrojildo Pereira, do PPS, e pela editora Contraponto. Marco Aurélio é diretor do Centro de Análise de Políticas Públicas e Conjuntura do Instituto de Políticas Públicas e Relações Institucionais (Ippri) da Unesp, parceiro do Observatório da Imprensa e do Instituto CPFL | Cultura no projeto “Ruas em Movimento.”

É um trabalho produzido no calor da hora, o que implica risco de precipitação nos juízos, na percepção de dinâmicas, na historicização. Marco Aurélio, porém, lastreia suas análises em categorias sólidas e nítidas, muito estudo da antigamente chamada realidade brasileira, uma observação atenta dos fatos, interesse em se aproximar da verdade e honestidade intelectual. E escreve bem. Muito bem. Leitor suspicaz: antes de desconfiar que o elogio é ação entre amigos, leia o livro.

Crise e protesto
A primeira questão abordada, no ensaio “Brasil 2013: as vozes das ruas e os limites da política”, é a do sentido das manifestações, suas origens, seu contexto, suas modalidades, seu potencial de transformação política. Marco Aurélio aponta uma crise como cenário em que brotou o “protesto maciço contra as graves deficiências do sistema de prestação de serviços públicos”.

“Crise de representação e de legitimidade – uma crise da política – que vinha de longe e permanecera relativamente adormecida até então.” O autor faz remontar à eleição de Fernando Collor, em 1989, o mal-estar provocado por um sistema que se dissociou da sociedade. Consequência das limitações de um processo de redemocratização tutelado em grande medida pelos militares e por forças políticas, econômicas e sociais a eles associadas.

Sempre é preciso estabelecer um marco temporal para a análise, mas o inventário das frustrações populares pode – deve, talvez – recuar mais. As gerações se sucedem, é indispensável tentar entender o imaginário coletivo das que estão hoje no palco, participaram dos protestos ou os apoiaram, mas não é menos verdade que cada geração herda das anteriores parte substantiva do material com que elabora suas concepções, suas queixas, seus sonhos, suas iras.

40 anos de frustrações
As gerações que participaram da eleição de Collor tinham na memória imediata o fracasso do Plano Cruzado (1986-7), a morte de Tancredo Neves (1985) e a derrota das Diretas (1984). As que as precederam, e assim sucessivamente, em ordem cronológica invertida, ressentiram o longo período transcorrido entre a derrota da ditadura nas urnas (1974) e a entrega (condicionada) do poder aos civis, o AI-5 (1968), o fim das eleições diretas para governadores e a extinção dos partidos políticos da Constituição de 1946 (1965), o golpe de Estado que depôs João Goulart (1964), a renúncia de Jânio Quadros (1961), a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek (1955), o suicídio de Getúlio Vargas como resposta ao cerco político que lhe foi feito (1954), a repressão política e sindical do governo Dutra (1946-50).

De cada processo ou episódio desses se podem aproximar movimentos de trabalhadores ou explosões de fúria popular, não poucas vezes reprimidos brutalmente pela polícia. Também devem ser inscritas no rol das frustrações as eleições vencidas por políticos posteriormente afastados ou cerceados. Cabe adicionar à lista incontáveis episódios de saques praticados por “flagelados” da seca, quebra-quebras em trens, ônibus, barcas, incêndios e repressão em favelas e bairros pobres, episódios violentos de reintegração de posse de terrenos invadidos, revoltas e massacres em prisões, chacinas fora delas.

Uma expressão urbana de insatisfação que não saiu da paisagem desde o início da década de 1980 são as pichações, lembradas pelo jornalista Bruno Paes Manso no debate do “Ruas em Movimento” realizado em 3/12 (ver “Lições esquecidas“).

Com foco temporal mais fechado, não podem ser esquecidos os movimentos de operários de grandes obras, dos quais o mais impressionante ocorreu em março de 2011, na construção da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, quando 100 ônibus foram queimados e a infraestrutura de um dos dois canteiros de obras foi inteiramente destruída por 10 mil homens enfurecidos.

Também não se pode atribuir exclusivamente à presença de delinquentes o estado de beligerância continuada que vigora entre e nas torcidas organizadas de times de futebol. É mais um entre tantos sintomas de mal-estar.

Ação preventiva antipovo
O pós-Collor é caracterizado no livro As ruas e a democracia como um período em que, depois de se abrir para a sociedade e expelir um “corpo estranho”, as elites políticas, agindo preventivamente, “fecharam o sistema, fazendo com que ele ficasse mais corporativo e mais [na primeira edição está escrito “menos”] refratário às pressões e demandas da sociedade, menos propenso, portanto, a ações reformadoras.”

O diagnóstico que se segue recobre os governos de Fernando Henrique (1995-2002) e de Lula (2003-2010):

“Constrangidos por consórcios multipartidários sem eixo programático e compostos de modo fisiológico, os governos assistiram à desconstrução de seus planos”. Disso decorreu uma “crise sistêmica, que encontra apoio em múltiplos aspectos: econômicos, socioculturais, políticos, éticos, institucionais, governamentais.”

Idêntico é diagnóstico recente de Clóvis Rossi:

“É evidente que a democracia está em dívida com parcelas substanciais de brasileiros, argentinos e latino-americanos em geral” (“A democracia está em dívida“, Folha de S. Paulo, 15/12).

Perversão sistêmica
Marco Aurélio critica a condução da economia desde FHC até hoje. Tratar-se-ia de um modelo econômico que “não promove nenhuma expansão sustentável da economia e, sobretudo, prolonga as bases históricas da subordinação e da vulnerabilidade externa, da acumulação com baixas taxas de investimento e muito voltada para o setor primário-exportador, do predomínio de grandes grupos econômicos e, por extensão, da concentração da renda e da riqueza.”

É de se supor que, sem as medidas de distribuição de renda adotadas desde o primeiro governo Lula, nem teria havido ânimo coletivo a permitir protestos tão grandes e incisivos como os de junho e julho, tese que o próprio governo de Dilma Rousseff procurou colocar em evidência. Isso não impede Marco Aurélio de considerar que “a perversão sistêmica tornou-se mais grave no decorrer dos últimos 15 anos, justamente quando os grupos dirigentes passaram a ser integrados por quadros e políticos do PT. O fato mesmo de terem sido esses grupos a sacramentar a continuidade do modelo econômico e das alianças com os setores dominantes – mediante um arranjo que envolve partidos, sindicatos, associações estudantis, intelectualidade, ONGs e uma miríade de entidades de representação –, bem como a reproduzir as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, funcionou como elemento adicional de frustração e indignação (...).”

“Transformismo”
Em vez de um “ataque do trabalho contra o capital, o que seria de se esperar em se tratando de um partido de esquerda que chegara ao poder”, viu-se “‘transformismo’, naquele sentido que Gramsci atribuiu ao termo: um método para garantir a realização de um programa limitado de reformas e prolongar a permanência no poder mediante a cooptação de membros da oposição.”

Não era novidade na vida brasileira. A novidade é que “o protagonista da nova onda ‘transformista’ foi precisamente o partido que parecia encarnar a sua mais firme e intransigente crítica. O que era oposição à ‘revolução passiva’ passou a responder por sua gestão e reprodução.”

Depois de expor mais em detalhe alguns gargalos do “modelo social-desenvolvimentista brasileiro”, Marco Aurélio afirma que, depois de ter tido êxito em postular a condição de “esquerda possível” no Brasil, Lula e o PT revelaram baixa capacidade hegemônica. O PT, “em vez de projeto de hegemonia, organizou um projeto de poder”.

Sem imprensa própria
Não está entre os tópicos abordados no livro, mas é de se perguntar por que o PT jamais encarou seriamente o desafio de ter uma imprensa própria, como qualquer partido ou movimento com pretensão a travar a batalha das ideias. Uma hipótese, que não será explorada aqui, é que o partido de Lula nunca teve a unidade interna indispensável para constituir seus próprios meios de comunicação de massa.

Após a conquista do poder, desde a primeira prefeitura (Diadema, 1982) e escalando sucessivamente as esferas do poder executivo, o PT recorreu crescentemente à publicidade oficial, como qualquer partido “tradicional” brasileiro. A disposição de “fazer como os outros” ficou patente na escolha de Duda Mendonça como marqueteiro da campanha eleitoral de Lula em 2002. À testa do governo federal, o PT esqueceu definitivamente qualquer veleidade de republicanismo no uso de dinheiro público para promover suas ações e intenções.

Acreditaram nas próprias mentiras
A propósito, não seria má ideia o Congresso, as assembleias estaduais e as câmaras municipais discutirem mecanismos de avaliação do uso desse dinheiro para tal finalidade. A propaganda partidária, nem é preciso dizer, continuaria livre de qualquer avaliação, exceto a dos eleitores e a dos guardiães dos preceitos constitucionais que regem a liberdade de expressão. Fica lançada a proposta.

Não se deve excluir que a propaganda oficial, ao convencer seus próprios patrocinadores das fantasias que servia ao povo, os tenha impedido de ver que o Brasil não era de fato toda aquela lindeza vendida em sofisticadas peças publicitárias (esse tema foi abordado neste Observatório em “Fatos levaram multidões às ruas“). A mistificação municipal, estadual e federal voltou às telinhas com toda a força neste final de 2013.

Cenário de crise
A deterioração do quadro decorreu de uma “crise do sistema político” que se aprofundou continuamente, escreve Marco Aurélio. “A corrupção cresceu ininterruptamente. Os governos – todos eles, sem exceção, em Brasília e nos estados – continuaram a exibir falhas graves e desempenho medíocre, tanto em termos de gestão e de políticas públicas quanto em termos de comunicação e diálogo com a população. Os partidos políticos, mais atentos aos apelos do Poder Executivo do que à sociedade, seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias.”

Segundo o autor, os governos progressistas brasileiros não conseguiram fugir da fôrma “da modernização autoritária que presidiu o desenvolvimento do capitalismo no país”. E Lula, em particular, “contribuiu para que se mantivesse – em nível superior – a marca histórica desse desenvolvimento: um sistema centralizador, com uma cúpula revestida de grande ativismo decisório e capacitada para assimilar e compor os interesses sociais.”

Não se trata de crítica unilateral ao PT e seus aliados. Uma sucessão frenética de escândalos faz esquecer os que são substituídos nas manchetes. Hoje está em foco o julgamento e a prisão de envolvidos no mensalão – que, como lembrou Fernando Gabeira no O Estado de S.Paulo (20/12), cometeram crimes contra a democracia –, mas há apenas 17 meses foi cassado o mandato de um expoente do denuncismo reacionário, Demóstenes Torres, senador pelo DEM de Goiás, por ter feito lobby a favor do bicheiro Carlinhos Cachoeira, cujo protagonismo e relações com empreiteiras e governantes foi recolhido aos bastidores, para conveniência de poderosos federais, estaduais e municipais.

Marco Aurélio rejeita a teoria conspiratória de que a mídia conservadora teria trabalhado para fazer com que a população se voltasse contra o governo Dilma e o PT. Essa fabulação subestima a “situação social concreta em que se vive” e o “caráter da própria mídia atual, que privilegia imagens, sensações e percepções. E não monopoliza o pensamento e as escolhas das pessoas.”

Questão urbana
O livro descreve brevemente as mudanças por que passou a sociedade brasileira nas últimas décadas:

“Tornou-se mais dinâmica e mais diferenciada, com mais mobilidade social, novas culturas e novas expectativas. Passou a funcionar cada vez mais em rede. Os centros de poder entraram em crise, perderam transparência e força. (...) Há uma revolução em marcha, mas ela não é a dos trabalhadores e a das classes médias. É uma revolução sem revolução, a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o que está instituído.”

Entra na análise, com toda a força, a questão urbana. O Brasil tem hoje cerca de 83 cidades com mais de 250 mil habitantes. Para comparação, os Estados Unidos, com 300 milhões de habitantes, têm 74 cidades com essa dimensão populacional. O padrão brasileiro de urbanização pode ser considerado, sem nenhum exagero, uma fábrica de aflições. “As cidades aumentaram em tamanho e em problemas”, escreve Marco Aurélio. “Converteram-se em barris de pólvora, ambientes em que tudo é difícil, oneroso e existencialmente pesado. Não foi por acaso que as manifestações de junho eclodiram nas grandes metrópoles: é que nelas se concentram os maiores horrores do Brasil moderno e é nelas que a modernidade se radicalizou.”

Jovens em risco
O autor faz um recorte para mostrar a situação precária dos jovens (40 milhões entre 15 e 24 anos, que, na maioria, moram em cidades). Para começar, cerca de 1,5 milhão de jovens entre 19 e 24 anos não estudam, não trabalham e não procuram trabalho. Trinta por cento dos jovens vivem em famílias com renda familiar per capita abaixo de meio salário mínimo por mês, aproximadamente 53% pertencem ao estrato com renda familiar per capita entre meio e dois salários mínimos e só 15% são oriundos de famílias com renda familiar per capita superior a dois salários mínimos.

Argumenta Marco Aurélio:

“O jovem emerge no espaço público como vítima da violência e da repressão policial, como consumidor e objeto de campanhas publicitárias, não como sujeito. A taxa média de homicídios atinge 28 por 100 mil habitantes, ao passo que os homicídios juvenis alcançam 54 por 100 mil jovens. Os jovens também são as principais vítimas de acidentes de trânsito, respondendo por 26,5% das vítimas fatais e 37% das vítimas não fatais. Do total de mortes juvenis, 17% ocorrem em acidentes de trânsito.”

Opressão
Esses dados, mais, acrescentemos aqui, o sofrimento interminável dos milhões que moram em favelas e periferias pobres, compõem um quadro que surpreendia sobretudo pela ausência da grandes explosões de fúria coletiva. Mais do que qualquer outro elemento – isso não está no livro, mas é convicção do autor do presente texto –, o que explica a calmaria no atacado, contraposta a frequentes espasmos no varejo, é que o país vive em estado de opressão da base da pirâmide social. A violência da polícia não é um “desvio”, não é falta de formação técnica adequada, é instrumento indispensável de dominação.

A polícia, grosso modo, é o que os donos do poder querem que ela seja. E exerce a opressão em condições que lhe são favoráveis: moradias, saúde, educação precárias, salários baixos, vozes pouco ouvidas nos meios de comunicação de massa, como imaginar que os cidadãos criem condições para resistir? Que efeito maior tiveram ao longo dos anos as milhares de manifestações que se limitaram ao fechamento de ruas e estradas com queima de pneus ou outros métodos de protesto?

No Rio de Janeiro, em poucas décadas do final do século 20, centenas de presidentes e diretores de associações de moradores foram assassinados por traficantes ou milicianos, que puseram representantes seus no comando de muitas dessas entidades. A polícia não quis ou não soube impedir esse massacre.

Carro incentivado
Uma combinação de investimento insuficiente em transporte público, dado histórico, com uma mais recente facilitação da compra de automóveis agravou o quadro urbano, em mais de uma vertente, não apenas a da chamada mobilidade urbana. Numa palestra em Brasília, em agosto de 2013 (7o Encontro Preparatório para o Fórum Mundial de Ciência), o professor Elimar Nascimento, da Universidade de Brasília, argumentou:

“O planejamento é importante porque de certa maneira nos conduz a seguir critérios sobre o que queremos ser como nação. E isso, evidentemente, orienta as políticas públicas em geral e a de fomento de ciência e tecnologia em particular. Nossos objetivos nacionais devem ser ter um PIB maior, em crescimento constante, ou melhor qualidade de vida dos brasileiros?

“Alguém pode dizer: não há nenhuma contradição entre os dois. Há. Quando eu retiro tributo da produção do automóvel e aumento o número de automóveis em circulação, eu crio mais estresse, perda de tempo – capital irreversível –, aumento o número de mortes, aumento o custo da manutenção das estradas, retiro dinheiro da saúde em determinados pontos para tratar dos acidentados. Mas eu tenho um aumento do PIB. Agora, se todos nós decidirmos amanhã ter um canteiro para plantar nossas hortaliças, teremos comida saudável, o prazer de receber o amigo com o alface que plantamos, mas o PIB não sai do lugar.”

Sonhos fracassados
Segundo Marco Aurélio Nogueira, “as pessoas foram às ruas não tanto pelo que perderam, mas pelo que não conseguiram obter, por sonhos que fracassaram. Suas reivindicações plurais necessitam, para serem atendidas, de passos grandes e ousados. Nesse ponto, os brasileiros esbarram em sua própria história de ‘revolução passiva’ e ‘modernização conservadora’, que travou o progresso social, oligarquizou a política e legou para o futuro um verdadeiro continente de pobres e excluídos.”

Essa avaliação dá a dimensão dos desafios à frente. Qualquer pessoa que encare com alguma lucidez o panorama brasileiro não poderá fazer prognóstico menos rigoroso. Marco Aurélio toca num ponto crítico: “a questão de saber se a politicidade das ruas pode se compor com a politicidade dos políticos e do Estado.”

Embora as ruas tenham sido “mais políticas do que os partidos, ainda que não tenham se convertido em sujeitos políticos”, elas “não se mobilizam de modo permanente e somente conseguem manter regularidade e se ‘converter em Estado’ se estiverem acompanhadas de sujeitos políticos mais estáveis e capacitados para criar pontes com o Estado e a vida institucional.”

Escrevendo em setembro de 2013, diz o autor que a inquietação nas ruas reaparecerá, porque “a dimensão estrutural dos problemas não sofrerá alteração, ao menos no curto prazo”, mas “o que se ganhou com as jornadas de junho poderá ser diluído se os protestos futuros não trouxerem consigo a superação de sua fragmentação e a formação de subjetividades políticas mais estáveis. Ou se, neles, ganharem maior projeção as orientações neoanarquistas – individualizantes, contrárias à política e à institucionalidade e dispostas ao confronto em nome de uma ‘violência simbólica’ que somente gera caos e desorganização.”

Buscam-se coisas simples
As reivindicações das ruas são resumidas assim no livro:

“Queremos um Estado aberto para as pessoas, menos dependente do capital, desvinculado de multinacionais, bancos e empresários. Mais social e menos econômico. Os jovens que protestaram, no fundo, pediram coisas simples: circulação urbana livre, ampla e irrestrita, ‘mais parques e menos shoppings’; megaeventos só quando indispensáveis, autossustentáveis e culturalmente densos, internet livre, respeito aos direitos de todos e especialmente das minorias, polícia civilizada, perspectiva ambiental, serviços públicos de qualidade e universais. Mais cidadãos e menos consumidores, mais Estado e menos mercado, em suma.”

Os governos têm entretanto grandes dificuldades para responder de modo satisfatório a essas demandas. Entre outros fatores, as instituições políticas não estão capacitadas a fazê-lo, constata Marco Aurélio. O discurso positivo das autoridades “é desmentido cotidianamente pelos fatos”. A necessidade de uma reforma política é maior do que dá a entender a banalização do tema: “A superação da ditadura nos anos 1980 não teve força para ajustar as instituições políticas e impor um novo modo de fazer política, situação que se agravou com as transformações socioculturais ocorridas nas décadas seguintes.”

Em outras palavras do mesmo autor, “o Brasil ainda não construiu a democracia como modo de vida e de organização social fundado na liberdade, na participação e na busca de igualdade social, no qual um Estado republicano cumpre funções reformadoras essenciais.”

O balanço, quando o texto foi escrito, mostrava que o sistema havia retomado o controle da situação, com o governo recuperando o equilíbrio e a iniciativa. A despeito de ter havido novas e significativas manifestações em outubro, a avaliação conjuntural se revelou acertada. Até o presente momento (20/12), pode-se dizer que será preciso esperar 2014 para saber o que foi feito das ruas de 2013.

Análise concreta
Na abertura do ensaio “Depois de junho. Sobre as respostas governamentais”, Marco Aurélio define o que é análise concreta da situação concreta: “trabalho paciente, espírito indagador e disposição metodológica para articular a estrutura e a superestrutura, a sociedade e o Estado, os interesses, as classes, os valores, a correlação de forças, de modo que se alcance uma visão articulada dos fatores e motivações que fazem com que as pessoas tomem partido e ajam, buscando captar ao mesmo tempo suas implicações e possíveis repercussões.”

Tarefa que cumpre com brilhantismo em As ruas e a democracia.

Sobre a mídia
Entre os demais ensaios do livro há um, esclarecedor, dedicado ao tema “Mídia, democracia e hipermodernidade”, muito útil seja em termos de atualidade, seja porque seu tema é precipuamente o deste Observatório. Ele será examinado em tópico posterior.

Livro em debate
Em debate no dia 13 de novembro com Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da USP, prefaciador do livro, e Matheus Pichonelli, editor do portal da Carta Capital, Marco Aurélio definiu As ruas e a democracia como uma “parada estratégica para abastecer a cabeça”, sugerindo “o que foi, o que não foi e o que ficou” do “grito de angústia coletivo contra o modo de vida urbano do início do século 21”, uma expressão do “repúdio à política e seus operadores e contra a má qualidade das políticas públicas”.

Seu efeito político mais importante terá sido incomodar os governantes, mas, tendo em vista a péssima reação do sistema político, que “não estabeleceu um canal com as ruas” – embora o governo Dilma, especificamente, tenha agido nessa direção –, é possível que tenha sido perdida uma oportunidade de mudar a política brasileira. Em todo caso, educação, saúde e transporte são temas inocultáveis. Marco Aurélio disse que as polarizações eleitorais entre PT e PSDB emburrecem o país.

Batalha semântica
Pichonelli relatou as dificuldades postas à cobertura jornalística das manifestações: “Ninguém estava entendendo o que estava acontecendo, havia uma batalha semântica e produzir entendimento era muito arriscado”. O jornalista acha que a imprensa pecou muito na descrição das coisas. Deu como exemplo o convite feito pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, para que uma integrante do Movimento Passe Livre (MPL) fosse conversar com ele na prefeitura em tête-à-tête. “Ela, evidentemente, não aceitou, e isso foi interpretado como recusa ao diálogo.”

Contrapôs à modernidade líquida proposta por Zygmunt Bauman as “respostas no campo sólido” que continuam sendo dadas pela política. Na visão de Pichonelli, não foi por acaso que o grito coletivo passou pelos transportes: “Viu-se que não havia mobilidade”, enquanto “empresas lucram com um sistema que tolhe anseios.” E citou o dado de que 37 milhões de brasileiros não têm acesso a transportes por falta de dinheiro. O jornalista elogiou o livro, que “dá espaço para que as perguntas sejam formuladas”. Considerou “ato de coragem estruturar num livro uma análise do que aconteceu.”

Falsa hegemonia
Janine citou os bordões “A mágoa mata mais” e “Mais amor, por favor” para ilustrar a ideia de que “toda grande mudança social envolve algo que não era demandável”. Em relação ao balanço dos últimos anos, disse que “o PT tornou irreversível a inclusão social”, mas apontou o risco de se eternizarem medidas de emergência.

Segundo Janine, o que se viu foi algo de muito promissor, apontando para se conquistar o que falta para a consolidação da democracia brasileira. As manifestações, entretanto, esqueceram os resultados obtidos desde o fim da ditadura.

Janine também se referiu ao PT e ao PSDB, que em sua opinião promovem uma “briga fratricida entre os melhores partidos do país.” Ele mencionou o que considera os feitos dos três maiores partidos: “o PMDB lutou contra a ditadura, o PSDB conteve a inflação e o PT promoveu a inclusão social.” Disse que houve um “esgotamento da agenda da inclusão social no imaginário, não no real.”

Referiu-se a uma situação de “hegemonia imperfeita” em decorrência de a) a política brasileira ter pouca densidade cultural; b) os partidos brasileiros não terem tido competência para criar instrumentos de hegemonia; c) muitas vezes se conceber hegemonia como poder eleitoral. Disse que o PT “trocou a verdadeira hegemonia pela falsa hegemonia”.

“No mundo atual, as políticas públicas são o tema da hegemonia”, definiu, “e a batalha hegemônica é construir um relacionamento social que harmonize a questão das políticas públicas.” Como PT e PSDB não se preocupam com a hegemonia, “talvez predomine a hegemonia neoliberal.”

Fonte: Observatório da Imprensa, 24/12/2013 na edição 778

Dos que tanto amam odiar a imprensa (Eugênio Bucci)



Primeiro, eles acusavam a imprensa de ser um "partido de oposição" e pouca gente se incomodou. A acusação era tão absurda que não poderia colar. Numa sociedade democrática, relativamente estável e minimamente livre, os jornais vão bem quando são capazes de fiscalizar, vigiar e criticar o poder. O protocolo é esse. A normalidade é essa. Logo, o bom jornalismo pende mais para a oposição do que para a situação; a imprensa que se recusa a ser vista como situacionista nunca deveria ser atacada. Enfrentar e tentar desmontar a retórica do poder, irritando as autoridades, é um mérito jornalístico. Sendo assim, quando eles, que se julgavam aguerridos defensores do governo Lula, brandiam a tese de que a imprensa era um "partido de oposição", parecia simplesmente que os jornalistas estavam cumprindo o seu dever - e que os apoiadores do poder estavam simplesmente passando recibo. Não havia com o que se preocupar.

Depois, as autoridades subiram o tom. Falavam com agressividade, com rancor. A expressão "partido de oposição" virou um xingamento. Outra vez, quase ninguém de fora da base de apoio ao governo levou a sério. Afinal, os jornais, as revistas e as emissoras de rádio e televisão não se articulavam nos moldes de um partido: não seguiam um comando centralizado, não se submetiam a uma disciplina tipicamente partidária, não tinham renunciado à função de informar para abraçar o proselitismo panfletário. Portanto, acreditava-se, o xingamento podia ser renitente, mas continuava sendo absurdo.

Se os meios de comunicação tivessem passado a operar como partido unificado, com o intento de sabotar a administração pública, o que nós teríamos no Brasil seria um abalo semelhante ao que se viu na Venezuela em 2002. Ali, houve um conluio escandalosamente golpista dos meios de comunicação que, por meio de informações falsificadas, tentou derrubar o presidente Hugo Chávez, eleito democraticamente havia pouco tempo. Por fortuna, a quartelada mediática malogrou ridiculamente. Por escassez de virtú, Chávez passaria todo(s) o(s) seu(s) governo(s) se vingando das emissoras que atentaram contra ele.

No Brasil, não tivemos nada parecido. Nossa imprensa, convenhamos, é preponderantemente de direita e, muitas vezes, apresenta falhas de caráter, algumas inomináveis, mas nunca se perfilou com a organicidade de um partido político. Por todos os motivos, a acusação continuava sem pé nem cabeça.

Mas o fato é que começou a colar e o cenário começou a ficar esquisito. Agora, as inspirações até então submersas daquela campanha anti-imprensa afloram com mais nitidez. Era um recurso para dar tônus à disposição dos cabos eleitorais (de muitos níveis), para inflar o ânimo dos militantes de baixo e para inflar o ego dos militantes de cima. Agora, chegamos ao ponto de dizerem que os repórteres deram de ombros para a cocaína encontrada no helicóptero da família do senador Zezé Perrella (PDT-MG) porque ele, embora esteja filiado a um partido da base governista, teria lá suas inclinações consideradas pouco fiéis. Difícil saber. As mesmas vozes acusam os mesmos repórteres de terem exagerado na cobertura do julgamento do mensalão. Na falta de uma oposição de verdade que pudesse servir de vilã cruel, na falta de um satanás mais ameaçador para odiar (a "herança maldita" de FHC não funciona mais como antagonista imaginária), querem fazer valer essa ficção ufanista de que o País vai às mil maravilhas, só o que atrapalha a felicidade geral é esse maldito partidarismo da imprensa. A tese pode ser doidona, mas está funcionando. Alguns quase festejam: "Viva! Achamos um inimigo para combater! Vamos derrotar os editores de política deste país!".

Deu-se, então, um fenômeno estranhíssimo: as forças instaladas no governo, como que enfadadas do ofício de governar, começaram a fazer oposição à imprensa. Dilma Rousseff jamais embarcou na cantilena, o que deve ser reconhecido e elogiado, mas está cercada de profetas que veem em cada redator, em cada fotojornalista, uma ameaça ao equilíbrio institucional.

A oratória petista depende de ter um antagonista imaginário. Sem isso, parece que não para mais de pé. Sim, temos aí um traço de discurso autoritário. Em todo regime autoritário ou totalitário, a figura mais essencial é a do inimigo. Para os nazistas, esse inimigo estruturante foram os judeus. Para o chavismo, foi o imperialismo, encarnado por Bush, que teria cheiro de enxofre. E mesmo Bush só conseguiu salvar seu mandato do fiasco porque lhe caiu no colo o inimigo chamado terrorismo. É claro que não se pode dizer que o PT atualmente se reduza a um discurso tropegamente autoritário, mas as feições autoritárias e fanatizantes desse discurso vão ganhando densidade a cada dia. Não obstante, está assentado em bases fictícias, completamente fictícias.

Vale frisar este ponto: sem um inimigo para chamar de seu, esse tipo de ossatura ideológica se liquefaz. O que seria dos punhos cerrados dando soquinhos no ar sem o auxílio luxuoso do inimigo imaginário? O que seria dos sonhos de martírio em nome da causa? O que seria das fantasias heroicas e do projeto ambicioso de virar estátua de bronze em praça pública?

Foi aí que a imprensa entrou no credo. Na falta de outra instituição disposta a não se dobrar ao poder, disposta a desconstruir os cenários grandiloquentes armados pelas autoridades, eles encontraram na imprensa a sua razão de viver e de guerrear. Só assim, só com seu inimigo imaginário bem definido, esse discurso encontra seu ponto de equilíbrio: ficar no poder e ao mesmo tempo acreditar - e fazer acreditar - que está na oposição, que combate um mal maior. Seus adeptos, que imaginam odiar a imprensa sem se dar conta de que a temem, agarram-se à luta com sofreguidão. Estão em ponto de bala para o ano eleitoral de 2014.

Mesmo assim, feliz ano-novo.

Jornalista, professor da USP e da ESPM

Fonte: O Estado de S. Paulo (26/12/13)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Monções Capixabas: a "Indústria das chuvas" e a novíssima "Geopolítica" da sucessão estadual (José Roberto Bonifácio)

A primeira visita oficial de Dilma Rousseff, enquanto presidente da República, permitiu que, aos poucos se descortinasse o cenário da crise climática do ES e seus contornos geopolíticos, na relação do setor público estadual com a União e com as municipalidades, ambas hoje severamente questionadas ou precarizadas.
O que chefe de Estado viu foi praticamente uma paisagem desolada, típica dum país carente como Bangladesh, a qual os habitantes do próprio lugar outrora reputavam como demonstrativa duma visão idílica, quase que européia (mais especificamente italiana ou alemã) de sua mesma realidade. Num momento em que mais de 40 cidades se acham sob estado de emergência e quase 50 mil pessoas (quase 2% da população capixaba) se acham desabrigados e tantos outros deslocados de suas casas e comunidades, a infraestrutura rodoviária (BRs 101, 262 e 259, ES 010 e 040 e outras semi interrompidas nas microrregiões Norte e Serrana) praticamente toda comprometida, todo o efetivo dos bombeiros deslocado para o interior do ES (base eleitoral mais fiel do atual governador), descobrimos que não há nada tão ruim que não possa ser piorado de algum modo.

O emblemático caso da ausência do prefeito Rodney Miranda (DEM) de seu municipio trata-se tão somente de um entre inúmeros de prefeitos da Grande Vitória e do interior, ausência esta não apenas no sentido físico do termo para a quase maioria dos administradores municipais...É licito e necessário crer que o prefeito de Vila Velha realmente se equivocou ao interpretar a ameaça e assumiu riscos que não devia. O que é ou vem a ser quase um crime de responsabilidade civil objetiva do administrador público. É bem verdade que os gestores da Grande Vitoria tem agido relativamente bem e eficazmente - exceto Vila Velha.

Em função disto tornou-se alvo da imprensa regional e nacional e assim  um veículo tradicionalmente oligárquico como A Gazeta ataca Rodney mesmo sabendo que isto mancha a reputação do hartunguismo e olvidando sua própria colaboração na produção de sua imagem de liderança emergente. Sujeitar Vila Valha a mais um ciclo de instabilidade política, decorrente duma campanha pró-impeachment, pode ser outro risco artificial, tal qual ocorreu nos anos 1980 e 1990 deixando seqüelas duráveis na gestão urbana e na cultura política. Mesmo sabendo que ele pode ter incorrido em crime de responsabilidade e numa infração da Lei Orgânica Municipal não se autoriza a crença de que o interesse coletivo da municipalidade será melhor servido desta maneira, pois uma operação politica deste tipo (quase um 3º turno para alguns) termina sem resolver a questão estrutural presente no cotidiano da sociedade.

De absolutamente líquida (excessivamente por sinal) e certa temos somente  a constatação de que os riscos politicos aqui no ES, além de artificiais como diria um célebre sociólogo britânico, são quase que sazonais: se os estados do Nordeste tem aquilo que o escritor Antonio Callado denominava a "indústria da seca"¹, pode-se dizer que os do Sudeste (particularmente RJ e ES)² tem a "indústria da chuva". Em outras palavras, as elites politicas destas unidades da federação tem a chance e os meios de transformar a crise climática na oportunidade de melhorar sua posição na distribuição de recursos públicos federais alocados em base discricionária ou legalmente determinada pela União.

Como reportam inúmeros internautas, e se tornou algo assim muito significativo pela ótica da desnaturalização do fenômeno, há defeitos surgindo em série por quase todas as rodovias federais e estaduais. A catástrofe climática se transformou também numa catástrofe logística e de infraestrutura, para não dizer urbana ou habitacional.

Por estas e  outras, é que  há sempre recorrentemente uma disputa em cima do ônus e do bônus politico desta crise climática, envolvendo o governador, a Assembléia Legislativa, os principais partidos políticos da coalizão governante (notadamente o PT, o PSB e o PDT)³, os prefeitos e a União4.

Ano após ano e ninguém, dentre eleitores e formadores de opinião, aprende a real e complexa natureza do desastre climático. As elites sabem muito bem o jogo que estão jogando, sabem quando conflitar e quando cooperar. Neste instante, o contraste não poderia ser maior, entre as comoventes imagens natalinas de pessoas de variadas etnias e classes sociais cooperando e se solidarizando para ajudar os desabrigados, enquanto as lideranças se digladiam.

O pior mesmo é perceber que os capixabas (não o povo of course) continuam  raciocinando feito caranguejos em meio à crise, dado que está aberta a temporada de batalhas politicas. Escolhas trágicas deverão ser feitas e estão sendo feitas.

Notas:

*Sociólogo (UFES) e Especialista em Ciência Política (IUPERJ). Professor da da UVERSITA - Universidade Aberta (SP) e do curso de Pós- Graduação Lato Sensu Gestão de Instituições sem Fins Economicos com ênfase em Medidas Sócioeducativas da Faculdade Unidas (ES). Email: bonifacio78@gmail.com.

²Para breves estimativas, diagnósticos e avaliações iniciais do volume de recursos públicos envolvidos ver:

³O PT ES tratou de, imediatamente, reivindicar crédito, pelo restabelecimento da conexão com Brasília. Senão vejamos a Nota oficial divulgada pela presidência estadual da legenda: "A confirmação da vinda da presidenta Dilma é fruto de um trabalho coletivo de autoridades capixabas, reforçado pela Executiva Estadual do PT, pela senadora Ana Rita Esgário , pela deputada federal Iriny Lopes, pelo vice-governador Givaldo Vieira e pela bancada petista estadual. Nós, do PT-ES, temos a convicção de que a vinda da nossa presidenta irá contribuir ainda mais para agilizar a liberação de recursos federais para o Espírito Santo neste grave momento de nossa história."............................................................................................................
..............................................................................................................................................................

4 “Só para termos uma idéia da lentidão e inoperância da Secretaria do Sr. Iranildo Casado com relação ao convênio n° 668646 para “Desassoreamento e ampliação da calha do Rio Formate associado a canalização e reservatório de amortecimento de cheias” publicado em outubro de 2011 no valor de 10,8 milhões de reais (exatamente R$ 10.832.670,94) a Secretaria do Sr. Iranildo Casado utilizou até o dia 2 de outubro de 2013 a quantia irrisória de 71 mil reais (exatos R$ 71.496,47).
Mas não só, dos recursos liberados pelo PAC 2 em 2011 para o Governo do estado do ES relacionados à “Prevenir novos deslizamentos, contenção de encostas em áreas de risco, controle de enchente e inundações com obras de drenagem, além da redução de áreas vulneráveis a deslizamentos” TODOS estão no estágio de “Ação Preparatória”, ou seja, NENHUM foi iniciado.” (Cf. Font, Emilio)<http://www.aecapixaba.org.br/2013/12/enchentes-em-vila-velha-incompetencia.html#more>.

 Na verdade o ataque parte do gabinete da senadora Ana Rita, que ironicamente chegou ao parlamento como suplente do então atual governador. Evidentemente que há uma disputa por recursos, funções e cargos mas o problema em tela deriva mais de falhas gerenciais na elaboração de projetos básicos para obras e serviços de engenharia - o que é um problema nacional - do que de incapacidade singular deste ou daquele governo estadual. É bem verdade que o grupo de interesses das empreiteiras e construtoras que se faz representar pelo vidigalismo (e em parte pelo coserismo) está sendo fortemente questionado não somente pelo controle duma área relevante e sensivel de planejamento e "fazejamento" mas também pelos equipamentos de logística e infraestrutura existente (veja o estado das rodovias e das pontes).Em verdade, o PT (neste caso a Articulação de Esquerda) mira um secretario do PDT mas acerta diretamente o governador e sua equipe gerencial. Em cheio! Este mesmo PT (na pessoa de Coser e da bancada federal e suas conexões ministeriais) que reivindica crédito por atrair Dilma ao ES pela primeira vez apos eleita. Aos que assistiram a entrevista da Dilma na TV Tribuna - quase simultânea ao pronunciamento oficial de Casagrande na TV Gazeta - ficou claro que ela empurrou as responsabilidades mais onerosas para a conta do governador: "nós mandamos tudo que eles pediram!" Em menos de 24 hs foram três golpes certeiros na administração estadual - e consequentemente no partido de Eduardo Campos -, de modo que a coalizão PT/PSB está praticamente em guerra fratricida a partir deste momento. Contudo esta batalha ainda trará inúmeros rounds e idas e vindas.
5Da parte da mídia estadual, a visita permitiu suplantar o foco de atenção sobre o delegado-prefeito e investir numa nova (velha) temática que acentua a baixa votação da presidente no estado e o que se atribui como reação a isto : ES é um dos estados que menos recebeu verba de prevenção de desastres em 2013. Estado recebeu R$ 13,6 milhões, contra R$ 400 milhões de Pernambuco http://bit.ly/1gURVqz