sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Sem questão (Marina Silva)



Quase sempre focados na política institucional e no debate de interesses setoriais, esquecemos de ver as causas profundas dos fenômenos sociais, da luta entre mudança e estagnação que às vezes toma a cena e nos surpreende.

Um estudo da pesquisadora Joana Monteiro, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, nos faz contemplar o abismo. "Os Nem-Nem-Nem: Exploração Inicial Sobre um Fenômeno Pouco Estudado" mostra que um milhão e meio de brasileiros entre 19 e 24 anos, nas faixas mais pobres da população, nem trabalham nem estudam nem procuram emprego. Um contingente numeroso e crescente, capaz de impactar a economia e o ambiente cultural nas próximas décadas.

Embora de modo quase invisível, esses jovens já impactam o Brasil. Seu desalento alimenta tendências sociais desagregadoras. Certamente, têm expressiva participação nas altas taxas de evasão escolar, mortalidade juvenil por acidentes, suicídio e violência.

O que faz com que esses jovens tenham perdido o desejo de investir em si mesmos? Sua pobreza de esperanças não nos deve restringir à falta de oportunidade material como causa única, ainda que esta seja muito relevante. Talvez nossa sociedade esteja sendo acometida de um adoecimento ainda mais grave, que se caracteriza pela ausência da capacidade de acreditar "em", da capacidade de desejar.

Claude Le Guen, em seu "Édipo Originário", diz que é impossível amar a si mesmo sem antes ter amado ao outro. Talvez seja também impossível investir em si mesmo sem antes ter investido no outro. Isso pode ocorrer quando somos privados do investimento do outro, sejam eles cuidadores próximos, pais, avós, professores e amigos, mas também cuidadores distantes, associados às instituições civis ou religiosas. Sem a inscrição de seus ideais identificatórios em nós não há como elaborarmos uma promessa de existência significativa, digna de auto-investimento relevante.

Os antigos gregos falavam de uma paidéia, um grande ideal identificatório que balizava sua educação e cidadania. Nossa sociedade parece subtrair-se a esse investimento em ideal, utopia e valores. É como se a economia fosse só consumo; a política, apenas disputa de poder; a cultura, só espetáculo. Como se a democracia pudesse ser mera forma, vazia de conteúdo.

Se os ideais não ocorrem nem na família nem na escola nem na sociedade não há como ter projeto de vida e resta o deserto. Nele brotam os nem-nem-nem, que, pela privação sócio-afetiva são esvaziados do desejo, imprescindível para se viver. Ser ou não ser, tanto faz, não há questão.

Sem teto, sem terra, sem emprego, sem educação, abram alas para a tragédia maior dos sem-desejo.

Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do meio ambiente

Fonte: Folha de S. Paulo

Colhendo os frutos da violência (Fernando Gabeira)



A presença no interior do País, que alguns jornalistas chamam de Brasil profundo, às vezes me deixa em dúvida se estou levando em conta todos os dados possíveis da realidade. Será que tudo o que estou vendo é só um refluxo do movimento de massas e a ocupação do terreno por grupos radicais que usam a violência como um instrumento pedagógico?

Usei um verso de Drummond para definir os acontecimentos de junho: nasce uma flor no asfalto. E disse que seu maior inimigo era a violência, que terminaria por esvaziar as mas e fortalecer o lado que se pretende combater. Não pensava em nada do tipo conselho aos jovens. Apenas dizia que é ilusão supor que a História recomeça do zero. Vive na minha memória, e de todos os sobreviventes dos anos 6o, a lembrança dos acontecimentos que resultaram na luta armada e no fortalecimento da ditadura militar.

Os grampos que se radicalizam na maré baixa dos movimentos acreditam estar mantendo o espírito e preparando nova investida. No 7 de Setembro, quem sabe? Tenho algumas razões para discordar dessa tática, para além da pura e simples objeção à violência. Claro que não me importo com os mal-entendidos nem espero indulgência dos críticos. Valho-me do sentido da realidade que às vezes abandona os grupos radicais quando as mas se esvaziam e só ouvimos o barulho do trânsito.

Nas ruas multidões portavam cartazes dizendo: "Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil*. As pessoas viam isso com tolerância, pois era verossímil que tamanha energia concentrada pudesse mudar o País. O mesmo não vale para um grupo de vanguarda, pois é difícil atribuir capacidade de modificar o País a círculos isolados que se escondem sob máscaras e destroem símbolos do capitalismo.

Essas ações pedagógicas são realizadas na esperança de que I se universalizem, de que outros as sigam e todos juntos destruam o sistema. Por essa esperança as pessoas se arriscam a ser presas. Acham que mais cedo ou mais tarde vingarão os frutos de sua ação pedagógica. O difícil é ver o tempo passando no cárcere e perceber que tudo aquilo era uma ilusão, constatar que a maioria esmagadora segue rejeitando a violência como forma de luta política.

É preciso passar um tempo no cárcere, comprometer a própria vida, para aprender essa lição elementar? Pode ser que entre os que queimam e destroem haja alguns que o façam por uma simples explosão nervosa. Mas os que organizam sistematicamente e consideram a tática correta estão jogando conscientemente com o próprio futuro.

Cansei de ver quebra-quebras em Berlim no 1.° de Maio. Sempre os mesmos, sempre na mesma loja de departamentos.

E a Alemanha segue seu rumo.

Os políticos agora refluíram e a polícia brasileira parece indecisa sobre o que fazer com a violência que sobrevive no rescaldo das grandes manifestações. Os políticos temem a eleição, sabem que, mesmo calados, terão dificuldades em 2014. Por que se pronunciar e afastar mais a chance de voltar ao cargo?

Os resultados da baixa maré são claros. As bandeiras principais dos movimentos foram enfraquecidas. O governo recupera gradualmente o prestígio perdido. Não importa se o gigante acordou ou voltou a dormir. Vamos supor como correta a inversão daquela frase comum: quanto mais as coisas ficam as mesmas, mais elas mudam. Ainda não sabemos o impacto que o movimento de junho deixou na consciência de muitos. A pura observação nos autoriza a dizer que se buscava mais a condenação da política do que propriamente uma alternativa. Não só continuaram insolúveis alguns problemas na área política, como se acentuaram os indícios de que a ilusão de prosperidade sustentada foi para os ares.

A queda do real é só mais um capítulo da queda na realidade. Espera-se um aumento da gasolina e com ele mais aperto no bolso, apesar de sua correção. A sensação de crise econômica ; aos poucos vai se impondo à euforia da prosperidade, mas não há nenhuma esperança, no momento, de que possa ser superada por uma visão correta do atual governo.

A política externa brasileira continua sendo a política de um partido. Foi preciso que um jovem diplomata arrancasse um asilado de um quarto da embaixada em La Paz e fugisse com ele para o Brasil. No episódio da prisão dos torcedores corintianos, o mesmo diplomata, Eduardo Saboia, se esforçou para atendê-los enquanto as negociações com Evo Morales patinavam.

Estive na Bolívia para cobrir a revolta dos índios contra a construção de uma estrada na região Amazônica com financiamento do BNDES. Dois governos que se dizem populares se meteram numa aventura altamente impopular. Alguns adeptos do PT acham que é preciso falar fino com a Bolívia e grosso com os EUA. Será que a maioria da Nação realmente se sente paternal diante da Bolívia e ofendida diante dos EUA?

Com todos os descaminhos do governo é preciso contar apenas com novas manifestações? Elas têm um grande poder, mas já não somos inocentes sobre seu alcance real. Os políticos encenam um esforço concentrado, esperam o refluxo do movimento e caem, de novo, nas mesmas práticas repulsivas.

As grandes manifestações de junho tiveram o poder de revelar a incapacidade do sistema político no conjunto, a incompetência do governo e a repulsa à corrupção. Está na hora de valorizar não só o protesto, mas a busca de alternativas reais para o País. O crescimento dos últimos anos, apoiado numa bolha de consumo, parece ter chegado ao fim. A mediocridade do governo fica mais clara ainda.

Manifestações são vitais, mas a História é mais parecida com maratona do que tiro de cem metros. E a política,uma navegação que requer conhecimento dos mares, rochedos, portos a serem alcançados e as dificuldades do caminho. Estamos à deriva. Tal como na Espanha, sabemos o que as pessoas não querem. Prevemos altos índices de voto nulo. Cairá a legitimidade do poder político. Saída mesmo ainda não se vê no horizonte.

Jornalista

Fonte: O Estado de S. Paulo

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

E ele não disse 'África' (Demétrio Magnoli)



Meio século atrás, à sombra do Memorial de Lincoln, em Washington, Martin Luther King pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era "África" - ou "africanos", ou mesmo "afro-americanos". Nessa ausência se encontra a prova da atualidade do discurso mais célebre do século 20. Deveríamos ouvi-lo novamente, prestando atenção no contraste entre aquela linguagem e a utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.

King aludiu à Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln, "um grande farol de esperança para milhões de negros escravos", mencionou as "algemas da segregação" e as "correntes da discriminação" que, cem anos depois, ainda aleijavam "a vida dos negros", e falou sobre a "solitária ilha de pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material", na qual viviam os negros. No discurso de agosto de 1963, os negros eram definidos por referências situacionais (escravidão, segregação, pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou origem).

Americanos, não "afro-americanos" - isso são os negros, na linguagem de King. Os negros, que experimentam "o exílio em sua própria terra", marcharam à "capital de nossa nação" para cobrar uma promessa de igualdade escrita "pelos arquitetos de nossa República" na Declaração de Independência e na Constituição. A luta para resgatar aquela "nota promissória" ergueria "nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade". Ela não deveria "conduzir-nos a desconfiar de todas as pessoas brancas", pois "muitos de nossos irmãos brancos (...) compreenderam que o destino deles está preso ao nosso" e que "a liberdade deles está inextricavelmente ligada à nossa".

A linguagem de King não desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo imediato, mas uma narrativa sobre a origem dos Estados Unidos, seu alvo distante. Tal narrativa, uma versão da ideia do melting pot, se coagulara no final do século 19 como reação à libertação dos escravos e como chave lógica para a segregação racial oficial. Ela descrevia os Estados Unidos como uma nação de colonos brancos rodeada por minorias raciais (indígenas, asiáticos e negros africanos). No discurso que completa 50 anos, King contestava todo esse cortejo de noções identitárias emanadas do pensamento racial. Não, dizia, a nação é outra coisa - é aquilo que está escrito nos textos fundadores!

A contestação de King separava-o de uma longa tradição da política negra nos Estados Unidos. W. E. B. Du Bois entalhara o mito da raça na fachada da venerável NAACP, a principal organização negra americana. Ele não acreditava no valor explicativo de "grosseiras diferenças físicas de cor, cabelos e ossos", mas invocava "forças sutis" que "dividiram os seres humanos em raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo".

"Nós", dizia Du Bois, "somos americanos por nascimento e cidadania" e "em virtude de nossos ideais políticos, nossa linguagem, nossa religião". Contudo, acrescentava, "nosso americanismo não vai além disso", pois, "a partir desse ponto, somos negros, membros de uma raça histórica que se encontra adormecida desde a aurora da criação, mas começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana". Afro-americanos: o termo, cunhado muito depois na bigorna do multiculturalismo, foi concebido no início do século 20 como um fruto do pensamento racial. A atualidade do discurso de King encontra-se precisamente na sua ruptura com a visão de Du Bois, que era um reflexo da narrativa racista sobre a nação branca.

Du Bois, revisitado pelo multiculturalismo, não o universalismo de King, é a fonte das políticas oficiais de raça no Brasil. Um documento de "orientações curriculares" para a "educação étnico-racial" da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, datado de 2008, sintetiza as diretrizes que, a partir do MEC, disseminam entre os jovens estudantes a noção de divisão da humanidade em raças. O texto deplora a vasta diversidade de cores utilizada pelos indivíduos em declarações censitárias, que contribuiria "para diminuir o potencial político da população afro-brasileira".

"A pluralidade de cores no país diz quem é o povo brasileiro, mas não sua identidade étnico-racial", segundo os sábios da secretaria. A solução para a carência identitária residiria numa especial reinterpretação das palavras dos declarantes. Operando como "um agente social de reconhecimento eficaz do outro", transformando-se "em alguém mais ativo no processo de identificação", o recenseador produziria em tabelas e gráficos a "população afro-brasileira" que não emerge das autodeclarações. Em termos diretos, trata-se de manufaturar uma fraude censitária com a finalidade de gerar as tais "raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo" de que falava Du Bois. Destinado a professores, o texto veiculava a mensagem inequívoca de que na sala de aula a linguagem da raça é um imperativo absoluto, em nome do qual se deve ignorar a informação censitária factual.

"Eu tenho o sonho de que meus quatro pequenos filhos viverão, um dia, numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo teor de seu caráter." A sentença nuclear do discurso de King não solicitava o reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela exigia que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus documentos fundadores, segundo o qual "todos os seres humanos são criados iguais". A igualdade entre indivíduos livres de todas as cores, não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era a reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia permanece tão atual, lá e aqui.

Eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que milhões de exemplares do discurso de Martin Luther King sejam distribuídos, clandestinamente, como material subversivo nas escolas brasileiras.

*Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

Fonte: O Estado de S. Paulo

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

As chances de Eduardo Campos (Renato Janine Ribeiro)



Confesso ter minimizado, indevidamente, o alcance das aspirações presidenciais de Eduardo Campos. O governador de Pernambuco não é o candidato com mais chances em 2014, à primeira vista, mas no quadro atual desfruta de condições singulares que podem ser bastante favoráveis.

Vejamos. Campos é o único candidato que, provindo da base de governo, à qual ainda pertence, é capaz de conquistar votos na oposição. Neto de Miguel Arraes, o governador mais odiado pela direita golpista de 1964, tem boas credenciais no campo que vai da esquerda ao centro. E é presidente do PSB, que disputa com o PMDB o segundo lugar na aliança governamental; dependendo do critério, é um ou outro.

Também é quem melhor dialoga com a oposição. Sim, o PMDB pode flertar com ela, mas não dispõe, nem em Michel Temer, de um líder tão livre como Campos para dizer o que pensa. E o que ele pensa agrada a uma parte do eleitorado e dos potenciais financiadores do PSDB.

O governador de Pernambuco no 2º turno muda tudo

Se o PT lidera há bom quarto de século a centro-esquerda em nosso País, e desde 1989 é uma das duas forças principais na política brasileira, a liderança da centro-direita cabe, desde 1994, ao PSDB. Mas é essa liderança que agora entra em xeque. Ou seja, a centro-direita existe e continuará existindo. Disputará com o PT, no voto, a hegemonia política no País. Mas hoje sofre uma crise de liderança que, na verdade, é uma crise interna do PSDB, afetando a vasta faixa de opinião que ele tem representado.

Os conflitos entre Aécio Neves e José Serra pela candidatura à Presidência em 2014, intermináveis, são sinal disso. Podem resultar de ressentimentos, talvez do político paulista. Mas na verdade se trata de uma crise de destino do PSDB e de uma crise de representação da centro-direita.

Estas duas crises merecem tratamento à parte, o que faremos em artigo futuro. Mas, por ora, vamos à conjuntura que favorece Eduardo Campos.

Caso Serra deixe o PSDB para candidatar-se por outro partido, quase certamente selará sua derrota, mas também a de Aécio. Por derrota, aqui, não entendo perder, no segundo turno, para o PT. Entendo algo maior e pior: nem mesmo chegar ao segundo turno. Aqui crescem as chances de Campos, assim como as de Marina Silva.

Agora, o desentendimento interno ao PSDB - ou, se quiserem, a cisma de Serra se dispondo até mesmo a realizar um cisma dentro do partido - já basta para enfraquecer os tucanos, mesmo que Serra não saia. Consta que, na melhor das hipóteses para Aécio, que é sua indicação presidencial sem a saída de Serra, este último fará corpo mole na campanha. Isso é ruim em termos de imagem. Basta lembrar a recente eleição paulistana, em que Marta Suplicy, frustrada pelo dedaço de Lula no intento de concorrer à prefeitura, se afastou da campanha de Haddad, somente se integrando nela nas semanas finais e cruciais. Coincidência ou não, foi quando Haddad disparou para a vitória. Pois é. Um boicote interno à candidatura Aécio já faria muito mal. Mais uma vez, a conjuntura favorece Campos - e Marina.

E há mais uma perspectiva no horizonte. Será lamentável se uma força de opinião significativa como o Rede não puder concorrer em 2014. Mas, se o TSE puser paradeiro ao atraso dos cartórios eleitorais na verificação das assinaturas, o Rede não poderá culpar a ninguém por um eventual fracasso. Terá sido Marina que demorou mais de dois anos a se definir.

Aliás, mesmo que Marina concorra, a ausência de palanques nos Estados expõe sua aspiração a sérias dificuldades. Suas perspectivas de sucesso são as mais difíceis, hoje, de medir.

O que resultaria de um forfait da Rede ou do fracasso da candidatura de Marina Silva, somada a uma crise no PSDB? Aumentarão as chances para Eduardo Campos. Ele pode ganhar a preciosa indicação da segunda vaga (a primeira sendo do PT) para o turno final das presidenciais. Pode realizar o que é o sonho de Aécio, o discurso do político mineiro, que consiste em propor um governo pós-PT e não anti-PT. Também isso não é fácil, mas Campos não está marcado pelo ódio ao petismo, longe disso; e soube distanciar-se do PT não nos tempos de Lula, mas depois que ele deixou a presidência para uma sucessora sem o seu carisma. Mesmo a eleição no Recife, em 2012, que foi a segunda vitória de Campos sobre o antigo e ainda atual aliado (a primeira se deu em 2006), se deu no quadro de um enorme desgaste do então prefeito petista da capital pernambucana.

Um candidato que vem da centro-esquerda, comprometido com causas sociais, com fama de bom gestor, falando aos empresários e que permita vivermos uma campanha que atenue o clima de ódio que cresceu entre PSDB e PT: este o perfil que Campos construiu. Isso não basta para vencer mas, numa conjuntura em que a Rede não compareça e os tucanos se dividam, pode dar certo.

O cerne da coisa é: o que se está disputando?

Serra só pode disputar a Presidência. Estar no segundo turno não lhe basta.

Mas, para Aécio, Marina ou Eduardo Campos, ganhar um lugar no segundo turno já é uma grande vitória. Nas últimas três eleições, o segundo turno foi do PT e do PSDB. Agora, pela primeira vez, o lugar do PSDB está a perigo. Quem ganhar essa posição se consagra, mesmo perdendo na final do campeonato presidencial, como líder da oposição num talvez desgastado quarto mandato petista. Torna-se líder da centro-direita. E, com isso, muda os termos em que a nossa política está sendo jogada. Imaginem uma centro-direita cujo lema é o discurso sustentável. Ou que tenha em Eduardo Campos a expectativa de uma síntese entre o que é melhor do PT e o melhor do PSDB. Tudo muda.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

domingo, 25 de agosto de 2013

Razões para um mundo fora do eixo -(Luiz Werneck Vianna)



Afinal a política nos voltou, em cima, por baixo, em toda parte, nas ruas e fora delas, no Congresso, no Judiciário, em todas as mídias, mas retoma, como se vê, fora do eixo, descentrada, horizontalizada e descrente do papel das instituições. Duas décadas de empenho das lideranças políticas e sociais, principalmente do partido hegemônico na esquerda brasileira, o Partido dos Trabalhadores (PT), em instituir os objetivos da modernização econômica e da expansão da renda como determinantes na política estatal toldaram a vista para a percepção do que mudava nas esferas da política e da sociedade civil.

O econômico tomou-se o foco privilegiado de todas as atenções, de que é exemplar o número de publicações especializadas a ele dedicadas e a expansão desse tema no noticiário de todas as mídias. O bordão de um publicitário americano - "é a economia, estúpido" - usado na campanha presidencial de Bill Clinton ganhou foro de verdade incontroversa também entre nós nas interpretações sobre as disputas eleitorais, pretendendo significar que um bom resultado em termos de indicadores econômico-financeiros bastaria para atestar a aprovação do eleitorado a uma candidatura ao governo.

O economicismo, antes malsinado como uma perspectiva reducionista e empobrecedora na analise dos fenômenos sociais, ganhou, no curso desses anos, galas acadêmicas e prestígio entre os analistas da cena pública, com os mais afoitos concebendo a irrupção de uma nova classe média a partir de critérios de renda e de consumo, mesmo que nesses cálculos incluíssem rendimentos auferidos em razão de programas sociais, como os do Bolsa Família, e fossem ignorados outros marcadores clássicos, como educação e acesso a bens culturais.

Sob a inspiração desastrada dessa sociologia, que, a bem da verdade, não nos veio de sociólogos, criou-se uma nova classe média de disneylândia, legião multitudinária na imaginação dos seus formuladores, incrustada em posição dominante no centro político, vindo a garantir ponto seguro de estabilização ao nosso sistema político. Ao operador político, legatário dessa presumida descoberta, cumpria garantir, quiçá ampliar, os programas assistenciais e promover de modo contínuo o consumo de massas, à custa de exonerações fiscais da indústria de determinados bens, e usufruir o retomo, a cada sucessão presidencial, dos votos desse centro político criado pela literatura.

As jornadas de junho e as que se seguem, prometendo encorpar nas festas de celebração do 7 de Setembro, jogaram por terra essas fabulações. E a esta altura vai procurar em vão quem quiser localizar, nesse mundo fora do eixo, o paradeiro do centro político brasileiro e a quantas anda o comportamento do que seriam as novas classes médias brasileiras, com a emergência de protestos especificamente populares com seus temas próprios, como habitação e mobilidade urbana, muitos deles - não se pode ignorar o fato, que se tem preferido esconder embaixo do tapete - sob a influência de partidos e grupos da ultraesquerda brasileira.

O deslocamento da razão política pelas artes calculadoras da economia, resultado a que chegamos quase sem sentir, embalados pelo pragmatismo sem princípios que se fez dominante, deixou em sua esteira uma conseqüência nefasta: a ruptura com a cultura política que medro unas lutas pela democratização do País e se encorpou no processo constituinte da Carta de 88. Aquele foi um tempo de reflexão e de tomada de decisões acerca de sob que instituições deveríamos viver, quando decidimos que nossa democracia política deveria combinar as formas de representação com as de participação, criando, a fim de efetivar esta última, um rico repertório, indo do controle de constitucionalidade das leis por provocação de entidades da sociedade civil aos conselhos, entre outros, os de saúde e os de educação, em que a vida social se deveria fazer presente.

Tais conselhos estão aí, embotados, entregues a um marasmo burocrático, sem luz própria, quase invisíveis, a maioria prisioneira das políticas do Poder Executivo, federal, estadual ou municipal, destituídos de autonomia. O próprio Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, uma criação do governo Lula a fim de envolver amplos setores da sociedade civil na esfera pública, caiu no vazio, convertido numa instituição de carimbo da política oficial, longe de ser uma arena de deliberação.
Tais resultados não podem ser atribuídos à fraqueza da sociedade civil, pois são decorrentes de uma política de governo que deliberadamente evitou esse caminho promissor. Por definição, a política de modernização pelo alto é decisionista e refratária à auto-organização da vida social.

Nada mais esclarecedor do que um fato produzido no mundo sindical, território de origem do PT, quando, em fevereiro de 2005, o ministro do Trabalho, o sindicalista e militante do PT Ricardo Berzoini, encaminhou à Presidência da República, após deliberações do Fórum Nacional do Trabalho, uma proposta de emenda constitucional de reforma sindical fundamentada na necessidade de tomar "a organização sindical livre e autônoma em relação ao Estado". Essa emenda, inspirada no sentido de animar a vida associativa dos trabalhadores, não só foi engavetada, como sucedida pela lei que destinou parte da contribuição compulsória às centrais sindicais, fortalecendo seus vértices diante de suas bases.

As jornadas de junho não se voltaram contra as instituições da nossa democracia, mas contra políticas públicas, em especial as de transportes, saúde e educação, problemas palpáveis que remetem ao anacronismo desse Estado que aí está, postado assimetricamente diante da sua sociedade, simulando encarnar em si seus anseios e expectativas, e que entregou sua alma a potências que não controla, na ilusão de que, quando quiser, pode retomá-la.

*Professor-pesquisador da PUC-Rio

Fonte: O Estado de S. Paulo

sábado, 24 de agosto de 2013

Getúlio Vargas:... 59 anos depois (Lira Neto/entrevista)




“Os escritos pessoais de mostram, de forma explícita, que a opção pelo sacrifício pessoal sempre esteve no seu campo de possibilidades”, diz o biógrafo do ex-presidente, que cometeu suicídio em 24 de agosto de 1954. Autor da trilogia Getúlio (Companhia das Letras), com dois volumes publicados, Lira Neto (foto abaixo) enfatiza que os escritos de Getúlio em 1930, 1932, 1941, e 1954 demonstram que ele “parecia disposto a jamais sair desonrado das situações-limites. (...) Em 1945, poucos meses antes de ser deposto, escreveu uma antecipação da célebre carta-testamento de 1954. ‘Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores’, redigiu, já sentindo o chão se abrir sobre os pés”.   
Com base em pesquisas e apuração jornalística, o jornalista investigou o passado de Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul, sua vida intelectual, correspondências e diários, para traçar o perfil de um dos presidentes que mais divide opiniões no país. Segundo ele, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, “por trás da figura simpática e sorridente, eternizada na memória coletiva nacional, havia na verdade um homem melancólico, por vezes quase sombrio. (...) A imagem de um indivíduo onipotente e seguro de si, manejando os cordéis da história com singular desenvoltura, nem sempre encontra correspondência no Getúlio de carne e osso”.
Na entrevista que se segue e publicada no dia do 59º aniversário da morte de Getúlio Vargas, Lira Neto apresenta as influências intelectuais que contribuíram para sua ascensão à presidência da República, e refletiram na “imagem de um político jovem, modernizador e austero, que havia proclamado a paz entre os conterrâneos após o longo histórico regional de disputas sangrentas entre chimangos e maragatos”.  
Confira a entrevista.
Foto: blogdolabjor.wordpress.com
IHU On-Line - Que ligações e interações faz entre Getúlio Vargas da vida pública e Getúlio Vargas da vida privada?
Lira Neto - Como se trata de uma narrativa biográfica, meu trabalho procura estabelecer exatamente as interfaces dessas duas dimensões — a vida pública e a esfera privada — sobrepondo, sempre, uma e outra, como em um jogo de transparências mútuas. Neste segundo volume, a trajetória do indivíduo Getúlio Dornelles Vargas é traçada no interior do vasto pano de fundo histórico compreendido entre 1930 e 1945. Busco elucidar de que modo tais dimensões interagiram e produziram impactos recíprocos. Procuro colocar em evidência o quanto acontecimentos como a chamada Revolução Constitucionalista de 1932, o movimento comunista de 35 e o ataque ao Palácio Guanabara em 38, por exemplo, entre tantos outros episódios, repercutiram na vida pessoal do biografado. Do mesmo modo, busco compreender de que forma as circunstâncias domésticas e íntimas do homem Getúlioinfluenciaram, em certo sentido, suas decisões políticas.
    
IHU On-Line - Como o cenário regional e local do Rio Grande do Sul influenciou na atuação política de Getúlio?
Lira Neto - As matrizes político-ideológicas de Getúlio são exploradas, de forma detalhada, no primeiro volume da trilogia. Para compreender as opções de Getúlio após sua chegada ao poder máximo do país é necessário conhecer bem, inicialmente, o cenário regional gaúcho da Primeira República.  Vigorou no Rio Grande do Sul, à época, a pretensa “ditadura científica” preconizada pelo positivismo de Augusto ComteGetúlio, portanto, bebeu na fonte política de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, cardeais do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), agremiação que pregava a necessidade de um governo unipessoal e autocrático, desdenhava o sistema representativo e defendia que o poder devia ser exercido por uma elite moral e intelectual, presumivelmente situada “acima” das contingências da política e das barganhas típicas do jogo democrático.
IHU On-Line - Qual então a influência do borgismo e castilhismo na formação política e intelectual de Getúlio? Em que medida eles são fundamentais para entender o Getúlio que chegou à presidência da República?
Lira Neto - Getúlio, ainda na Faculdade de Direito, em seus tempos de militância estudantil, filiou-se à juventude castilhista, defendendo ardorosamente a ditadura de Borges de Medeiros. É preciso lembrar, contudo, que no Rio Grande do Sul a própria palavra “ditadura” não tinha conotação pejorativa — pelo menos para os membros do PRR. Ao contrário, a ditadura era defendida abertamente como algo positivo — e até necessário — para o projeto maior de “conduzir as massas ao seu destino histórico”. Comte pregava que o proletariado deveria ser incorporado à sociedade, mas sempre através da tutela do Estado, por meio de ações ditadas do alto, de cima para baixo. O trabalhismo getulista, nesse sentido, constituiu, de certo modo e em certa medida, uma herança desse tipo de pensamento.     
IHU On-Line - Quem era o Getúlio que chegou ao poder em 1930?
Lira Neto - Getúlio era um político de expressão apenas regional, a despeito de ter sido, antes, ministro da Fazenda. A dinâmica e a evolução do movimento oposicionista contra Washington Luís, iniciado em Minas e contrapondo-se ao poderio paulista, ofereceram ao Rio Grande do Sul — então um estado emergente — as condições propícias para a composição da Aliança Liberal, que reuniu MinasRio Grande e Paraíba. Getúlio, na condição de governador (presidente estadual, de acordo com a denominação da época) gaúcho, cacifou-se como candidato oposicionista, rompendo o seu pacto de lealdade com o Catete. A imagem de um político jovem, modernizador e austero, que havia proclamado a paz entre os conterrâneos após o longo histórico regional de disputas sangrentas entre chimangos e maragatos, contribuiu também, sobremaneira, para atrair visibilidade — e legitimidade — para seu nome.  
IHU On-Line - Quais as principais características dos primeiros 15 anos da era Vargas?
Lira Neto - Os primeiros quinze anos da chamada Era Vargas, entre 1930 e 1945, foram marcados por duas características básicas. De um lado, prevaleceu a forma de governo discricionário, que administrava por decreto, controlava a imprensa pela censura, perseguia adversários políticos e mantinha o Congresso fechado. Com exceção de um breve interlúdio democrático, entre 1934 e 1936, Getúlio autoinvestiu-se de poderes absolutos, como uma espécie de déspota esclarecido. De outro lado, em contraposição, pôs em ação uma política de modernização do país, regulamentou a relação entre capital e trabalho, instituiu o voto feminino e promoveu uma série de outras conquistas para a classe trabalhadora.   
IHU On-Line - Que interpretação faz das leis trabalhistas implantadas por Getúlio?
Lira Neto - Alguns getulistas mais sinceros interpretam o conjunto de leis trabalhistas como uma concessão de um homem magnânimo aos trabalhadores da época. Não há dúvida de que tais leis representaram um avanço histórico em um setor no qual até então prevalecia a lei do mais forte, ou seja, dos patrões. Não podemos perder de vista que, em 1930, fazia apenas quarenta anos que o Brasil se libertara da chaga do trabalho escravo. Numa perspectiva histórica, quatro décadas representam um intervalo de tempo insignificante.
Portanto, Getúlio teve a sensibilidade de trazer a questão social para o primeiro plano, respondendo a uma demanda específica da época. Com isso, neutralizou a pressão do movimento operário independente, abafando as pressões dos comunistas e anarcossindicalistas. Permitiu e incentivou a formação de sindicatos, mas desde que essas organizações recebessem o beneplácito e a autorização oficial do Estado, por meio do Ministério do Trabalho. Como tudo o mais em relação a Getúlio, essa é uma questão complexa, que não pode ser analisada com as ferramentas do pensamento binário e dicotômico.
IHU On-Line - Qual é o Getúlio do imaginário brasileiro?
Lira Neto - Getúlio continua, até hoje, sessenta anos após sua morte, alvo de acaloradas controvérsias. Os getulistas o colocam como um personagem quase imaculado, acima do bem e do mal. Os antivarguistas, ao contrário, só conseguem ver nele o caudilho e o ditador do Estado Novo. Meu trabalho, ao biografá-lo, propõe uma discussão mais equilibrada e menos maniqueísta em torno do personagem e de seu legado histórico.  
IHU On-Line - O senhor fala que é possível dividir o Brasil em antes e depois de Getúlio. Em que aspectos? Por que ainda hoje Getúlio divide opiniões?
Lira Neto - Getúlio pegou um país essencialmente agrário, em 1930, e o conduziu ao caminho do desenvolvimento e da industrialização. Isso é inegável. O que podemos perguntar, como fez Maria Celia D’Araújo em uma resenha sobre o primeiro volume da biografia, é quanto dessas conquistas poderiam ter sido obtidas pela via democrática e sem a repressão brutal infligida pelo Estado Novo. O potencial de controvérsia de Getúlio permanece vivo, dadas as ambiguidades de sua própria trajetória.
IHU On-Line - O senhor concorda que “é preciso virar a página da Era Vargas”?
Lira Neto - Esta expressão — “virar a página da Era Vargas” — foi utilizada por Fernando Henrique Cardoso em seu discurso de posse como presidente da República. Agora, o mesmo FHC assina um dos textos da contracapa do segundo volume, no qual afirma textualmente que “a despeito do que se pense sobre suas ações e posições, Getúlioteve a grandeza que só os estadistas possuem”. Logo ao lado, também na contracapa do livro, Luís Inácio Lula da Silva assina o outro texto, relatando o impacto que a leitura do primeiro volume produziu sobre ele. Para mim, ter LulaFHC, juntos, lado a lado, referendando a obra, mostra que a minha intenção de buscar um relato equilibrado parece ter sido bem sucedida.
IHU On-Line - Como estão as pesquisas para a preparação do terceiro volume da biografia de Getúlio, que trata de 1945, quando Getúlio é derrubado, seu exílio em São Borja, e a volta consagradora à presidência, até agosto de 54?
Lira Neto - Estou trabalhando nos capítulos iniciais do terceiro volume, que deve sair daqui a um ano, quando se completam os 60 anos da morte do ex-presidente.
IHU On-Line - Como o senhor explica o suicídio do ex-presidente?
Lira Neto - Os escritos pessoais de Getúlio mostram, de forma explícita, que a opção pelo sacrifício pessoal sempre esteve no seu campo de possibilidades. Ele parecia disposto a jamais sair desonrado das situações-limites. Em 1930, no dia 3 de outubro, data do estopim da chamada Revolução de 30, escreveu no seu diário: “E se perdermos? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”. Em 1932, ao saber da eclosão da revolução paulista, sentindo que podia ser deposto, deixou um nítido bilhete de suicida. “Reservara para mim o direito de morrer como soldado, combatendo pela causa que abraçara. A ignomínia duma revolução branca não o permitiu. Escolho a única solução digna para não cair em desonra, nem sair pelo ridículo”, escreveu. Em 1941, ao decidir a participação brasileira no cenário da Segunda Guerra Mundial, rabiscou em seu diário: “Não sobreviverei a um desastre para minha pátria”. Em 1945, poucos meses antes de ser deposto, escreveu uma antecipação da célebre carta-testamento de 1954. “Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores”, redigiu, já sentindo o chão se abrir sob os pés.   
IHU On-Line - Que releituras da Era Vargas o senhor propõe a partir da biografia do ex-presidente, baseada na apuração jornalística?
Lira Neto - No início, quando comecei a trabalhar na pesquisa sobre Getúlio, percebi que por trás da figura simpática e sorridente, eternizada na memória coletiva nacional, havia na verdade um homem melancólico, por vezes quase sombrio. Suas cartas, seus diários, seus escritos íntimos revelam um sujeito atormentado por fantasmas interiores, permeado por indecisões, hesitações, perplexidades. A imagem de um indivíduo onipotente e seguro de si, manejando os cordéis da história com singular desenvoltura, nem sempre encontra correspondência no Getúlio de carne e osso.
Lira Neto é jornalista, e escreveu, entre outros livros, as biografias Padre Cícero (Companhia das Letras, 2009),Maysa (Globo, 2007), O Inimigo do Rei (Globo, 2006) e Castello (Contexto, 2004).
Lira Neto é autor de uma importante biografia de Getúlo e cujo segundo volume acaba de ser publicado. Os dois volumes são: Getúlio (1882 - 1930). Dos anos de formação à conquista do poder. Volume 1, Companhia das Letras; e Getúlio (1930 - 1945) Do governo provisório à ditadura do Estado Novo. Volume 2, Companhia das Letras, 2013. Um terceiro volume completará a trilogia.

Depois de junho (Marco Aurélio Nogueira)



Com a baixa-previsível, mas surpreendente pelo grau em que ocorreram - das manifestações que desde junho sacudiam o País, a política nacional voltou ao ritmo de sempre. Nada garante que continuará assim, pois o alerta emitido pelas ruas ainda está vivo e as forças que o determinaram permanecem ativas. O noticiário e as discussões, porém, revelam o retomo do que tem sido a tônica da vida política: quedas de braço entre Executivo e Legislativo, nomeações e afastamentos, bate-bocas no Supremo Tribunal Federal à sombra da revisão das penas do mensalão, denúncias de corrupção e esquemas ilícitos (cartel paulista), a via-crúcis de Marina Silva e os embates intrapartidários, motivados sobretudo pela aproximação do ano eleitoral. Vida que segue.

Não há por que estranhar o refluxo das mas. Elas estão sempre aí, ora ativas, ora em silêncio. Não se podem mobilizar de modo permanente e só conseguem manter regularidade se estiverem acompanhadas de sujeitos políticos qualificados para criar pontes com o Estado. Os partidos, todavia, não estão em condições de ajudá-las nisso, nem são aceitos por elas. A busca de autoexpressão, que tipificou parte das manifestações, não organiza consensos nem agendas. Ao menos no curto prazo e movidas pelo clamor espontâneo, as mas não têm como ir muito longe ou impor mudanças substantivas, que mexam na estrutura da sociedade, que é onde está a raiz dos problemas. Ainda não se entendem quanto às razões que as ativaram nem sobre os passos políticos que terão de ser dados.

Há novas convocações sendo feitas para setembro e elas poderão alterar cálculos e previsões. Mas o sistema parece ter voltado ao controle da situação.

Tem havido um pouco de tudo nas últimas semanas.
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O sistema recuperou o controle. Mas, por continuar o mesmo, permanece improdutivo e gera mais problemas que soluções, expondo-se ao risco de ser novamente desafiado pelas ruas.

As vozes de junho não foram genéricas nem alienadas. Foram claras: queremos um Estado aberto para as pessoas, menos dependente de multinacionais, bancos e empresários. Mais social e menos econômico: com serviços e políticas melhores, não somente com obsessão por crescimento e oferta de bens. Os que protestaram, no fundo, pediram mais cidadania e menos consumo, mais Estado e menos mercado.

É uma agenda básica, que converge para a reformatação do Estado e desafia a inteligência política. Se for enfrentada com as práticas de antes, não será sequer arranhada. E o mal-estar persistirá.

*Professor titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

Fonte: O Estado de S. Paulo

Em nome da razão tolerante (Celso Lafer)




Celso Lafer: "Ao fazer a defesa da permanência da dicotomia liberdade e igualdade, Bobbio mostra que a diferença entre esquerda e direita continua sendo um tema da agenda política"

Por Adauri Antunes

"Não conheço ninguém que tenha escrito com tanta clareza sobre temas complexos e sem fazer nenhum tipo de simplificação." Bastariam essas poucas palavras para definir a admiração de Celso Lafer pela obra de Norberto Bobbio (1909-2004), objeto antigo de sua atenção e estudo, ela mesma e nas interseções com os campos de sua própria vivência intelectual, no direito, na ciência política e nas relações internacionais. No livro que agora chega às livrarias - "Norberto Bobbio: Trajetória e Obra" -, o ex-ministro de Relações Exteriores e da Indústria e do Comércio e atual presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo explica e interpreta as ideias de Bobbio em 16 textos, publicados entre 1980 e 2011. São ensaios que aproximam o leitor daquela competência única do filósofo e pensador político italiano, e que mostram a atualidade de suas análises, nas quais faz uma homenagem permanente ao uso da razão e da tolerância - religiosa e de opinião, particularmente. Preso por manifestar inconformismo com o regime de Mussolini, negação de toda a essência de suas convicções, Bobbio experimentou, e incorporou aos seus escritos, o significado da "fúria dos extremos", nos quais identificava a glorificação da violência - "que é, infelizmente, um dado que permeia a realidade contemporânea", como disse Lafer em entrevista ao Valor.

Valor: Temos um governo que se diz de esquerda, com alianças à direita, enquanto muitos defendem que esquerda e direita não existem mais. Como interpretar esse fato à luz de Bobbio?

Celso Lafer: Bobbio escreveu um livro muito importante chamado "Esquerda e Direita". Ele polemizou com os comunistas na década de 1950, com o livro "Política e Cultura", para fazer a defesa das liberdades, contra sua dissolução diante das aspirações maiores da igualdade. Depois, polemizou novamente com a esquerda no livro "Qual Socialismo?", inclusive com a esquerda extraparlamentar e violenta da Itália, das Brigadas Vermelhas. O "Esquerda e Direita" é um livro de polêmica com aquilo que foi a onda e a maré montante da visão das coisas depois da queda do Muro de Berlim.

Valor: Bobbio era de esquerda ou de direita?

Lafer: Bobbio sempre se dizia um socialista liberal, o que às vezes parece uma contradição. Ao fazer a defesa da permanência da dicotomia liberdade e igualdade, ele mostra que a diferença entre esquerda e direita continua sendo um tema da agenda política. E diz: uma perspectiva de direita é aquela que realça a diferença entre as pessoas; uma perspectiva de esquerda realça aquilo que as pessoas têm em comum. Não devo ignorar o fato de as pessoas terem diferenças, mas não posso fazer com que isso suprima a estrela polar, como ele diz, sobre o valor da igualdade.

Valor: E no Brasil?

Lafer: O Brasil não tem nenhuma direita assumida. Ao contrário, por exemplo, da França, onde Le Pen é uma expressão clara disso. Ou na Itália, onde o horror de Bobbio, e uma das últimas batalhas dele, foi contra Berlusconi e o que representava o 'berlusconismo'. O que caracteriza, talvez, a situação brasileira, é um pouco o que diz o presidente Fernando Henrique: é o conservadorismo e o atraso, que é como a direita se configura no Brasil.

Valor: Seria essa então - conservadorismo e atraso - a grande diferença da direita brasileira?

Lafer: Como diz Fernando Henrique, isso perpassa a sociedade como um todo. Inclusive, aqueles que se consideram de esquerda. É um pouco o capítulo da identidade. Você tem um tipo de identidade coletiva e um tipo de identidade individual. A identidade coletiva se faz pela semelhança, uma visão comum de como se chegar a alguma coisa em torno do bem comum. Em tese, um partido representa uma identidade coletiva. E a identidade individual se faz pela diferença, o que há de específico. Apliquei essa reflexão para a trajetória de Bobbio, dizendo que, do ponto de vista de sua presença no cenário político italiano e internacional, ele é um homem de esquerda. Dentro das diversas correntes de esquerda, e ele advoga a ideia de pluralismo, cabe-lhe essa identidade socialista liberal que, se é indutora de contradições pela própria formulação, tem uma lógica de complementaridade que leva a enxergar melhor as coisas.

Valor: Como integrante da resistência contra o fascismo, Bobbio discutiu a "fúria dos extremos". Pode-se dizer isso também da violência contemporânea?

Lafer: Um dos componentes desses extremos é a glorificação da violência. "O sangue regenerador dos povos" é uma frase que aparece nos textos dos fascistas italianos e que está presente hoje na violência. A violência é um dado que permeia a realidade contemporânea. Um segundo componente dessa fúria dos extremos é a ideia de que você dissolve o indivíduo no todo. O lema do nazismo era "você não é nada, seu povo é tudo". Essa era a desqualificação totalitária do papel do ser humano e da sua dignidade própria. Se você olha hoje para o fundamentalismo religioso, um dado do mundo contemporâneo, você também dissolve o indivíduo no todo desses movimentos.

Valor: É possível ver hoje quem são os "fanáticos" que Bobbio apontava na "fúria dos extremos"?

Lafer: Esse é um ponto forte de Bobbio, no ensaio "As Razões da Tolerância", no qual discute porque devo tolerar. Portanto, o que faço com os fanáticos, os intolerantes? O capítulo das razões da tolerância começa com o tema religioso. Como um homem de convicções profundas de natureza religiosa aceita uma verdade religiosa diferente daquela na qual ele acredita? A primeira dimensão da noção de tolerância, que é importante para um Estado laico, um Estado de direito, para os direitos humanos, é a ideia da liberdade religiosa. A ideia de que está na esfera da pessoa a sua escolha religiosa. A segunda dimensão da tolerância é a liberdade de pensamento, de opinião. Você aceitar que o outro tenha algo a dizer e que devo escutar o que essa pessoa tem a dizer, é uma ideia que está ligada à construção das regras do jogo democrático. Depois, diz Bobbio, há uma outra razão para a tolerância, de ordem prática: ou perseguição ou tolerância. A terceira alternativa não existe. Há, kantianamente, uma razão de ordem prática de convivência, que me leva à tolerância e a me opor aos fanatismos. Finalmente, a razão mais profunda, que permeia as convicções de Bobbio, é a de que a realidade é ontologicamente complexa, essencialmente complexa, e é plural. Portanto, a tolerância é uma maneira de eu lidar com essa diversidade plural da realidade.

Valor: Bobbio também fala sobre aqueles que se opõem a essa tolerância.

Lafer: Ele diz que tolerância pode também significar falta de rigor. Você tolera porque não tem rigor moral. Casa de tolerância, para usar uma linguagem antiga, também exprime essa noção de laxismo moral. Bobbio defende, enfim, o rigor de uma ética laica que permita afastar da noção que ele defende de tolerância qualquer flexibilidade de falta de princípios, ou uma flexibilidade oriunda de uma falta de princípios.

Valor: Há uma qualidade, na obra de Bobbio, para a qual o senhor chama a atenção, que é a clareza diante das complexidades.

Lafer: Há em Bobbio uma clareza inexcedível. Não conheço ninguém que tenha escrito com tanta clareza sobre temas complexos, e sem fazer nenhum tipo de simplificação. Uma das razões pelas quais acho que a obra de Bobbio é de impacto é essa clareza e a maneira pela qual ele elucida problemas complicados. E uma das maneiras pelas quais ele elucida é uma espécie de grande arte combinatória. Ele vai combinando: esquerda, direita; liberdade, igualdade; governo das leis, governo dos homens; governo visível, governo invisível; estrutura, função; público, privado; guerra, paz. Ele se vale dessas dicotomias para lidar com essa realidade ontologicamente complexa. E com isso vai iluminando e esclarecendo as coisas.

Valor: O mundo contemporâneo parece não admirar muito uma qualidade como a "clareza".

Lafer: Você tem toda razão. Alguns querem as trevas. Bobbio é um grande escritor. Você lê sua obra e sente a força de uma grande clareza. Bobbio diz: "As luzes da razão podem ser mais fracas, mas são as únicas das quais dispomos". É nisso que ele se empenha, é a aposta dele. E a minha também.

Fonte: Valor – EU&FIM DE SEMANA

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Por que é necessário reinventar a democracia (Augusto de Franco)



I - Um dos problemas da democracia realmente existente - quer dizer, da democracia reinventada pelos modernos: a democracia representativa - é que ela induz à perigosa compreensão de que democracia é igual a eleição. 

II - Desta fraqueza da democracia formal (que ainda vige na maioria dos países que a adotam: uma pequena minoria dos 193 países existentes - não mais do que 30 - se considerarmos a democracia adotada em seu sentido representativo pleno) aproveita-se boa parte dos ditadores, protoditadores e manipuladores. Hitler e Mussolini foram eleitos. Enver Hoxa (na Albânia) promovia eleições. No Irã dos aiatolás tem eleições. Difícil o regime que não promova eleições, mesmo quando em franca transição autocratizante (como a Venezuela bolivariana herdeira de Chávez ou a Nicarágua de Ortega).

III - Não, democracia não é igual a eleição. Nem mesmo esta limitada e defeituosa democracia formal e representativa inventada pelos modernos é tão inconsistente assim. Não basta alguém ser "democraticamente eleito" (como repete o coro dos tolos neste momento sobre Morsi, da Irmandade Muçulmana, no Egito) para haver democracia. É necessário que, além de eletividade, haja liberdade, publicidade, rotatividade, legalidade, institucionalidade e, como consequência de todos esses princípios (incluído, é claro, o da eletividade), legitimidade. Vejamos um por um:

1 - PUBLICIDADE. As regras que decorrem do princípio da publicidade têm a ver com a transparência necessária (capaz de ensejar uma efetiva accountability) dos atos do governo e a dissolução do segredo dos negócios de Estado (que constitui uma exigência real em circunstâncias que possam ameaçar a segurança da sociedade democrática e o bem-estar dos cidadãos, mas que, na maior parte dos casos, sob o pretexto de manter a segurança nacional e a ordem pública, constitui mero pretexto para ocultar procedimentos autocratizantes ou privatizantes).

2 - ELETIVIDADE. As regras que decorrem do princípio da eletividade são aquelas que disciplinam, de modo a tornar o mais equânime que for possível (dentro das limitações impostas pelas diferenças de força, riqueza e conhecimento existentes na sociedade em questão), a escolha dos governantes pelos governados, o que compreende o direito de voto para eleger representantes legislativos (parlamentares) e executivos (governamentais) pelo sistema universal, direto e secreto, em eleições livres, periódicas e isentas (limpas), atribuindo-se a todos os cidadãos em condições legais de votar o igual direito de ser votados (e a exigência adicional de que os cidadãos devam pertencer a partidos é, como se pode ver, um contrabando autocrático que atenta contra a transitividade do princípio da eletividade, mas que ainda vige em boa parte dos regimes democráticos).

3 - ROTATIVIDADE (ou alternância). As regras que decorrem do princípio da rotatividade dizem respeito à efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição. Essa questão é chave para distinguir as democracias das autocracias e, inclusive, dos arremedos de democracia (ou seja, das democracias parasitadas por forças autoritárias, aparentemente democráticas, mas que na verdade querem restringi-la ou restringem-na objetivamente, seja por meio de um processo claramente protoditatorial, seja por meio de obscura manipulação política, em geral de natureza populista). Assumir a rotatividade ou a alternância em um sentido mais ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007), promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como elemento essencial do funcionamento democrático”.

4 - LEGALIDADE E INSTITUCIONALIDADE. As regras que decorrem dos princípios da legalidade e da institucionalidade têm a ver com a estrutura e o funcionamento do chamado Estado de direito, contemplando a existência e o funcionamento de instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo. Se as leis são descumpridas ou dribladas ou se as instituições são derruídas ou apenas ocupadas, aparelhadas, pervertidas e degeneradas para servir aos propósitos políticos de um grupo privado (instalado dentro ou fora do governo), então o regime democrático corre perigo. Às vezes tal ameaça não é suficiente para colocar em risco o sistema representativo formal, mas – sem qualquer sombra de dúvida – quando isso acontece é sinal de que está havendo um refreamento do processo de democratização da sociedade. Se a lei (democraticamente aprovada) for descumprida e não houver a sanção respectiva, a democracia sempre sofrerá com tal violação, mesmo quando se argumente que a lei é injusta (e ainda que o seja de fato: neste caso, o papel dos democratas é propor a mudança da lei e não o de afrontá-la ou descumpri-la). Mas toda lei democraticamente aprovada é legítima (na medida da legitimidade do processo que a gerou).

5 - LEGITIMIDADE. Só é legítimo na democracia o ator político que respeita – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto das regras que emana dos princípios acima. Mas se, baseado nos votos que obteve ou nos altos índices de popularidade que alcançou, um representante (ou militante) considerar que pode desrespeitar, falsificar ou manipular as regras emanadas desses princípios devido a contar com o apoio da maioria da população (ou porque teria a “proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para resolver todos os problemas do mundo), então tal representante (ou militante) deverá ser considerado ilegítimo do ponto de vista da democracia.

IV - Um governo "eleito democraticamente" que não governa democraticamente (observando minimamente os cinco princípios acima) não pode ser considerado democrático. Mas como as pessoas foram induzidas a acreditar que democracia é igual a eleição, deixam-se facilmente enganar pelos arremedos de democracia que são erigidos continuamente em todo lugar (inclusive para tentar legitimar regimes autocratizantes). Não há como consertar este defeito da democracia representativa com mais democracia representativa, como sonham os liberais: trata-se de um erro de projeto, de uma falha genética.

V - Esta falha genética da segunda democracia (a democracia realmente existente, a democracia representativa inventada pelos modernos) faz com que a democracia não tenha proteção eficaz contra o uso da democracia (entendida apenas como regime eleitoral) contra a própria democracia. Qualquer grupo privado organizado pode se aproveitar das liberdades democráticas e usar as eleições para conquistar o poder e, a partir daí, iniciar um processo de autocratização do regime político: privatizando a esfera pública, aparelhando o Estado, degenerando as instituições e modificando as leis a favor do seu projeto de se eternizar no comando. Organizações estruturadas para privatizar a esfera pública (como os partidos) podem se constituir como verdadeiras quadrilhas para disputar o butim (ou seja, saquear os recursos públicos) na base do spoil system.

VII - Esta limitação estrutural (na verdade um erro de projeto da democracia dos modernos) é a principal razão pela qual a democracia representativa vem sendo questionada em todo lugar neste dealbar do século 21. O aumento do descontentamento com os sistemas políticos organizados sobre tais bases vem abrindo possibilidades para uma nova reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia, uma democracia que seja: mais distribuída, mais interativa, mais direta, com mandatos revogáveis, regida mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulnerável ao metabolismo das multidões e mais responsiva aos projetos comunitários, mais cooperativa, mais diversa e plural (não tendo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações locais).

domingo, 18 de agosto de 2013

Eles nada apreenderam (Carlos Melo)

 

Líderes aflitos movem-se com medo das sombras, dando as mesmas respostas velhas a perguntas novas

Tempos voláteis e inseguros são estes. Num momento a calma dos cemitérios, e até parece que a história acabou de verdade na mesmice entediante da polaridade PT/PSDB. Noutro, a fúria e a perplexidade. Depois, o clima ameno e enganosamente tranquilo, para mais tarde tudo ferver novamente. A calma, quando há, é das que precedem os tsunamis. Governantes passam a viver aflitos. Ironicamente, sentem na pele a vulnerabilidade dos desprotegidos que não conseguem abrigar. São tempos novos, estes voláteis, e talvez tenham vindo para alterar definitivamente a lógica e a ordem no reino da política.

O fato é que a água não ferve de repente. Esse ovo de serpente para uns e redenção para outros levou anos sendo gerado. Foi fecundado pelo colapso da política que se faz, a política velha, a política antiga, a política pequena, de modelos passados e retórica gasta. Anacronismo presente nos mais importantes governos do País: o federal, o do Estado de São Paulo e o do Estado do Rio de Janeiro.

Trata-se de um processo que recebeu impulso do sem-número de escândalos que se sucederam até que banalizassem a incúria e a corrupção, que se abrigaram nas metrópoles, definitivamente paradas em congestionamentos de trânsito e mentais, amofinadas pela verticalização e pelo adensamento de corpos e prédios. A água só ferve no ponto de ebulição. Nem antes, nem depois.

E isso ocorreu em junho, com a questão das tarifas de ônibus, a última partícula de calor que fez com que tudo borbulhasse. Um marco: já se fala em "jornadas de junho" como um tempo glorioso que ficará na história. De algum modo representada pelos sem-representação, toda a sociedade foi para as ruas. Curioso... Menos de um mês depois, há certa melancolia motivada pela abstinência da falta de agitação - o banzo dos tsunamis, como se disse. Alguns se inquietam: "Onde foi parar aquela moçada?" E se perguntam: "Parou por quê?" Junho apresentou ao Brasil suas novas "narrativas", termo que também invadiu o cotidiano.

Toda revolução constrói sua linguagem. Esta - que não se sabe se será revolução - está repleta de maneirismos e neologismos. Constrói seus signos e significados e até mesmo já ensaia erguer ídolos. E eles parecem pertencer a outra esfera, uma estética da qual não se tinha notícia. Não são charmosos, tampouco bonitos. Não seduzem como os pop stars do passado. Até espantam. Mas traduzem o sentimento difuso, o desconforto obscurecido pelo triunfalismo petista. São como uma comunidade que se desenvolvesse ao lado do edifício que ruía. Não apáticos, mas com códigos próprios. Não à parte, mas fora do eixo, com seus apocalípticos mais ou menos integrados, mais ou menos cooptados, mais ou menos rebeldes - mas não muito.

Difícil para um sistema político viciado compreender isso tudo e não se surpreender, se antecipar, reagir no tempo e na medida corretos. A presidente Dilma, por exemplo, na primeira vez em que foi à TV se posicionar sobre as manifestações que sacudiam o país, o fez como uma tia contrariada: "Que coisa feia, em plena Copa das Confederações! O que o mundo não dirá de nós?". Mais ou menos foi o que disse, com enorme esforço de sua irritação contida. Depois entrou no embalo, carona mais radical que os manifestantes... Propor uma reforma política - inegavelmente necessária -, genérica e sem articulação alguma é de fato uma "barbeiragem" monumental, como disse Lula.

Jogar os eleitores contra o Congresso Nacional - sim, repleto de erros e culpas - assim, desarticulada, com a cara e a coragem, é mesmo tangenciar a memória de Fernando Collor. Por fim, um plebiscito voluntarioso, de supetão - que só mesmo o PT, para não deixar Dilma no sereno, encampou - é amadorismo ou demagogia. Provavelmente, uma demagogia amadora.

Mas de impiedosa desinteligência foi mesmo o caso de Geraldo Alckmin: de Paris, sem paciência e assessoria, o governador vociferou. Sua primeira reação foi tachar todos de "baderneiros", "movimento político!". Ordem, ordem, ordem! O que teria o governador contra a política? A intempestividade não combina com seu caráter de anestesista. Seria tentativa de cortejar a reação, órfã de Paulo Maluf? A ação foi tão óbvia quanto desastrosa: chamar a polícia, soltar os cachorros. Jogar gasolina na fogueira. Depois se esconder com sorriso amarelo.

Não parou por aí: anunciar o congelamento dos pedágios (sem que ninguém pedisse), cobrar por eixo dos caminhões, desorganizar o sistema, inibir investimentos, isso tudo ficará como símbolo de sua aguda ausência de espírito, retumbante vazio. Ainda que não houvesse clima para aumentos, precisaria anunciar? Mas teve mais: no auge da crise urbana, extinguir a Secretaria dos Negócios Metropolitanos foi de lascar! Muito além do jardim, o personagem de Peter Sellers não faria melhor.

As ruas - não se pode falar em "movimento" - reagem aos solavancos. Seu humor rapidamente faz suco de governantes. O primeiro a virar garapa foi Sérgio Cabral, ironicamente o mais efetivo governante do Rio em muitas décadas - ainda que seja por W.O. Em que pese suas realizações, Cabral vinha numa dinâmica de abusar da sorte, exagerar do escárnio. Tantas fez... Hoje é alma atormentada em permanente penitência, rogando perdão na esteira do papa. Neofranciscano, faz agora voto de humildade. Parece tarde.

Castelos começaram a desmoronar. A presidente Dilma e seu governo de técnicos - até recentemente tão seguros de si, crentes na reeleição e na permanência de sua racionalidade presunçosa - vivem revés inesperado, mas não surpreendente. Dilma, que imaginou pairar sobre o mundo, vê seu prestígio despencar. Hoje, presidente, governo, partido, bases políticas e sociais formam um todo fragmentado e desconexo, sem amálgama. Atordoados, petistas tateiam sofismas. Mas o óbvio é que o Estado não funciona, impostos escorrem pelo ralo. Maior e mais visível, a ineficiência do governo federal é mais colossal e evidente. Dilma é a primeira a ser julgada.

Alckmin e sua administração, de moralidade e eficiência autoproclamadas em campanhas passadas tão repletas de adjetivos para os outros, vê agora no seu olho a trave que apontou nos adversários. Para quem acostumou a ser pedra, tornar-se vidraça dói mais. O constrangimento do governador é tão notório quanto é escabroso o escândalo do cartel organizado nas fuças do governo. Ser logrado em quase meio bilhão de reais é tão extraordinário quanto desviar essa quantia. Quantos mensalões não caberiam nessa sacola? Em qual cueca transportar toda essa grana? A se comprovar o noticiário, restará ao governador escolher se foi enganado ou omisso. De nenhum sairá bem na foto. O que dizer agora de Lula?

Mais uma vez, o governador vocifera: cobrará na Justiça centavo por centavo, etc. e tal. A boca espuma de ódio. Cobrará de quem? Para a biografia, indignação não basta. Inimigos comemoram: "É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar". Fina ironia do destino, frio mingau da vingança. Quem com moralismo fere com moralismo é ferido.

No turbilhão de informação e conexões em rede em que vivemos, essas "narrativas" vão ganhando luzes de epopeia: grandes marchas, rebeldia, som, fúria, violência... Paris 68 rediviva aqui, sem o charme de Sartre, a agudeza de Marcuse, o contraponto de Aron. Sem Paris. O fato é que, agora, tudo que se conecta no ar torna-se sólido e vulnerável aos Black Blocs. O marciano diria: "Leve-me ao seu líder". Mas a liderança é uma mão invisível que destrói vidraças. Todos são servos das tais "narrativas". Se, por definição, a pluralidade é a natureza da rede, como edificar o consenso?

Tucanos e petistas mordem a língua. O roto remendando o rasgado é a síntese dialética. No admirável mundo novo, a velha política se vê paralisada pela miopia que ela mesma produz. O novo emerge de onde menos se espera. A mensagem política mais avançada não vem das vanguardas, mas do papa argentino, simpático e humilde. Tudo é mesmo uma grande contradição. O poder está na comunicação, burocratas não sabem se comunicar. Ratzinger não soube, Francisco se conecta. Fernando Henrique e Lula souberam, Alckmin, Cabral e Dilma se trumbicam, diria Chacrinha. Burocratas, carismáticos às avessas, repelem e espantam, desmancham-se no ar.

Na última quarta-feira, alguns manifestantes voltaram às ruas sob o olhar apreensivo de autoridades paralisadas. Não foram muitos os que resolveram enfrentar o frio daquela tarde-noite gélida de inverno, mas suficientes para retomar o processo de quentura do ambiente político. O maior frio é o que vem da espinha. Ao que tudo indica, até pelo menos a eleição o ritmo será assim: tensão e relaxamento, governos na expectativa. Uma rede de descontentamentos vários, a qual os políticos tradicionais não conseguem alcançar.

A força da manifestação não reside na mobilização física, estritamente. Mas numa comichão, na vontade justificada de reclamar. Até mesmo quem não saiu de casa engrossa o coro, o milagre da internet em banda larga, Mesmo quem não vai às ruas sente a ânsia e é capaz de agir. Há, então, a mobilização em potencial, o manifestante em potência, mesmo em repouso. Na tensão do que pode vir a ser de repente, a qualquer momento, no possível permanente, a opinião difusa e simultaneamente discordante, consenso no dissenso. Como Alckmin, Cabral e Dilma podem conviver com isso? O mundo caiu, e eles não aprenderam a levitar.

Alckmin, Cabral e Dilma - sujeitos tão diferentes - encontram-se igualmente nesse perrengue. Governos aflitos, movem-se com medo das sombras, assolados por fantasmas virtuais e denúncias ocasionais, batalhas no front informacional. Oferecem respostas velhas para perguntas novas, não conseguem contornar o turbilhão que os assalta, não drenam o barco que aderna. Independentemente de circunstanciais vitórias eleitorais, em 2014, o certo é que na política já foram derrotados. Ficaram para trás, perdidos no presente, sem conexão com narrativas do futuro, envolvidos pela bruma de um ontem recente e ao mesmo tempo distante.
 
Carlos Melo é cientista político e professor do Insper

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo