segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O país do carnaval, em marcha (Rosiska Darcy de Oliveira)

A folia nunca poupou nada nem ninguém. Tem um espírito similar ao da caricatura. Não existe caricatura a favor
E, de repente, em meio a tanto desgosto, tanta dor e violência, eis que chega o carnaval, espargindo confete e purpurina sobre as nossas vidas. Como se essa festa, tão mais velha que o Brasil, quisesse provar que, apesar de nossos múltiplos pesares, ainda conseguimos vestir e viver fantasias. É graça dada aos carnavalescos a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, vai vida afora em busca de alguma alegria possível. O carnaval tem leis que só os carnavalescos reconhecem e respeitam.
O carnaval começa hoje trazendo sátira e polêmica, com alta voltagem de politização. Aquela em torno das marchinhas de velhos carnavais é o reflexo de uma questão mais complexa, a relação entre a História e a Cultura. A História não se reescreve, o que foi, foi e continuará tendo sido. As rupturas históricas são ruidosas. Já a cultura vai mudando dia a dia, em movimentos imperceptíveis, até que um dia se percebe que o que foi já não é.
O Brasil dos anos 50 cantava a “Nega maluca”. Um tempo em que era comum um homem, sem culpas, engravidar a empregada negra. Feliz, ia jogar sinuca. Era então que “uma nega maluca” vinha com o filho no colo dizendo pro povo que o filho era dele. A marchinha contava uma historia que acontecia, de fato. Ele sempre repudiando essa “nega maluca” que, na vida real, tinha ingressado no bloco das mães solteiras. A música, uma sátira social, é, há 60 anos, um grande sucesso do carnaval. Ainda hoje há quem continue jogando sinuca e renegando os filhos que faz mas, em tempos de DNA, a “nega maluca”, seja ela branca, mulata ou negra, já era.
Nos anos 60, as famílias bem pensantes se perguntavam, sim, se o Zezé, com a sua longa cabeleira, seria gay. Se fosse, que horror! A ordem era cortar o cabelo dele, um transviado, acentuando bem as últimas sílabas. A música animava bailes infantis e sacudia o Gala Gay, um baile disputadíssimo, frequentado por gays e não gays. Os gays se esbaldavam no carnaval, cantando a cabeleira do Zezé.
A autoestima ferida por fatos bem mais graves do que a marchinha deu a volta por cima e hoje desfila em clima carnavalesco nas marchas paradas do orgulho gay, um bloco animadíssimo, que já arrastou três milhões de pessoas em São Paulo. Ninguém mais precisa perguntar se o Zezé é ou não é, ele mesmo, quando quer ser, se apresenta. Ou não, quando não quer dar satisfações sobre a sua cabeleira. A marchinha, um sucesso incontornável, fica como crônica de um Brasil ultraconservador.
O carnaval nunca poupou nada nem ninguém. Tem um espírito similar ao da caricatura. Não existe caricatura a favor. O barbudo vestido de mulher com seios enormes e travesseiro no traseiro, as pernas peludas apertadas na meia arrastão, empunhando um escovão à guisa de estandarte ou vestido de noiva, jogando o buquê para o povo, pode ser um prato cheio para um psicanalista ou simplesmente uma sátira dirigida às mulheres. Lá vai ele, abraçado de um lado a uma louríssima índia de espanador, do outro, a uma Helena de Troia negra. Lá vai o Brasil, rindo de si mesmo.
“O teu cabelo não nega” é racista? É, quando diz “mas como a cor não pega, mulata”. Não é, quando diz “mulata, eu quero teu amor”. Esse é o segredo da população brasileira, uma admirável paleta de todos os matizes de pele. Felizmente, salvo talvez uma minoria ridícula que não frequentaria blocos, a última coisa que somos é brancos, orgulhosos de sê-lo. A música é quase um hino na história do carnaval.
A questão racial no Brasil é das mais complexas, um dos nós do conflito original dos brasileiros, que consiste em sermos essa mistura de brancos, índios e negros. Filhos de três civilizações com histórias diversas, cosmogonias contraditórias, deuses diferentes, que se misturaram e que se aceitam e se recusam ao mesmo tempo, nutrindo uma eterna ambiguidade e insatisfação consigo mesmos. A identidade do Brasil é a diversidade: esse é o nosso paradoxo e maior riqueza, nossa comunidade de destino.
Mulatas e cachaça são grandes temas do carnaval. Em tempos de Lei Seca, letras como “as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar”, ou “pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, (...) só não quero que me falte a danada da cachaça”, poderiam ser ouvidas como desacato. Todos cantam, e nem por isso somos um povo de alcoólatras que dirigem bêbados.
A Lei Seca pegou. O racismo é justamente punido, a homofobia condenada. Marchinhas são antes reminiscências do que uma ofensa atual a quem quer que seja. São o país do carnaval em ritmo de marcha, cantando... e se contando.
Fonte: O Globo (25/02/17)

Uma morte anunciada que não aconteceu (Bolívar Lamounier)

Neste exato momento, em algum lugar do planeta alguém está digitando mais um texto sobre o inexorável declínio da democracia representativa. Os detalhes variam, mas os argumentos são os mesmos de sempre.
Na verdade, a morte da democracia liberal começou a ser anunciada antes mesmo de ela ser levada à pia batismal. No século 19, socialistas de variados matizes davam por assentado que a “democracia burguesa” se esborracharia quase sem ser notada. Como uma irrelevante “superestrutura”, ela sucumbiria no bojo da Revolução. Seria lembrada como um mero registro nas estatísticas da mortalidade infantil.
Nas primeiras décadas do século 20, o fascismo ascendente retomou – e robusteceu – o antigo vaticínio. A democracia estaria em estado terminal não porque o próprio capitalismo estivesse nas últimas, mas pela razão oposta: na era industrial, o avanço da economia de mercado provocaria uma forte elevação no nível dos conflitos entre o capital e o trabalho. Em tal cenário, a política do futuro exigiria o “Estado forte”, ou seja, ditaduras totalitárias, a exemplo das que despontavam na Itália e na União Soviética (URSS).
Nos anos 1930, no Brasil e de modo geral na América Latina, a democracia liberal não iria muito além da “tenra florzinha” a que se referiu Otávio Mangabeira. Os principais ensaístas e historiadores seguiam a mesma toada. Em seu clássico Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda advertiu que o parto de um Estado digno do nome seria sofrido. O rebento seria anêmico, pois nasceria sob o signo do passado colonial e cresceria pressionado pelas brutalidades próprias do capitalismo, que entre nós apenas começavam a se configurar.
Fato é, no entanto, que o retrospecto histórico não respalda a antiga ladainha. Antes da 2.ª Guerra, o número de democracias respeitáveis andava por 10 ou 12, se tanto – hoje estamos falando de 50 ou 60. Mesmo nas melhores, com exceção dos Estados Unidos e da Inglaterra, a parcela da população total habilitada a votar mal atingia 10%, ante cerca de 70% na época atual. As mulheres não votavam. Excetuando novamente os casos norte-americano e inglês, o Legislativo era impotente ante o Executivo. Autoridades legitimamente eleitas eram derrubadas sem a menor cerimônia.
Em que pese o pano de fundo acima esboçado, o que mais se ouve é que a democracia representativa está nos estertores. Tanto no Primeiro como no Terceiro Mundos, o que a cada 15 minutos se afirma é que o mundo caminha para formas autoritárias ou totalitárias de organização política. Ou para uma nebulosa “democracia direta”, como pretendem alguns sonhadores. E é certo, certíssimo, que motivos para pessimismo pipocam por todo lado. Nos Estados Unidos, a ascensão de Donald Trump produziu um fenômeno até há pouco impensável: a premonição de uma crise institucional capaz de romper o próprio regime democrático. Rússia, China, Cuba e Coreia do Norte conservam sua espessa sombra totalitária; mas quando exatamente, ao longo da História, esses países tiveram regimes democráticos? Sem esquecer a possível erosão da democracia pela corrupção e pela praga populista, das quais a Venezuela é um exemplo egrégio. No Brasil, a imensa trama descoberta na Petrobrás. Mas que aspecto devemos destacar: o fato de um cartel de empreiteiras ter desmoralizado quase todo o sistema partidário ou o surgimento, no sistema de Justiça, de lideranças enérgicas e de instrumentos de investigação eficazes?
O equívoco subjacente é perceptível. Quer-se imaginar que a democracia só será real quando a sociedade não tiver mais problemas para resolver, quando, na realidade, ela é a engrenagem mediante a qual a sociedade enfrenta os seus problemas e trata de equacioná-los pacificamente.
Inegavelmente, há uma malaise. Uma falta de convicção, ou uma debilitação generalizada da crença no valor da democracia. Não podemos subestimar o potencial deletério desse fato, mas atribuir-lhe a mesma força das engrenagens institucionais e econômicas da democracia liberal é, evidentemente, um equívoco. E aqui me refiro não apenas às engrenagens, por assim dizer, maduras, consolidadas, mas também daquelas que às vezes conseguimos surpreender in statu nascendi.
Vejam-se a propósito dois artigos publicados pela revista Foreign Affairs no exemplar de janeiro/fevereiro deste ano. Sempre arguto, o cientista político Joseph Nye, Jr., suscita a indagação tradicional: Will the Liberal Order Survive?. Mas Jieun Baek, uma jovem pesquisadora, faz o percurso inverso. Especializada no mais grotesco totalitarismo ainda existente, o da Coreia do Norte, ela descreve fraturas no casco do regime de Pyongyang.
Resumidamente, a história é a seguinte. Em 1994-1998, uma fome devastadora deixou um saldo de centenas de milhares de mortos. Incapaz de alimentar seu povo, o regime foi obrigado a tolerar os jangmadang, pequenos mercados informais nos quais as famílias compravam ou trocavam mercadorias. Esses mercados, escreve Jieun Baek, vieram para ficar: cresceram, diversificaram-se e se sofisticaram. Atualmente, é por meio deles, parcial ou totalmente, que a maioria (talvez 75%) da população se abastece. E uma grande parte dessa maioria – os jovens, principalmente – recorre a esse expediente para adquirir não apenas peças de vestuário ou alimentos. O que mais lhes interessa são eletrônicos contrabandeados, dos quais eles se valem para acessar produtos culturais do Ocidente. Não por acaso, nesse segmento da sociedade a ideologia martelada dia e noite pelo regime tende a se dissolver rapidamente.
(*) Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Seu último livro é ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’
Fonte: O Estado de São Paulo (25/02/17)

O mito do século XX (Demétrio Magnoli)

Há cem anos, no 8 de março de 1917 (23 de fevereiro, no antigo calendário juliano), manifestações pelo Dia Internacional da Mulher combinaram-se à paralisação dos operários da fábrica Putilov, em Petrogrado (São Petersburgo), arrastando à greve quase todos os trabalhadores industriais da capital do Império Russo. No 11 de março, as forças militares convocadas pelo czar a suprimir o movimento negaram-se a bater nas mulheres, que compunham o núcleo das marchas de protesto, e começaram a se amotinar. Tumultuosos dias depois, abandonado por todos, o czar renunciou. A tormenta prosseguiu, sob outras formas, até a tomada do poder pelos bolcheviques (comunistas), em 7 de novembro (25 de outubro). Do desenlace, nasceu o principal mito político do século XX: a Revolução Russa.
Um mito não é uma falsificação, mas uma narrativa que condensa valores e reflete uma determinada visão de mundo. No mito da Revolução Russa, cristalizou-se a ideia da transição inevitável do capitalismo ao socialismo. A narrativa dominante dos eventos de 1917 estendeu até outubro a insurreição popular de fevereiro e descreveu todo o processo como um produto de uma implacável lógica do desenvolvimento histórico.
A História é escrita pelos vencedores? No caso da Revolução Russa, a sentença banalizada (e discutível) ajuda a entender a configuração da narrativa dominante. O assalto ao Palácio de Inverno, na noite de 7 para 8 de novembro, foi conduzido por tropas do regimento de Petrogrado e pelos marinheiros da base de Kronstadt, que obedeciam ao comando dos bolcheviques. Lenin, Trotsky e seus camaradas não chegaram ao poder à frente de manifestações populares insurrecionais como as da Revolução de Fevereiro.
Os líderes mencheviques tinham a verdade factual de seu lado quando acusaram um “golpe de Estado” bolchevique. Mas os vencedores tiveram sucesso no empreendimento de contar a história de outubro como um prosseguimento de fevereiro. O governo bolchevique nunca representou a vontade majoritária, como se constata pela composição da Assembleia Constituinte eleita em 25 de novembro, na qual os bolcheviques e seus aliados tinham apenas 30% dos deputados. A implantação da ditadura, pelo fechamento forçado da Constituinte, após 13 horas de sessão, semeou o terreno da guerra civil.
A comunista polonesa-alemã Rosa Luxemburg criticou acidamente o ato fundador da ditadura bolchevique (“A liberdade é sempre, exclusivamente, a liberdade dos que discordam de mim”), antevendo o caminho que levaria ao stalinismo. A História é escrita pelos intelectuais, o estamento social que dispõe de tempo e recursos para produzir narrativas, não necessariamente pelos vencedores. Como a maioria dos intelectuais do século XX, ao menos no Ocidente, deixou-se seduzir pelo marxismo, o relato bolchevique sobre a Revolução de Outubro sedimentou-se na forma de uma verdade literária quase indiscutível.
A inevitabilidade histórica do triunfo bolchevique complementa a narrativa arquetípica da Revolução Russa. Na Petrogrado de 1917, a Humanidade estaria ensaiando o passo seguinte (a “revolução proletária”), numa sequência evolutiva deflagrada pela queda da Bastilha, na Paris de 1789 (a “revolução burguesa”). A Rússia, “elo mais fraco da cadeia imperialista” (Lenin), serviria de modelo para as revoluções na Europa. No grande esquema histórico, os tiros de festim do cruzador Aurora, no Rio Neva, diante do Palácio de Inverno, marcariam a hora zero da substituição do capitalismo pelo socialismo.
Toda a narrativa exclui o acaso, a circunstância. Mas a Revolução Russa foi o fruto de uma série de acasos. O chamado “ensaio geral”, em 1905, derivou da derrota na guerra contra o Japão. A crise que demoliu o czarismo resultou do colapso social e político provocado na Rússia pela Grande Guerra. A Revolução de Outubro, especificamente, decorreu do controle político bolchevique sobre uma guarnição amotinada de soldados que recusavam a transferência para o front.
A “revolução proletária” jamais seguiu adiante. Na Alemanha, em 1918-19, a maioria dos trabalhadores industriais optou pelos social-democratas, não pelos comunistas, tanto nos conselhos (sovietes) quanto nas eleições para uma Assembleia Constituinte. O fracasso da insurreição alemã cerrou a via da revolução europeia na qual os bolcheviques depositavam suas esperanças. Um estranho “socialismo” espalhou-se pela Europa Oriental no imediato pós-guerra, levado pelo avanço do Exército Vermelho sobre os territórios submetidos à Alemanha nazista. Quatro décadas mais tarde, em 1989, revoluções populares derrubaram os regimes comunistas, fazendo a história “girar para trás”, do socialismo ao capitalismo. As “leis históricas” marxistas revelaram-se desastrosamente inacuradas.
O que a esquerda anticapitalista aprendeu com 1989? Uma facção, talvez a mais significativa, trocou a meta do socialismo estatista pelo caminho pragmático — e, sobretudo, rentável — do capitalismo de Estado. Mais à esquerda, emergiram correntes minoritárias que propõem, confusamente, uma “alter-globalização” — e que replicam os métodos de “ação direta” nascidos no amargo rescaldo das revoltas de 1968. Finalmente, no campo político-acadêmico, difundiu-se um rancor com a própria história, essa velha senhora que se rebelou contra as “leis da História” e seguiu veredas tão diferentes das profetizadas. A tentativa de revolucionar o currículo escolar brasileiro, pela abolição da “História ocidental”, foi uma manifestação singular desse rancor. Se a História não se curva ao nosso desejo, nós a condenamos ao pelotão de fuzilamento! — eis a mensagem desses intelectuais traídos pelo proletariado.
A Rússia reinstalou a velha bandeira czarista, e o inacreditável Boris Yeltsin chegou a propor que se desse “um enterro cristão” ao cadáver embalsamado de Lenin. Mesmo assim, cem anos depois, 1917 não terminou.
fonte: O Globo (23/02/17)


Slow Motion Bossa Nova (Murillo de Aragão)

Tomo o título da música do meu querido amigo Celso Fonseca (com letra de Ronaldo Bastos) para o meu artigo desta semana no Blog do Noblat. Para quem não conhece, recomendo assistir ao vídeo.
As reformas no Brasil ocorrem em “slow motion”. Entre idas e vindas, tomamos medidas paliativas, driblamos o presente e jogamos para a frente o que deve ser feito. Claro que, quando estoura o encanamento, corremos para tomar providências.
Foi assim no governo Dilma. Estourou o cano da incompetência política, fiscal e econômica em um quadro de septicemia moral. O governo foi removido. Óbvio que tardiamente. Diante da tragédia de seu primeiro governo, Dilma não deveria ter sido reeleita. Mas, deixando de remexer na lata de lixo da história, devemos observar o pano de fundo, já que, ao largo do acidente de percurso, estão sendo realizadas reformas importantíssimas para o futuro do país. Pelo fato de ocorrerem em ritmo de “slow motion bossa nova”, não nos damos conta. Nem de como podem mudar o futuro para melhor. Afinal, somos treinados pela mídia a dar valor ao tradicional “good news are bad news”. Daí os avanços serem ignorados ou subavaliados.
Para não ir muito longe, podemos fazer uma limitada viagem retrospectiva. O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff tem a ver com o fracasso de sua política fiscal e econômica, mas também com sua fragilidade frente à Operação Lava-Jato. Dilma abandonou a prudência fiscal e deu vazão a um esquerdismo pueril e fiscalmente inconsequente. Deu no que deu. Para piorar, retórica de honestidade foi fulminada pelo volume estonteante de falcatruas praticadas debaixo de seu nariz. Por sua complacência, omissão e incompetência. A ponto de ela mesma ter dito ao ex-presidente Lula, em reunião no Alvorada, que tinha entubado coisas que não gostaria.
A Lava-Jato tem raízes nos protestos de 2013, que resultaram no endurecimento da legislação anticorrupção. Tem ainda raízes na aprovação da Lei da Ficha-Limpa – que barrou centenas de políticos encrencados nas eleições – e no mensalão. Assim, para não irmos longe demais, as investigações da Lava-Jato – que tanto impacto causam ao país – têm raízes identificadas, pelo menos, desde 2005. Pelo menos. Ou seja, são mais de 12 anos de efeitos políticos e econômicos em um longo processo de transformação. É o que chamo de “slow motion bossa nova”!
A Lava-Jato foi decisiva para o impeachment de Dilma, mas também para determinar o banimento das doações empresariais nas eleições e o estabelecimento de tetos de gastos para campanhas mais adequados ao país. O despertar da cidadania, ensaiado em 2013, ganhou corpo e volume com a Lava-Jato. Milhões foram às ruas e o engajamento da cidadania no debate político tende a ganhar consistência.
O fracasso do governo Dilma levou ao renascimento da agenda de reformas, que, em curto espaço de tempo, está sendo pródiga em bons resultados: teto de gastos, lei do pré-sal, lei das estatais, reforma do ensino médio, reforma do setor energético, repatriação de recursos, entre outros. A Lava-Jato está deflagrando um processo de depuração na política sem precedentes em lugar nenhum do mundo. Está também promovendo a reconstrução do capitalismo nacional, que será, pelo menos, mais aberto e competitivo.
Portanto, mesmo que seja em “slow motion”, o Brasil é um país em reformas. Não apenas no que diz respeito às propostas do presidente Michel Temer – mais do que necessárias – no âmbito previdenciário e trabalhista. Mudanças muito importantes estão em curso há algum tempo. Basta olhar com calma os acontecimentos dos últimos 20 anos.
(*) Murillo de Aragão é cientista político
Fonte: Blog do Noblat (23/02/17)

Radicalismo retórico e performático bloqueia avanços democráticos (Marco Aurélio Nogueira)

Poucos eventos recentes mostram tão bem quão resistente é o clima de excitação improdutiva em que nos encontramos quanto o entrevero envolvendo o escritor Raduan Nassar e o ministro Roberto Freire, da Cultura, na entrega do Prêmio Camões, dia 16 p.p.
Os fatos são conhecidos, tamanha foi a repercussão que tiveram nas redes.
Um escritor é premiado. Comparece ao ato e em vez falar de sua obra, fazer uma reflexão sobre o estado do mundo, defender uma política para a cultura ou valorizar os intelectuais, resolve desancar o governo que lhe entregava o prêmio. Estava no seu direito, queria se mostrar engajado, convencido de que os “tempos são sombrios”, cheios de violências e arbitrariedades. Diz que não pode ficar calado diante do “golpe” que teria instituído um “governo opressor”, que é “contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim”.
Fez uma intervenção curta e incisiva, juntando fatos em torno de uma narrativa que responsabiliza o governo Temer e particularmente seu ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Juntou alhos com bugalhos. Mas estava no seu direito. Ninguém em sã consciência poderá criticá-lo por isso.
O ministro procurou reagir, defender o governo que representava na cerimônia. Começou ponderando que “pessoas da nossa geração sabem bem o que é um golpe efetivo” e que hoje, no Brasil, a democracia vigora plenamente, tanto que o governo estava ali premiando “um adversário político”, como nenhuma ditadura faria. Mencionou que acusam o governo de ser ilegítimo, mas não o vem como ilegítimo quando entrega um prêmio. A plateia presente não se conforma, passa a vaiar o ministro e a gritar “fora Temer”. O ministro se inflama, fugindo do script original e se deixando levar pela emoção. A plateia vai à loucura e busca impedi-lo de falar.
Fechem-se as cortinas.
Converter um ato simbólico, cultural e político (com “p” maiúsculo) em manifestação contra o governo serve para pouca coisa. Não há porque impedir ou condenar que se faça isso, mas é razoável que se procure indagar sobre a eficácia. Na melhor das hipóteses, atos assim dão vazão à indignação que alguns carregam no bolso e usam a qualquer pretexto. Raduan Nassar — um homem digno, discreto, silencioso — acabou envolvido em uma cena grotesca, típica de comédia pastelão. Era uma unanimidade. Com o episódio, perdeu alguns admiradores, ainda que também tenha ficado mais conhecido por outros. Nada que deslustre sua obra ou o rebaixe. De certa maneira, porém, entrou numa fria, acabando por protagonizar um episódio de ódio e irracionalidade, vazio da serenidade típica dos ambientes intelectuais, hoje muito em falta entre nós.
Pode-se criticar a reação do ministro, que no confronto com a plateia subiu desnecessariamente o tom. Isso, porém, não altera o contexto, só o torna mais visível. Assistindo ao vídeo com sua intervenção, fica evidente que não houve qualquer “ofensa” a Raduan, como foi vocalizado por alguns. Freire propôs-se a falar com calma, procurou contemporizar, deu voltas, aceitando o contraditório e a contestação, mas tentando por alguns pingos nos iis. Não censurou Raduan, nem sequer o criticou. Fez o que qualquer ministro faria: defendeu o governo de que participa. Pode não ter sido feliz em toda a fala, mas não atropelou nada. Para ele, “Raduan por sua obra merece plenamente a homenagem”. A plateia, porém, estava cega e enraivecida: vaiou, agrediu, tentou impedi-lo de falar.
Não vale a pena, a meu ver, entrar em pormenores ou lembrar a biografia de cada um dos dois envolvidos principais. Roberto Freire e Raduan Nassar são, cada um a seu modo, figuras que devem ser respeitadas, por mais imperfeições e defeitos possam ter. Em termos políticos, foi um fato menor, que só ganhou amplitude porque os dias que correm estão tortos demais.
Nos dias seguintes, a repercussão amplificou e distorceu o episódio. Raduan foi apresentado como “herói” político. Adversários do governo aproveitaram-se para derramar sobre Roberto Freire uma carga de fúria e ressentimento, acusando-o de ter “traído o PCB” e as esquerdas, de ser um “golpista” de primeira hora e um “canalha”.
Tudo está fora de foco nas manifestações que falam em “golpe” e em “fora Temer”. O slogan virou commodity que se oferece a qualquer preço e que, portanto, só serve para que vendedores de ilusões tentem se instalar no mercado. É um produto de má qualidade, porque lhe faltam atributos políticos, teóricos e conceituais.
A miséria das manifestações explica porque é que, hoje, nada incomoda o governo, a não ser suas próprias contradições internas, que não serão suficientes para pô-lo para “fora”. Se qualquer coisa vira pretexto para se atacar o governo, fica-se sem alvo claro e nenhum ataque surte efeito. Dissipa-se energia à toa. E a pretensa indignação dos protestantes se dilui, como um berro, perdendo-se pelo caminho, atravancando a dinâmica político-social e ajudando a empurrar o país para baixo.
Se o governo é de fato “ilegítimo”, como pregam alguns, há que se combatê-lo no plano político, com seus tempos e suas regras. Se não há como promover uma revolta social e traduzi-la em uma “revolução”, o jeito é educar os cidadãos e esperar pelas próximas eleições. A educação política dos cidadãos não se faz com slogans soltos ao léu, como pipas desgovernadas.
O quadro põe algumas interrogações dramáticas para as esquerdas e para os democratas coerentes. O clima atual, a cada dia mais polarizado e mais vazio de proposições progressistas razoáveis, atrapalha tudo. As pessoas pensam que ao agirem assim facilitarão o desgaste do governo, mas o que produzem é precisamente o contrário: agregam as forças governamentais, a classe média e todos aqueles que não aceitam que se faça política daquele jeito. Criado artificialmente, o clima só faz com que as esquerdas e os democratas permaneçam fora do jogo, com a cabeça enfiada na terra, ainda que esperneando.
O radicalismo retórico e performático é inimigo do avanço democrático. Não trabalha com a paciência, nem com a serenidade, não busca consensos nem se apoia numa teoria aprofundada, é pura emoção. Tem sido incapaz, no Brasil, de refletir criticamente sobre o processo que levou ao impeachment de Dilma, optando por associá-lo à imagem confortável de um “golpe”. Termina assim por funcionar como um biombo de proteção.
Como evoluirá esse radicalismo? Atingirá um ponto em que suas vertentes mais histriônicas e patológicas se esvaziarão e derivarão para nichos minoritários caricaturais e inexpressivos, abrindo espaço para a contestação democrática efetiva e o diálogo produtivo? Ou continuará a se deixar levar pelo arranjo socioeconômico prevalecente, que desmonta a vida organizada e cria um caos ideológico que alimenta a polarização improdutiva e se reproduz como moto contínuo?
Os progressistas (democratas liberais, comunistas, social-democratas, socialistas) sempre se dividiram muito. É da natureza deles. Somente à custa de muito empenho político conseguem caminhar de mãos dadas. Hoje esse traço está dilatado, a ponto de produzir imobilismo. Uma vertente radicalizada prevalece, sem qualquer densidade política ou teórica, impulsionada pelo frenesi das redes, dos tuites, dos celulares, da facilidade com que se dissemina ódio. O diálogo não avança, e se não avança não pode haver ação articulada.
Com isso, os governos — que precisam ser sempre combatidos, fiscalizados, controlados — permanecem inatingíveis, sendo penalizados tão-somente por suas próprias incongruências.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp.
Fonte: Gramsci e o Brasil (23/02/17)

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Os Brumários (Luiz Carlos Azedo)

- O fortalecimento de Jair Bolsonaro é o sinal de que uma onda reacionária pode crescer à sombra da desordem, da recessão e do desemprego
A Revolução Francesa (1789-1899) foi encerrada com um golpe de estado de Napoleão, intitulado Dezoito Brumário, depois de 10 anos de um processo político que tragou seus líderes. Com a derrota da velha aristocracia e do poder feudal, a burguesia francesa inicia um período de expansão no qual o nacionalismo serviu de base para a formação de um grande exército e para a construção de um império. Napoleão era um gênio militar e avançou por toda a Europa, de Portugal, cuja família real teve que se transferir para o Brasil, até Moscou, que encontrou deserta, mas cuja conquista foi uma ambição fatal. Mas essa é uma outra longa história.
Vamos falar do Dezoito Brumário de Luís Napoleão, o sobrinho de Napoleão, em 1848, objeto da uma grande reportagem política de Karl Marx, publicada em 1852, na revista Die Revolution, de Hamburgo. Obra essencialmente política, descreve o “regime bonapartista”, o “transformismo” dos partidos, o “cretinismo parlamentar” e como as elites francesas foram deslocando progressivamente seu apoio das forças socialistas e liberais para as mais conservadoras, até restaurar a monarquia. A França havia promulgado uma nova Constituição; Luis Bonaparte venceu as eleições e governou por quatro anos. Às vésperas da eleição, deu um golpe de Estado para se manter no poder (seu próprio Dezoito Brumário). A população apoiou a restauração conservadora. Ocorre que a emergência do capitalismo já era irreversível, daí a frase famosa: “A história se repete, a primeira vez como farsa, a segunda como tragédia”.
Marx resumiu assim a perplexidade política com aqueles acontecimentos no “Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”: “Não é suficiente dizer, como fazem os franceses, que a Nação fora tomada de surpresa. Não se perdoa a uma Nação ou a uma mulher o momento de descuido em que o primeiro aventureiro que se apresenta as pode violar. O enigma não é solucionado por tais jogos de palavras; é apenas formulado de maneira diferente. Não se conseguiu explicar ainda como uma Nação de 36 milhões de habitantes pôde ser surpreendida e entregue sem resistência ao cativeiro por três cavalheiros de indústria”.
De repente, parece que o mundo está vivendo vários Dezoito Brumário (segundo mês do calendário republicano francês, compreendido entre os dias 22, 23 ou 24 de outubro e 20, 21 ou 22 de novembro, dependendo do ano). O mais significativo deles é a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. O novo presidente norte-americano quer virar o mundo de pernas para o ar, mas toda a lógica de sua intervenção é fazer a roda da História andar para trás. Acontece que a globalização é um processo objetivo, será muito difícil para ele enquadrar as grandes empresas norte-americanas que lideram a revolução tecnológica mundial e reverter as mudanças na estrutura produtiva mundial e a nova divisão internacional do trabalho, ainda que tenha o apoio da indústria tradicional e da grande massa de trabalhadores desempregados. Se considerarmos a economia e as dimensões dos Estados Unidos, a chance de enveredar por uma linha de experimentalismo econômico e tudo acabar numa crise monumental não é pequena.
Farsa política
Mas tem muita gente pelo mundo que acredita que a globalização é apenas uma política imperialista. Os nacionalistas da Europa, por exemplo, que estão na ofensiva na Inglaterra, na França e em outros países. Uma certa esquerda no Brasil, curiosamente, se mantém em absoluto silêncio em relação a Trump, como que na torcida para que sua “nova matriz econômica” reabilite o desastre da política econômica anticíclica aqui no Brasil. É a mesma turma que tenta responsabilizar o governo Temer pela recessão e varre para debaixo do tapete o desastre que foi a manipulação da economia para eleger e reeleger a presidente Dilma Rousseff.
É aí que estamos próximos de viver uma espécie de Dezoito Brumário. Ora, dirão: “Já estamos nele”. Para fundamentar o argumento, a narrativa do golpe, o “Fora, Temer!” e “O Diretas, Já”. São, porém, palavras de ordem que servem para erguer um muro ideológico e maniqueísta, como o de Trump, para fugir à autocrítica, escamotear a verdade dos fatos e voltar ao poder. O resultado da atuação dessas forças, porém, ao contrário do que se possa imaginar, pode apontar para uma direção exatamente contrária. O fortalecimento de Jair Bolsonaro, o candidato de direita, é o sinal de que uma onda reacionária pode crescer como massa de bolo à sombra da desordem, da recessão e do desemprego.
O que se ensaia à sombra da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é uma grande farsa política, num momento em que a Operação Lava-Jato desnuda os mecanismos de acumulação de riqueza e desvio de recursos públicos por parte de um grande “cluster”, digamos assim, de empresários, políticos, executivos, lobistas e doleiros, que mandavam e desmandavam no seu governo. É verdade, o PT não fez nada sozinho; teve a cumplicidade de aliados e houve precedentes de parte de setores da antiga oposição. Mas o “transformismo” petista neutralizou toda e qualquer resistência política a isso no Congresso, exceto a dos mecanismos de controle do Estado e na Justiça federal.
Fonte: Correio Braziliense (21/02/17)

'A utopia foi privatizada', (Zygmunt Bauman/entrevista)

Quando eu e o diretor de fotografia Jacob Solitrenick tocamos a campainha da casa de Zygmunt Bauman, já estávamos com todo o equipamento pronto para iniciar a entrevista. Ao entrarmos, porém, o sociólogo não deixou que começássemos a trabalhar: fez questão de nos servir um lanche com frutas, papear um pouco, como quem reduz a velocidade a que estamos acostumados no cotidiano, abre uma brecha de humanidade na produtividade. Não que ele estivesse sem o que fazer: precisava arrumar as malas para uma conferência fora do país, tinha que deixar uma lista de e-mails respondida, entre outros assuntos. Mas não pôde deixar de abrir uma pausa na urgência, um desses gestos pequenos e gigantes ao mesmo tempo, lição de adequação entre o pensamento e o cotidiano: não basta criticar o tempo que vivemos, é preciso vivê-lo de outra maneira.
Bauman nasceu na Polônia em 1925, mas residia na Inglaterra, onde foi professor titular da Universidade de Leeds. No decorrer da sua trajetória, publicou dezenas de livros, traduzidos para diversas línguas. Aliava uma vasta observação do mundo contemporâneo com uma escrita acessível ao leitor não-especializado: seu conceito de modernidade líquida, por exemplo, suscitou debates nas universidades, mas também na imprensa, nas artes, assim por diante.
Fui entrevistar o sociólogo em junho de 2012 por conta de uma série de televisão que escrevi e dirigi, Incertezas Críticas, produzida pela Grifa Filmes. Meu objetivo era inserir determinados aspectos do nosso presente num horizonte mais amplo: isto é, apresentar algumas possibilidades de análise e interpretação de temas como a crise econômica, a internet, a arte contemporânea, entre outros, de modo a sugerir quadros conceituais menos fixados na urgência das últimas notícias. Nesse sentido, a conversa com Bauman era promissora: ao longo da sua obra, existe uma variedade de assuntos notável, que caminha lado a lado com uma ambição interpretativa alargada.
Ao saber da morte de Bauman no último dia 9, decidi tornar público parte do material da entrevista, ainda inédita. Como se verá, muito do que foi dito naquela tarde ajuda a explicar o mundo que vivemos hoje.
Como você relaciona crise econômica e modernidade líquida?
A incerteza é a única certeza que temos. Não sabemos mais como planejar a longo prazo e, quando planejamos, não temos certeza se o plano vai se concluir. Isso se aplica ao nível individual e ao nível social. A crise econômica é só um dos exemplos dessa instabilidade.
Como isso se dá?
Poder é a capacidade de realizar as coisas. Política é a capacidade de decidir quais coisas serão realizadas. As duas coisas, poder e política, até 50 ou 60 anos atrás, andavam juntas, dentro do quadro dos Estados-nações. As pessoas podiam estar à direita, esquerda ou no centro do espectro político, mas todas concordavam em um ponto: o que fosse decidido, as instituições políticas do Estado tinham o poder e os instrumentos para realizar. Então, a questão toda era quem estava sentado no palácio presidencial ou no comando do governo. Uma vez lá dentro, poderiam fazer política de um jeito ou de outro. Tinham os meios, os instrumentos e a capacidade para fazer isso. Não funciona mais assim.
Como funciona?
Na Europa, temos governos que trabalham com algo que, na área de sociologia, chamamos de double bind. Trata-se de uma pressão dupla em direções extremamente opostas. Por um lado, eles estão expostos ao eleitorado, porque são reeleitos ou tirados do poder a cada 3 ou 4 anos. Portanto, precisam escutar o que o povo quer. Por outro lado, os governos sofrem a pressão extraterritorial de finanças, capitais, bancos internacionais, corporações etc. Estes não dependem do eleitorado, não foram eleitos e não ligam nem um pouco para qual será a reação da população. Querem que o governo deixe de escutar o povo e faça as vontades dos acionistas pois, para eles, a economia equivale aos interesses dos acionistas, isto é, destes que podem ganhar bilhões do nada, ou destruir bilhões, em um dia. São pressões opostas. O resultado disso é que o governo tem opções limitadas.
As crises tendem a se multiplicar?
Eu não acho que essa situação de desordem econômica, pois é difícil chamar isso de ordem, poderia sobreviver sem uma crise constante. Deve haver algum lugar onde os capitais possam se reabastecer ou rejuvenescer, sugando os espólios de outros locais. Então, o que é característico do sistema mundial hoje, em tempos de modernidade líquida, é a constante mudança ou flutuação de poder econômico de um lugar para outro. A situação é essa: por um lado, há poderes que estão livres de qualquer controle político; por outro lado, há políticos que sofrem com a falta de poder. Temos poder sem política e política sem poder.
Como isso afeta cada um de nós?
Até recentemente, os Estados tinham a obrigação de prover as necessidades básicas da vida. Mas, por causa do déficit de poder dos governos nacionais, eles não conseguem mais prover. Portanto, os governos precisam deixar de lado as funções que tinham como obrigações. Eles tem duas formas de deixar de lado essas funções. Uma delas é privatizar. A outra forma é rebaixá-las a um nível que, após Anthony Giddens, chamo de política da vida real. Na política da vida real, eu, você e todas as pessoas, somos ao mesmo tempo parlamento, governo e judiciário. As pessoas têm que decidir o que fazer, executar e julgar. Assim, diversas funções que eram antes realizadas por uma comunidade, agora estão nos ombros dos indivíduos.
Quais as consequências dessa política da vida real?
Por um lado, é um grande avanço de liberdade individual. Em princípio, você pode ser o dono da sua própria vida. É o que chamo de indivíduos de jure: nós somos indivíduos por decreto. Assim, goste ou não, você é culpado por suas derrotas. Se você fracassa, não pode culpar a ninguém. O que, é claro, afeta sua autoestima. Se os seus pais sofressem de insônia, era sobretudo porque tinham medo de não estar suficientemente bem conformados aos padrões. Mas, caso você sofra de insônia, não é por medo de desviar da norma. Pelo contrário, você pode agir como quiser. Você pode ter medo, talvez, de ser incapaz de realizar algo. Sentir que não tem os recursos, o talento, a capacidade ou a energia suficientes para ser quem gostaria de ser. Supostamente, você é livre para escolher sua identidade, mas na prática você não consegue realizar isso. Portanto, você é um indivíduo de jure, mas não é um indivíduo de fato. Essa situação traz sentimentos muito desagradáveis, que são muito comuns no mundo hoje. Um deles é o sentimento de ignorância constante, de não saber o que vai acontecer. Outro sentimento é o de impotência, isto é, mesmo que eu saiba exatamente qual o perigo, não posso fazer nada para impedir. Não tenho o poder para isso. A combinação desses sentimentos, ignorância e impotência, resulta no de humilhação, que é um golpe pesado na autoconfiança e na autoestima. De acordo com as estatísticas, a depressão é a doença mais comum do momento. Muita gente fica deprimida em algum momento. A depressão é o produto dessa sensação de não ter controle, de estar abandonado. Às vezes, chamamos isso de exclusão. Nós somos excluídos de onde a ação acontece, de onde a vida real é vivida. Não conseguimos chegar lá.
Nessa perspectiva, dá para pensar em utopia?
Viver nessas circunstâncias exige que as pessoas tenham nervos muito fortes. Que tenham determinação e também que pensem em maneiras de transformar o mundo em que vivem. É muito difícil de propor isso e mais ainda de conseguir. As utopias, há 50 ou 60 anos, eram utopias sobre uma sociedade perfeita, na qual cada pessoa teria um lar com segurança e todos estariam mais ou menos satisfeitos com a vida. Ter uma boa vida significava viver dentro de uma boa sociedade, por causa dela e graças a ela. Hoje, essa utopia não existe mais. Utopia, como muitas outras coisas na vida, foi privatizada. A utopia privatizada não é sobre uma sociedade melhor, mas sobre indivíduos melhores, cada um em suas situações individuais, dentro de uma sociedade muito ruim. Sobre a sociedade, dizem que não dá para mudar. Mas o que as pessoas podem fazer é cuidar de si mesmas, de seus entes queridos, sua família, cônjuge, o que seja. Encontrar um lugar confortável em um mundo essencialmente desconfortável.
Você pode dar um exemplo de utopia privatizada?
O Facebook. Nele, você pode ter um mundo imaginário, on line, que não aparece na realidade offline. Você pode ser quem você quiser online. Pode ter várias identidades diferentes, pode fingir ser algo que não é, pode realizar todos os seus sonhos. É uma maneira de fugir das duras exigências e asperezas do mundo offline. Uma outra reação é buscar algum tipo de mudança na sociedade como um todo. Por exemplo, os movimentos Occupy.
Como você vê o futuro a partir dessas alternativas?
Eu não sou pessimista nesse sentido. Porque toda árvore de carvalho de cem anos começa com uma muda apenas. E, então, se torna um carvalho majestoso em cem anos. Todas as maiorias na história começaram como minorias. Se não fosse assim, ainda estaríamos no período paleolítico: se ninguém quisesse sair da caverna, ainda estaríamos lá. Aqueles que decidiram sair, eram minoria. Então, cedo ou tarde, o ser humano vai encontrar soluções, mudar os hábitos, mudar a si próprio e começar a viver de outra maneira. Tenho quase certeza disso, mas o problema que me preocupa é quanto tempo isso levará para acontecer.
Fonte: Daniel Augusto (colaboração para o Estado de São Paulo).

Duas esquerdas e os desafios do presente (Sergio Fausto)

Haverá ainda a chance de (re)construir no Brasil um campo político social-democrata?
Em meio às crises e incertezas do presente, pode parecer estranho voltar os olhos para o passado aparentemente longínquo. Mas é o que farei aqui, por motivos que espero deixar claros ao final.
Neste mês a Revolução Russa faz cem anos. Ela começa com a deposição do czar Nicolau II, em fevereiro, e desemboca na insurreição bolchevique de outubro de 1917. Vitoriosos, os bolcheviques dissolvem a Assembleia Constituinte recém-eleita, na qual são minoritários, e começam a implantar a “ditadura do proletariado”, que logo revelaria ser a tirania do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e, finalmente, de seu secretário-geral, Josef Stalin.
Não é preciso idealizar o processo eleitoral que levou à Assembleia Constituinte para concluir que a insurreição bolchevique sepultou as possibilidades democráticas criadas em fevereiro de 1917. Essa é uma história conhecida, que se desdobrou em brutal repressão dos dissidentes; massacres e catástrofes humanitárias; campos de prisioneiros e trabalho forçado, os conhecidos gulags; falsificação histórica e judicial em larga escala, exemplificada pelos “processos de Moscou” – todos eles episódios “edificantes” do período stalinista. A União Soviética terminou melancolicamente em 1991.
Menos conhecida, mas muito mais fértil em sua contribuição à humanidade, é a história de outra esquerda, reformista e democrática, que começa a nascer exatos 20 anos antes da Revolução Russa. Suas origens se encontram na chamada polêmica revisionista, que entre 1896 e 1898 sacudiu o Partido Social-Democrata alemão. Sintomaticamente, poucos na esquerda latino-americana conhecem a obra intelectual e política de Eduard Bernstein, que abriu dissidência contra o dogmatismo doutrinário do maior partido marxista da Europa na virada do século 19 para o século 20.
Em Socialismo Evolucionário, Bernstein faz a defesa política da opção reformista com base na crítica à tese de que tendências intrínsecas ao desenvolvimento capitalista – crescimento e pauperização do proletariado, de um lado, e concentração da propriedade e da riqueza nas mãos da burguesia, de outro – tornariam a destruição do sistema pela revolução não apenas desejável, como inevitável. Esse filho de maquinista de trem, autodidata, expôs com rara coragem intelectual e política o principal calcanhar de Aquiles do marxismo – a sua filosofia da História – valendo-se de dados empíricos disponíveis à época.
A observação da realidade, sem a viseira doutrinária, mostrava não estar ocorrendo nos principais países da Europa nem a pauperização do proletariado, nem a “simplificação” da sociedade em duas classes sociais antagônicas. Não apenas as “leis do desenvolvimento do capitalismo” não se confirmavam na prática, como também o Estado não se cristalizava em “comitê central da burguesia”, frase famosa do Manifesto Comunista. Bernstein anteviu que a ampliação do direito de voto, por pressão social, aumentaria a participação dos partidos social-democratas nos Parlamentos e sua influência nas políticas de governo. Anteviu também que, num ambiente de maior liberdade, a luta sindical dos trabalhadores seria fortalecida. O caminho era o aprofundamento da democracia, não a insurreição proletária.
Neste ainda início do século 21 a social-democracia está em crise. O mundo em que se tornou força dominante na Europa e dali irradiou sua influência não mais existe. As sociedades tornaram-se muito mais heterogêneas do que mesmo a crítica ao dogmatismo marxista poderia imaginar.
Os Estados nacionais perderam graus de autonomia ante a mobilidade internacional do capital produtivo e financeiro. O financiamento dos Estados de bem-estar se vê ameaçado por mudanças produtivas e demográficas. O nível de sindicalização dos trabalhadores despencou e os partidos social-democratas europeus não conseguem ancorar-se em novas bases sociais.
Como o mundo mudou e não mais voltará a ser o que era, a social-democracia vê-se diante do desafio de dar respostas novas. Mas elas devem ser consistentes com os valores que a distinguem historicamente não apenas da esquerda não democrática, senão que também do liberalismo. A social-democracia e o liberalismo (econômico e político) são responsáveis pelos maiores avanços civilizatórios já realizados. Não são, porém, a mesma coisa. Por ser tributária da tradição de lutas sociais da esquerda, a social-democracia tem uma visão mais realista sobre as relações complexas e por vezes conflituosas entre capitalismo e democracia e um compromisso maior de responder com políticas de governo aos processos de transformação econômica geradores de maior desigualdade e exclusão social. Tem, além disso, maior sensibilidade aos temas da sustentabilidade ambiental. Num mundo onde a desigualdade social aumenta, o desemprego produzido pelo avanço tecnológico se amplia, os riscos ambientais à qualidade de vida e a própria sobrevivência da espécie humana se elevam, a social-democracia tem espaço para voltar a crescer, se conseguir reinventar-se mantendo os elos com os valores de sua própria tradição.
Guardadas as peculiaridades nacionais, a afirmação aplica-se ao Brasil. Aqui, desse ponto de vista, o quadro não é animador. O partido que leva a social-democracia no nome, e a incorporou às políticas de governo na Presidência de Fernando Henrique Cardoso, dela se tem afastado, na ausência de qualquer reflexão programática e por cálculos eleitorais e parlamentares de curto prazo. Já o PT, que sociologicamente, por sua base sindical e popular, poderia ter-se convertido num partido social-democrata, saltou do sectarismo inicial para um pragmatismo sem limites, embalado pelo carisma do seu líder máximo e por ideologias retrógradas, quando não antidemocráticas.
Fica a questão: ainda haverá chance histórica, no Brasil, de (re)construir um campo político social-democrata?
Fonte: O Estado de São Paulo (18/02/17)

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Para onde vai o PT? Para onde vão as lutas? (Antonio Negri)

A crise brasileira, na visão de Antonio Negri
Filósofo italiano critica PT por reação aos protestos de 2013, por se afastar das populações metropolitanas e dos trabalhadores negros, pela passividade diante do crescimento da direita evangélica e pela “completa ignorância” das mudanças que se passam hoje na divisão do trabalho
- Negri: "A ideia de governar por meio da corrupção, ou seja, retomando o hábito da direita, não parece ter perturbado o projeto do PT desde o princípio"
Em viagem a trabalho para o Brasil encontrei políticos e intelectuais brasileiros, apresentei a eles alguns questionamentos e recebi respostas distintas e às vezes contraditórias sobre a crise constitucional em curso e sobre a derrota do PT (em âmbito parlamentar e, por último, nas eleições municipais). A partir das respostas a essas questões, gostaria de tirar algumas conclusões provisórias.
Meus interlocutores eram pessoas de esquerda, de uma esquerda brasileira hoje muito fragmentada. Primeira pergunta: por que o PT reprimiu as lutas modelo Occupy de 2013-2014 a ponto de desvirtuar o seu significado e permitir que a direita tivesse hegemonia sobre elas? A resposta que recebi dos expoentes do PT foi unívoca e terrivelmente decepcionante.
Por parte de todos – este é um ponto realmente grave, por parte de todos sem nenhuma hesitação, sem qualquer arrependimento (ainda que muitas vezes com o embaraço da mentira) – obtive uma só resposta: esses movimentos ameaçavam desde o início a manutenção da nossa governabilidade. Não vou nem considerar comentários sem sentido, como quando alguém disse que as lutas de 2013 haviam sido inspiradas pela CIA, e isso não somente no Brasil, mas também no mesmo ciclo de Istambul e do Cairo… É claro que, a partir dessa declaração, evidentemente insensata, dá para concluir que o PT já tinha uma relação ruim com as populações metropolitanas, que, envolvidas na crise econômica do país e tocadas pela inflexão neoliberal das políticas de Dilma, pediam desde 2013 ao governo e ao município uma mudança de linha.
A segunda pergunta foi: por que tantos jovens negros continuam morrendo? Não me foram dadas respostas sobre esta questão. Como sempre, desde que visito o Brasil, a questão segue completamente silenciada. A incompreensão dessa situação, a falta de vontade de assumi-la como problema fundamental, foi determinante na impotência do PT, não digo para resolver, mas simplesmente enfrentar o problema das favelas (fora da dinâmica do capital imobiliário), e agora precipitou um vazio de relações que não só permitiu, mas facilitou a entrada da direita religiosa (e não religiosa) em meio ao proletariado negro.
A função das igrejas evangélicas é subvalorizada em sua capacidade de organizar os novos estratos da classe média dentro e fora das favelas e isso permitiu a penetração ideológica da direita e de uma propaganda de “valores” totalmente subjugada a propostas reacionárias e/ou de restauração da moralidade etc.
Provavelmente aqui está o nó de um dos pontos centrais da crise do PT, sua perda de contato (ou de alguma forma da capacidade de endereçar-se) com o proletariado negro do sistema industrial em crise (se não em dissolução) nas periferias das grandes metrópoles (nos estados de São Paulo e Minas Gerais, particularmente). É dentro da ex-classe operária (dividida agora entre nova classe média e multidões desempregadas e precarizadas) que se revela a crise mais pesada para a esquerda – lá onde ela era hegemônica.
A perda de hegemonia nesses estratos do proletariado metropolitano é sentida por quadros do PT como uma traição. Olha-se com espanto a
Por que tantos jovens negros continuam morrendo?
emergência e afirmação de novos “quadros” negros da direita. Em suma, parece que há uma completa ignorância em relação às modificações estruturais na produção e na divisão do trabalho metropolitano – ao qual se agrega o abandono, como veremos, dos estratos proletários mais pobres.
Terceira pergunta: por que o PT não conseguiu responder ao ataque da direita (desde 2013) fazendo com que as organizações de massa ligadas ao partido também reagissem? Aqui as respostas mostram que também com as organizações tradicionais (a central sindical CUT, o movimento camponês MST etc.) a relação já havia se tornado irrelevante, ou talvez subsistisse apenas para fins de propaganda.
Os sindicatos tornaram-se corporativizados, com os mesmos problemas que existem na Europa diante da ofensiva “empreendedora” do empresariado financeiro; o MST tornou-se frustrado pela recusa ou pela maneira lenta e contraditória das expropriações fundiárias (e, consequentemente, radicalizou-se em um surdo ressentimento em relação a um governo que não podia, contudo, abandonar para não ficar sujeito ao contra-ataque das forças do latifúndio agrário). Sindicatos industriais e rurais tornaram-se mecanismos de controle político e, possivelmente, até de repressão. Como pedir a estes uma reação organizada frente à prevalência da direita? Quanto aos movimentos sociais ou ao povo, estes também haviam sido duramente reprimidos.
A ofensiva da direita
Aqui provavelmente dá para compreender a conquista da hegemonia nos protestos metropolitanos por parte de uma nova direita que, pela primeira vez desde 2014, consegue levar às ruas centenas de milhares de pessoas em meio à ausência de qualquer resposta antagônica. O elemento que incendeia e permite à direita o predomínio nas ruas está ligado à campanha contra a corrupção que, de maneira conjunta, Poder Judiciário e grande imprensa desencadearam contra o PT, colhendo com perfeição (“a tempestade perfeita”) o momento de crise no relacionamento do partido com a massa.
O modelo utilizado para o ataque contra o PT por parte do Judiciário e da grande imprensa é exatamente o mesmo que o da operação Mãos Limpas (o juiz Moro, que representa o centro da iniciativa judiciária, havia escrito e teorizado a respeito).
Duas breves reflexões sobre isto: a corrupção de boa parte das elites do PT nasce da necessidade de equilibrar a “maioria” no Parlamento brasileiro, onde o PT nunca obteve maioria; complica-se, então, pelo apetite constituído no hábito da corrupção política de enriquecimento pessoal de muitos expoentes do partido.
Trata-se, contudo, de corrupção generalizada do sistema político brasileiro: a força e a astúcia da direita (e do sistema jurídico/midiático) foi lançar a denúncia sobre o governo do PT. Parece que agora, para além do desastre do PT, a magistratura está endereçando-se contra setores da direita – sem, todavia, exercitar a mesma eficácia terrorista que se produziu em relação ao PT.
Seguem duas perguntas. Uma primeira: por que com três presidências o PT não lançou mão de uma reforma constitucional que garantisse a governabilidade sem a necessidade de corromper? E em segundo lugar: por que naquele mesmo período não construiu um sistema de comunicação/mídia etc. que permitisse ao PT pelo menos alguma defesa contra os dinossauros midiáticos (Globo, Folha etc.) deste país? À primeira pergunta, obtive respostas ambíguas e confusas. Para alguns, não seria possível mexer na Constituição de um país que acabara de sair de um longo parêntese ditatorial.
Consequentemente, a ideia de governar por meio da corrupção, ou seja, retomando o hábito da direita, não parece ter perturbado o projeto do PT desde o princípio. Um sistema constitucional em que o presidente é eleito com 60% dos votos – tais os números do sucesso de Lula –, numa república federal semipresidencialista em que o Congresso e o Senado não alcançam – num sistema eleitoral quase proporcional – nunca a maioria (presidencial) necessária para o funcionamento legislativo e executivo, é um monstro constitucional, condenado à instabilidade e a negociatas contínuas – deixo que imaginem os métodos.
Quanto à questão midiática, muitos dos meus interlocutores foram menos reticentes. Parecia-me entender que houve, desde o início dos governos do PT, um acordo tácito de fair play com os conglomerados midiáticos: nenhum ataque a eles por parte do governo e recíproca lealdade por parte da mídia. Esse acordo se rompeu assim que a direita conquistou as ruas e a capacidade de expressar uma oposição orgânica. Naturalmente, não estou imputando à ingenuidade do PT a responsabilidade pela queda do seu governo, da sua força e, sobretudo, da perda de hegemonia.
O problema está, evidentemente, em outro lugar, na incapacidade política de resistir à ofensiva neoliberal, de abrir uma resposta multitudinária (como aquela acenada em 2013 por parte dos movimentos metropolitanos), mas sem dúvida essas ingenuidades, que se tornaram estruturais, também não ajudaram.
Crise econômica e a classe média
Uma nova questão: por que a crise econômica mundial foi percebida com tal violência no Brasil a ponto de se tornar incontrolável, ou seja, controlável somente com instrumentos neoliberais? Aqui a resposta foi mais precisa. Temos aqui os documentos, por parte do PT, que ilustram a situação.
Dizem: ganhamos as eleições presidenciais de 2014 com uma campanha à esquerda (eu acrescento: tentando retomar o contato com os movimentos reprimidos em 2013), mas Dilma, apenas reeleita, inverte a sua política, intimidada pelas forças da crise e da recessão. Adota as medidas macroeconômicas clássicas, mas de uma tal maneira que, incidindo sobre as políticas energéticas, expõe os nervos das forças financeiras globais e delas provém uma dura reação.
Vou poupá-los aqui da narração do que seguiu, pois não é nada além dos acontecimentos, ou seja, a formação de um bloco de oposição que vê o partido tradicionalmente aliado ao PT (o PMDB) converter de súbito sua linha em termos neoliberais; uma tentativa de Dilma de corrigir a linha… imediatamente rompida. É como dizer que o omelete neoliberal, timidamente provado, não caiu bem para o PT, mas, em vez disso, acabou imposto goela abaixo pela direita na forma de um “golpe de Estado” – uma direita agora capaz, esta a sua “novidade”, de identificar políticas financeiras no cenário global e privilegiar medidas que simplesmente favoreçam os ricos, como fazia tradicionalmente.
Mas como é triste ouvir homens que foram militantes, marxistas, companheiros de movimento interpretarem tudo em termos de equilíbrio governamental e parlamentar quando perderam a oportunidade de relançar uma ação à esquerda e renovar o próprio partido, pois reprimiram as lutas de 2013! Nota-se, além do mais, que em 2008 alguns deles haviam considerado que, diante da crise, haviam construído suficientes barreiras de defesa. Tratava-se, evidentemente, de uma ilusão.
Mas estavam sinceramente convencidos de que haviam criado um ciclo independente [2]1 do comando financeiro do Norte – um ciclo financiado pelo petróleo e defendido pelas alianças políticas dos Brics.
Outra questão: o que é esta bendita “classe média” que as políticas do PT no governo criaram e que – incompreendidas – teriam cometido o parricídio? Aqui as respostas que obtive levam todas ao ano de 2013. Para alguns do PT, 2013 foi um delito que o povo cometeu contra si mesmo, contra o poder popular – em suma, é como se uma besta imunda houvesse então se revelado… e se revoltado.
É estranho como a incompreensão política das necessidades de “contrapoderes” ativos na sociedade pode se revelar letal para as forças da velha esquerda que se tornaram social-democratas! Há uma total incompreensão sobre a ação de minorias nas multidões ativas. Falando com ex-funcionários da prefeitura de São Paulo – já passada para a direita nas eleições recentes – que provocaram acidentalmente os processos de luta de 2013 ao se recusarem a reduzir o preço dos transportes, a minha percepção da incapacidade de compreensão dos mecanismos elementares do poder por parte desses burocratas foi confirmada.
Eles têm em mente uma dupla ilusão: que a legitimidade das lutas não pode ir além da fábrica e que as lutas sociais são antidemocráticas. Todo tecnocrata entende perfeitamente que a metrópole é, a esta altura, o mecanismo central da acumulação capitalista, que a partir dela ocorrem os processos de extração de mais-valia, mas não querem entender que a força de trabalho metropolitana deve ser, por esse motivo, de alguma forma reconhecida e eventualmente recompensada – que aquele “comum” metropolitano explorado deve ser, de alguma forma, “remunerado” (por exemplo, por meio da gratuidade do transporte numa metrópole de 18 milhões de habitantes, com uma extensão e com um caos que tornam a mobilidade cotidiana uma tarefa árdua).
Contudo, não há uma resposta precisa ao que seja essa fantasmagórica nova classe média. Sociologicamente, isso é o que já havíamos notado, trata-se de uma classe operária que evoluiu em novas formas de composição cognitiva e metropolitana, agora atacada pela crise e pelas políticas neoliberais: ela defende conquistas que acreditava ter adquirido e se rebela contra uma situação miserável que considera inaceitável. Politicamente, essa multidão metropolitana é a classe produtiva que quer ser reconhecida como tal.
Os movimentos representaram uma espécie de introdução à política e esboçaram – numa aproximação ao poder – uma tentativa de exercício de contrapoder. Em consequência, o fracasso dos atos dos movimentos, decorrente da repressão, tolhe qualquer possibilidade de recuperação e mediação no governo da cidade: abre caminho para ações de reivindicação baseadas em poderes de mediação e de decisão não mais expressos pela vontade democrática nem sujeitos a um controle democrático.
Seus instrumentos foram desconsiderados e/ou destruídos. Agregue-se que tudo isso acontece sobre um território de ruínas. Em São Paulo, simplesmente andando pela cidade ou em algumas periferias de classe média, a miséria transborda: miséria do tipo “indiana”, pobres deitados pelas ruas – não se sabe se dormindo ou morrendo –, pedintes por todos os lados, violência noturna etc. Espetáculos intoleráveis.
A nova direita
"Nova direita é uma força indistinta, ferozmente anti-PT, muitas vezes antissindicatos..."
Nova pergunta: qual é o peso e qual é o jogo dos vários componentes da direita brasileira (a fascista antiga, a moderna neoliberal, a nova direita militante, o fundamentalismo evangélico, a direita católica etc.)? Se o elemento determinante da sublevação reacionária foi a classe média em crise, por que o foi e como? Vou poupá-los dos testemunhos de algumas pessoas, integrantes do PT, que encontrei: perseguidas e submetidas a uma espécie de linchamento público, por parte de transeuntes, de conhecidos, de lojistas – um deles me relatou ter sido chamado de “comunista” e “ladrão” na classe executiva de um avião… ameaças e manifestações sob as janelas dos “petistas”, denunciados como coveiros da nação, a crise econômica foi imputada a eles… sem esquecer (e certamente não deve ser esquecido) que se aguarda o encarceramento de Lula.
Voltando a nós: uma novidade, por exemplo, é o fato de que uma direita agressiva, bélica, se manifeste hoje pelas ruas. É desde os tempos da queda da ditadura que algo assim não acontecia. A derrocada do poder municipal do PT foi maciça nas eleições no começo de novembro de 2016; nenhuma cidade foi reconquistada nos locais em que o PT tinha quase monopólio.
Então, o que é a nova direita? Em muitos aspectos, é algo indefinível; no momento, é uma força indistinta, ferozmente anti-PT, muitas vezes antissindicatos… os elementos ideológicos clássicos do neoliberalismo atravessam-na. Aceita as pesadíssimas operações que o novo governo decidiu de imediato: rigor orçamentário, flexibilização do mercado de trabalho e, sobretudo, a decisão de limitar – constitucionalmente – por vinte anos a progressão das despesas do Estado no ritmo da inflação (idêntica operação feita por Macri na Argentina).
O déficit do sistema previdenciário justificaria, além do mais, o fato de se fixar em 65 anos o limite de aposentadoria, até então fixo nos 35 anos de contribuição de serviço. Estado mínimo, privatizações etc. constituem uma perspectiva próxima.
Poderá esta direita manter-se por muito tempo ou ela também está destinada a se dissolver? A respeito disso as opiniões são distintas, a questão permanece em aberto, mas é claro que uma nova fase teve início. O Brasil é um país potencialmente riquíssimo, mas sua estrutura social é talvez mais injusta (quase absurda) que a de outros países com potencial análogo.
Uma direita que mantenha intactas as atuais condições sociais é impensável: a passagem do PT ao poder, neste sentido, marcou uma virada decisiva. Para a direita, manter-se no poder poderá significar então desorganizar as estruturas democráticas do Estado. Há algo de patético nos meus interlocutores do PT, quando os repreendi pelo comportamento durante os movimentos de 2013-2014: “mas nós defendemos o Estado de Direito!”. Mas já não era mais defensável, isto eles não entenderam – então melhor apostar nos contrapoderes dos pobres do que ser esmagado pela contrarrevolução, pela desorganização autoritária do Estado de Direito –, que a direita não pode não fazer.
O que é então a direita? É uma nova máquina de poder que não poderá fazer outra coisa além de consolidar, em formas autoritárias, o controle financeiro sobre o desenvolvimento do país. Além do mais, a este tronco enxerta-se uma direita racista, escravagista, branca e oligárquica que, desde sempre, mesmo quando não dominou, impôs no Brasil sua vontade. Tendo presente este dado, é impensável no Brasil qualquer slogan do tipo indignados que equipare direita e esquerda. No Brasil, antecipou-se Trump.
O futuro do PT
Eis que surge uma última pergunta: o que permanece do partido (PT)? Por que não se produziu uma mudança de quadros, um rejuvenescimento do partido? Por que se revelou um corpo mole contra o qual a estocada do inimigo foi fácil e profunda? Minha opinião é que o PT não conseguirá mais se apresentar como uma força hegemônica. Por melhor que seja, virará um dos pequenos partidos de esquerda que pululam no cenário brasileiro.
Distinto é o parecer de alguns dos dirigentes do PT, coisa não irrelevante dada a inteligencia estratégica que continuam a expressar. Eles sustentam que o partido deve renascer e é interesante a forma em que imaginam este renascimento. Deve voltar ao passado, ou seja, renascer como um movimento. Um movimento horizontal que se apresente em todas as faixas da sociedade onde se trabalha e se é explorado.
A situação mudou completamente desde que o partido nasceu, e os processos de exploração estenderam-se sobre toda a sociedade: é a partir daí,
"O PT não conseguirá mais se apresentar como uma força hegemônica"
então, que se deve agir. E, no entanto, junto à mobilização da sociedade, a verticalidade de uma organização é necessária. O Brasil é um continente; uma ação reformadora não pode avançar senão por meio de um governo, uma verticalidade mediadora que saiba colocar-se à altura daquilo que exige o país e da terrível complexidade das questões e desafios que aparecerem.
E aqui eles reivindicam novamente o fato de terem conduzido uma política qualificada, para além da revolução interna no Brasil, por terem compreendido a necessidade de uma unidade continental da América Latina e por terem iniciado uma aliança política intercontinental – a dos Brics.
Representação horizontal, unidade continental, conexão com os países do hemisfério sul contra o capitalismo financeiro: para eles, este ainda parece ser o quadro no qual renascerá o partido. O que dizer, então, sobre este ponto? O fato de que esses dirigentes não queiram discutir os eventos de 2013 e que o atribuam à CIA é algo bastante cômico – como eu já disse. É necessário, todavia, admitir que em quinze anos esses homens mudaram o Brasil e tiraram da pobreza 50 milhões de pessoas.
Enfim, é necessário admitir que o PT sucumbiu ao seu próprio sucesso. Na verdade, o que é diferente, na experiência brasileira em relação à de outros países, é o fato de que a direção partidária do PT foi derrotada pela classe média que havia se emancipado de uma condição de subalternidade e que havia sido criada a partir das cinzas de uma classe operária já envelhecida. Mais do que uma derrota política, o que está acontecendo no Brasil parece ser para a velha direção uma nêmese antropológica – e talvez o seja.
É incontestável também o fato de que aquelas novas gerações, que poderiam representar mais um avanço na revolução brasileira, tornaram-se, em vez disso, presas da ofensiva da direita neoliberal. Não sei, portanto, o que acontecerá com o PT. Em todo caso, descarto que possa se tornar de novo aquilo que foi em seu momento mais feliz, uma força capaz de hegemonia. De todas as formas, não dá para jogar tudo fora, como insistem alguns: há ainda muita vida ao redor desse partido e qualquer movimento que queira assumir a tarefa de reconstruir uma hegemonía deve manter isso presente.
Aqui se deve agregar uma defesa explícita do Lula “revolucionário” e também uma leitura não irrisória do seu papel como “estadista”. Se de fato é inaceitável que ele tenha considerado as manifestações de 2013-2014 como promovidas pela CIA, sem dúvida a iniciativa de Lula no terreno latino-americano e internacional para garantir os fundos internos e o desenvolvimento externo do projeto petista danificou, se não rasgou, a teia de comando financeiro global e talvez tenha indicado um modo de contornar o controle: construir unidades continentais homogêneas a partir das quais se pode exercitar resistência e redefinir o poder sobre o território global.
Quem não tem presente esses pressupostos não compreende o quanto o processo de inserção do Brasil e da América Latina no sistema global (a condição GlobAL[3])2é avançado. Lula intuiu uma passagem para ruptura: unidade continental latino-americana, abertura – com tonalidade não apenas tática – aos Brics, com particular interesse nos mais “sujos” – África do Sul, Índia e, sobretudo, Irã. Esta intuição de Lula (permitam que eu expresse respeito pela sua inteligência revolucionária) é leninista.
Essa é mais uma razão para insistir sobre o fato de que uma alternativa ao PT, além de se desenvolver no terreno da classe e de se abrir para a compreensão da questão racial nos processos organizativos, precisa recolher do PT aquela intuição política global (para além das palhaçadas populistas do bolivarianismo e em ruptura com o refluxo nacionalista do progressismo andino).
A reconstrução da esquerda
Movimentos de reconstrução? Não sei se existem, e também não sei se novas experiências organizativas que tenham futuro estão em curso. É certo, porém, que existe a sensação generalizada no Brasil de que há algo de novo no ar – contrário e irredutível à direita neoliberal e racista. É algo novo que vai além da expectativa de uma crise interna da classe neoliberal do governo, supondo que a atividade judiciária possa agora criar danos nessa direção. De todas as formas, não acredito muito que algo novo possa surgir assim tão rápido.
Também no Brasil o ciclo neoliberal está distante de sua conclusão, mas é evidente que o “golpe de Estado”, além de atingir o PT, atingiu o sistema e a Constituição de 1988, enfraqueceu-o, talvez tenha bloqueado as articulações e a capacidade de mediação do poder. É aqui, portanto, que me parece possível ter em conta os encontros com os companheiros dos movimentos, atentos à atual fase da crise. Foram eles que me indicaram linhas de recomposição e de programa para reconstruir uma força antagonista.
Eis aqui os pontos mais importantes que eu obtive:
1. A denúncia da violência da polícia, do Estado. Uma violência que não se dirige somente contra a população negra, mas contra qualquer iniciativa social – violência institucional, numa situação em que a “exceção” é norma. É tocante a normalidade de uma violência escravagista e colonialista, mantida e desenvolvida nas e pelas instituições do Estado. Neste ponto, a atenção unânime concentra-se no desenvolvimento de estratégias de resistência que permitam evitar as condições de excepcionalidade sofridas.
Emerge aqui uma característica do debate autônomo brasileiro no qual, dentro das qualificações de formas de luta e de programa, a demanda pela construção de uma “política do desejo” se torna central. Entendem-se assim ações políticas em que prevalecem componentes do desejo, formas de agregação nas quais os pontos motores são os aspectos criativos do fazer política. Pacifismo contra a polícia? Certamente não, mas criações alegres de formas de resistência contra a violência e a brutalidade cega do poder. Compreende-se aqui por que Félix Guattari seja ainda tão citado no Brasil.
2. Há lutas em curso, sobretudo nas escolas secundárias. Lutas que envolveram grande parte dessas instituições em São Paulo e que também passaram para o estado do Paraná. São lutas pelo financiamento público da escola e pela autonomia no ensino. Lutas longas, ocupações que duram meses, conduzidas pelos garotos e garotas e apoiadas pelas famílias. A essas lutas pelas escolas unem-se, com bastante frequência, lutas de estilo argentino, parte dos movimentos feministas, juntos contra a violência sexual e contra a violencia sobre a reprodução (reivindicações: garantia de renda, trabalho doméstico remunerado etc.).
Em toda a América Latina, seguem, após a derrota dos governos progressistas, sobretudo lutas nas escolas e lutas conduzidas pelas mulheres. Trata-se de novas frentes sociais – centrais à luta de classe. O conhecimento e a reprodução constituem, de fato, nós essenciais que o capital deve dominar – formas diretas da emergência de um tecido biopolítico sobre o qual se dá o confronto de classe. É ali que se abrem novos espaços sociais de luta anticapitalista.
3. E depois a luta das populações negras, antes de tudo contra a chacina dos inocentes, ou seja, a carnificina contínua dos jovens às bordas das favelas. Mas a questão racial não emerge somente em relação ao genocídio da juventude negra – a questão racial se dá em todas as partes da sociedade brasileira, constitui “a exceção” sobre a qual se funda a “constituição material” do país. Também a questão da pobreza é completamente ligada à dimensão racial-escravagista da sociedade brasileira.
Não dá para cogitar que o Brasil entre plenamente na democracia sem que a questão racial seja resolvida. As lutas dos negros e negras constituem, portanto, a verdadeira sublevação da sociedade brasileira. Discuti com jovens companheiros e velhos ativistas negros esta sua conclusão: sem a direção de uma força militante negra, será impossível construir qualquer forma de organização autônoma no Brasil, assim como qualquer tipo de reviravolta política de libertação.
4. As principais forças que hoje se movem no terreno social em São Paulo, particularmente o movimento contra a tarifa dos transportes urbanos e o “movimento dos sem-teto”, conduzem a discussão sobre um terreno instantaneamente político. Esses movimentos, protagonistas das lutas de 2013-2014, o primeiro por ter iniciado, o segundo por ter somado a força de dezenas de milhares de famílias “sem-teto”, são também os que têm uma consistência numérica (quadros de organização) e um respaldo importante da massa.
São forças que produzem programa político na metrópole e que, de uma nova forma, constituem contrapoderes sociais no âmbito metropolitano. Na discussão com esses companheiros, o tema do “comum” é central, tornando-se imediatamente evidente – assim como é – pelas lutas contra as tarifas do transporte e também pela moradia. O “comum” pode ser traduzido – dizem esses companheiros – em objetivos imediatamente viáveis. Além disso, o debate destacou a importância da “greve social” como forma de luta que pode unificar as forças que se agitam no contexto metropolitano. Resta o fato de que as grandes manifestações de massa (e pacíficas) são ainda consideradas uma arma fundamental.
5. O que fazer? A conclusão de muitos desses companheiros de movimento está baseada no fato de que o PT tornou-se uma “esquerda branca”, pálida em relação à questão racial e mole ao confrontar políticas neoliberais. O partido perdeu a relação com a sociedade e não poderá mais ser uma locomotiva para o desenvolvimento político. Há, então, que se encontrar forças políticas e construir uma nova organização social e política partindo dos movimentos. A autonomia dos movimentos é agora fundamental para começar uma nova temporada política.
E como? O ponto central – como foi visto – será conjugar o (projeto do) comum como tema unificador das lutas. A “renda universal incondicionada biopolítica” é, neste quadro, a trama sobre a qual podem se desenvolver o discurso político e a mobilização de defesa da “bolsa família” e até da gratuidade dos transportes metropolitanos. E, sempre neste quadro, devem ser destacados outros três campos de luta: 1) intervenção sobre escola e conhecimento; 2) sobre o trabalho de reprodução (particularmente o feminino); 3) sobre a questão racial e a pobreza. A primeira intervenção sobre escola e conhecimento é central na atual fase de acumulação capitalista no território cognitivo. Não por acaso a escola se tornou um dos pontos centrais de construção das novas legitimidades neoliberais.
Por isso, as lutas em curso no território da escola são estratégicas e nelas podem se construir novas vanguardas. Mas o discurso pode se alargar e provavelmente é deste ponto de vista – este da crítica e da intervenção sobre o conhecimento – que o tema da nova classe média poderá ser enfrentado – porque é aqui, dentro desta composição social e produtiva, que o conhecimento é, sobretudo, explorado.
A classe do trabalho intelectual e de serviços já constitui – também no Brasil – a média social e é sobretudo daqui que se extrai a mais-valia. Quanto às lutas sobre a reprodução, a iniciativa argentina me parece ressoar também no Brasil como perspectiva para o movimento. No que tange à questão racial e aos temas da pobreza, já nos pronunciamos. Partindo de São Paulo, talvez se pudesse impor um movimento que combine essas diversas, porém convergentes linhas de ação. Isso foi o que aparentemente pude compreender ao interrogar os movimentos autônomos de São Paulo.
(*) Filósofo marxista italiano, Antonio Negri esteve no Brasil em outubro de 2016 a convite da Universidade de São Paulo (USP). Este texto foi publicado originalmente pela Fundação Rosa Luxemburgo, que também é responsável por sua edição e tradução