domingo, 31 de dezembro de 2017

“Os parlamentares religiosos tendem a ser mais conservadores do que a população evangélica” (Maria das Dores Campos Machado/entrevista)

Entrevista com a professora Maria das Dores Campos Machado,  da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),  especialista em sociologia da religião.
Qual o peso da bancada evangélica no Congresso?
A primeira coisa a dizer é que quando você entra no site da Frente Parlamentar Evangélica você vê 193 nomes. Mas ali tem o nome de todo mundo que assinou para se criar a Frente Parlamentar Evangélica. Tem vários católicos, por exemplo. Os evangélicos assinam também para outros, como a Frente Parlamentar Católica, a da Segurança Pública etc. Para o público em geral aparece como se eles tivessem um peso muito grande, mas eles não têm. Os evangélicos são hoje 16% do Congresso, mas aparecem com essa força toda porque são muito articulados e assertivos, têm uma postura muito beligerante e fazem aliança com vários segmentos que também são conservadores, o que fez com que eles, nos últimos anos, se fortalecessem. Principalmente depois que o Marcos Feliciano foi para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, e o Eduardo Cunha para a presidência da Câmara.
É por causa das parcerias que eles conseguem pautar seus temas de interesse?
Quando eles se unem com os católicos e com os espíritas aí eles conseguem barrar pautas que atrapalham as demandas do movimento feminista e LGBT. O conservadorismo moral que tem dentro do Congresso Nacional se deve às articulações de diversos grupos religiosos. Os evangélicos têm aparecido como mais visíveis apenas porque eles se colocam claramente como evangélicos. Os católicos não fazem isso. Mas existem muito mais parlamentares católicos do que evangélicos.
Por que os católicos não se colocam como católicos?
A grande diferença é que entre os católicos o números de sacerdotes é muito pequeno no Congresso. No caso dos pastores, eles são muito mais representados. No caso dos evangélicos você tem um grande contingente de parlamentares que são autoridades religiosas e essas pessoas tendem a ser mais conservadoras do que a população evangélica fora do Congresso. As pesquisas têm indicado uma certa cristalização do conservadorismo daqueles que estão no parlamento. É como se eles ali tivessem que aproveitar o nicho conservador para maximizar o seu capital político. Aqueles políticos que estão no Congresso Nacional são, inclusive, mais conservadores do que os pastores de igreja que estão fora do Congresso.
Por que a religião evangélica cresceu tanto, especialmente entre os mais pobres?
Temos um país com uma desigualdade econômica imensa e pouquíssima presença do Estado nas periferias urbanas, onde os serviços públicos são extremamente deficitários. Especialmente na questão de saúde e de assistência social. É uma população extremamente carente de bens materiais e equipamentos urbanos e não tem para onde recorrer em caso de dificuldades. Você vê no Rio de Janeiro, por exemplo, que é uma cidade extremamente violenta: no momento de um tiroteio o que está aberto para a população é a porta das igrejas pentecostais. Eles oferecem um espaço público, de acolhimento, que vai, de uma certa maneira, preencher um vazio deixado pelo Estado.
A igreja católica quando muito tem uma porta na sacristia aberta. As portas abertas são as da Universal, da Assembleia de Deus. É nesses lugares que a população carente encontra alguma acolhida e alguma possibilidade de construir uma rede social. Essas igrejas atraem principalmente mulheres, que estão ou na frente de chefia de família, ou que têm casos de banditismo ou alcoolismo dentro da família. Não têm espaço onde possam falar dos seus problemas e ser acolhidas e encaminhadas por um serviço de apoio e de assistência social.
A promessa de resolução de problemas é um fator de atração também?
Muito grande. Isso é poderosíssimo. Há a televisão como o fator de divulgação dessas promessas, com programas que trazem testemunhos de pessoas que conseguiram resolver os seus problemas, que falam de experiências de extrema adversidade ou de violência doméstica, doença. O tema da saúde é algo muito frequente. E, ao mesmo tempo, os cultos também têm efeitos terapêuticos. O culto da Universal, por exemplo, tem a música, a dança, a palma, o que faz as pessoas botarem para fora uma energia que está acumulada. Depois de duas horas de culto ela começa a se sentir melhor. As igrejas pentecostais trabalham muito elementos simbólicos e mágicos: uma lâmpada que eles pedem para o fiel levar e ser benzida para colocar no teto de casa e iluminar a família inteira. Gera uma expectativa. As mulheres também são muito estimuladas a sair do choro e da reclamação. Elas são estimuladas a entrar para o mercado informal de trabalho. Até porque os pastores querem o dízimo, então eles querem que as pessoas tenham uma forma de ganhar alguma coisa. Acaba gerando nelas um sentimento de certo empoderamento.
A linguagem dos pastores também é um atrativo?
Isso é uma outra questão interessante: os fiéis veem no púlpito uma pessoa muito parecida com ela mesma. Você tem pretos e pardos também no púlpito, que é uma coisa que não há na igreja católica. Temos pouquíssimos sacerdotes negros na igreja católica. No caso dos pentecostais há uma identificação por classe, muitas vezes por etnia. E o tipo de oratória é muito próximo desta camada social.
E por que as lideranças se interessaram por entrar na política?
Há uma articulação de interesses. Estar na política permite aos diferentes segmentos sociais uma série de prerrogativas. Abre porta para uma série de coisas. A primeira delas é a proteção. A ideia deles é que eles precisariam estar presentes na esfera da política para serem ouvidos e respeitados e buscarem uma certa legitimidade. A capacidade de influenciar na sociedade aumenta muito quando se está na política e quem está na política consegue ter acesso a uma série de parcerias com o Estado. Consegue concessão de rádio, de televisão, na área da ação social.
E como se deu esse grande crescimento no número de parlamentares?
Desde os anos 80, principalmente com a Constituinte, vem crescendo. Em 86 eles eram quase 4%. Agora são 16%. Essa mudança começa na década de 80 e um dos fatores disso é que com o fim da ditadura muitos atores vieram para a esfera pública: minorias como o feminismo, grupos LGBT e os próprios pentecostais. Eles começam também a se organizar e a querer participar dessa nação enquanto cidadãos. A Universal criou já no inicio dos anos 90 uma estrutura para distribuir as candidaturas, por bairros. Os candidatos não competem nos mesmos bairros. Eles foram criando uma forma de fazer política que foi atuando quase como um partido. Era uma estratégia muito ousada, que começou a ser adotada por diferentes grupos religiosos que competem entre si.
A competição entre os grupos é muito grande?
Muito grande. Eles se unem em alguns momentos, mas competem entre si de forma muito intensa. O que dificulta, por exemplo, a união nos momentos de campanhas majoritárias, como é a para a presidência da República.
Por isso não lançam um candidato único?
As alianças vão ser com diferentes grupos para garantir o seu quinhão. Neste sentido há um pragmatismo muito grande neste grupo que se alinha com o pragmatismo das lideranças partidárias. Elas querem votos, então levam o pastor para se candidatar dentro da sua sigla. Os partidos se abriram para esses grupos religiosos, atraíram essas figuras. Os pentecostais não entraram na política sem serem convidados. Foram estimulados pelos partidos, porque eles têm as igrejas abertas, gente para fazer propaganda. Locais para o candidato encontrar milhares de pessoas para ouvi-los. Esses candidatos vão para os cultos, se apresentam em um cenário onde não existem mais comícios. A redemocratização e os interesses dos partidos em ter acesso às camadas populares abriram as portas ou fizeram com que fosse possível que estes grupos entrassem para a cena política. O que expressa uma certa democratização da política brasileira. Não é de todo mal. Existem novas lideranças, mas que não foram formadas nas passeatas, nos movimentos sindicais ou no movimento estudantil. Foram formadas dentro das igrejas.
No campo nacional eles se alinharam ao PT, partido muito diferente ideologicamente, nas últimas eleições. Por que?
Eles foram apoiar o Lula em função do que tinha no momento. Antes de Lula era o Fernando Henrique Cardoso. As análises mostram que durante o Governo FHC houve um certo investimento da Receita Federal em esclarecer algumas coisas da Universal e isso fez com que houvesse um certo deslocamento da igreja em favor do PT. As outras também se aproximaram muito em função do discurso da ética que o PT tinha no inicio dos anos 2000. Essa guinada para o PT abriu as portas para o partido de uma série de pobres das periferias urbanas das grandes cidades. Para o PT isso foi muito importante. Mas os pentecostais tem uma visão da esquerda muito negativa. E o Lula ao mesmo tempo que tinha alianças com os pentecostais tinha com feministas e LGBT. Da mesma maneira que ele conseguiu fazer com que avançassem muito várias bandeiras feministas, com audiências publicas para discutir aborto, o Programa Nacional de Combate à Homofobia, as conferências nacionais do grupo LGBT, isso gerou uma insatisfação muito grande e os pentecostais vão se afastando de Lula. É um afastamento gradativo que se apresenta de uma forma mais forte em 2014.
É possível um candidato majoritário se eleger sem o apoio dos religiosos ou evangélicos?
Hoje eles têm um número muito grande na sociedade e algum apoio de evangélicos o candidato tem que ter. Agora, construir consenso neste campo é muito difícil. Eles se dividem e apoiam diferentes pessoas. Na próxima eleição eles devem se dividir entre Bolsonaro, Marina e Alckmin.
Fonte:REVISTA IHU ON-LINE entrevista é de Talita Bedinelli, publicada por El País, 03-12-2017.

Mal-estar (Denis Lerrer Rosenfield)

Há um profundo mal-estar na sociedade brasileira. As pessoas estão tomadas pelo desânimo e pela insegurança, portadoras de uma grande descrença em relação aos políticos e aos partidos. Se a moralidade pública tornou-se uma bandeira política, é por que não faltaram razões que corroboram uma tal percepção. É bem verdade que a economia voltou a crescer, criando novas condições sociais, graças às reformas realizadas pelo atual governo, porém tais efeitos ainda não se fizeram sentir ou não são percebidos enquanto tais.
Não deveria, portanto, causar estranheza o fortalecimento da candidatura do deputado Jair Bolsonaro, na medida em que ele consegue dar vazão ao sentimento de uma sociedade cansada de desmandos. Pretender desqualificá-lo como sendo de extrema-direita é nada mais do que uma reação de tipo ideológica, pois não leva em consideração que suas posições estão enraizadas na sociedade. Ele não é uma “bolha” que logo estourará, mas um fenômeno que expressa questões e posições de uma sociedade que está de “saco cheio” com tudo o que está aí.
A descrença da sociedade com os políticos e partidos em geral tem sérias razões. Não há praticamente nenhum grande partido que escape. O PT foi o grande mestre com o mensalão e o petrolão, em cujos governos o país foi levado à ruína econômica e à falta completa de ética. Ex-membros do novo governo estão envolvidos na Lava-Jato, como o de um ex-ministro com mais de 50 milhões escondidos em um apartamento. As imagens foram impactantes. O ex-presidente do PSDB também aparece envolvido no caso da JBS. A lista poderia ser interminável. Fica, porém, a percepção de que todos os partidos estão podres, embora evidentemente existam pessoas sérias e honestas em todos eles. O que conta aqui é a percepção popular. Neste sentido, a posição de um outsider tende a ser muito bem recebida.
As denominações de esquerda e direita, em tal contexto, passam a não ter maior significação, porquanto a questão reside em como dar respostas aos problemas que são postos pela sociedade. Expressão deste deslocamento encontra-se em recente entrevista do ex-presidente Fernando Henrique, ao declarar que tem “medo da direita”, em uma alusão indireta ao deputado Bolsonaro. Curioso. Não teria ele “medo da esquerda” lulopetista que destruiu o país? Ou de Chávez e sucessores que conduziram a Venezuela ao abismo?
A sociedade não mais tolera as invasões do MST e de seus assemelhados urbanos como o MTST. Quer tranquilidade em sua vida e em seu trabalho. Note-se que o MST foi estimulado e acariciado tanto pelos tucanos quanto pelos petistas, com exceção da ex-presidente Dilma, que dele se demarcou e do atual presidente, que tampouco compactua com a desordem. Acontece que o desrespeito à propriedade privada é condenado pela imensa maioria da população, não mais embarcando nos cantos românticos de uma esquerda irresponsável. Consequentemente, quando um outsider como o deputado Bolsonaro toma para si esta bandeira, ele não apenas se contrapõe a importantes partidos, como expressa o que é sentido e condenado pela sociedade.
Pegue-se, por exemplo, um projeto de lei hoje tramitando que permite aos proprietários rurais a autodefesa mediante autorização para registro e posse de armas. Alguns afoitos ou mal intencionados já criticam tal lei como se ela viesse a estabelecer o “faroeste no campo”. Como assim? Não será que ele já existe sob a forma de invasões violentas do MST, com uso de armas, sequestros, incêndios, destruição de propriedades e assim por diante? E a prática do abigeato? E os simples roubos e assassinatos? Condenam-se os que procuram defender-se e, não os que usam da violência em suas invasões. Se um candidato dá voz aos que não conseguem se fazer ouvir, qual seria aqui o problema? O de ser de direita? Santa paciência.
As pessoas já não mais conseguem caminhar livremente nas cidades brasileiras. A insegurança impera, estando a violência sempre à espreita. O automóvel é hoje utilizado para qualquer deslocamento, expressando um medo disseminado. Os mais ricos andam de carros blindados. Um direito básico, o de livre circulação das pessoas, é simplesmente anulado pela insegurança física das pessoas e dos seus bens. Pais e mães ficam angustiados à espera de um filho ou filha que foi a uma festa noturna. Mães são assassinadas quando buscam filhos na escola. A situação é totalmente intolerável, e nenhum governo ocupou-se seriamente da segurança pública. Tucanos e petistas nada fizeram, sendo a nossa realidade, hoje, produto de uma longa história de descaso com a coisa pública. Não deveria surpreender que um candidato que vocalize tal problema básico do Estado cresça na opinião pública. Se o deputado Bolsonaro cresce nas pesquisas, é por que os partidos tradicionais abriram-lhe espaço ao não enfrentarem as questões por ele suscitadas.
Chegamos a uma assaz esquisita situação em que bandidos circulam livremente, com armas de uso restrito militar, pelas favelas brasileiras, sem que nada seja efetivamente feito. Até posam para foto, dada a total impunidade. Se um militar os enfrenta, da polícia, do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, logo instaura-se um processo contra ele, agora felizmente sob os auspícios da Justiça Militar. Se for menor, pior ainda, pois seria um “civil” indefeso que teria sido morto. Os valores estão totalmente invertidos. Os ditos “direitos humanos” não deveriam ser utilizados para a proteção de criminosos, maiores ou menores. Menores matam livremente e, depois da uma breve reclusão, saem de ficha limpa. É um estímulo ao crime. Assim, se um candidato defende a redução da maioridade penal e a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente, é imediatamente estigmatizado como conservador e retrógrado. A perversão é completa.
A sociedade já não mais tolera a impunidade, venha de onde vier.
Fonte: O Globo (25/12/17)

Sobre incertezas e sangue-frio (Murillo de Aragão)

Existem anos que não terminam conforme o calendário gregoriano. Outros começam mais cedo, já plenos de ansiedade e incertezas. O novo ano já está em curso, precipitado pela pré-campanha eleitoral à Presidência da República. E com uma agenda repleta de acontecimentos. Se a campanha será curta – apenas 45 dias –, a atual pré-campanha será a mais longa da história política recente do Brasil.
No campo político, pululam candidatos a candidatos, o que é mais do que esperado. Tanto de esquerda quanto de centro, e isso resulta de três fenômenos: a divisão das esquerdas, a indefinição do centro e a busca pela renovação. Muitos lembram que a campanha de 2018 poderá ser semelhante à de 1989, quando houve 22 candidatos, entre os quais 11 eram políticos de expressão.
Na esquerda, Lula (PT) já tem a companhia da deputada estadual Manuela D’Ávila (PCdoB) e, eventualmente, a do ativista Guilherme Boulos (MTST), além do inoxidável ex-ministro Ciro Gomes (PDT). No centro e na centro-direita, aparecem alguns nomes. Na centro-esquerda estão Marina Silva e Álvaro Dias. Na esfera governista, quem diria, há muitos candidatos a candidatos: o economista Paulo Rabello de Castro (PSC), atual presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o ministro Henrique Meirelles (PSD), o governador Geraldo Alckmin (PSDB), o deputado Rodrigo Maia (DEM), o prefeito João Dória (PSDB) e, quem sabe, o presidente Michel Temer (PMDB).
O mercado teme a divisão do centro em candidaturas diversas e prefere que todos se unam em torno de Geraldo Alckmin ou Dória. Não deseja que se repita o ocorrido na última eleição municipal do Rio de Janeiro, quando o centro, dividido em três candidaturas, ficou fora do segundo turno. Ainda assim, aqui e ali, discretamente, surgem suspiros em favor de Henrique Meirelles e de Michel Temer. A economia poderá viabilizá-los? Talvez sim. Talvez não. A melhora no setor pode ajudar o centro político a se unir.
No campo do folclore político, o deputado Jair Bolsonaro (PSC) lidera com folga e preocupa. Será que encarnará o desejo de renovação? Acho que não, mas a cabeça do eleitor anda meio esquisita. Resta saber se terá fôlego, estrutura e narrativa para uma corrida cheia de obstáculos. No campo dos eventos, a agenda está cheia de temas relevantes. No primeiro trimestre, que costuma ser sonolento até o fim de fevereiro, teremos ao menos dois eventos magnum: o julgamento de Lula no TRF-4 e a votação da reforma da Previdência na Câmara. No fim de março, cerca de 16 ministros devem ser substituídos para poderem concorrer nas eleições de outubro.
Esses são temas que têm o condão de influir o ano inteiro. Caso Lula seja condenado, em que pese os recursos de sempre, ele será ficha-suja e isso atrapalhará seus planos. A radicalização decorrente de sua condenação poderá incendiar o eleitorado a seu favor – o que não acredito –, mas decerto aumentará também sua taxa de rejeição. Ao final, ele poderá ter a pecha de criminoso em seu currículo.
A aprovação da reforma da Previdência na Câmara, seja ela qual for, será música para o mercado e para os investidores. Fortalecerá o governo e seus pré-candidatos. Os efeitos econômicos serão sentidos, ainda que o debate se arraste até o fim do ano. A reforma ministerial poderá espelhar o centro unido em torno de uma candidatura ou a confirmação de que o centro estará dividido entre o PSDB e um candidato governista.
Apesar de as tendências apontarem para uma condenação de Lula e a aprovação de alguma reforma previdenciária, 2018 carrega muitas incertezas. Será um ano de visibilidade curta e estaremos envoltos em nuvens de incertezas nos campos político, jurídico e econômico. Agora, como no âmbito da Justiça tudo é possível, a candidatura de Lula não pode ser descartada.
O pior dos mundos será o ex-presidente agindo como candidato pendurado em recursos ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal. É um cenário possível. E, em sendo candidato, que versão de Lula teremos: a de 1989, de 1994, de 2002 ou de 2006? Teremos uma nova Carta aos Brasileiros? Continuará ele sendo um encantador de serpentes da direita e da esquerda, como em 2002?
No campo jurídico, a Operação Lava Jato pode trazer à tona fatos que abalem o sistema. Existem delações que ainda podem ocorrer e com elevado potencial destrutivo. Assim, o Supremo, que julga em ritmo lento, pode decidir questões que inviabilizem próceres do mundo político. Nesse campo, a já mencionada abundância de candidatos é, por si só, um carnaval para os analistas. No campo econômico, se a retomada for consistente, o governo ganha autonomia para tentar liderar o centro. Até agora a retomada não foi suficiente para alavancar candidaturas.
Movimentos. No âmbito da sociedade, movimentos buscam incentivar a tão necessária participação na política. Iniciativas como a do Renova BR, de Eduardo Mufarrej, agregam interesse e mobilização pouco vistos em processos eleitorais recentes. Teremos alguma renovação, na certeza de que coisas grandes começam pequenas. Infelizmente, o sistema eleitoral brasileiro não é permeável à renovação na intensidade que a sociedade deseja.
A pré-campanha eleitoral já está posta nas redes sociais e as “fake news” ocupam a agenda. A ponto de o Tribunal Superior Eleitoral ter definido regras duras para o uso da internet na campanha. Nesse campo, temos algumas certezas: as campanhas contarão com menos verba do que as anteriores e, em consequência, as redes sociais serão cruciais para os candidatos, devendo haver uma inundação de “fake news”. Para quem gosta de emoções e volatilidade, haverá os gráficos nervosos de indicadores de bolsa, de câmbio, de juros etc.
Conforme se diz, o Brasil continuará a ser um país para profissionais e para investidores com sangue-frio.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/12/17)

A hora e a vez da política (Carlos Melo)

Na realidade dura e crua, a economia poderá fazer pouco pela política em 2018
A suposta supremacia da economia sobre a política povoou o senso comum durante muito tempo. A frase de James Carville, assessor de Bill Clinton, ainda ressoa: “é a economia, estúpido” fez escola na percepção da prevalência dos tais fatores de bem-estar econômico sobre o rondó sem fim, que é a discussão política – seus interesses dispersos, idiossincrasias e princípios mais ou menos abstratos.
No Brasil, esse sentimento foi reforçado por interpretações um tanto mecânicas dos planos Cruzado e Real. O primeiro, em 1986, ajudou o PMDB a eleger 22 governadores dentre 23 possíveis; o segundo fez Fernando Henrique Cardoso presidente da República, eleito ainda no primeiro turno de 1994.
Igualmente, o boom de commodities – que reelegeu Lula, em 2006, e operou o prodígio de eleger Dilma Rousseff duas vezes (2010 e 2014) presidente do Brasil – alimenta esse raciocínio. Além da presente crise econômica que contribuiu, decisivamente, para o afastamento da ex-presidente e a derrocada do PT nas eleições municipais de 2016.
Ora, é evidente que o momento econômico influencia o contexto social e político em qualquer país; é claro que pode definir eleições. Mas, como tudo na vida, nada é tão simples assim. Fenômenos econômicos como os descritos acima foram, antes, dependentes da política; são frutos de boas ou más escolhas políticas, e não o contrário. Logo, não há autonomia da economia sobre a política; há, na verdade, correlação e dependência mútuas.
No desconhecimento disso reside o principal erro analítico de quem vislumbrou e ainda vislumbra um ano eleitoral de 2018 de sucesso para o governo de Michel Temer, em virtude dos resultados econômicos que, eventualmente, o País possa alcançar nos próximos meses.
Primeiro porque, ao contrário de outros momentos – 1986, 1994 e 2010 –, o sistema político atual passa por uma crise sem registro na história, com índices rastejantes de popularidade. É dispensável recordar, aqui, os transtornos revelados pela Operação Lava Jato e seus efeitos para a credibilidade dos políticos.
Em segundo lugar, para que a economia possa ser determinante na disputa das urnas do próximo ano, sua euforia deveria ser comparável ao clima despertado pelo Cruzado, Real e o boom de commodities. Todavia, por mais que o quadro venha a ser positivo, o clima será, ainda, de recuperação. Para o cidadão comum, as perdas com a prolongada recessão não estarão plenamente compensadas. Será importante, mas insuficiente.
Analistas de mercado têm se animado com resultados já alcançados pela equipe econômica do governo e, provavelmente, ainda alcançáveis no próximo ano. Com efeito, a inflação retroagiu – está mesmo abaixo da meta do Copom, os juros caíram ao menor patamar histórico, os preços dos ativos estão baixos e é grande o potencial das concessões e privatizações.
Porém, a continuidade do processo depende da sustentabilidade política. Reformas estruturais, nas mãos do Congresso Nacional, capazes de elevar a confiança dos agentes econômicos e o ânimo para investimentos que potencializem a economia, reduzindo gargalos e higienizando o ambiente de negócios.
O quadro é, porém, conhecido: sistema político anacrônico e disfuncional, elevadíssimas taxas morais e fiscais que debilitam a confiança de eleitores e investidores. Um corpo político fraco, com enorme dificuldade para dar luz ao novo, no campo econômico. E nem se trata de crítica moral ao natural fisiologismo de qualquer sistema, as de alerta para o estágio de hiperfisiologismo, com crescente ineficácia nos processos de discussão, negociação e aprovação de projetos.
Impõe-se um dilema: como ajudar a economia a ajudar a política se a política não apenas não se ajuda como também compromete a economia? É evidente que abrir mão da política e da democracia não são alternativas.
Dizem a literatura e a experiência internacionais que o principal dado econômico, com capacidade de influenciar eleições, são os índices de emprego. Quanto menores, maior o receio do futuro e pior o humor do eleitor, maior sua tendência ao protesto e à mudança – ou à nostalgia do passado, idealizado como “bons tempos”. Neste quesito, o desempenho nacional é ainda insatisfatório: haverá tempo para reverter o processo com a celeridade necessária para interferir no clima eleitoral?
Políticas públicas como segurança, saúde e educação são fundamentais, sobretudo num quadro de desemprego elevado. Como estarão as finanças de Estados e municípios, responsáveis e provedores de políticas desse tipo? Embora relevante, neste 2018 que se aproxima, a economia dependerá mais da política do que o contrário. Na realidade dura e crua, a economia poderá fazer pouco pela política.
O fato é que o País perdeu o timing do choque de expectativas, após o impeachment. Mais recentemente, perdeu também o ritmo das reformas. No autoengano houve desídia do mercado, embaraço moral e oportunismo do sistema político, ilusão e desconhecimento daqueles que, mais uma vez, negligenciaram importantes detalhes políticos. Isto tudo retirou da economia todo ou parte do potencial eleitoral que teria.
Óbvio que candidatos do autodenominado “centro democrático” tocarão o bumbo da recuperação econômica. Naturalmente, o presidente e sua base já tremulam bandeiras de um suposto legado econômico – qual seria o “legado” político? –, mas isso pode ser menos relevante do que gostariam.
Candidatos de oposição enfatizarão problemas econômicos, lacunas e insatisfações, apontando também o agravamento de questões sociais. E, claro, aqueles que puderem cuspir para o alto destacarão as mazelas e a deterioração da credibilidade do sistema.
A pregação econômica, metódica e racional, do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, ou do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, fala à razão de iniciados em relatórios e projeções econômicas, alegra convertidos. Mas, enquanto isso tudo não for percebido concretamente no cotidiano das pessoas comuns, o efeito eleitoral será pequeno. No Brasil, tudo é duvidoso, mas o mais provável é que 2018 seja o ano da política.
Fonte: (24/12/17)

A polarização está na política (Marco Aurélio Nogueira)

O Brasil não é um país polarizado. No chão duro da vida, há mais consenso que dissenso. Diferenças de opinião e de visões do mundo convivem lado a lado, mas a base é uma só.
Todos querem viver em paz, tocar a vida, criar os filhos, trabalhar e se divertir. Torcem para que surjam governos vocacionados para fazer as coisas melhorarem, na economia, no emprego, no cotidiano. Vive-se na expectativa de que o Brasil consiga deixar de ser injusto e desigual, ainda que um conformismo fatalista ande de mãos dadas com o ceticismo e com uma enorme dificuldade de saber que providências tomar para que a desigualdade desapareça ou ao menos seja atenuada a ponto de curar a chaga que mantém 50 milhões de brasileiros na miséria, enquanto 30% da renda se concentra nas mãos de apenas 1% dos habitantes do País.
A maioria despreza a corrupção. Mas são muitos os que pensam que ela é intrínseca aos políticos e aos poderosos. Os brasileiros aprenderam a ver o corrupto como símbolo de um país que não consegue sair do lugar, onde a lei não vale para todos e o “malfeito” nasce como erva daninha adubada pela arrogância e pela certeza de impunidade dos que têm poder. A relação dos brasileiros com a corrupção é confusa. Há quem aceite o “rouba, mas faz” e tenha pena dos corruptos “bonzinhos” vitimizados por terceiros. É crescente, porém, o número de pessoas que deploram a inocência fingida dos acusados. Aplaudem por isso intervenções como a Lava Jato, que pela primeira vez está pondo na cadeia gente que se achava inatingível, acima do bem e do mal.
Todos sabem que estamos carentes de bons serviços públicos, que a educação e a saúde deixam a desejar, direitos são desrespeitados a céu aberto, o Estado não cumpre corretamente suas obrigações. Milhões sentem na pele o efeito dos preconceitos, da humilhação, da insegurança, da violência policial. Atribuem tais desgraças tanto à incompetência dos governos quanto à “certeza” de que os governos são conduzidos com os olhos nos mais ricos e privilegiados.
O brasileiro médio tem fé e esperança. Vê o Estado como provedor geral e protetor. Por essa via, transfere sua expectativa para políticos habilidosos em explorar a ingenuidade popular. Não entende por que a elite nacional se mostra cega e indiferente à miséria e à pobreza. Deixa-se seduzir por quem se anuncia como “salvador”.
A população brasileira não está em guerra consigo mesmo. Assiste, entediada, às disputas no Parlamento, entre a Justiça e a política, entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, como se fossem capítulos de uma novela sem data para acabar. Passam-se os dias, os personagens continuam os mesmos, como se não envelhecessem e não se recusassem a sair de cena.
O desentendimento entre os brasileiros é fruto do estupor de ver o País cheio de políticos que não cumprem seu papel e, ao longo das últimas décadas, perderam qualidade, alienaram-se das mudanças sociais, criaram atritos impregnados de ódio retórico. Foram se desmoralizando e, ao mesmo tempo, forçando a população a digerir a “raiva” e a “combatividade” manifestadas nos embates eleitorais.
A linguagem do ódio – cultivada sobretudo pelos extremos da esquerda e da direita – atiçou o conflito social, fazendo-o derivar para a baixaria cívica e a ignorância política. Basta atentar para as intervenções apopléticas que infestam as redes sociais. Vinda de uma esquerda que não sabe como agir longe do poder, tal postura alimenta uma direita grosseira e violenta repleta de convicções regressistas. E vice-versa.
As consequências estão aí. A intolerância leva à incompreensão do valor das alianças e negociações. Gente de esquerda radicaliza a pretexto de recusar a “conciliação”. O próprio PT, campeão das últimas “conciliações”, prega que haverá uma “rebelião popular” caso Lula seja condenado no dia 24 de janeiro. Ameaça com a “desobediência civil”, como se as massas estivessem furiosas e prontas para a “resistência”.
Fala em conspiração das elites e do Judiciário, apostando numa saída “nacional-popular” que iria além das regras do jogo democrático e sanearia o País.
Estamos pagando o preço da opção feita pelos políticos de criar na sociedade a percepção de que tudo se resolveria quando o lado A sobrepujasse o lado B. Descobriram o fantasma do neoliberalismo, a perversão do “comunismo”, a maldade das “elites brancas e endinheiradas”, a fantasia paradisíaca e alienante do presidente “igualzinho a você” que distribuiria dinheiro e benesses a bel-prazer.
Tanto fizeram que cresceu a sensação de que o País está cindido em dois polos incomunicáveis. Trocaram o fundamental pelo perfunctório, o trabalho político pertinaz pela agitação irresponsável, o reformismo progressivo pela estridência de promessas fáceis, o contato virtuoso com a população pelo jogo cínico dos bastidores e pela conclamação demagógica da “rebelião”.
Nossos políticos se dividiram em tribos sem identidade, cada qual com seu credo, suas taras e suas manias. Bloquearam os caminhos da sociedade. Nessa operação, mataram a serenidade e a inteligência política, levando consigo os mediadores, que constroem soluções.
A polarização criada pelos políticos continua ativa. Voltará com tudo nas eleições de 2018, que mais uma vez não nos apresentarão polos autênticos, substanciosos, mas tão somente uma caricatura deles.
Assim como em outros momentos da História recente, caberá aos brasileiros corrigir os desmandos e a mediocridade de seus políticos. Chamando-os às falas, quem sabe varrendo parte deles do mapa, quem sabe corrigindo o rumo dos que ainda terão serventia. Para tanto a sociedade terá de afirmar a unidade que lhe é própria, valorizando a democracia e as garantias constitucionais.
Não dá para saber quanto disso será alcançado em 2018.
Bom ano novo para todos.
Fonte: O Estado de São Paulo (23/12/17)

Precisamos falar sobre Lula (Zeina Latif)

A participação ou não do ex-presidente Lula nas eleições presidenciais poderá afetar profundamente o quadro eleitoral e as estratégias de partidos e candidatos, bem com o sentimento de investidores.
A avaliação de muitos analistas é que Lula será condenado em segunda instância. Sua inelegibilidade, no entanto, não é automática. Poucos arriscam o timing para isso, pois há muitas incertezas sobre os procedimentos judiciais. Ainda que muitos apontem o senso de urgência da Justiça para reduzir a incerteza eleitoral, haveria probabilidade relevante de Lula pelo menos participar da campanha eleitoral.
Ao menos na economia, não há sinais de discurso incendiário, ameaçando com retrocessos e guinadas bruscas na política econômica. Lula provavelmente reconhece que não há apelo para isso, uma vez que o País vem entrando nos trilhos. Ele afirma que Dilma errou (apesar de ser algo amplamente apontando, vindo de Lula, tem outro peso), questiona a legitimidade do presidente Michel Temer para conduzir reformas estruturais (muitos o fazem) e, ao defender seu legado, critica a agenda do governo, que supostamente teria perdido o foco no social. Nada muito além disso.
Lula é um político pragmático. A julgar por suas declarações e seu passado, ele reconhece que para ser competitivo precisará de discurso contundente (como tem feito na defesa de sua inocência), porém responsável na economia. Nada diferente, a propósito, do que vem sendo feito pela maioria dos candidatos.
Em 2002 a campanha gerou enorme volatilidade nos mercados, mas eram outras circunstâncias. O discurso de Lula foi mais ponderado do que nas campanhas anteriores, mas ele era considerado pouco crível, afinal, o passado o condenava. Lula venceu a desconfiança rapidamente, adotando discurso e política econômica ainda mais conservadores do que de FHC – elevou as metas fiscais e subiu os juros. Na área social, deixou de lado a cartilha petista e adotou políticas de cunho liberal. Na economia e no social, seu primeiro mandato teve muitos méritos. Inquestionável, contudo, a piora do segundo mandato, bem como os escândalos de corrupção.
Do ponto de vista institucional, a candidatura de Lula seria ruim para o País. Qualquer que seja seu envolvimento com os graves escândalos de corrupção (para alguns faltam provas, para outros, sobram), o ideal seria o ex-presidente enfrentar a Justiça e só depois de absolvido concorrer. Como explicar a quem quer produzir e investir no Brasil que um político com várias acusações contra ele, além de condenação na primeira (e talvez segunda) instância, poderá ser candidato?
Se Lula ganhar a eleição, mais complicado ainda. Será um presidente com credibilidade comprometida, o que poderá dificultar enormemente a construção de alianças no Congresso e o diálogo com o Judiciário. Essas pontes são hoje mais importantes do que nunca para o País avançar na urgente agenda estrutural. Lula buscará construir as pontes. Mas a desafiadora tarefa poderá gerar paralisia no governo por tempo demais, algo que custaria muito ao País. As alianças seriam também frágeis, limitando o alcance das reformas.
Além disso, Lula, como qualquer presidente, precisará de bons auxiliares. Time econômico, articuladores políticos e ministros competentes. A capacidade de atrair talentos está prejudicada.
O risco com Lula não é de colapso econômico, como foi com Dilma, e tampouco de um governo bolivariano. Nem Lula é ditador de esquerda, nem nossas instituições um desastre. E as instituições têm funcionado cada vez melhor. Hoje nem Dilma conseguiria repetir tantos erros.
Os riscos econômicos não são extremos, mas sim de mediocridade. De um país que avança tão lentamente que estará fadado a crescer pouco e com muitos solavancos, ao invés de ter crescimento mais acelerado e com ciclos mais suaves e longos.
Este risco não será só com Lula. Será com qualquer presidente que não consiga construir alianças na política e diálogo com as demais instituições, em torno de uma agenda republicana.
Fonte: O Estado de São Paulo (21/12/17)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Brincando com fogo (Marco Aurélio Nogueira)

A discussão está posta já faz tempo. As paixões, excitadas ao extremo, falam mais alto que qualquer racionalidade ou sensatez. Os políticos fogem do tema como o diabo da cruz. O governo, por sua vez, entra no jogo do toma-lá-dá-cá, o que gera na opinião pública a sensação de que o problema será tratado como moeda de troca para sabe-se lá o quê.
Foi assim com FHC, com Lula e Dilma. Está sendo assim com Temer. Se nada for feito, será assim com o próximo presidente.
Estamos brincando com fogo na discussão sobre a reforma da Previdência.
Antes de tudo porque ela afeta milhões de brasileiros e pode ter efeito devastador sobre os mais pobres. Basta errar a mão um pouquinho.
Mas também porque é um fato que a expansão das despesas – provocada tanto pela multiplicação inercial dos beneficiários quanto pelo envelhecimento da população – pode comprometer seriamente o que há de Estado de Bem-Estar e arrasar a rede de proteção social no país.
Uma reforma faz-se necessária no mínimo por isso. Se bem calibrada, pode ser um fator de redução da desigualdade, dos privilégios e da injustiça social em que vivemos.
Há um alegado e controvertido déficit. Mas o problema principal é a disparidade entre os termos a partir dos quais são recebidas e usufruídas as distintas pensões e aposentadorias.
Não dá para simplesmente começar do zero e redesenhar de uma só vez todo o sistema. Será preciso não só considerar os “direitos adquiridos” como fazer os devidos descontos para não prejudicar ainda mais os já prejudicados.
É difícil compreender porque há tanta resistência a que se alterem as idades mínimas e o tempo de contribuição. Além de ser um ajuste pequeno, não produzirá prejuízo maior se vier acompanhado da fixação de algum tipo de bônus para quem começou a trabalhar mais cedo ou o fez em condições insalubres, por exemplo.
Outro ponto diz respeito à resistência ainda mais encarniçada para que se mexa na esfera do que vem sendo chamado de “privilégios”, que engloba as aposentadorias especiais, o RPPS-Regime Próprio de Previdência dos Servidores, específico dos funcionários públicos, civis e militares, dos três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
É compreensível que os servidores aí envolvidos se inquietem e sejam contrários a uma reforma que venha a afetar o que consideram ser as regras com as quais assinaram os respectivos contratos de trabalho. Mas não é compreensível que não se disponham a discutir o problema. Afinal, a convivência em paralelo do RPPS com Regime Geral de Previdência Social-RGPS cria como que dois países, compostos por pessoas com direitos distintos. O paralelismo pode ter sido justificável nos primórdios da organização da Administração Pública brasileira, mas hoje já não é mais.
O correto é tomar providências para que tal disparidade vá sendo reduzida aos poucos até desaparecer.
Em recente artigo publicado na revista eletrônica Será?, a economista Helga Hoffmann enfatiza, com argumentação clara e ponderada, que o regime de pensões e aposentadorias no Brasil é injusto e contribui para a desigualdade, coisa já conhecida mas quase nunca enfrentada a sério. Não se trata de condenar as aposentadorias elevadas, mas sim de compreender que elas somente se convertem em “privilégios” quando são subsidiadas pelos mais pobres. É nesse ponto que nos encontramos.
Hoffmann explica como o funcionamento atual do sistema previdenciário no Brasil faz essa transferência dos mais pobres para os mais ricos.
“Segundo dados de 2016, o déficit do RGPS foi de R$ 150 bilhões, enquanto o do RPPS foi R$71 bilhões. Só que o RGPS paga benefícios a quase 29 milhões de pessoas, enquanto o RPPS banca menos de 1 milhão de aposentadorias e pensões. Grosso modo, o subsídio da sociedade brasileira à aposentadoria de seu funcionalismo é de R$6 mil por benefício/mês, enquanto é de R$ 430 por benefício/mês o subsídio aos aposentados do setor privado. Como em 2016 o valor médio do benefício do RPPS foi R$9.400 e do RGPS foi R$1.450, vemos que a transferência é proporcionalmente maior no caso das aposentadorias do funcionalismo público. Enquanto no caso do INSS a contribuição recolhida cobre cerca de 70% do benefício, no caso do funcionalismo ela não chega nem a cobrir 40% do benefício”.
Ou seja, os impostos são empregados para subsidiar mais o regime de aposentadorias especiais do que o outro. Nas palavras da economista, “a injustiça maior ocorre nesse processo de transferência para cobertura do rombo, pois este é pago pela sociedade em seu conjunto”.
Além disso, os elevados gastos com benefícios previdenciários e cobertura dos rombos reduzem o espaço para outras despesas públicas, como o custeio de saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, infraestrutura e saneamento básico.
Uma reforma terá de ser inevitavelmente feita. Agora ou mais à frente. Não somente por causa de déficits e rombos, mas por uma questão de justiça social. Quanto mais tempo levar, mais dolorosa ficará. O país não aguentará ver sua população crescer em velocidade muito menor do que a população de aposentados. Será bom que todos se deem conta disso.
Aumentar a idade mínima não é um castigo, mas uma tentativa de ampliar a sintonia com as mudanças demográficas, que promovem o envelhecimento da população e aumentam a proporção dos inativos. Idem com o tempo de contribuição. Será preciso também, em algum momento, pôr fim às aposentadorias especiais, como a das mulheres, dos professores e dos policiais, a partir do reconhecimento de que não funciona compensar erros de política salarial com aposentadoria mais benevolente. Seria mais correto pagar melhor os professores do que acenar com uma aposentadoria generosa no final da carreira, justamente quando eles se tornam melhores.
O fato é que a reforma da previdência – assim como outras que produzem impacto nos gastos públicos – expressa com clareza meridiana a necessidade que se tem no país de um novo “pacto social”, entendido como a constituição de uma plataforma política e legal na qual os brasileiros se reconheçam como parceiros de um mesmo país e delineiem um futuro comum. Gastos públicos precisam ser tratados como elementos geradores de solidariedade e não como simples contabilidade fiscal. É disso que se trata quando se fala em “ajuste fiscal”. Estados desajustados não geram solidariedade.
Resistências dedicadas a defender privilégios que somente servem, no fundo, para proteger os que já estão protegidos não levam a nenhum tipo de “pacto”.
Nada disso deveria ser associado à “reforma do Temer”. Até porque ela, feita como está sendo, destina-se a sinalizar algo para os investidores e não integra nenhum programa de recomposição social. É mais simbólica que efetiva. Para se tornar palatável e ter chances de aprovação, a proposta do governo foi desidratada. Afeta parte pequena dos trabalhadores e não põe ordem no sistema. Melhor assim, mas desde que se discuta a fundo a questão durante o processo eleitoral que se avizinha.
Precisamos ir além. Pôr na mesa o que imaginamos ser uma “boa e justa sociedade” e ver de que maneira podemos nos aproximar dela. Não há reformas previdenciárias que possam ser feitas sem que alguém se sinta ou seja prejudicado. Mas há como agir para que os eventuais prejuízos sejam distribuídos com algum critério de justiça e igualdade.
Deixar que o ônus continue caindo sobre os mais pobres e que o sistema fique inviável a ponto de comprometer as gerações futuras é uma demonstração de incapacidade política e cegueira cívica. Revela uma sociedade sem disposição para tomar decisões que digam respeito ao que ela imagina dever ser um padrão de solidariedade entre classes, gerações e profissões.
Fonte: O Estado de São Paulo (12/12/17)

Atraso e poder (José de Souza Martins)

O Brasil retrógrado custa caro. Para amaciar a consciência dos deputados que poderiam assegurar o mandato presidencial no embate recente, o governo comprometeu mais de R$ 20 bilhões. Foi para saciar a fome de benefícios tópicos do localismo brasileiro. Mais uma derrota do nosso republicanismo de mera colagem artificial de instituições modernas na armadura de um arcaico municipalismo, cujas funções sofreram poucas mudanças desde a criação do primeiro município brasileiro, São Vicente, em 1532. Funções alimentadas por recíprocas dependências dos que podem muito em relação aos que nada podem.
Somos dominados pela suposição completamente falsa de que o Brasil só pode ser moderno e desenvolvido se dominado pelo absolutismo do lucro. Os números astronômicos das propinas amaciantes semeiam a generalizada desconfiança de que medidas duras em relação aos ganhos e direitos já modestos dos que vivem de trabalho e salário são obra de quem não sabe o que é desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Estamos em face de duas anomalias associadas. De um lado, a força política dos municípios e das regiões, que elegem os deputados federais e os senadores. Historicamente, as demandas municipais, desde a República, vêm colidindo com demandas propriamente nacionais.
Despesas com a educação superior, com as Forças Armadas, com rodovias e ferrovias, com as questões policiais de natureza federal, com a saúde pública, com a pesquisa científica, com a questão fundiária, com a questão indígena, com as questões relativas à emancipação dos brasileiros de suas carências e misérias, são frequentemente sacrificadas em nome da precedência dos gastos dos políticos do localismo.
O Brasil nacional tem sido o grande derrotado em face do Brasil municipal. Estamos vendo isso todos os dias no abandono da reforma agrária, no desamparo das populações indígenas despojadas de suas terras, de posse imemorial, nas deturpações da representação política.
De outro lado, a fragilidade política da nação em face da aldeia criou uma elite política negocista e vulnerável, incapaz de dar nascimento a uma elite propriamente nacional, que pudesse assegurar o equilíbrio justo entre o Brasil local e o Brasil nacional.
No entanto, não é no plano das questões nacionais que está, propriamente, o Brasil real, o Brasil de carne e osso. É no plano das questões locais que a população imagina o que possa eventualmente ser o Brasil que julgam nas eleições, porque é o Brasil de sua vida cotidiana, do pão nosso de cada dia, da família, do que nos resta do espírito e da cultura comunitários. O Brasil que enxergamos, mas que não nos enxerga.
Apesar das substanciais diferenças entre âmbitos espaciais, o Brasil nacional vota com a consciência do Brasil local. Quando deputados federais exibem evidências de sua cultura política nas melancólicas falas com que justificam seus votos em questões candentes, ficamos sabendo que são os porta-vozes de uma ideologia de província e de toscas e patriarcais concepções de família, que pensam o Brasil como mera extensão dos municípios que majoritariamente os elegeram. O Brasil nacional tem que negociar suas metas e o atendimento de suas carências propriamente nacionais em condição muito desfavorável, com o Brasil municipal, a nação e a pátria subjugados por bairros e distritos.
O Brasil localista e do atraso é o Brasil do minimalismo popular. Mas o minimalismo popular também tem os seus problemas. Sua concepção pobre de um Brasil dos pobres apenas sacramenta a pobreza como graça divina, a do despojamento, da desambição, do inconformismo conformista que nega as conquistas humanas só possíveis na competência para gerar mais riqueza do que a meramente necessária à mera sobrevivência dos virtuosos.
As esquerdas, com razoável clareza, têm questionado o outro minimalismo, o minimalismo tecnocrático. Aquele que, em nome da maximização da economia de grande escala, impõe ao país o abandono das obrigações do Estado para com todos aqueles que são apenas simples cidadãos, os credores que são tratados como devedores. As obrigações da justiça social, da decência política, do amparo aos desvalidos, da opção preferencial pela educação de alto nível, da igualdade como parâmetro de referência de todas as suas políticas. A ideologia do minimalismo oficial gesta e justifica as técnicas de usurpação de direitos, não em nome do país, mas em nome daqueles que vivem do poder e de parasitar o poder.
É significativo que na ceifa de custos e irracionalidades do sistema econômico não se ceife os excessos do poder político, dos três poderes, o descabido do demasiado que dá aos que mandam estilos e modos de senhores feudais.
Fonte: Valor Econômico (11/12/17)

Busca-se um ‘centro’ para uma República (Lourdes Sola)

Ao sair da Convenção de Filadélfia, redigida a Constituição norte-americana, Franklin foi interpelado por uma mulher: “O que vocês fizeram? O que nos entregam?”. Franklin respondeu: “Uma República, se vocês puderem mantê-la”. Sim, a lição óbvia é que teremos uma democracia representativa se eu, se você, se nós pudermos sustentá-la. Mas não é disso que se trata aqui. Há outros aspectos desse diálogo que ajudam a introduzir um pouco de sobriedade na busca por um candidato “de centro”.
Chama a atenção a franqueza com que a segunda figura mais proeminente da independência norte-americana, cientista famoso e abolicionista, invoca a responsabilidade do cidadão. Sem traço de paternalismo ou de demofobia, convoca-o a sustentar a República. Nota-se também o substrato valorativo compartilhado pelos dois interlocutores, por aquela que cobra o que é feito e por aquele que relativiza a bondade do que entrega: a convicção de que seu envolvimento mútuo na esfera pública é uma virtude necessária. O diálogo revela, enfim, quanto do ethos igualitário que está na raiz da sociedade americana, teorizado por Tocqueville, se manifestava na vida política. (E ainda se manifesta, embora de forma regressiva.)
Em 1965, pesquisas sobre crenças e atitudes em cinco países atestavam que o perfil da sociedade norte-americana ainda refletia essa matriz, conceptualizada por seus autores como “cultura cívica”. Caracterizada pelos seguintes componentes: participação ampla e generalizada; exposição à política, entendida como interesse em questões dessa ordem, em discussões frequentes; envolvimento emocional em campanhas; sentimento de poder influenciar o governo; proliferação das associações voluntárias; orgulho de seu sistema político.
É oportuno lembrar esses fatos porque condensam os dois fatores que explicam a longevidade da democracia norte-americana, a Constituição e a força de sua cultura cívica. Longe, no entanto, de contrapor o nosso legado ao dos EUA, com o intuito raso de destacar nossos déficits. Nada mais antirrepublicano do que fixar-se nas marcas de origem para, em seguida, convidar o interlocutor a comprazer-se naquilo que Hirschman caracterizou como self-denigration. Por várias razões. Primeira, porque é uma forma de complacência que facilita a desresponsabilização de uns e de outros: em política isso se traduz na ojeriza à prestação de contas e à autocrítica. Segunda, porque foi ultrapassada por nossa experiência, pois avançamos nesse capítulo em termos contratuais, constitucionais e de expectativas. Terceira, porque, em sua vertente republicana, a questão democrática obriga a analisar as bases sociais da política, num sentido preciso: o envolvimento cívico do cidadão eleitor com a vida política do país.
A História do século 20 atesta a variedade de caminhos para construir uma República. Todos, porém, tiveram, por correlato, transformações profundas na esfera da sociedade civil e, por extensão, na sua cultura política. Esta nada mais é do que a dimensão subjetiva das estruturas objetivas que sustentam a democracia representativa, cuja forma mais alta é a ordem constitucional. Nos termos de Tocqueville:
“Os mores (...) o conjunto de ideias e de hábitos mentais (...) que eu entendo como o conjunto moral e intelectual de um povo”, sem os quais “a situação mais privilegiada, as melhores leis não logram sustentar uma Constituição”.
Nesse espírito, vale lembrar que nossa ordem constitucional fará 30 anos e honrar esse desempenho requer que se reflita sobre as bases sociais da nossa política, sobre as transformações da sociedade passíveis de serem mobilizadas em torno de uma agenda republicana. Daí a pergunta: será que já não dispomos de uma cultura cívica emergente para chamar de nossa? Se sim, a busca frenética por um candidato “de centro” balizada pelas utopias regressivas dos candidatos mais competitivos e pela impotência do PSDB para sequer assumir sua identidade pregressa sugerem que buscamos o centro político no lugar errado.
Identificar os elementos de uma cultura cívica em meio às névoas da guerra nas redes sociais, a uma campanha prematura, no contexto político dominado pela Lava Jato, é um desafio inédito: o “centro” converteu-se num alvo móvel. Onde as âncoras? Embora variem as teorias sobre as bases sociais da política, há convergência sobre o vínculo que regula as relações entre governo e sociedade em qualquer regime: são os critérios de legitimação política. É por meio deles que se reconhece como válido, ou não, o exercício da autoridade, sem a qual não há governo. Refletem o apoio difuso àqueles que detêm as alavancas do Estado e, em última instância, à ordem constitucional.
Em que pé estamos? Três tipos de mutações já ocorreram. Uma, a percepção que o eleitorado tem de sua interação com o Estado. A noção de que este lhe deve serviços melhores pôde ser atrelada à noção de direito, entendido como o correlato político de sua condição de contribuinte. Fátima Jordão registra como as evidências de corrupção foram traduzidas pelas classes C e D: um desvio dos recursos que lhes cabem sob a forma de serviços públicos. Segunda, diante da ininteligibilidade do voto, a característica mais perversa do sistema eleitoral, é o desempenho da economia que fornece ao eleitor as condições mínimas de inteligibilidade. É o critério que faz sentido. A terceira refere-se ao princípio de igualdade perante a lei. É patente a deslegitimação de critérios formalistas de autojustificação, do tipo “estou de acordo com a lei”, típicos da nossa formação histórica. O princípio está entranhado na Constituição, é certo. O que mudou foi a sua incorporação pelo cidadão eleitor. À luz da nossa formação histórica, é um fato subversivo.
Conclusão: o centro não é um ponto fixo, nem é redutível apenas à agenda reformista, e sim uma construção política.
(*) Cientista política e pesquisadora sênior da Usp, PH.D por Oxford, preside o comitê de economia política internacional da associação internacional de ciência política, da qual foi presidente.
Fonte: O Estado de São Paulo (11/12/17)