Convidado da Flip, o argentino Andrés Neuman segue o culto ao fantástico, tão presente em seus ilustres antecessores, para criar, em O Viajante do Século, uma cidade que retrata toda a Europa
O mundo imaginário do escritor argentino Andrés Neuman é extremamente sólido. Em O Viajante do Século, livro que a Alfaguara lança nesta semana, ele criou uma cidade alemã, Wandernburgo, onde, no século 19, o viajante Hans se apaixona pela insinuante Sophie. Inspirado pela sinfonia Viagem de Inverno, de Schubert, ele conta uma história de amor à moda romântica mas utilizando termos modernos. O mix permite ainda que a Alemanha retrate a Europa e como um todo.
Um dos convidados da próxima Flip, em julho, Neuman é, aos 34 anos, quase uma unanimidade – elogiado por Roberto Bolaño (”Um talento iluminado”), recebeu ainda prêmios na Espanha para o romance que é tema da seguinte entrevista, realizada por e-mail.
Por que a Alemanha para refletir sobre a Europa?
A Alemanha era um pretexto, um ponto de partida simbólico. Por isso preferi inventar uma cidade, Wandernburgo, um lugar fantástico cujas ruas se movem. Tão instável e cambiante como o que pretende representar: a Europa pós-Revolução Francesa, as origens do Ocidente moderno. Pareceu-me que esse lugar imaginário devia “ficar” na Alemanha porque, além de ser o motor da Europa, trata-se de um país que resume melhor e o pior da humanidade: a filosofia, a arte da vanguarda, a alta tecnologia e também o nacionalismo, o fascismo e o extermínio. Essa contradição era irresistível. E também um desafio para a ficção: por que somos capazes do sublime e do perverso? Finalmente, meu pobre e amado Schubert, tão pouco escutado em vida e a quem tanto devemos postumamente. A ele devo algumas das lembranças mais amáveis de minha falecida mãe, de quem herdei o amor pela música.
Como García Márquez, Faulkner, Onetti e outros grandes escritores, você decidiu criar uma cidade imaginária e não ambientar a história em alguma cidade conhecida.
Exato. Fui atraído pela ideia de inventar um Frankenstein do Ocidente. Uma espécie de Aleph de onde convergiram todos os países e todas as possíveis identidades nacionais que, no fundo, são ficções. Uma espécie de zapping espaciotemporal. Por isso, Wandernburgo é um lugar tão contraditório, tão maluco: católico em plena terra protestante, pleno de arte e ignorância, de amizade e ódio, um lugar corrupto e até charmoso. Também me interessava muito a lição dos mestres citados por você. Como um apaixonado por suas obras, pensei que seria uma divertida homenagem “transplantar” ao continente europeu esse recurso das terras fantásticas americanas de Rulfo, García Márquez, Onetti e Faulkner. Não para captar uma “essência” regional, mas para sintonizá-la com a sensibilidade atual, mais globalizada e fronteiriça, mais própria dos tempos de internet. Obviamente, há outras diferenças: esses mestres eram gênios e eu não passo de um simples admirador.
A história se passa no século 19, mas é narrada com uma linguagem moderna. Como foi relacionar três tempos diferentes: passado, presente e futuro?
Foi um exercício apaixonante e muito lento. O experimento partiu de uma espécie de pergunta estética de ficção científica: como seria hoje o século 19? O que aconteceria se reescrevêssemos uma história romântica a partir de nossa consciência pós-moderna? Essa experiência afetou os personagens. Hans é um viajante romântico, daqueles que andam em carruagem, mas também é um sedentário semelhante aos internautas, que navegam virtualmente. Sophie é uma moça provinciana como Emma Bovary, mas também um compêndio das grandes mulheres que iniciaram o feminismo: Mary Wollstonecraft, autora da reivindicação dos direitos das mulheres, a grande derivação feminista do pensamento iluminista; sua filha Mary Shelley, autora de Frankenstein, obra que também pode ser lida a partir do pensamento de gênero; Sophie Mereau, a primeira tradutora profissional da Europa; ou Johanna Schopenhauer, mãe do grande filósofo misógino. A experimentação afetou também a linguagem, o estilo. Partindo do molde da novela sentimental e psicologista do século 19, utilizei recursos literários e visuais contemporâneos como imagens surreais, monólogos interiores, linguagem coloquial, diálogos simultâneos como os de rádio ou TV, planos e zooms cinematográficos, descrições sexuais explícitas.
A divisão dos capítulos é marcada pelas estações do ano e ainda temos um epílogo. Como a temperatura influencia o estado espiritual dos personagens?
A literatura romântica foi muito marcada pela ideia de paisagem e entorno natural como poderosa influência do caráter e da cultura. Por isso, interessava-me estruturar o romance pelas estações, fazendo com que o clima de cada capítulo, assim como a história de amor entre Hans e Sophie, dialogasse com cada momento da natureza. Mas também me interessava discutir com a ideia bucólica: há personagens totalmente identificados com a paisagem, como o velho do realejo, e outros mais céticos como o viajante Hans. O interessante é que ambos ficam amigos e aprendem um com o outro. Também têm discussões divertidas como aquela sobre os moinhos de vento: para um, são criaturas estáticas pois vivem sempre no mesmo lugar; o outro insiste que são criaturas dinâmicas porque vivem girando. Ao final, concluem que um moinho é capaz das duas coisas ao mesmo tempo: estar quieto e mover-se, ficar estático e emigrar. Creio que esse é o tema de fundo do romance.
Sua escrita é muito poética e faz lembrar a poesia de autores portugueses, como Fernando Pessoa.
Para mim, Pessoa é um dos maiores da poesia universal. Assim, quando alguém se lembra de apenas um de seus versos ao ler meus livros, ficou eternamente grato. Para mim, a poesia é o solo por onde caminham as palavras. Um romance não é nada sem a poesia e uma prosa sem o estremecimento lírico morre de aborrecimento. Sempre amei os poetas de língua portuguesa: Camões, Sá-Carneiro, Sá de Miranda, Pessoa, Sophie de Mello, Drummond, Lêdo Ivo, Eugénio de Andrade, Uchoa Leite, Nuno Judice. No romance, aliás, Hans e Sophie traduzem um soneto de Bocage. E, logo em seguida, atracam-se em um sexo selvagem. Ao que parece, gostaram do soneto.
Por falar nisso, de que forma a amizade e admiração pelo chileno Roberto Bolaño influenciaram sua escrita?
Entre muitas outras coisas, com Bolaño aprendi uma verdade trágica: todos somos moribundos. E é muito conveniente escrever sabendo disso.
Escrever é, para você, uma necessidade, uma dependência?
Totalmente. É a única droga boa para a saúde, é um alucinógeno natural – graças a ela, a dor se mitiga e cada detalhe do mundo revela-se fascinante.
Por que Bariloche, seu livro anterior, e O Viajante do Século são tão diferentes?
Talvez os temas de fundo dos dois romances, seus fantasmas ocultos, sejam os mesmos: o desenraizamento, o conflito com a memória. Mas o argumento e o estilo são muito distintos. Sempre me agradou a ideia de não se saber como se escreve um livro. De aprender a escrever com cada um e, ao terminá-lo, ser tomado novamente pela dúvida. Um escritor é diferente de um escrivão. Se sabe perfeitamente como executar seu trabalho, então é um impostor. Leitores não merecem fórmulas, mas assombros. E um autor não pode espantar ninguém se não é primeiro assombrado pela linguagem.
Ubiratan Brasil – O Estado de S.Paulo
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