sábado, 19 de março de 2011

"Diário da Queda" (Paulo Werneck)

Romance é "jogo da memória" entre Auschwitz e Alzheimer

PAULO WERNECK
EDITOR DA ILUSTRÍSSIMA

O Bar Mitzvah, como se sabe, é o momento que marca a entrada do menino judeu na "maioridade religiosa", ao completar 13 anos de idade.
A festa, palco de uma das principais cenas de "Diário da Queda", é o símbolo da inflexão que Michel Laub opera em seu quinto romance, que o leva a um novo patamar em sua própria obra, desde o início marcada pela maturidade no estilo e pela mão segura do narrador.
Não que haja ruptura; aí estão as marcas registradas de Laub -o narrador solitário de classe média; a puberdade; a memória como fonte da narrativa e da culpa.
O pulo do gato aqui é a explicitação do judaísmo como ponto de fuga. Verbalizado, o elemento cultural ganha relevo simbólico e joga luz sobre a psicologia algo sombria do narrador de Laub.
O ancoramento de "Diário da Queda" na tradição não é só a tematização do judaísmo, mas a robustez da literatura judaica, um dos pilares da ficção contemporânea.
E é a literatura gaúcha, que neste início de século, já sem tintas regionalistas, se firma como principal celeiro de escritores brasileiros.
Cabe lembrar que o "Diário da Queda" vem no ano da morte de nosso maior autor judeu e gaúcho, Moacyr Scliar. Se Scliar calcou sua obra na esfera simbólica do judaísmo e em seus elementos culturais mais solares, como o humor, Laub se abstém de lançar mão do humor e foca na consciência histórica do Holocausto.
Esse é o "jogo da memória" que se desdobra neste "Diário da Queda" -jogo de "gato e rato", para usar uma cruel imagem do Holocausto, xplorada no livro.
Jogo sem fim e sem vencedor, pois uma culpa puxa a outra: o "bullying" praticado na escola contra o amigo gói (não judeu) desperta a culpa pelas dores do avô em Auschwitz, cultivadas pelo pai que sofre de Alzheimer.
A doença do pai puxa o fio da narrativa do filho, que tenta estancar a hemorragia da memória com o álcool, que por sua vez se converte em matriz de uma ficção que não esquece nada.
Eis as palavras-chave: Auschwitz e Alzheimer. O campo de concentração rouba todo o espaço narrativo. E a doença traz uma pitada de "neurolit", a tendência a explorar doenças neurológicas na construção de personagens, apontada pela crítica turco-americana Elif Batuman como "substituição" do romance psicológico do século 19 na obra de autores como Ian McEwan ou Jonatham Lethem.
Não por acaso, este bom romance de Michel Laub parece talhado para dar certo no mercado anglo-saxão.
(Folha de São Paulo)

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