quinta-feira, 18 de abril de 2019

Populismo, volver? (Cristiano Romero)

O populismo costuma brotar nos momentos de fraqueza dos governantes, quando as coisas não vão bem ou quando uma política que promete o paraíso na Terra não dá certo. No caso do governo Jair Bolsonaro, emergiu em menos de quatro meses de mandato. Testado pela primeira crise real de sua gestão, o presidente reagiu de forma populista ao ordenar que a Petrobras suspendesse o reajuste do preço do óleo diesel, que não se move há mais de 20 dias, mesmo em meio à forte escalada do petróleo neste ano.
Esse era o risco mais temido pelos eleitores "móveis", aqueles que vão além da base social de qualquer candidato e que, por puro pragmatismo, são capazes de votar em Dilma Rousseff (PT) numa eleição e em Bolsonaro (PSL) na seguinte, dois extremos do espectro político nacional. Se dependesse apenas dos eleitores que se identificam com suas ideias, Bolsonaro não estaria hoje em Brasília, no comando do país cuja economia é a 9ª maior do planeta, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) - no auge do último "boom" (2004-2010), chegou a ser a 6ª e nós, brasileiros crédulos, confiamos que ultrapassaria a da Inglaterra, tomando-lhe a 5ª posição. Depois de chegar em 2º lugar em três corridas presidenciais, Lula venceu em 2002 porque os eleitores "móveis" decidiram lhe dar um voto de confiança.
Mas, afinal, como se define um político populista? Populista é aquele que promete durante a campanha eleitoral algo que sabe que não poderá cumprir. É o governante que adota políticas que não cabem no orçamento público. Revestidas de forte apelo social, são deliberações feitas para conquistar eleitores a qualquer preço e, assim, sustentar projetos de poder.
O populismo enfraquece a democracia. Seus adeptos iludem os eleitores com a ideia de que suas ações são legítimas porque atendem aos interesses do cidadão comum, dos pobres e desvalidos. Não é à toa que, mesmo sem representação parlamentar, os pobres constam da "exposição de motivos" da grande maioria das políticas aprovadas em Brasília. Apesar disso, o nível de miséria e pobreza da população segue vexaminoso, escancarando o verdadeiro caráter de iniciativas adotadas em nome dos mais necessitados.
É curioso, por exemplo, que ninguém questione o fato de o Bolsa Família atender hoje praticamente o mesmo número de pessoas (cerca de 50 milhões, quase um quarto da população) que atendia quando o programa foi lançado, há 15 anos. O elogiado esquema de transferência de renda, de inspiração liberal, diga-se de passagem, seria mais efetivo se fosse a base para a emancipação de cidadãos que, por falta de acesso à educação e à saúde, têm desde sempre a miséria como destino e não como partida. Os beneficiários estão cadastrados, o poder público conhece suas necessidades, mas nada é feito para tirá-los dessa situação.
Historicamente, diz-se que o político populista alicia as classes sociais de menor poder aquisitivo. É um fato, mas é preciso registrar que isso só é possível graças à opinião favorável das elites culturais, que, convenhamos, não se importam em estar na companhia desse tipo de polítoco, muitas vezes até lhes dando um lustre intelectual, obviamente, imerecido.
O populismo, claro, não é exclusivo dos partidos de esquerda. A história do país é pródiga nesse aspecto. Até na segunda metade da ditadura militar (1964-1985), foram concedidas benesses, principalmente à classe média, para conter o clamor desse segmento da população pelo retorno das liberdades civis. A conta ficou para as gerações seguintes. Veio na forma de explosão da inflação, baixo crescimento do PIB, contração dos investimentos públicos etc.
Alguns indagam: "Se a medida [de caráter populista] é para melhorar a vida dos mais pobres, então, é válida". Como são adotadas sem lastro no orçamento, políticas populistas provocam, ao longo do tempo, severas crises fiscais que, no fim, aumentam a pobreza, penalizando justamente os grupos sociais que justificaram a adoção das medidas.
A América Latina é o continente onde o populismo fez mais estragos ao longo da história. O caso da Argentina, nação que iniciou o século XX entre as mais ricas do planeta, é o exemplo mais acabado do que os populistas são capazes de fazer. Outro triste exemplo é a Venezuela, onde, para supostamente ajudar os pobres, criou-se um Estado insustentável que transgrediu a democracia e colapsou a economia. Dono da maior reserva de petróleo do mundo, a nação vizinha vive as consequências do populismo desbragado: no ano passado, o PIB teve contração de 18% (neste ano, a expectativa é de novo recuo, desta vez, de 25%), a inflação chegou a incomensuráveis 1.560.000% (é isso mesmo, 1,5 milhão; neste ano, estima-se variação de 10.000.000%) e a taxa de desemprego, a 35%. O caos é a antessala de uma tragédia que pode jogar a nação numa guerra civil, evento que todos julgávamos superados, pela América Latina, depois da década de 1980.
Bolsonaro não foi eleito para fazer um governo populista. Na verdade, ao perceber que a ruinosa gestão de Dilma Rousseff disseminou forte sentimento antipetista na sociedade, ele se apresentou como aquele que, instalado no poder, faria tudo diferente. Em sua peregrinação pelo país e usando as redes sociais como veículos de propagação de sua cruzada, o então pré-candidato ainda tomou o cuidado de não se apresentar como o antiLula. Sabia que, mesmo preso em Curitiba, o ex-presidente gozava de amplo apoio popular e que a principal razão para isso foi o sucesso econômico de seus dois mandatos, medido pela elevada popularidade com que deixou o Planalto Central.
O populismo de Dilma foi do tipo que se adota após o fracasso de políticas mal traçadas, inspiradas em experiências comprovadamente equivocadas, erradas em sua essência. Quando a "Nova Matriz Econômica" fez o avião da economia brasileira embicar - em 2013 -, contrariando a política econômica que levou a ex-presidente ao poder sem nunca ter disputado um cargo eletivo anteriormente, Dilma entrou em modo pânico e passou a adotar freneticamente, dali em diante, medidas populistas que, ao fim da jornada, afundaram o país numa crise interminável e da qual ainda não saímos, passados cinco anos do início do pesadelo.
Valor Econômico/ 17 de abril de 2019

Conceitos de política (Denis Lerrer Rosenfield)

O ambiente político não anda conturbado tão somente por razões acidentais ou de inexperiência dos atores políticos, mas tem uma causa mais profunda, consistente no modo de compreensão da política. O atual governo age segundo um conceito de política baseado na oposição amigo/inimigo, em que o outro é visto como alguém que deve ser desqualificado e aniquilado. Outro conceito de política residiria na consideração do outro enquanto adversário, suscetível de ser convencido, e não suprimido. Denominemos o primeiro conceito de política de totalitário e o segundo, de democrático.
Totalitário porque foi elaborado por um teórico do nazismo, Carl Schmitt. Segundo essa acepção, a esfera da política seria uma espécie de arena de luta até a morte entre amigos e inimigos. Os amigos são os que compartilham a mesma concepção, enquanto os inimigos são os que dela divergem. A crítica, nesse sentido, não é aceita, pois significaria uma espécie de rompimento da concepção vigente ou que está sendo imposta. Instituições que exigem a composição e a negociação, como Parlamentos, são, portanto, tidas por impróprias, decadentes ou corrompidas.
Transplanta-se, assim, para esfera da política a lógica militar da guerra. Nesta, exércitos se enfrentam buscando a derrota do outro, impondo-se o poder da força. Tal acepção vale também em casos de guerra civil, quando, na ausência de composição interna, as forças contendoras entram em conflito aberto, recorrendo às armas. A política fica a reboque de sua acepção militar.
O conceito democrático de política, por sua vez, foge do conceito de guerra ao inimigo, pautando-se pelo reconhecimento do outro como detentor de igualdade política. Não está em seu escopo o aniquilamento do outro, uma vez que sua forma de atuação reside na instituição parlamentar, na separação de Poderes e na liberdade de opinião e expressão. Eis por que a democracia representativa preza as instituições que são espaços de negociação, de convencimento e, mesmo, de judicialização das divergências.
A política bolsonarista, em seu período eleitoral, regeu-se por essa acepção excludente da política, usando e abusando da retórica do inimigo a ser desqualificado, cuja forma mais significativa foi o emprego da oposição “nova/velha política”. A “nova” seria a dos virtuosos, dos não corruptos, dos bons, que se oporiam a todos e a tudo que está aí. Os políticos e os partidos foram, então, tidos por algo a ser desprezado e posto de lado. Nesse sentido, as redes sociais foram um instrumento particularmente adequado, pois dados a sua economia de palavras e o seu modo de expressão, prestam-se, particularmente, ao enfrentamento e ao ataque. Elas funcionariam segundo a oposição amigo/inimigo.
Observe-se que a política petista empregou idêntico conceito de política. Lula utilizava a mesma oposição amigo/inimigo sob a forma das oposições excludentes, entre “conservadores e progressistas”, “direita e esquerda”, “nós e eles”. Atente-se para o conceito de política que ganha essas diferentes formas narrativas, que foram o sustentáculo dos governos petistas. Lula tinha incomensurável desprezo pelo Congresso, pelos partidos e pelos parlamentares. Ora eram picaretas, ora companheiros de negociatas.
No governo, pautado por instituições democráticas, o presidente Bolsonaro seguiu predominantemente a utilizar o mesmo conceito de política que lhe tinha sido tão benéfico na campanha eleitoral. Seu grupo próximo, constituído de civis, continuou empregando as redes sociais da mesma maneira, terminando por produzir conflitos incessantes com políticos e partidos. Evidentemente, estes não se reconhecem nessa forma de fazer política, uma vez que são considerados representantes da “velha política”, como se fossem, por isto mesmo, desqualificados e corruptos. O resultado é palpável: o governo não consegue negociar e, portanto, não avança em suas pautas reformistas na esfera legislativa.
Ora, a negociação faz parte da atividade parlamentar e executiva, é uma forma específica de fazer política, no Brasil e alhures. Não há nada de ilícito em que um parlamentar negocie recursos para a sua base eleitoral, sob a forma de creches, postos de saúde e escolas. O problema está no desvio desses recursos para o bolso do parlamentar, questão que pode ser equacionada com uma fiscalização eficiente.
Acontece, todavia, que a narrativa bolsonarista identifica a negociação com algo a ser descartado. Tal política enquadra-se, sobretudo, em sua pauta conservadora, baseada em fundamentos religiosos. Ela se torna propícia para a oposição entre amigos e inimigos, sob a forma dogmática dos bons e dos maus, dos virtuosos e dos pecadores.
Do mesmo modo, o teórico dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, conforme a sua teoria mundial conspiratória, está sempre procurando inimigos para serem desqualificados, na medida em que essa concepção vive da reiteração de tal oposição. O desprezo pela pauta liberal no campo moral e econômico é sua consequência natural. Volta-se para o velho nacionalismo, contra a ideia liberal de globalização, como se a pauta conservadora devesse ter o primado sobre a reformista. Daí surgem as posições antiestablishment, como se a narrativa governamental devesse ser a de uma mobilização constante da sociedade, em que os amigos e os inimigos, os bons e os maus estariam perpetuamente se enfrentando.
Os militares no governo Bolsonaro estão sendo um exemplo de moderação e ponderação. São abertos à negociação e à composição, mostram-se firmes partidários das instituições democráticas. Note-se que, por formação, estariam mais propensos a adotar a política como forma de oposição entre amigos e inimigos, uma vez que essa é a forma da guerra para a qual foram e são treinados. Ou seja, é um grupo de civis que segue a lógica da guerra, enquanto os militares seguem a lógica civil da democracia.
(*)Professor de filosofia na UFRGS.
O Estado de S.Paulo/ 15 de abril de 2019

Horizonte da elite não é sociedade justa, é economia pujante (Angela Alonso)

A elite social brasileira é branca, educada e cosmopolita. E assim é desde que o país começou. É também violenta, embora se veja como generosa para com subalternos, todos negros, mas “como se fossem da família.” Não são.
Nem na vida ganham acesso às relações abridoras de portas nem na morte herdam patrimônio. A próxima geração segue onde estava a antecedente, numa estrutura social secular, com os mesmos sobrenomes usufruindo a vista da cobertura, enquanto os sem nome limpam cozinhas e latrinas.
Ao contrário do que pregam a adversários, é raro que membros da elite façam autocrítica de erros políticos, como a eleição de Fernando Collor. Muito menos reconhecem seu papel ativo na reprodução intergeracional da desigualdade. Alguns dos seus, os “bem intencionados”, atuam nas franjas, com iniciativas para premiar o “talento” de alguns humildes, como Carlinhos Brown, que foi da favela ao estrelato.
Esta fresta para o alto não altera os mecanismos de distribuição de recursos e acessos. Mas é o suficiente para os cidadãos de bem, reconfortados pelo argumento liberal de que oportunidades individuais bastam para corrigir problemas estruturais.
É que o horizonte desta elite não é uma sociedade justa, é uma economia pujante. Para obter a segunda, abre mão da primeira. Nunca titubeou em pagar o preço, fosse a escravidão, regimes de trabalho avizinhados ou ditaduras, como a que o presidente comemorou. Tudo aceitável, se a locomotiva seguir acelerada.
Essa gente de bem pensa em si como o vagão que puxa o trem, que carrega o fardo do país e pena o alto custo trabalhista de mão de obra sem qualificação. São empreendedores incansáveis, prejudicados pelo povo caro e ignorante —que reclama de barriga cheia, pois muitos pesam, disse o presidente, várias arrobas.
O raciocínio do “custo Brasil” omite que as mazelas nacionais sucessivas resultaram de decisões políticas tomadas pelos que estão no alto, enquanto o sacrifício é sempre exigido dos de baixo. Assim foi na reforma trabalhista, assim se anuncia na previdenciária e a tributária não avançará imposto sobre grandes fortunas e transmissão intergeracional de riquezas.
E, convenhamos, não se exige de quem adentra essa elite o refinamento da antiga aristocracia. Veja-se o novo ministro da Educação: é branco, tem diploma superior e renda que garantem moradia em andar alto da pirâmide nacional. E, no entanto, emite juízos explicáveis apenas pela ignorância.
Já havia o precedente do “nazismo de esquerda”, mas rotular banqueiros de comunistas compete à altura. Nenhuma destas pérolas ministeriais espanta, considerando a língua presidencial. Mas choca que parcela tão gorda do topo social siga firme no apoio à obscurantista, autoritária e até aqui ineficiente “nova política”.
Apoio registrado no último Datafolha: capaz de os banqueiros que o ministro menciona estarem entre os 36% de homens com diploma superior e os 41% com renda acima de dez salários mínimos que acham “ótima” a administração mitológica.
A aprovação (ótimo/bom) é ampla entre os que vivem bem: 47% dos profissionais liberais, 57% dos empresários e 71% dos rentistas, como se dizia antigamente. Os bem postos na vida estão satisfeitos com o governo.
Mesmo com critério exigente, a alegria não se desmancha: 46% do empresariado e 44% dos que vivem de renda dão nota 8 ou mais para a administração bolsonarista. Parte dos eleitores do mito é impenitente e está infenso a três meses de barbaridades. Mas nem todo votante de conveniência, o antipetista, repudia: 54% dos que se declaram PSDBistas seguem achando tudo ótimo. É que se a reforma da Previdência passar, os tuítes ensandecidos do Palácio do Planalto serão perdoados, porque o país —ou parte dele— usufruirá das bênçãos do mercado.
A maioria destes cidadãos de bem apoia também embalada por outra promessa, a da reforma penal.
É preciso mais que comprar armas para se defender de meliantes. Precisa encarcerá-los antes que atinjam a idade adulta. Claro, alguns escaparão de celas de extermínio precoce, e poucos talentosos serão escolhidos, como Brown, para cantar no Lollapalooza.
Aos remanescentes, resta a prontidão das forças da ordem, a postos para abater suspeitos. Suspeitos naturalmente negros, como muitos dos executores, como negros eram tantos capitães do mato.
Estão a serviço, mas tampouco serão admitidos às fortificações medievais onde a gente de bem dorme tranquila. Não se pode acordá-la com choro de órfãos, mães e viúvas, nem com o ruído de 80 tiros.
(*)Angela Alonso, professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.
Folha de S. Paulo/14 de abril de 2019

Ideologia do nada (José de Souza Martins)

A aspiração brasileira de termos no poder alguém que faça uma "limpeza" ideológica no país, um faxineiro da República, no lugar de um estadista, mais uma vez pode não dar certo. Já não deu em caso anterior. Jânio da Silva Quadros ascendeu politicamente tendo como símbolo de sua proposta política a vassoura. Toda suposta renovação por ele representada reduzia-se ao refrão de uma musiquinha de campanha: "Varre, varre, vassourinha...". Ganhou para perder. Poucos meses depois de assumir, renunciava.
Varrer e demolir não resolvem problemas sociais, políticos e econômicos nem aqui nem em Xiririca. Até porque varredor é profissão respeitável e nobre, depende de discernimento para saber o que varrer e o que preservar.
O golpe de 1964 veio de histórica ambição de poder dos herdeiros do tenentismo. Aliados aos que achavam que o Brasil só tomaria rumo se fossem varridos da política brasileira os supostos subversivos e os corruptos, nessa ordem, presumivelmente inimigos da pátria e da civilização cristã. Incoerente, para legitimar o poder usurpado, a ditadura teve que associar-se justamente aos corruptos. Tornou-se refém das oligarquias retrógradas, sujeitos históricos da corrupção institucionalizada. A corrupção era e ainda é um poder.
O governo resultante do golpe de Estado inovou no campo econômico, mas rendeu-se no campo político. Politicamente, então como agora, venceu o Brasil arcaico. Como agora, o regime sucumbiu à falsa inovação da cópia e da imitação. Faltou criatividade política e imaginação. Uma cópia foi a consigna "Ame-o ou deixe-o", plagiada de um dos ditos do macartismo americano, que perseguiu intelectuais, estimulou delatores e disseminou o obscurantismo. O povo brasileiro pode ser distraído, mas não é tolo. À vista das primeiras ações do regime autoritário, a frase se tornou "Mame-o ou deixe-o".
Uma das cópias de hoje é uma tosca Estátua da Liberdade, que vi no pátio de uma empresa à margem da Via Dutra. Aqui aquela estátua é um símbolo do copismo sem imaginação, da alienação e da intolerância política e ideológica. O contrário da Estátua da Liberdade que os franceses ofereceram aos americanos para celebrar a liberdade histórica, fundadora de uma nação.
Nunca ouvi tanta gente, como nestes dias, confessando-se de direita, embora gente que não saiba qual é a radical diferença entre nazismo e socialismo, entre a direita como organização política da ideologia da supressão daqueles que a incomodam, e a esquerda como expressão política da ideologia da emancipação do gênero humano de todas as misérias: a da fome, a do desabrigo, a da ignorância, a da miséria política.
O regime de 1964 foi complacente com os corruptos e implacável com os progressistas e democráticos, moral e politicamente inimigos da corrupção. Curiosamente, a ignorância oficial da época associava corrupção e esquerdismo. Para os recém-chegados ao poder, era a esquerda que facilitava a corrupção, não eram os políticos, os partidos nem o capitalismo geneticamente corrupto herdado da colônia. No entanto, a própria esquerda, com o seu nacional-desenvolvimentismo, tentava transformar esse capitalismo predatório num capitalismo de verdade. Do qual ainda estamos longe, como se vê pela situação atual.
O regime mandou para a cadeia ou mandou para o exílio pessoas que poderiam ter tido um papel renovador na política e no desenvolvimento social e econômico brasileiro. Foi além das maldades próprias das ditaduras. Implantou o medo e disseminou o terrorismo de Estado. Violou as leis e os princípios do direito e da liberdade, anulando-os ou desrespeitando-os.
Como hoje se bane do protagonismo político os capazes, que evitassem a transformação dos Ministérios da Educação, das Relações Exteriores e da Família em ministérios de impasses descabidos.
Agora, temos um governo que se confessa anti-ideológico. Mas essa é sua ideologia, a da nulificação das ideias consistentes a respeito do país e dos destinos do país. Os conceitos emitidos pelos governantes atuais são a-históricos e sem raízes na realidade brasileira. Um país que não tem passado não tem futuro. Um país que empresta o passado e a quimera meramente ideológica de futuro de um país hegemônico para ser o que não é nem poderá ser, torna-se ideologicamente estrangeiro, alienado de si mesmo.
No caso do Brasil de agora, a nova ideologia, ao se propor como ideologia do nada, vem se evidenciando na verdade como desarticulado sistema de lugares comuns. É a realização política de "Muito Além do Jardim" (1979), na maravilhosa performance de Peter Sellers, como guru de um presidente americano despistado. Aqui, o poder chegou, enfim, à pós-modernidade de colagem sem ter sido moderno.
Valor Econômico/12 de abril de 2019

O gigantismo do MEC (Simon Schwartzman)

As preocupações ideológicas que marcaram a gestão de Vélez Rodríguez e aparentemente continuarão na agenda do novo ministro nem de longe refletem as questões que o Ministério da Educação, com um orçamento de R$ 123 bilhões e 450 mil funcionários em 2018, precisa enfrentar. Além de administrar uma rede própria com mais de cem instituições e 1,3 milhão de estudantes, o ministério é responsável por autorizar, avaliar e cuidar do desempenho dos estudantes e de todas as instituições de ensino superior federais e privadas, desenvolver os parâmetros curriculares de todos cursos de todos os níveis, manter em dia as estatísticas educacionais, administrar o crédito educativo e uma longa lista de programas como Proinfância, Dinheiro Direto nas Escolas, Livro Didático, Brasil Profissionalizado, Transporte Escolar e tantos outros.
Temas associados a valores e costumes algumas vezes surgem em alguns exames ou currículos, são questionados e repercutem na imprensa. Existem também controvérsias importantes sobre métodos de ensino, usos de novas tecnologias e modelos de organização do sistema escolar. São discussões que têm seu lugar, mas não deveriam distrair-nos da questão fundamental: o Brasil está gastando bem os 6% do produto interno bruto (PIB) que destina à educação? As pessoas estão aprendendo a ler, escrever e contar como deveriam? Sabemos que não, o que leva a indagar: o Ministério da Educação, com seus atuais formato e estrutura, é o melhor instrumento para mudar a situação, bastando, para isso, encontrar um bom ministro e uma equipe certa? Ou será que é necessário repensar de maneira profunda e ousada o papel do ministério e buscar alternativas?
O governo federal só contribui com 30% dos gastos públicos em educação, concentrados no financiamento de suas universidades, ficando o restante por conta dos Estados e municípios, sem falar nos grandes investimentos privados. No ensino superior, o governo federal só atende a 15% da matrícula, ficando 75% com o setor privado e o demais com os Estados. No ensino fundamental, a participação federal é irrisória – menos de 100 mil matrículas, ficando 85% com os Estados e municípios e 15% com o setor privado. No papel, o governo federal tem autoridade regulatória sobre todo o sistema, e a Constituição diz que o e ensino nos três níveis deve ser organizado em “regime de colaboração”. Mas, na prática, existe muita controvérsia sobre como essa colaboração deve funcionar e a dificuldade de o Ministério da Educação chegar ao “chão da escola” com suas orientações curriculares, avaliações e programas de apoio acaba resultando em interminável proliferação de portarias, instruções normativas, notas técnicas, resoluções, decretos e mudanças na legislação de efeitos desconhecidos, por falta de avaliação.
Uma das razões dessa combinação de gigantismo com ineficiência a que chegamos foi a tentativa do ministério, ao longo dos anos, de cooptar todos os grupos de interesse da área de educação, da UNE às multinacionais do ensino privado, passando pelos sindicatos de professores, instituições filantrópicas, associações científicas e corporações profissionais. O resultado mais evidente desse processo nos governos do PT foi o Plano Nacional de Educação aprovado unanimemente pelo Congresso Nacional em 2014, e ainda em vigor, com uma longa lista de objetivos irrealizáveis e desconexos a serem pagos com pelo menos 10% do PIB a cada ano. O exemplo mais recente é a reforma do ensino médio, uma ideia importante que parece estar sendo perdida pelo cipoal normativo que acabou gerando. Políticas educacionais não podem ser implementadas sem competência técnica, autoridade e legitimidade, mantidas por meio do diálogo ativo e respeitoso com as comunidades profissionais, e a adoção das melhores práticas internacionais. Isso é muito diferente de simplesmente atender aos interesses corporativos dos que falam mais alto, ou impelir a ideologia do momento.
A solução liberal extremada para tudo isso é simples: fechar o Ministério e as Secretarias de Educação, privatizar as universidades e escolas, e deixar que as forças do mercado cuidem de tudo. Mas isso não funciona em nenhum lugar do mundo, os países que conseguem melhorar sua educação são aqueles em que o setor público funciona com autoridade, competência e investimento significativo de recursos públicos. Existem formas muito diferentes de fazer isso, mais centralizadas, como na França, ou mais abertas e plurais, como nos Estados Unidos. Apesar da influência francesa no passado, o Brasil é mais próximo da desorganização americana, com um governo central relativamente débil, alguns governos regionais e locais fortes e um forte setor privado.
Os dois modelos sugerem o caminho a seguir. Em vez de uma administração de comando de cima para baixo, políticas mais indutivas, abrindo espaços e valorizando a diversidade e as experiências locais. Em vez de fortalecer a burocracia federal, descentralizar não só a execução, mas até mesmo a avaliação dos resultados da educação, envolvendo governos, entidades profissionais e associações voluntárias de credenciamento e certificação, na medida de suas competências efetivas. Em vez de normas e determinações minuciosas e detalhadas impostas de cima para baixo, mais respeito às iniciativas locais. Sem abdicar da responsabilidade de garantir a qualidade e reduzir a iniquidade, valorizar e estimular a iniciativa particular e introduzir nas universidades públicas formas de gerenciamento e incentivos mais típicos do setor privado, como a administração por objetivos e contratos de gestão; e não permitir que programas governamentais continuem existindo sem mecanismos claros de avaliação de resultados e justificação de seus custos.
Não chega a ser o mapa da mina, mas pode ser um roteiro.
(*) Sociólogo, é membro da comissão nacional de avaliação da educação superior (Conaes)
O Estado de S.Paulo/12 de abril de 2019

A mentira na política e o ideário fascista (Eugênio Bucci)

Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.
De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.
Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.
Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).
Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)
Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.
Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.
Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.
Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.
Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.
(*) Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
O Estado de S.Paulo/11 de abril de 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Viva o povo brasileiro (Luiz Werneck Vianna)

Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções
(Em memória de João Ubaldo Ribeiro)
Sob cerrada pancadaria o governo Bolsonaro se lança com as velas pandas em alto-mar em busca do Santo Graal, antes perseguido sem êxito por alguns, sempre na crença de que deslocar o leito da nossa História do seu curso de 500 anos é matéria afeta apenas a uma acendrada vontade política que não recue diante de circunstâncias adversas. Trata-se, sob o governo de Bolsonaro, de um plano de guerra sem quartel com a intenção de remover obstáculos à sua imposição, sejam políticos, econômicos ou culturais. Tais obstáculos estariam dispostos em camadas, acumulados ao longo de gerações, e se antes funcionais como a ação indutora da economia pela política, estariam agora travando o desenvolvimento do capitalismo, cujas forças de mercado estariam a exigir plena liberdade de movimentação. A declaração do ministro da Economia, sr. Paulo Guedes, nesse encontro de Washington, ao identificar no condestável do regime, Olavo de Carvalho, o chefe de uma revolução que estaria em curso não poderia ser mais esclarecedora.
Para o condestável do governo Bolsonaro, as bêtes noires a serem removidas para o sucesso da revolução em marcha seriam as vetustas corporações que conformaram o corpo e a alma da História do País, a saber, os militares, os juízes, o corpo diplomático do Itamaraty e a instituição da Igreja Católica; cada qual teria repassado em boa medida seus valores a um fundo que teria como que constituído o cerne da nacionalidade, em comum a todos eles, embora com pesos variados, a distância dos valores capitalistas. O diagnóstico não é original, pois vem rondando a tópica do pensamento social brasileiro, ao menos, talvez, de Tavares Bastos, um americanista e feroz anti-ibérico de notável talento, que defendia, entre outros temas, a erradicação do catolicismo em favor da doutrinação protestante, segundo ele, mais propícia a uma cultura de liberdades e de um regime de livre-iniciativa. Notar que Tavares Bastos, cultor da obra de Tocqueville, era como ele um cultor da liberdade e jamais, em sua curta e prolífica vida, se associou a projetos autoritários em defesa de suas posições doutrinárias.
Como se sabe, o seu grande antagonista na publicística brasileira foi Oliveira Vianna, um cultor da obra do visconde de Uruguai, discípulo do estadista Guizot, especialista em Direito Administrativo e ministro de Estado sob o regime da Restauração na França, das primeiras décadas do século 19. Nas pegadas de Guizot e do visconde de Uruguai, Oliveira Vianna mobilizou sua crítica ao regime da Primeira República em torno de dois grandes eixos: a crítica da descentralização – tema maior de Tavares Bastos, que lhe dedicou seu importante ensaio A Província – e do idealismo constitucional na forma em que foi arquitetada a primeira Constituição republicana, em 1891, sob a inspiração de Ruy Barbosa.
A Revolução de 30 atestaria o fracasso da experiência constitucional anterior, com o retorno às políticas de centralização administrativa, herdadas do Império, e a partir dela o Estado passa a exercer de modelagem da sociedade civil por meio não só da legislação, como de práticas administrativas. A modernização do País torna-se o eixo orientador das ações estatais; os militares fornecem quadros qualificados e de suas lideranças são selecionados muitos dirigentes das empresas estatais que então são criadas para o esforço da industrialização, são recrutados do seu meio; não se pode falar da Petrobrás, talvez a mais estratégica das estatais, sem o papel decisivo da corporação militar na sua criação. No desbravamento do hinterland, com que se começou a incorporação do oeste ao processo de modernização capitalista, somente concluído no recente regime militar com as estradas que abriram os sertões à ocupação do que viria a se tornar o agronegócio e a pecuária de hoje, essas foram obras que contaram com sua participação, inclusive na política de colonização levada a efeito naquela região, conforme registra a bibliografia especializada.
Tal história de construção do capitalismo brasileiro, que conheceu momentos épicos, como, entre outros, as jornadas do marechal Rondon sertão adentro e a construção de Brasília, não conheceu Henry Ford e Nelson Rockefeller, que aqui não encontrariam território fácil para prosperarem. Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções, mas de agentes do Estado, como sanitaristas, engenheiros e militares, não se podendo omitir os cientistas e técnicos que criaram a Embraer e a Embrapa. Nesse sentido, é quase assustador que nosso ministro da Economia, que jamais produziu um prego, ouça sem protestar declarações inóspitas à rica História do País de um ideólogo capaz de subir nas tamancas e chamar de idiota um general do Exército Brasileiro, aliás, atual vice-presidente da República.
Outra peça forte de sustentação da tradição brasileira é a sua magistratura, cuja história está bem descrita pelo historiador José Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem. A Regência, com sua política de descentralização, tinha exposto o País a rebeliões que ameaçavam a unidade territorial, objetivo estratégico do Estado imperial, que tinha braços curtos, na caracterização do visconde de Uruguai, sem ter meios de alcançar os longínquos rincões, confiados aos poderosos locais, que ignoravam as políticas e as leis do poder central, favorecendo a emergência do caudilhismo como na América hispânica, perigo maior a ser evitado. O remédio heroico para esses males foi a criação de uma magistratura de Estado, desvinculada dos poderes locais, que agora passariam a conhecer o braço longo do Estado.
O enraizamento do Judiciário aprofundou-se na vida social com a modernização que nos trouxeram, depois da Revolução de 30, a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral, ambas hoje inerradicáveis, pelas nossas circunstâncias, do nosso tecido institucional.
Por fim a Igreja Católica, mas essa tem 2 mil anos, é uma pedra que não se remove. E não cabe do bico do ideólogo.
O Estado de S.Paulo/7 de abril de 2019

Aprender com as lições do passado (Fernando Abrucio)

O passado tem um poder fascinante sobre os seres humanos, tanto no plano individual como no mundo público. Mas há duas maneiras de se usar a história como referência de nossas ações. Uma é se prender nos acontecimentos passados e travar uma batalha sem fim com eles, nunca se libertando por completo do que já ocorreu. A outra é utilizando a experiência pregressa como um farol para iluminar as decisões no presente e no futuro. A diferença entre tais visões está em quanto aprendemos com os que vieram antes de nós.
O presidente Jair Bolsonaro construiu uma frase de efeito em sua viagem a Israel: "Aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro". A sabedoria contida nessa afirmação não revela, de imediato, qual é a concepção de história que orienta nosso atual governante. Isto é, se ele prefere se digladiar com os fatos passados, ou se opta por uma visão na qual se deve aprender com o passado para melhorar as escolhas do futuro.
Tomando como base as opiniões e decisões vindas do presidente nestes três meses de governo, constata-se que Bolsonaro pouco tem aprendido com a história. Ele insiste mais num ajuste de contas com o passado, seja para reverenciar o que foi feito em tempos pretéritos, como aparece em sua visão sobre o regime militar, seja para se colocar como um ponto de ruptura completa, de modo que é preciso criar algo novo que seja o inverso da "velha política" da Nova República.
O governante que aprende com o passado evita os erros das gestões anteriores e se inspira naquilo que é possível de ser replicado ou ser tomado como um ponto de partida. Dois exemplos mostram que Bolsonaro está seguindo outra linha, mais preocupado em defender posições derivadas de sua peculiar interpretação do que foi a história e menos em utilizar os ensinamentos do tempo como instrumento para produzir uma trilha diferente. Trata-se dos posicionamentos referentes ao presidencialismo de coalizão e às ditaduras do passado, no Brasil e fora dele.
A visão bolsonarista sobre o presidencialismo de coalizão se alimenta de uma interpretação da história. Olhando para o passado mais recente, Bolsonaro tem uma opinião segundo a qual tal modelo de governabilidade se baseava em negociatas entre o Executivo e o Legislativo, gerando processos imensos de corrupção. No fundo, ao se ancorar nesta ideia, o presidente está se colocando de forma contrária aos governantes anteriores e seus partidos, PSDB e PT. É a lógica da competição eleitoral que ainda alimenta a visão de mundo de alguém que agora precisa governar o país.
Obviamente que houve corrupção nos últimos governos e que ela, em parte, se originou da relação do Poder Executivo com membros do Legislativo, inclusive para aprovar certas matérias no Congresso Nacional. O problema está em interpretar que o modelo presidencialista brasileiro, vinculado à combinação de multipartidarismo, federalismo e presidente sem maioria congressual derivada da eleição, sempre levará a negociatas e roubalheiras.
Por meio do presidencialismo de coalizão, foi possível, nos últimos 30 anos, manter o jogo democrático, algo raro e pouco duradouro na trajetória política do Brasil. Utilizando esse modelo, o país fez várias reformas - quase cem emendas constitucionais - e teve avanços significativos nos campos econômico, político e social. Presidentes que tentaram evitar ou passar por cima dos congressistas e, especialmente, dos partidos políticos, não foram bem-sucedidos em suas políticas públicas e, ao fim e ao cabo, foram depostos. Essa é a maior lição da história que Bolsonaro deveria aprender.
Isso quer dizer que o presidente deve simplesmente dar todos os cargos e verbas que os congressistas pedirem? Essa também não é a resposta que pode ser retirada do aprendizado histórico. Na verdade, esse varejo só pode ser bem utilizado, com os cuidados necessários, para se garantir simultaneamente a governabilidade e padrões éticos, se for feito um pacto partidário prévio. Erram os governos que não começam pelo atacado, isto é, pela criação de alianças partidárias que alicercem a participação dos congressistas no Poder Executivo.
O mensalão nasceu no primeiro governo Lula porque o PT se recusou a fazer um pacto partidário com o maior partido congressual à sua disposição, que era o PMDB, e preferiu fazer negociações miúdas com os pequenos partidos da centro-direita. O petismo acreditava que bastava dar alguns pequenos nacos de poder a essas legendas invertebradas e, assim, manteria o controle sobre todo o processo legislativo sem perder sua hegemonia na condução da governabilidade. Com base num discurso purista e de superioridade sobre o restante do sistema político, esse hegemonismo petista foi a porta para a crise política e, ao contrário do que imaginavam, para a corrupção.
O discurso bolsonarista nas redes sociais lembra os tempos iniciais do petismo no plano federal. De um lado, como no passado petista, a parte mais radical do bolsonarismo acredita que vai substituir o antigo regime por meio da pressão popular - hoje baseada nas redes sociais. Para aprovar emendas constitucionais e outras legislações, bem como para evitar a pressão congressual sobre o presidente, esse caminho é um desastre. Mas, por outro lado, há outra parcela de bolsonaristas, mais localizados nos postos-chave do governo, cuja concepção de governabilidade passa pela conversa individualizada com os parlamentares e com a entrega de pequenas benesses, sem dividir efetivamente o poder e as responsabilidades que dele derivam.
A combinação da deslegitimação do sistema político com um jogo pouco coordenado de distribuição de prebendas aos parlamentares, inclusive aos do PSL, não garantirá a formação de uma maioria governista sólida. Será sempre um modelo baseado na desconfiança mútua entre Executivo e Legislativo. Esse era também o clima, em medidas variadas, nos governos de Jânio, Collor e Dilma, ensina a história, e os resultados finais são conhecidos. Ou então haverá algum revisionismo histórico que diga que nesses casos a culpa do fracasso não foi do presidente?
Se o presidente Bolsonaro quer instalar o novo na política brasileira, o que quer que seja isso, deve seguir uma máxima produzida pelo aprendizado histórico: somente é possível fazer mudanças de larga escala e de longo prazo, dentro de um regime democrático, por meio de alianças partidárias estáveis, nas quais haja compartilhamento de poder e responsabilidades. Para fazer isso, é preciso abandonar o comportamento messiânico e antipolítico, segundo o qual o presidente e seus seguidores são os únicos donos da verdade. Os congressistas são tão legítimos perante o voto do eleitor quanto Bolsonaro, e ele não tem maioria congressual para dar as cartas do jogo sem precisar de parceiros.
A história revela, ademais, que a eleição municipal de meio de mandato começa a afetar os parlamentares no fim do segundo semestre do primeiro ano de governo. Esse é o prazo para se aprovar reformas estruturais. Depois disso, tudo ficará mais difícil. O fato é que, se aprendesse com o passado, Bolsonaro estaria agora fazendo uma reforma ministerial com vistas não só a aprovar a reforma da Previdência, mas para criar uma aliança partidária mais estável, pelo menos de médio prazo, e voltada para o pleito local de 2020. Mas, no momento, o bolsonarismo está mais preocupado em olhar para a história para resgatar valores tradicionais e encontrar quem são seus inimigos eternos.
E aqui entra o segundo exemplo da dificuldade de Bolsonaro em lidar com o passado: suas ações e frases em relação a regimes autoritários no Brasil e no exterior. Sua insistência em dizer que não houve uma ditadura em nosso país a partir de 1964 luta contra os fatos: os presidentes não eram eleitos pelo povo, muitos políticos e cidadãos perderam seus direitos políticos, a sociedade foi calada pela censura, pessoas foram torturadas, morreram e desapareceram. Se o bolsonarismo não achar que isso é um modelo ditatorial, vai ter que dizer que há democracia em Cuba e na Coreia do Norte.
O que está por trás do raciocínio bolsonarista fica mais claro quando é dito que o nazismo foi um fenômeno político de esquerda. Tal versão contraria os fatos - os comunistas foram os primeiros presos por Hitler, que os odiava - e a visão dos dois principais interessados em elucidar o Holocausto, que são Alemanha e Israel, países onde majoritariamente e de forma oficial se diz que os nazistas eram de extrema direita. Essa interpretação tresloucada tem como propósito comprovar que a esquerda está vinculada à maior tragédia do século XX, e desse modo continuar a guerra política para aniquilar o inimigo.
No fundo, Bolsonaro ainda não aprendeu o que é democracia, ou pior, tem uma visão peculiar dela, na qual só são admitidos os que pensam como ele. Trata-se de uma doutrina que não aceita a pluralidade necessária para a vida democrática. O bolsonarismo está dizendo que não se pode aceitar a velha política e só ele representa o novo. Não há espaço para o diálogo e o convencimento. Ao seguir essa trilha, Bolsonaro reinventa o passado para interditar o futuro pensado como um feixe de possibilidades.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/5 de abril de 2019

Observar a democracia com as lentes de Bobbio (Michelangelo Bovero)

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual.
A teoria analítica da democracia elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.
A tabela bobbiana das regras democráticas
1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos;
6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.
Essas seis regras são chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos.
Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.
Critérios de democratização
A tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem como condições da democracia. Aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática.
No capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: “Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático”. Em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: “Nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos”.
Começo observando que Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. Devemos esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em todas as experiências concretas de “realização” da democracia, não foi a “de ‘transformar’ um regime democrático em um regime autocrático”. A fronteira entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo grau.
O problema mais importante não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são “aquelas listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente”. Por isso, na análise de casos das democracias reais, “deve-se ter em mente o possível desvio entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são aplicadas”. E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984 Bobbio não hesitava: “mesmo a mais distante do modelo”, ou seja, do paradigma de uma aplicação correta das regras do jogo, “não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático”. Então, afirmava ele, apesar das secas réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna, “não se pode falar propriamente de uma ‘degeneração’ da democracia”.
Eu me pergunto: isso ainda é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos? Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a “era das tiranias”, os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém, podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações sofreu a democracia?
Vejamos: diante do problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa – ou, em outras partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a uma condição de existência miserável e sem resgate –, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela segunda regra? Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a condição de pluralidade da informação exigida implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da administração do poder, da distorção das cúpulas e das “lideranças” da vida pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis, como ficam as condições de pluralismo político requeridas pela quarta regra? E diante da configuração da dialética política como um jogo de soma zero, no qual “quem ganha leva tudo”, não se poderia falar talvez de um abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das alterações na separação dos poderes, como ficam os “direitos das minorias” protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?
É supérfluo acrescentar que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade, fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o Bobbio “pessimista”, manifestava um quarto de século atrás.
Tolerância – debate livre – fraternidade
Pode parecer que uma teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma pergunta que ele mesmo reconhece como “fundamental”: “Se a democracia é principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com ‘cidadãos ativos’? Para que cidadãos ativos existam, não seria preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?”. Em suma: Bobbio nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, “que tão frequentemente zombaram das regras formais da democracia”, são o fruto de escolhas de valores, e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência desejável e aprovada com base em determinados valores.
Mas quais valores? Para simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro: tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e fraternidade. Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível, mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva, que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.
Isso significa talvez que as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito de democracia – tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos liberais e socialistas. Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria, e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem toda forma de igualdade é um valor.
Aquelas que Bobbio chama de “as quatro grandes liberdades dos modernos” – a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação – são valores de tradição liberal que um bom democrata deve fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, “não são propriamente regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do jogo”. Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais da democracia. Que sentido teriam os direitos de participação política se não fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os indivíduos, como livres?
Para retomar, simplificar ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica, proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como “a democracia é o regime da igualdade e da liberdade política” deve ser considerada como um juízo analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do) sujeito. Uma proposição (dupla) como “a democracia é o regime das liberdades individuais e/ou das igualdades sociais”, que à primeira vista pode parecer extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações históricas da noção de democracia. Tal proposição deve ser considerada, feitas as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de seus defeitos.
A ideia de democracia também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia, direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico”. Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice vínculo é confirmada, em negativo, também pelo “movimento contra-histórico” que estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de “matéria bruta” do mundo opôs uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.
Crise da democracia
Que a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária, de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um neologismo: “antipolítica”. Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade “verdadeira” do “povo” àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de partidos e das instituições de representação. Na Europa muitos atores políticos de direita, expressões do “chauvinismo do bem-estar” produzido pela globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos.
Na América Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo “antipolítica”, o termo mais explícito “antidemocracia”; também para sugerir que, apesar do consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.
A noção de antidemocracia contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais perigosos da política contemporânea.
Facismo pós-moderno
Ao risco de fazer tremer os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia caracterizar as diversas manifestações da “antidemocracia” que estamos observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo (depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a natureza essencialmente “subversiva” de ambos.
Em um dos artigos sobre a história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista. Com relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não a conheçam) a visão de certas imagens dos “jornais cinematográficos” da época, que nos passavam a figura do “líder” Mussolini na sacada do Palazzo Venezia, com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão da “massa oceânica”: eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o mapa-múndi.
Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno, dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século 19, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia moral e cívica dos italianos. Nas mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos, que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na idiotização dos cidadãos pela mídia. Bobbio se acostumou a repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made in Italy demonstraram ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente aquilo que sai de nosso laboratório.
Tanto para o mal quanto para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo – e não me canso de repetir –, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar. Tanto é verdade que foi tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo, a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui, como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana.
(*) Michelangelo Bovero é filósofo e escritor, foi assistente e colaborador de Norberto Bobbio. Professor de Filosofia Política na Universidade de Turim