segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Liberalismos (Marco Aurélio Nogueira)

Não é de hoje que se sabe que existe liberalismo na economia, na política e no plano dos costumes. Há muitos modos de ser liberal.
Nem sempre esses três focos estão em sintonia coerente. Como há ramos distintos no campo liberal – desde sempre dividido entre um liberalismo democrático e um liberalismo conservador, passando por um liberalismo liberal –, os liberais se distribuem num gradiente flexível, que muitas vezes surpreende e confunde, levando-os ora a flertar com modalidades suavizadas de socialismo, ora a pender para um conservadorismo vetusto, mais próximo da direita.
Os que se proclamam liberais podem, por exemplo, pensar a economia segundo os dogmas da doutrina (livre-mercado, afastamento do Estado, desregulação, privatização) e ficarem abertos a políticas igualitárias de distribuição de renda, direitos e autonomia individual. Nesse registro, podem ser favoráveis à atenuação da propriedade privada e à taxação das grandes fortunas. No polo oposto, podem ser liberais em economia mas “egoístas” socialmente e conservadores em termos morais, sacrificando a autonomia individual no altar da “ordem social”.
Um dos critérios empregados (por exemplo, por Norberto Bobbio) para resolver o enigma e organizar o campo liberal é a maneira como os liberais se relacionam com a democracia política. De modo simplificado, podemos tratar a democracia em termos mais substantivos ou mais formais, isto é, mais como igualdade ou mais como regras do jogo. Historicamente, foi assim que a democracia emergiu no mundo moderno, fato que levou a que todas as doutrinas se posicionassem diante de suas duas faces. Os liberais que se associam ao componente mais igualitário da democracia tendem a caminhar para a esquerda, os demais compõem o que se costuma de chamar de “centro liberal” ou caminham para a direita. Todos os liberais, porém, aceitam o princípio da igualdade perante a lei, a igualdade dos direitos, a igualdade das oportunidades e a igualdade na liberdade, ou seja, a liberdade que não colida com a liberdade dos demais ou que não ofenda a liberdade dos outros.
Democratas e liberais convergem, também, no que diz respeito à reiteração da soberania popular, cuja tradução histórica mais bem acabada é o sufrágio universal masculino e feminino. As ideias liberais encontraram assim no método democrático o critério para se aproximarem da democracia política, o que fez da democracia parte decisiva da evolução do liberalismo propriamente dito. Nasceram assim o liberalismo radical, liberal e democrático, e o liberalismo conservador, liberal mas não democrático. E, por extensão, surgiram democratas liberais e democratas não liberais, os primeiros mais preocupados em limitar o poder e os segundos, em distribui-lo.
Lembro tudo isso, esquematicamente, para dizer que não basta alguém se proclamar liberal para que o liberalismo flua de sua mente como água pura da fonte. Há diversos liberalismos.
Manifestação típica disso pode ser encontrada no “Manifesto” que o presidente do grupo Riachuelo, Flávio Rocha, lançou em Nova Iorque propondo uma candidatura presidencial que “tenha a coerência de um discurso liberal do ponto de vista econômico” e seja “conservador nos costumes”. O empresário afirma que sua intenção é sugerir que “chegou a hora de uma nova independência: é preciso tirar o Estado das costas da sociedade, do cidadão, dos empreendedores, que estão sufocados e não aguentam mais seu peso. Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais”.
Ele vai além, criticando os candidatos até agora surgidos que, na sua opinião, até conseguem defender políticas liberais na economia, mas “tropeçam nas questões sociais”, mostrando-se reféns do que o empresário chama de “marxismo cultural”, uma formosa jabuticaba que floresce abundantemente no Brasil do conservadorismo.
Não sobra nem sequer para Bolsonaro, que na visão de Flávio Rocha se apresenta como conservador socialmente e “de esquerda na economia”. Também Luciano Huck não é bem visto pelo empresário, por não ser suficientemente conservador nos costumes.
Rocha preside o Movimento Brasil 200, que defende uma agenda aberta para o porte de armas e fechada para questões de gênero.
A manifestação demonstra a disposição de parte do empresariado brasileiro de se envolver mais diretamente na disputa política de 2018. Mas, ao misturar alhos com bugalhos e não separar adequadamente o joio do trigo, fazendo chegar ao público uma proposta nominalmente liberal mas de fato muito pouco liberal e quase nada democrática, o manifesto de Flávio Rocha contribui para aumentar a confusão em que o país está mergulhado. Trava, em vez de impulsionar, a evolução do liberalismo político entre nós.
Afinal, se há algo de que o Brasil necessita é de clareza de propósitos. De que liberalismo estamos mesmo falando? De qual democracia? Os doutrinadores de plantão precisam assumir plenamente os postulados de suas doutrinas perante os desafios da hora presente e do estágio civilizacional em que nos encontramos.
Fonte: O Estado de São Paulo (20/01/18)

domingo, 21 de janeiro de 2018

O neofeminismo assexuado odeia o desejo (Antonio Risério)

O manifesto das 100 francesas, estrelado por Catherine Deneuve, explodiu como uma bomba arrasa-quarteirão no meio do arraial neofeminista americano, com seus discursos e posturas reacionários, primando pelo obscurantismo repressivo. Não era para menos. Esse neofeminismo é uma degeneração grotesca do feminismo original da contracultura, na década de 1960, cujo libertarismo espalhou-se então pelo mundo. E sob o signo da “revolução sexual”, que hoje horroriza o neofeminismo puritano, fundado no combate ao desejo e na repulsa ao sexo.
É impressionante a degringolada. E justamente nos Estados Unidos, que nos deram a linha de frente do feminismo revolucionário daquela época, com Betty Friedan, Gloria Steinem, Germaine Greer etc. Mas é como ensina a poesia de T.S. Eliot: “Nossos princípios nunca sabem de nossos fins”. O que foi libertário, na contracultura, agora se congela em puritanismo pétreo. Em aversão ao corpo, aos jogos amorosos, à exuberância narcísica, aos prazeres sexuais. Enfim, o revolucionarismo multicolorido acabou gerando seu avesso: o reacionarismo mais cinzento.
Lembro-me de Lyn Lofland, a socióloga americana, autora de livros como A world of strangers (Um mundo de estranhos, numa tradução livre) e The public realm (O domínio público). Em seus estudos, Lyn, na linha das melhores reflexões da ativista urbana Jane Jacobs (1916-2006), observa que a sociologia urbana foi distorcida e lacunar, ao falar da presença da mulher nos espaços públicos da cidade. Sua ótica incidia, com ênfase excessiva, no perigo. Trazia para o primeiro plano não a atuação da mulher na cidade, mas o assédio sexual. Lyn não nega a prática do assédio, obviamente, mas acha que ela foi superestimada pelos sociólogos, numa visão exagerada dos espaços públicos como áreas de risco para as mulheres, contribuindo inclusive para enfraquecer a presença feminina nessas áreas.
Hoje, o que vemos é a exacerbação extrema do quadro. É claro que temos de combater o assédio sexual. Mas é preciso um mínimo de sensatez. Imbecilidade querer fazer de um olhar, de uma frase deliciosamente cheia de malícia ou de uma cantada equivalentes a agressões sexuais. Um olhar não é um estupro. Um longo e modulado assovio, saudando um belo par de coxas que desfilam graciosamente ao ar livre, cabe muito mais na conta do elogio do que no rol das agressões. A não ser aos olhos desse atual feminismo fundamentalista, “Estado Islâmico”, que acaba de braços dados com o que há de pior no neopentecostalismo “evangélico”. Coisa para aiatolá nenhum botar defeito.
E as manifestantes francesas, inteligentes e requintadas, tocam nos pontos certos. Denunciam que, depois da fogosa revolução sexual da contracultura, o neofeminismo puritano quer converter as mulheres em figuras de museu de cera. E vão ao grão da questão: seu inimigo principal, mais do que o homem, é o desejo. “Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além de denunciar o abuso de poder, incentiva o ódio aos homens e à sexualidade”, diz o manifesto. E ainda: “Essa febre de enviar ‘porcos’ ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a serem mais autônomas, serve realmente aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários”. Nada mais certo.
É a degradação final dos avanços sociais da década de 1960. Assim como a luta contra a discriminação racial veio a dar no racifascismo neonegro, a luta pela igualdade entre os sexos descambou nesse feminismo assexuado. É o naufrágio nas águas grossas e turvas dos movimentos identitários. Hoje, paradoxalmente, todo “neo” é sinônimo de retrocesso. E essa turma quer abolir as classes sociais, a história e a variabilidade antropológica da humanidade. Em seu discurso, todo branco é igual e todo homem é idêntico: não há diferença entre Stálin e Dorival Caymmi. É ridículo.
E o mais grave: tais identitários se fecham como adversários furiosos da diversidade, portando-se feito loucos ferozes desejosos de banir da face da Terra quem discorda de seus dogmas. São a encarnação da intolerância. E, por isso mesmo, inimigos da vida democrática.
(*) Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de livros como A utopia brasileira e os movimentos negros e A cidade no Brasil.
Fonte: Época (20/01/18)

A quinta morte da democracia (Bolívar Lamounier)

Examinando as condições de atraso econômico e assustadora pobreza na virada do século 19 para o 20, Euclides da Cunha escreveu que o Brasil era um país “condenado à civilização”. Não tínhamos como ficar parados, nem como andar devagar. Precisávamos andar rápido e a direção só poderia ser a do progresso e da paciente edificação de instituições.
Adepto da filosofia positivista, à qual não faltava certo viés autoritário, Euclides não percebeu que uma parte do problema já estava encaminhada desde 1824. É mais que óbvio: insistir no absolutismo herdado do período colonial ou resvalar para o caudilhismo hispânico seria o caminho mais curto para recairmos na fragmentação e na desordem. O Estado constitucional e seu corolário, o sistema representativo de governo, amenizavam as tensões e delineavam um futuro – esse a que hoje denominamos democracia. Na última década daquele século, não fora o gênio de Rui Barbosa, é muito possível que tivéssemos sucumbido a um cenário extremamente destrutivo.
Num breve apanhado retrospectivo, podemos dizer que a morte da democracia representativa foi anunciada pelo menos cinco vezes desde o início da República, e apresso-me a esclarecer que os respectivos argumentos ocorreram em muitos países, inclusive no sul da Europa, e que não os subestimo: não é minha intenção caricaturá-los.
A primeira morte foi concebida como um caso de mortalidade infantil. Os mecanismos institucionais da democracia – eleições, partidos, parlamentos – não se conseguiriam “desprender” do poder privado dos fazendeiros, chefes e mestres da política de campanário. A proveniência desse argumento era basicamente protofascista, mas o próprio Sérgio Buarque de Holanda o situou entre as principais “raízes do Brasil”. Para os povos latinos, ele escreveu, é difícil imaginar normas gerais pairando sobre nossa cabeça. A hidra do passado colonial deglutiria as nascentes democracias tão facilmente como uma sucuri deglute um cachorrinho poodle.
O segundo atestado de óbito veio nos anos 30, agora com uma nítida declaração de origem fascista. A democracia liberal, dizia-se, era plausível enquanto se restringia a rusgas entre partidos – que, afinal, não passavam de pequenos grupos de notáveis provincianos – para decidir quem nomeava o agente local dos correios. Naquela quadra, escreveu Francisco Campos, o solitário autor da Constituição ditatorial de 1937, o liberalismo concebeu o mundo político segundo a imagem da esgrima forense. Mas o advento do capitalismo industrial elevou dramaticamente o nível dos conflitos, transformando-os em enfrentamentos mortais entre o capital e o trabalho. Nessa nova sociedade, sentenciou, só haveria lugar para “governos fortes”.
Depois da 2.ª Guerra Mundial, em todo o mundo a palavra-chave passou a ser “desenvolvimento”. O problema com a democracia seria sua incapacidade de cumprir certos “pré-requisitos”. Ela só seria possível em sociedades que previamente se houvessem adiantado economicamente, que contassem com uma população homogênea e altamente escolarizada, e assentadas sobre um robusto consenso nacional. Pior ainda, a democracia seria incompatível com o “planejamento”, a nova panaceia econômica. Hoje é fácil perceber que essa nova elucubração se esquecia de um pequeno detalhe. A democracia não foi inventada para as sociedades desfrutarem condições ideais após haverem superado cabalmente os seus conflitos, mas para que pudessem (e possam) equacioná-los com o mínimo possível de violência, dentro de um marco institucional justo e acessível a todos os grupos relevantes.
A quarta morte da democracia foi atestada no contexto do conflito Leste-Oeste, principalmente pela voz dos ideólogos marxistas. Sua sentença de morte estaria embutida na rápida ascensão e na superioridade tecnológica da economia planificada de tipo soviético. Até Isaac Deutscher, um homem culto, chegou a escrever isso. Antonio Gramsci fez um arranjo dessa peça para soprano ligeiro: o socialismo triunfará no campo da cultura, sem necessidade de recorrer a uma revolução sangrenta.
Mais complicada, até porque ainda se apresenta de uma forma nebulosa, é a quinta morte. O que se diz atualmente é que a democracia representativa é incompatível com a sociedade de hoje, na qual já não se discernem classes sociais, mas sim uma infinidade ameboide de grupos, movimentos, conselhos, etc. O caos passou a ser a norma. Nesse quadro, o representante não sabe a quem representa e a própria noção de representação perde o sentido.
Ou seja, o mundo atual é um caos permanente, indefinível, cujos contornos ninguém se atreve a tentar descrever. Que tipo de governo conseguirá mantê-lo sob controle? O chinês, no qual o Partido Comunista controla com mão de ferro um capitalismo selvagem? A democracia dita direta, reminiscente do anarquismo, em que a bondade humana substitui a “mão invisível” de Adam Smith? Uma Venezuela em escala cósmica? Ou, quem sabe, uma regressão ao pretorianismo romano, como no reinado de Cômodo, no qual mercenários leiloavam seu apoio ao imperador? Claro, com uma pequena diferença: os mercenários de hoje não portariam precárias adagas como as daquele tempo, e sim vistosos AK-47.
Não subestimo nenhuma dessas hipóteses, mas penso que o problema é bem outro. Na história das democracias, o fator preponderante nos retrocessos e rupturas sempre foi a falta de convicção das elites, sua falta do mais elementar bom senso e sua covardia quando o exercício da autoridade governamental se fez necessário. A República de Weimar e o Brasil de 1961-64 são bons exemplos. Por tudo isso, dói constatar que o Brasil ainda não se livrou em definitivo do populismo e de uma classe política virtualmente desprovida de responsabilidade pública.
Fonte: O Estado de São Paulo (13/01/18)

A esquerda que não merecemos ter (Marco Aurélio Nogueira)

A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções.
Do jeito que as coisas estão, não há como cogitar da afirmação de um competitivo campo de esquerda no Brasil.
Indo além: o movimento progressista está desnorteado, desarvorado, sem fibra.
A esquerda é um universo amplo, plural, integrado por muitas correntes, agregações e pessoas. Vai do liberalismo político democrático aos defensores do socialismo, de ambientalistas e ecologistas aos libertários, dos que lutam por direitos aos que querem igualdade e reconhecimento. É parte do progressismo, do reformismo, da democracia, ainda que nem sempre acerte os passos com tais plataformas.
Quando, porém, no Brasil, você para e olha, a impressão é que a esquerda se resume ao petismo, aos seguidores de Lula e aos correligionários do PT, com seus aliados, seus trânsfugas e seus satélites.
A simplificação mental é assustadora. Um mundo todo está acabando na política. Partidos e lideranças se desfazem por efeito das transformações estruturais do capitalismo e, no Brasil, dos desdobramentos da Lava-Jato e da crise do Estado e da política. Em vez de reconhecer isso, o esquerdismo prevalecente opta por vitimizar Lula e o PT: somente eles seriam “perseguidos”. Impeachment foi golpe, eleição sem Lula seria fraude, Lula estaria sendo condenado sem prova só para não poder se candidatar, a lawfare seria a adaga espetada em seu peito. Uma catilinária ilimitada.
Tudo isso é interpretado como expressão pura da esquerda, sem mais. Blogs, robôs, sites, mídia eletrônica organizam uma incansável campanha para ampliar o diagnóstico de que tudo só acontece porque a direita (jamais definida com clareza), os liberais, os socialistas democráticos, os partidos do sistema, decidiram atacar o PT e a esquerda, porque a Globo não gosta de Lula e quer dominar tudo, porque Sergio Moro é um partidário antipetista. Porque as elites resolveram sangrar a sociedade.
Estaria assim em marcha uma violenta guinada regressista, tradução brasileira do mesmo fenômeno que se veria no mundo. Direitos pisoteados, pobres sendo remetidos ao inferno da miséria, trabalhadores encurralados, superexplorados, tratados como animais, um cenário de horror. E, no meio dele, Lula e o PT lutando como verdadeiros patronos da Humanidade, que por eles, no mundo todo, torce apaixonadamente.
Consolidou-se assim uma nova faceta do mito global do redentor.
Não há mais crítica política. Muito menos autocrítica. Os iluminados, como se fossem escolhidos, sabem tudo, dominam os mares, voam mais alto. São “perseguidos” e, por isso, automaticamente purificados, desobrigados de analisar os próprios passos, os erros cometidos, as culpas que carregam. Toda exigência deveria ser suspensa para não facilitar o trabalho da “direita”. Durante os anos do petismo no poder, a crítica não podia ser formulada porque desestabilizaria e enfraqueceria o governo; depois do impeachment, ela é inadmissível porque serviria para fortalecer os “golpistas”. De negação em negação, de recusa em recusa, foi-se empurrando a sujeira para baixo do tapete.
A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções. Converte-se Lula num factótum da perfeição, dono de uma racionalidade política jamais vista e de uma entrega total aos pobres. Passa-se uma esponja em pecados eventuais, na sede desmesurada por poder, no protagonismo centralizador, avesso a disciplinas e partidos. O mito assim forjado tem alguns pés de barro, devidamente ocultados para não estragar o enredo, mas nem por isso deixa de ser alimentado.
A convicção cega embota as mentes, a superficialidade do diagnóstico agita, mas não consegue esclarecer nem ativar um verdadeiro programa de luta e transformação. Vai-se por inércia, repetindo chavões e slogans fáceis, que se derramam como água, a um ponto em que tudo se converte em senso comum. Nesse momento, as pessoas simplesmente param de pensar. Deixam de ser autônomas, convertem-se em repetidoras passivas, que se lançam em embates infrenes contra tudo e todos.
Os que procuram complicar um pouco o argumento, ponderar ou encontrar um terreno de maior razoabilidade, são atacados sem pena nem consideração. São estigmatizados, convertidos em aliados de “golpistas”. Avança assim um rolo compressor dedicado a disseminar um tipo de pensamento único “progressista”, a martelar verdades tidas como absolutas, a promover polarizações sempre mais insanas e insensatas, a construir uma narrativa que beira a irracionalidade.
Todos seriam parciais: o MP, a PF, Moro e a Lava Jato, os juízes do TRF-4, a Justiça inteira, as instituições em seu conjunto, os delatores premiados, a mídia. Exagera-se e leva-se ao extremo uma estratégia “coitadista”, de vitimização.
O país? Ora, o país… O importante seria não perder o foco: salvar o líder redentor. Fernando Gabeira disse bem: “A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral”.
O desprezo pela dúvida e pela opinião divergente culmina na redução delas ao imprestável, ao suspeito. Não haveria porque debater se o “outro” é visto como inimigo a ser destruído. É uma questão de fé.
Interditam-se assim posturas e iniciativas que poderiam ajudar a oxigenar o ambiente, a fazer avançar uma crítica mais realista, a tolerância, a busca de entendimentos para fortalecer o próprio campo da esquerda, revitalizando um patrimônio de afetos, agregações, sinergias. Para o pensamento único, a dissonância é incômoda.
Vez ou outra se ouvem vozes falando em “unidade das esquerdas e das forças populares” para frear o “governo entreguista” e impedir a “usurpação” que se anuncia com o julgamento político de Lula. É uma retórica rebarbativa, que não avança na compreensão do quadro e se perde na proposição abstrata de uma imprecisa “aliança nacional” para defender a democracia. Perorações desse tipo desaguam inevitavelmente na postulação do “direito” que teria Lula de disputar a eleição, porque ele é o líder supremo, amado pelo povo, pouco importando se cometeu deslizes, se vier a ser condenado, se tiver a ficha suja de acordo com a legislação em vigor.
Isso tudo acontece não só porque o esquerdismo prevalecente conseguiu acumular recursos e mostra competência na agitação e na propaganda. Acontece também porque a nossa época é uma época de lassidão crítica, de preguiça, de acomodação, de miséria intelectual. Uma época opiniática, em que cada um carrega a sua verdade e sua fé.
Acontece também porque os demais protagonistas do campo democrático e de esquerda – aquilo que se deveria chamar de esquerda democrática – não souberam se projetar e se articular, deixando o terreno vazio. Parte deles nem consegue se descolar do petismo lulista.
A desgraça maior é que ninguém sabe bem o que fazer.
Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente.
Os que querem se diferenciar desse senso comum batem cabeça, ora se entregando ao encontro de um nome com que dar operacionalidade ao moderantismo de centro, ora abraçando bandeiras caras ao neoliberalismo, sem atualizá-las ou corrigi-las.
Uns e outros se acham autossuficientes. Atacam-se reciprocamente sem tréguas, e no correr da batalha deixam de lado o mais importante.
O mais importante? A defesa da democracia e de um reformismo realista, progressivo, consistente em termos programáticos, que nos permita repor o país nos eixos e disputar o futuro, coisa que somente será concebível se houver o concurso generoso de muitos. E, junto com isso, a colocação em marcha de uma reinvenção que nos faça voltar a ter orgulho de nos proclamarmos de esquerda.
Fonte: O Estado de São Paulo (13/01/18)

Pior para os fatos, pior para a política (Eugênio Bucci)

Fatos não pensam. Logo, não podem ser tomados como critério definitivo da verdade. Na conduta humana, ao lado do juízo de fato (da constatação empírica e racional dos dados verificados na realidade), há de ter lugar também o juízo de valor (que envolve interpretações e escolhas inspiradas por noções éticas), seja na vida prática de todo dia, seja na política.
Nada mais óbvio, certo? Sim, nada mais óbvio. Não obstante, para que fique mais nítida a adversidade presente, o óbvio vai cumprir aqui uma função de esclarecimento. Sigamos, então, um pouco mais com o nosso óbvio.
Os que proclamam pautar suas decisões nos fatos, apenas nos fatos, fazendo parecer que suas conclusões são decorrências matemáticas, necessárias e inevitáveis de uma leitura objetiva dos eventos da natureza e da vida social, flertam com uma forma rebuscada de fraude, mesmo que não tenham a intenção de trair a confiança do interlocutor. As decisões que podemos tomar no plano da consciência – por mais frágil e instável que seja a membrana da consciência a revestir as deliberações de que somos capazes – implicam obrigatoriamente aspirações, desejos, identificações inconscientes, crenças e princípios morais dos quais mal nos damos conta. Em suma, os caminhos que cada um elege para si e para a comunidade encerram compromissos que, além da constatação dos fatos, guardam em si a pretensão de interferir na sucessão desses mesmos fatos. O óbvio, nada mais que o óbvio: a ambição (ou direito legítimo) de alterar a ordem dos fatos (ou de mudar o mundo) tem, portanto, parte com o imponderável, com a incerteza, de tal forma que quem escolhe aposta. Se os fatos não pensam, precisam do sujeito que pense para sobre eles agir.
Ponto. Fim das obviedades. Prossigamos agora com a adversidade.
Como os observadores mais atentos vêm apontando, vivemos um agravamento agudo da desvinculação entre o discurso político (incluído aí o agir) e o domínio dos fatos. Paixões como o ódio, a inveja, o ressentimento (e suas manifestações mais superficiais, como a xenofobia, o sexismo, o preconceito de classe, o racismo) subiram um ou dois degraus na hierarquia das configurações partidárias e no ordenamento do poder. A idolatria e a fúria tomam espaços que até outro dia contavam com a presença de alguma forma de discernimento crítico, ainda que rudimentar, de tal forma que comportamentos políticos assumem o aspecto de fervor religioso.
É a era do “pós-fato”, caracterizada pelo recrudescimento dos chamados “populismos”. Há exemplos profusos à esquerda e à direita: chavismos, trumpismos, bolsomitos, etc. Não é na coloração ideológica que essas novas e múltiplas formas de populismo se distinguem. O que as distingue é o abandono deliberado da modestíssima verdade factual como lastro da retórica. O populismo contemporâneo constrói-se em ataque permanente contra o domínio dos fatos: não se trata apenas de substituir o juízo de fato pelas crenças abiloladas, mas de substituir a lógica interna da política pela lógica interna das seitas fanáticas, mantendo mais ou menos intacto o invólucro de aparência política.
Não é por acaso que os papéis de igrejas e partidos se embaralham em tantos níveis no Brasil. Não é por acaso que o princípio democrático da separação entre Igreja e Estado se tenha perdido numa esquina da nossa História recente. Temos hoje no País líderes religiosos que encabeçam projetos explícitos de poder, assim como temos líderes políticos que se acreditam predestinados e ungidos por forças divinas. Durante muito tempo os analistas tratavam de encontrar explicações políticas para fenômenos religiosos. Agora, os mesmos analistas recorrem à anatomia das religiões – que não têm base nos fatos, mas na fé – em busca de analogias para o modo de proceder de siglas partidárias.
Quando uma dirigente partidária afirma que “para prender Lula (a Justiça) vai ter que matar muita gente”, deixa ver as fibras do fanatismo. De outro lado, a diferença de tratamento judicial que mereceram Dilma Rousseff e Michel Temer desvela um aparente descompromisso da política e da Justiça com o domínio dos fatos: Dilma foi destituída em função de uma acusação que transitava do barroquismo jurídico às abstrações mais intangíveis, condenada por um crime de responsabilidade que era difícil de entender e mais difícil ainda de explicar; quanto a Temer, flagrado numa gravação para lá de comprometedora, com ex-ministros e ministros que fazem fila para se sentar no banco dos réus, voa, incólume como um anjo, acima do alcance do Judiciário, sem que ninguém se preocupe em entender e muito menos em explicar o que quer que seja. A sensação de que os tribunais se permitem golfadas de partidarismo se adensa, enquanto o cenário político se inflama.
Há outros sinais de cisão entre a política e os fatos. O furor com que os seguidores fiéis do ex-presidente Lula se apressam a dizer que não há provas cabais contra ele no caso do triplex – e, em se tratando de um processo ainda não transitado em julgado, não está descartada a hipótese de que tenham razão – obscurece o fato (outra vez o fato) de que as evidências políticas e práticas de que ele usufruiu favores de empreiteiras para custear seu conforto pessoal (no famigerado sítio de Atibaia, por exemplo) constituem um embaraço ético de todo tamanho. Por que ninguém entre os seguidores fiéis se incomoda com isso? Por que seguem seguidores fiéis mesmo depois de tantos e tão graves sinais expostos de conflitos de interesse? Será que, para os seguidores, ainda que venha a se provar juridicamente inocente, Lula ainda é politicamente impoluto?
Enquanto uns e outros, de um lado e de outro, dissolvem o nexo entre política e fato, a regra do jogo democrático perde consistência, os extremismos se aprofundam e o debate público perde fertilidade.
Fonte: O Estado de São Paulo (18/01/18)

“O Judiciário usurpou o papel que era da política” (Luiz Werneck Vianna/entrevista)

Apesar das expectativas com as eleições presidenciais que irão ocorrer em outubro deste ano, “até agora as candidaturas não estão muito explicitas em relação aos rumos” que o país irá tomar daqui para frente, afirma o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line. O Brasil “irá na direção do nacional-desenvolvimentismo, na volta dos tempos de Dilma, ou se inclinará por outras alternativas?”, questiona. Segundo ele, “o tema do nacional-desenvolvimentismo encontra guarida numa candidatura do PT e espantosamente também na candidatura do Bolsonaro”, mas outra possibilidade seria “estimular candidaturas para o centro, que poderiam, em nome do fortalecimento da democracia política e de suas instituições, avançar numa coalizão de centro-esquerda”. Entretanto, adverte, “isso tudo ainda são especulações e cogitações que ainda estão sob exame”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Werneck Viannatambém comenta o julgamento do ex-presidente Lula, que irá ocorrer na próxima quarta-feira, 24 no TRF-4 - Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Na avaliação dele, “este julgamento não está tendo o papel que os comentaristas dos grandes jornais fazem a respeito do “Dia D”. Tudo indica que vamos transitar por esse dia seja qual for a decisão”. As possibilidades reais de concretização do processo que envolve o ex-presidente, afirma, são “a confirmação da sentença” e “o fato de ela se traduzir, em termos da Lei de Ficha Limpa, numa erradicação da candidatura Lula nessa sucessão presidencial”. Ele diz ainda que a aposta da esquerda na eleição do ex-presidente “é a aposta do aprofundamento do conflito; é levar o conflito às últimas consequências, mas não vejo clima para isso. O clima que estou vendo é de normalidade e estou tentando expressar isso através de alguns indicadores sociais, como o carnaval, a política do Estado em relação à saúde, que vem sendo valorizada pela população. Não estou vendo clima para colapsos e fim de mundo. É a continuação do mundo que está aí, dessa maneira complicada que está aí”.
Werneck destaca ainda que o “fenômeno que importa entender” na atual conjuntura brasileira é a judicialização da política.
“O Judiciário usurpou o papel que era da política: até para a nomeação de um ministro, um juiz de primeira instância intervém com êxito. Não há caso igual no mundo. E como isso vai se repor nos seus eixos é um processo a ser discutido”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Já está claro o que podemos esperar em termos políticos para este ano de eleição presidencial?
Luiz Werneck Vianna – Uma coisa é o que devemos esperar, outra é o que podemos esperar. O que deveríamos esperar é um processo de discussão sobre a retomada de rumos da sociedade e da economia brasileira, ou seja, em que direção irá: irá na direção do nacional-desenvolvimentismo, na volta dos tempos de Dilma, ou se inclinará por outras alternativas? Até agora as candidaturas não estão muito explicitas em relação a esses rumos. Sabe-se que o tema do nacional-desenvolvimentismoencontra guarida numa candidatura do PT e espantosamente também na candidatura do Bolsonaro, assim como também se cogita estimular candidaturas para o centro, que poderiam, em nome do fortalecimento da democracia política e de suas instituições, avançar numa coalizão de centro-esquerda. Mas isso tudo ainda são especulações e cogitações que ainda estão sob exame.
Uma candidatura do Lula representaria certamente uma campanha voltada para a retomada, de certo modo, do nacional-desenvolvimentismo e está dependendo de uma decisão judicial, aliás, como tudo neste país. Agora, penso que, ao contrário do que muitos meios de comunicação estejam procurando sublinhar, acentuar e enfatizar, estamos muito longe de cenas de fim do mundo. Apesar dos conflitos e das ideias contrapostas, as instituições marcham e dia a dia elas se reforçam, por incrível que pareça. O fato é que todos se referem à Carta de 88, pretendem ser os melhores interpretes dela, e ela se reforça. Não há tentativas que procurem recusar a Carta de 88. Então, não creio que estamos vivendo um clima de fim do mundo e nem de colapso. Tenho algumas indicações empíricas que sustentam essa minha percepção.
IHU On-Line – Quais?
Luiz Werneck Vianna – Vou tentar mostrá-las. Fala-se muito na distância entre o Estado e a sociedade, mas não é isso que está ocorrendo agora, por exemplo, no principal estado da federação com a vacinação para a febre amarela. O que está se vendo é uma demonstração de confiança da população nas agências do Estado, especialmente nas agências de saúde - que são tão criticadas -, onde se vê que as pessoas ordenadamente e disciplinadamente acorrem aos postos para fazer a vacina. Isso demonstra confiança na ação estatal dessas agências, e é um indicador forte para mim de que a crise na população não tem a mesma proporção da crise que se constata na leitura da mídia. Outro processo também muito visível em São Paulo é a busca por formação de blocos de carnaval, que deve, neste ano, superar todas as marcas com a criação de blocos novos. Eu vejo nisso indicações de que à medida que o dia do julgamento de Porto Alegre se aproxima, não caminhamos para um colapso, um conflito. Ele pode até ocorrer, mas o mais previsível é que não ocorra.
IHU On-Line – O senhor quer dizer que não há uma mobilização social, para além da militância petista, ao julgamento do ex-presidente Lula? Por que na sua avaliação a população não está comovida com o julgamento?
Luiz Werneck Vianna – Porque este julgamento não está tendo o papel que os comentaristas dos grandes jornais fazem a respeito do “Dia D”. Tudo indica que vamos transitar por esse dia seja qual for a decisão. Agora, qual será a decisão? É muito previsível – digo isso sem fazer juízo de valor – que o Tribunal de Porto Alegre confirme a sentença e mantenha a condenação. Agora, depois disso, no próprio âmbito do judiciário, a questão é como a decisão será interpretada: a condenação com trânsito em julgado – porque esgotadas todas as instâncias de apelação – leva, logicamente e de maneira irrecorrível, à possibilidade de tornar a candidatura do Lula inviável, e a cassar a possibilidade dessa candidatura pela Lei da Ficha Limpa. Essa será outra batalha, mas acho difícil contornar a tendência de que Lula seja erradicado do processo eleitoral como candidato. Como personalidade política talvez terá uma força, inclusive indicando um candidato.
Agora, as possibilidades reais de concretização desse processo são: 1) a confirmação da sentença; 2) o fato de ela se traduzir, em termos da Lei de Ficha Limpa, numa erradicação da candidatura Lula nessa sucessão presidencial; e 3) temos que esperar.
A descrença das ruas em relação às soluções dramáticas, a meu ver, está presente na organização dos blocos de carnaval em termos massivos, ou seja, as ruas serão ocupadas pelos carnavalescos.
Os indicadores que estou tomando são, de um lado, a mobilização para o carnaval e, de outro, a demonstração de confiança que a população vem dando para as políticas em matéria de saúde, indo aos postos em massa. Não se vê conflito nesses postos de saúde. Essa política está sendo legitimada e com isso o Estado também está. E se reconhece na ação do Estado um serviço público importante, qual seja, a luta contra a febre amarela.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a aposta da esquerda no nome do ex-presidente Lula como principal candidato à presidência? Qual é o impacto político dessa aposta?
Luiz Werneck Vianna – A aposta da esquerda no Lula é a aposta do aprofundamento do conflito; é levar o conflito às últimas consequências, mas não vejo clima para isso. O clima que estou vendo é de normalidade e estou tentando expressar isso através de alguns indicadores sociais, como o carnaval, a política do Estado em relação à saúde, que vem sendo valorizada pela população. Não estou vendo clima para colapsos e fim de mundo. É a continuação do mundo que está aí, dessa maneira complicada que está aí.
IHU On-Line – Que cenários vislumbra para a disputa presidencial deste ano?
Luiz Werneck Vianna – A candidatura Alckmin é praticamente certa. Do lado do PT, fora essas especulações fantasistas do Lula ser candidato, teremos o Jaques Wagner, que é um candidato bastante palatável do PT. A candidatura de Meirelles vai depender da batalha política dele, se ele conseguir espaço. O governo, especialmente se a economia continuar a dar as respostas positivas que vem dando, vai ter um papel aí no sentido de indicar um candidato, que pode ser o Meirelles ou o Alckmin.
A hipótese da candidatura do Temer me parece muito fantasista. De outro lado, não vejo o Bolsonaro como alternativa, embora o tema dele esteja na ribalta, que é a segurança, a ordem, mas tenho a sensação de que a candidatura dele não decola. Existe a possibilidade de uma candidatura de um outsider. Ela existe, mas adivinhar quem seria não vale.
IHU On-Line – Um tema que voltou a ser discutido entre os partidos é a possibilidade de fazer alianças, e partidos como o PT e o PCdoB já declararam que poderão fazer alianças com o PMDB. Que alianças provavelmente serão feitas nesta eleição? O PMDB continuará mantendo uma influência nesse sentido?
Luiz Werneck Vianna – O PMDB, com o tamanho da bancada parlamentar que tem e com a sua capilaridade, que se manifesta na sua presença nas principais cidades do país de forma significativa, vai continuar com o seu papel de centro, como foi no governo Lula. Foi a Dilma quem interrompeu essa experiência exitosa, porque ela tinha horror ao PMDB. Aliás, ela veio para a política do Rio Grande do Sul, onde se acumulava ressentimentos com o PMDB a nível local e nacional. Então, todos os candidatos têm a percepção clara de que sem passar pelo PMDB não há vitória possível, nem governo possível. De qualquer forma, esse horizonte está muito turvo e não é responsável da perspectiva de agora falar nas alianças sem saber quais serão os candidatos.
Todos os candidatos têm a percepção clara de que sem passar pelo PMDB não há vitória possível, nem governo possível
Digamos que a minha análise esteja equivocada e que o Tribunal não confirme a sentença, então o Lula será candidato e aí muda tudo, mas essa hipótese, para mim, é fantasista, é um exercício sem possibilidade de se concretizar. A possibilidade de concretização é a do Tribunal confirmar a condenação e, em seguida, pela Lei da Ficha Limpa, afastar o Lula da candidatura presidencial. Haverá outras batalhas jurídicas, mas são batalhas condenadas a ter um resultado previsto, qual seja, o de não admitir a possibilidade de recursos defensáveis da candidatura Lula. E aí vamos para a eleição.
IHU On-Line – Na eleição deste ano deve se repetir um cenário polarizado, como o da última eleição presidencial?
Luiz Werneck Vianna – Eu acho que a eleição será polarizada, mas não se sabe em que direção, porque tudo está na dependência de saber se Lula será candidato ou não. Estou trabalhando com a hipótese de ele não ser candidato, olhando para o comportamento do Tribunal, ou seja, como ele tem se comportado e como a condenação do Lula fortaleceria essa intervenção que o Judiciário está fazendo na vida política do país. Esse é o fenômeno que importa entender.
O Judiciário usurpou o papel que era da política: até para a nomeação de um ministro, um juiz de primeira instância intervém com êxito. Não há caso igual no mundo. E como isso vai se repor nos seus eixos é um processo a ser discutido. Assim como antes, que caminhos tivemos que descobrir para que os militares voltassem aos quartéis, agora teremos que descobrir o caminho para que os magistrados retomem seus lugares nos tribunais e fiquem por lá. Isso não vai ser fácil.
IHU On-Line – Quais são suas maiores preocupações em relação à atuação do Poder Judiciário?
Luiz Werneck Vianna – Temos que colocar cada macaco no seu galho. Se a Constituiçãoestá tão valorizada, ela define como questão estratégica a divisão entre os poderes, porque não existe só um poder ou um poder acima dos demais. Isso vai depender de luta política, intelectual, jurídico-política, ou seja, de uma reflexão muito grande da sociedade sobre essa patologia da judicialização da política que tomou conta da nossa vida.
IHU On-Line - Recentemente o senhor escreveu que estamos “deixando para trás o tempo da modernização que aqui vingou de Vargas a Dilma”. Quais são as evidências disso e quais devem ser os reflexos disso nas eleições deste ano?
Luiz Werneck Vianna – Essa é uma percepção que tenho da época que estamos vivendo, de que um paradigma, uma certa concepção do país, ficou para trás. A Revolução de 30 está ficando para trás, mas ainda não ficou inteiramente para trás, mas já nos afastamos muito dela e ela vem perdendo força e capacidade de persuasão. Está aí a Legislação Trabalhista que não “segurou o tranco”. Por mais que os advogados trabalhistas estejam se mobilizando em defesa da Consolidação da Lei de Trabalho - CLT, a CLT ao fim e ao cabo jamais encontrou apoio forte dentro do próprio PT, dentro do governo Lula. Só a partir de um determinado momento ele foi flexibilizando no sentido de voltar aos anos 30, de reencontro com o nacionalismo do governo Geisel. A escora dessa política agora está mais na direita do que na esquerda: é Bolsonaro que defende o populismo, o nacional-desenvolvimentismo. Isso é uma mudança importante; não é a esquerda que está valorizando essa alternativa, ao contrário, é a direita. Aliás, é o que acontece no mundo: o nacional-desenvolvimentismo ganha espaço na Europa e nos EUA, com Trump. A esquerda está afastada disso e no Brasilvemos esse afastamento se aprofundar.
A bandeira da modernização está cedendo lugar para a bandeira do moderno. Por bandeira do moderno eu quero significar o tema da autonomia, a autonomia das organizações, a valorização da sociedade civil, novas formas de articulação da sociedade civil com o Estado. É isso que entendo pela emergência do moderno entre nós. Ao meu ver, essa é uma tendência muito poderosa. Já vitoriosa? Ainda não, mas é muito forte e penso que nessas eleições isso vai se fortalecer mais ainda.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Onde está o fascismo? (Cláudio Gonçalves Couto)

Em tempos de Trump, extrema direita europeia e aumento da radicalização política, talvez devamos levar a sério por aqui os pendores neofascistas. Em seu breve ensaio sobre "O que é o fascismo?", George Orwell mostrava como a palavra se tornara, no pós-guerra, um termo com inúmeras serventias e pouco significado, deixando de ser conceito para virar xingamento ou metáfora. Alertava, porém, que o uso leviano do termo não eliminava a coisa à qual se referia.
Um dos modos de produzir a falácia conceitual apontada por Orwell é chamar de fascismo qualquer coisa que a ele possa ser associada por conter traços em comum, por seu posicionamento relativo num determinado espectro, ou por pura distorção.
Exemplo da falácia dos traços em comum foi um experimento feito há poucos anos com determinados congressistas, utilizando-se frases selecionadas de um texto doutrinário do fascismo italiano. O ponto comum em todas essas frases era o enaltecimento do papel do Estado; quanto aos congressistas, não eram amostra representativa do conjunto dos parlamentares. O resultado foi que, de um modo geral, indivíduos de esquerda se mostraram mais concordes com as sentenças do que legisladores de centro ou direita. Conclusão a que chegou o responsável pela enquete: a esquerda é fascista.
O problema de um experimento assim é que comete uma falácia da composição, tomando a parte pelo todo. Tanto socialistas como fascistas são simpáticos a um Estado forte; contudo, como razões e propósitos são distintos, é embuste pinçar descontextualizadamente frases em favor de um Estado forte e testar a concordância com elas como prova de fascismo - ainda mais com amostra de respondentes enviesada. Excetuados liberais e anarquistas, muitos tenderiam a concordar com as sentenças, inclusive conservadores clássicos. Se questionados sobre outras frases do texto fascista, não relacionadas ao papel do Estado, o provável é que liberais e socialistas concordassem, rejeitando-as igualmente./
A falácia do posicionamento relativo é apontada por Orwell em seu ensaio, quando observa que setores da esquerda chamavam aos conservadores de fascistas. Ora, como tanto fascistas como conservadores estavam, por definição, à direita dos esquerdistas, foram postos no mesmo balaio, ainda que se situassem muito distantes uns dos outros. Vemos hoje situação similar, quando alguns denominam "comunistas" todos os situados à sua esquerda.
Por fim, a falácia da pura distorção ocorre quando termos são usados a esmo, pela simples confusão de coisas diversas. Veja-se o caso da reiterada afirmação de que "o nazismo era de esquerda", baseada no fato de a organização de Hitler se denominar "Nacional-Socialista" e se declarar um "partido dos trabalhadores". É este um caso de considerar literalmente o rótulo, ignorando o conteúdo e o fato de que esse rótulo foi um ardil propagandístico para cativar os trabalhadores. Ademais, ignora também a implacável perseguição dos nazistas à esquerda alemã de sua época.
Feitas as ressalvas e considerando as mudanças históricas desde sua forma original, o que se pode chamar na atualidade de fascismo ou neofascismo? O fascismo apresenta características que às vezes se sobrepõem e que, isoladamente, são insuficientes para defini-lo: (1) nacionalismo e patriotismo exacerbados, frequentemente xenófobos; (2) autoritarismo, com uma estética ou retórica violentas; (3) intolerância a grupos minoritários, vistos como ameaça à coletividade; (4) crença no papel crucial de um líder forte; (5) defesa ideológica de uma desigualdade fundamental, seja nacional, racial ou moral.
Se considerarmos as quatro primeiras características, não seria difícil considerar o chavismo fascista. Falta-lhe, porém, a quinta característica - a defesa de uma desigualdade fundamental. O socialismo chavista - como qualquer socialismo - é ideologicamente igualitário, mesmo que na prática produza desigualdade; isso, contudo, diferencia-lhe do fascismo.
O neofascismo europeu combina as cinco características, mas é contido pelo contexto institucional, já que Estados democráticos de direito nacionais e a pressão regional europeia, freiam ímpetos autoritários de líderes e movimentos. Por isso, xenofobia, intolerância em relação a imigrantes e muçulmanos, líderes inflamados e a afirmação da superioridade dos nacionais se expressam mais abertamente do que o autoritarismo. E, na medida em que este potencializaria os demais elementos, sua contenção também refreia o resto.
No Brasil, etnicamente miscigenado e com uma população majoritariamente de pardos e negros, é improvável um movimento fascista de maior alcance que tenha na discriminação racial seu elemento propulsor, apesar de repetidos episódios racistas entre nós. O apelo de um forte discurso nacionalista é plausível, sobretudo na forma de patriotismo, dificilmente se voltando contra imigrantes, não percebidos como ameaças culturais ou econômicas. Já o autoritarismo e a crença em líderes fortes têm raízes profundas por aqui e ressoam com vigor no embate público.
Para que se combinem as cinco características do fascismo, teria de haver também algum tipo de perseguição contra grupos minoritários e a consequente afirmação de uma desigualdade fundamental. Se isso é improvável na forma racial, tem chances de prosperar na de tipo ideológico, moral e religioso: o anti-intelectualismo, a intolerância com a "doutrinação política nas escolas" e com a "ideologia de gênero", o ataque neomacarthista a manifestações artísticas e intelectuais não enquadradas nos "valores da família". Sua consequência é a persecução aos desajustados, equiparados a uma espécie de escória patológica ("esquerdopatas", "gayzistas"), que propagam crenças e adotam modos de vida incompatíveis com a conduta reta dos "cidadãos de bem" e das "pessoas comuns". Neste formato, o fascismo já aparece entre nós e não é difícil identificá-lo.Fonte: Valor Econômico (08/01/17)

Marx: dois séculos de embate (Marcos Guterman)

Poucas figuras no mundo despertam tanta controvérsia quanto Karl Marx (1818-1883). Identificado como o grande profeta do comunismo, o filósofo alemão é, por isso mesmo, adorado como um santo pela esquerda e odiado como um demônio pela direita. Mesmo que poucos tenham efetivamente lido o que ele escreveu, e que muitos dos que se dizem seus seguidores limitem-se a recitar as passagens populares de seus textos mais conhecidos – como a abertura do Manifesto do Partido Comunista (“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”), ou como a igualmente notória abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte (“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”) –, o fato é que parece que o mundo inteiro tem algo a dizer sobre Marx. Mas qual Marx?
Duas alentadas biografias lançadas no Brasil se propõem a reconduzir Marx à sua dimensão humana, como produto de seu tempo, destituído dos inúmeros epítetos pelos quais ele passou à história e aos quais, é o que esses livros demonstram, ele quase nunca fez jus, para o bem ou para o mal.
Não é uma tarefa trivial. Os guardiões dos textos sagrados de Marx, conhecidos como marxistas, quase nunca se dispõem a falar em público sobre os erros e as contradições de seu herói. Afinal, a fama de um filósofo que “provou” o iminente colapso do capitalismo não pode ser ameaçada por questões mundanas, como sugere o historiador britânico Gareth Stedman Jones em seu livro Karl Marx: Grandeza e Ilusão (Companhia das Letras), lançado em dezembro.
Nem mesmo o colapso do comunismo, lá se vão três décadas, e o renovado vigor do capitalismo, a despeito de suas recorrentes crises, são capazes de diminuir a aura em torno de Marx. Mas Stedman Jones, assim como o historiador americano Jonathan Sperber, autor de Karl Marx: Uma Vida do Século 19 (Amarylis), de 2014, trataram de reconstituir a vida e as ideias de Marx não à luz das reações extremadas que causam ainda hoje, e sim em relação ao turbulento contexto de sua época.
O pensamento de Marx que surge de ambos os trabalhos é algo diferente do que ficou consagrado como “marxismo”, isto é, a interpretação de suas ideias feita por seus seguidores, tanto os contemporâneos quanto os posteriores. Trata-se de um homem que viveu intensamente uma era de revoluções, cujo leitmotiv era a destruição dos pilares da velha ordem aristocrática. Ele é filho direto da Revolução Francesa e do pensamento dialético de Hegel, além de contemporâneo da industrialização inglesa, que mudou a face econômica, social e política do mundo.
Enquanto o britânico Stedman Jones concentra sua atenção no pensamento de Marx, detalhando as influências que o filósofo sofreu, não apenas dos pensadores de sua época, mas dos amigos e inimigos que cultivou, o americano Sperber descreve com mais detalhes a vida pessoal, embora não deixe de fazer também uma minuciosa radiografia de seus escritos e de suas teorias – reservando, em vários casos, fortes críticas às inúmeras contradições do personagem.
Assim, vários mitos criados pelos hagiógrafos de Marx ficam devidamente desmoralizados nos dois livros. Marx não criou o comunismo, e muito do que se lhe atribui nesse particular havia sido elaborado por outros pensadores, como Proudhon, que já falava de “abolição da propriedade privada”, entre outras concepções hoje chamadas de “marxistas”. Curiosamente, Marx vivia a atacar Proudhon. Também curiosamente, como lembra Sperber, Marx, em 1842, apenas seis anos antes de publicar o Manifesto do Partido Comunista, defendeu no jornal A Gazeta Renana que os comunistas fossem reprimidos violentamente – pelas armas, se necessário. Mais ainda: já em 1848, seis meses depois de ter publicado o Manifesto, Marx classificaria de “nonsense” a ideia de uma ditadura do proletariado. Ele voltaria a usar o termo “nonsense” 23 anos depois, para qualificar a Comuna de Paris. Como se observa, Marx, em seu ativismo feroz, não se importava em ser contraditório.
Mesmo a concepção de Marx sobre o capitalismo, consubstanciada em O Capital e tida por seus seguidores como a prova de sua genialidade, recebe de Stedman Jones e de Sperber consistentes reparos. Sperber procura demonstrar que o capitalismo ao qual Marx se refere é o do século 19, muito diferente do atual, razão pela qual não se pode tentar aplicar suas teorias fora de época, ao menos sem levar em conta o risco do anacronismo. Stedman, por sua vez, considera que Marx se equivocou ao elaborar sua teoria do valor, central em seu pensamento sobre o capitalismo.
Grosso modo, segundo Marx, o preço de um produto é determinado pela quantidade de trabalho gasto para fazê-lo, e isso explicita a exploração dos trabalhadores, que não ficam com a riqueza equivalente ao que produziram – essa riqueza é tomada pelo capitalista, restando ao trabalhador apenas o suficiente para se manter vivo e se reproduzir.
Para Marx, portanto, somente o trabalho define o valor do produto – chamado de “trabalho objetificado”. Stedman Jones, porém, nota que Marx arbitrariamente descartou fatores como a demanda e a utilidade na formação dos preços dos produtos. Trata-se de uma obviedade, que apenas os marxistas mais fanáticos se negam a observar, mas quem quer que estude O Capital honestamente sabe que ali há um bocado de absurdos como esse. Assim, é lícito questionar o que resta de Marx se aquilo que o torna tão importante é, ao menos em parte, uma coleção de equívocos.
Pode-se dizer, como faz Stedman Jones, que a relevância de Marx está no fato de que ele foi um dos mais ativos e eloquentes denunciantes da desumana situação dos trabalhadores europeus do século 19, momento em que as massas de operários e a produção de mercadorias em larga escala mudaram o mundo. Confuso, uma vez que tentou conciliar a dura tarefa de teorizar as contradições do capitalismo com a necessidade de ganhar algum dinheiro para sobreviver e alimentar a família, além de se envolver em inúmeros compromissos políticos, Marx refletiu os choques e as expectativas de uma época de transformações profundas.
Crítico contumaz do positivismo, era ele mesmo, inadvertidamente, um positivista, ao acreditar na sucessão da história em etapas, da irracional e selvagem para a harmônica e científica, fase que marcaria o colapso do capitalismo e o consequente fim da história. Levado ao extremo pelo leninismo, esse pensamento – transformado em método pretensamente científico, com uma suposta revelação das leis do desenvolvimento humano – resultou em diversos regimes totalitários, a começar pelo da ex-União Soviética, que ruiu em apenas sete décadas, por sua profunda negação dos fundamentos da economia.
Já o capitalismo, como Marx previu, teve a capacidade de desmanchar no ar tudo o que parecia sólido, fazendo seu poder revolucionário avançar muito além das relações estritamente econômicas. Assim, embora seja identificado como teórico do comunismo, Marx soube, como poucos em sua época, revelar ao mundo a anárquica vocação do capitalismo para se reinventar.
Fonte: O Estado de São Paulo (07/01/18)

Lembrar junho de 2013 (Luiz Werneck Vianna)

Chegamos afinal, depois de muitas tropelias, ao ano das eleições. As ruas estão em silêncio, embora atentas, e os quartéis, entregues às suas fainas habituais. O rebuliço e as incertezas vêm do lugar menos previsível, o Poder Judiciário, pelas ações de alguns dos seus membros, embalados por concepções salvacionistas alheias às eventuais consequências dos seus atos. Seja como for, de ciência provada agora sabemos que nossas instituições estão dotadas de surpreendente resiliência, ainda de pé em meio a tantos anos de severa turbulência. Sem ufanismo, é forçoso reconhecer que a Carta de 88 tem provado ser uma âncora segura para a nossa democracia.
Aos poucos, os eixos em torno dos quais gira a conjuntura começam a se deslocar dos tribunais para os lugares afetos aos temas e procedimentos da soberania popular. Já se vive, embora tardiamente, o momento crucial em que partidos selecionam seus candidatos e programas, vale dizer, os rumos futuros a serem trilhados pelo País. Em que pesem os argumentos retóricos em defesa de paradigmas antes influentes, a questão incontornável é que, mesmo de modo silencioso, como é do nosso estilo, estamos deixando para trás o tempo da modernização que aqui vingou de Vargas a Dilma.
O melhor marcador dessa mudança não está, como supõem os que se satisfazem com explicações fáceis, tanto no programa reformista do governo Temer, mas, sobretudo, nas jornadas de junho de 2013, na verdade, um movimento massivo da juventude em torno de direitos, inclusive os de participação política. Na agenda de junho de 2013 não se faziam presentes os temas clássicos da modernização, antes hegemônicos, mas os da agenda do moderno, centrados nas questões das liberdades civis e públicas.
Indicar essa mutação, no entanto, não quer significar que o velho repertório que animou a época de fastígio dos programas nacional-desenvolvimentistas tenha sido varrido do mapa do nosso imaginário social. Eles estão aí e ainda devem estar presentes nesta próxima sucessão presidencial e nas futuras, mas sua capacidade de persuasão é claramente declinante, tal como se constata no fato decisivo de já ter iniciado uma migração em direção à direita política e às hostes conservadoras, lugares sociais hostis desde sempre ao programa nacional-popular.
Maro Lara Martins, em Interesse e Virtude: o ensaio sociológico brasileiro dos anos 1930 (no prelo), chamou a atenção para o fato capital de que modernização e modernismo nasceram de dois movimentos sociais coincidentes no tempo – o tenentismo é de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna –, embora desde suas origens estivessem destinados a seguir trajetórias diferentes. Com a Revolução de 1930, a tópica da modernização será conduzida pelo recém-criado Ministério do Trabalho, dito o Ministério da Revolução, e a do modernismo pelo Ministério da Educação e Cultura, confiado a Gustavo Capanema, personalidade de forte prestígio entre os intelectuais da época, entre os quais Mário de Andrade, então ungido no papel de papa laico da cultura brasileira.
Assim, embora as ações dessas duas agências estatais gravitassem em órbitas distintas, nosso processo de modernização, ao contrário de outros casos nacionais, vem à luz encouraçado por uma política cultural inclusiva e valorizadora da vida popular, conquanto o Estado viesse a exercer uma ação tutelar sobre os sindicatos dos trabalhadores. A cultura política do nacional-popular nasce, portanto, sob o signo da incorporação, mantendo bem velado o que havia de autoritário na sua modelagem.
Contudo essa feliz combinação, mesmo que não intencional, entre as agendas da modernização e do moderno se sustentava em bases precárias, dependente da existência de um regime que garantisse as liberdades civis e públicas. O Estado Novo, que nos trouxe a Carta outorgada de 1937, feriu mortalmente essa alternativa, que, de resto, nunca tinha sido buscada como um fim consciente pelas elites políticas da época, somente ressurgindo, de modo encapuzado, décadas depois, sob os governos de JK e de Jango Goulart, com os movimentos de intelectuais de “ida ao povo” disseminados nos centros populares de cultura e de alfabetização popular.
O regime militar interrompeu essa benfazeja experiência, desencadeando feroz repressão sobre esses movimentos e seus intelectuais, prendendo e processando em massa, levando ao exílio centenas deles. Ao lado disso, recuperou as instituições e práticas vigentes no Estado Novo para o mundo do trabalho. A modernização dissocia-se radicalmente da pauta do moderno, perseguindo os fins de plena imposição do capitalismo entre nós, a partir de uma coalizão no poder, sob comando político da corporação militar, entre as elites empresariais da indústria e as elites agrárias tradicionais.
A democratização do País, como se sabe, não nos veio de uma ruptura com o regime anterior, e sim de uma transição, cujos termos implicavam, na prática, a preservação do estatuto da propriedade agrária tradicional. Nas novas circunstâncias do Brasil democratizado, contudo, o processo eleitoral traz de volta com o PSDB e, principalmente, com o PT a agenda do moderno, exemplar na sua crítica ao legado varguista em matéria sindical. O tema da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado parecia ter ganho com a vitória de Lula a sua oportunidade de enraizamento na nossa história política.
Porém, em surpreendente guinada, o PT no governo absolve a Era Vargas. E, pior, valoriza a modernização autoritária levada a efeito no governo Geisel, que o governo Dilma tentará pateticamente radicalizar em condições já inteiramente adversas, levando à exaustão um modelo de política, hoje confinado ao que há de mais recessivo e anacrônico em nossa sociedade, que cumpre agora derrotar nas urnas.
Fonte: O Estado de São Paulo (07/01/17)