sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A política dos partidos e as crises (Paulo Fabio Dantas Neto)





Começo reiterando análise feita num artigo publicado, em março último, sobre o que se espera de partidos e lideranças políticas quando, num quadro de mal-estar social e dificuldades econômicas, o jogo democrático entre elites abrigadas nos partidos e líderes que os chefiam é truncado por táticas do varejo político. Aquele contexto já requeria que partidos atuassem como instituições e líderes como estrategistas do atacado para reabilitarem a fluência do jogo político, através de um pacto pela governação.

Será sensato reiterar essa expectativa quando, tantos meses depois, a crise política prossegue grave, com as dores agudas da novidade dando lugar a sintomas de problema crônico? Creio que a ideia de um pacto político tende a se tornar cada mais persuasiva à medida em que se generalize a percepção do pântano em que estamos navegando. O pacto pela governação pode não ser o desfecho mais provável da crise política, mas penso que seja a opção mais realista, dentre as que não flertam com o fantasma do caos.

Sem esse pacto político destinado a produzir entendimento e governo não iremos a lugar melhor do que o presente. Refiro-me a uma solução provisória do contencioso político, reunindo um arco de partidos para permitir o controle da economia e a pavimentação de um caminho institucional até as eleições de 2018.

Essa perspectiva joga o nosso olhar para um centro político esvaziado no qual, objetivamente e solitariamente está, desde o início do ano, o PMDB. Esse centro não é ideológico, mas “posicional” e relacional, tendo em vista a configuração dos scripts e atores reais. Penso que erra sobre o PMDB quem lhe atribui lugar e papéis fixos na política brasileira. Continuamos sem saber quem (se governo ou oposição) entenderá antes que uma saída realista e democrática para a crise política passa necessariamente pelo reforço institucional e político daquele partido. Aqui não expresso uma preferência política, mas uma convicção analítica.

O Governo teve, em abril, a chance de fazer de Michel Temer mais do que um canal de atendimento de demandas por cargos públicos, sediadas no Congresso. Poderia também ter "terceirizado", através dele, um diálogo com a oposição. Ambos os passos ajudariam à aprovação do ajuste fiscal, solução que não se pôde fazer avançar na velocidade requerida pela crise econômica. Com esse diálogo o Governo teria a ganhar, no mínimo, uma chance de recomeço e, a depender dos resultados econômicos de médio prazo, de recuperação da credibilidade e consequente adoção de um discurso político novo para 2018, já que aquele inaugurado em 2002 chegou à exaustão. Seria um modo de seguir o jogo político com maiores chances para o Governo e maiores riscos para a oposição.

Já o PSDB, no vácuo da inação que então marcava o núcleo petista do governo, poderia ter buscado em Temer um canal negociador para criar condições de aprovação de medidas de ajuste na economia, ademais desdobramento lógico do próprio discurso eleitoral tucano de 2014; e também para fazer surgir, no Congresso, uma proposta alternativa de ajuste viabilizada por essas forças oposicionistas, no caso de fracasso de um entendimento bancado pelo Governo, ou da recusa deste em promovê-lo.

Enfim, ter protagonismo numa solução para a crise teria sido um modo de a oposição fazer mais do que somente replicar, na arena política, a agenda do Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal. Construiria uma agenda política com P maiúsculo, resgatando o discurso da campanha de Aécio Neves, então assumido candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que quer mudar o governo do País. O jogo político também seguiria, mas, nesse caso, com mais chances à oposição e mais riscos ao Governo.

Prevaleceram, porém, desde março até aqui, em ambos os lados do espectro político, scripts de quem aposta no truncamento do jogo. Além de Eduardo Cunha e, até certo momento, Renan Calheiros, várias lideranças do PSDB, Aécio Neves incluso, faziam, até ontem, discursos monotemáticos contra a corrupção no Governo e no PT. Apelo eleitoral sem dúvida, mas sem eleições no horizonte imediato. Por outro lado, no PT, pregações críticas ao ajuste fiscal e por “refundação” da democracia encenaram saída retórica “pela esquerda”, combinada a operações desastradas para manter postos governamentais no varejo político, ao custo da inviabilização do governo no atacado.

Por que as coisas se deram assim? Essa é uma pergunta que não encontra respostas convincentes no campo da crítica moral às estratégias dos atores políticos, embora ela possa ser feita também. Penso que é mais sensato admitir que, num ambiente político marcado por alto grau de incerteza, os atores tiveram dificuldade para ir além do plano tático. Como nenhum deles governa os movimentos de todos os outros, prevaleceram as táticas defensivas, inclusive aquela que estipula o ataque como a melhor ação de defesa.

Parece claro que sem pacto - sequer entendimento - e com esvaziamento do centro político a instabilidade aumenta. Após a queda prevista de Eduardo Cunha poderá se acentuar o protagonismo do Congresso em convívio com um Executivo fraco. Até quando essa relação assimétrica se sustentará não se pode prever. A volatilidade das relações entre os poderes alterna períodos de sangramento com outros de estancamento provisório. Hoje o impeachment estará fora do script, mas nunca fora de cogitação.

Entre os sucessivos cenários mantém-se como o pior a ausência de pacto amplo no interior da elite política e sua consequente inação, à espera da conclusão do Lava Jato, sob efeito da recessão, da inflação e do desemprego. Se a um cenário desses sobreviver alguma voz ativa no mundo da política institucional, o que ela verbalizar como solução certamente será uma alternativa preferível à inação.

Mas nada garante que essa voz se imporá como movimento interno à elite política, mesmo que por instinto de sobrevivência corporativa. Daí, é preciso ir além da reiteração das análises sobre os atores políticos. Também nas pautas dos atores sociais precisa se destacar a preocupação com a urgência de um pacto pela governação do País. Nessa linha argumentarei a seguir, perante esse auditório majoritariamente empresarial.

Certas afirmações podem ser incômodas. A primeira é a de que pactos não são grátis. E se um pacto político tem, como é o caso, motivações ligadas ao rumo da economia, seus custos não podem deixar de afetar os agentes econômicos. Para definir como esses custos serão partilhados não cabe perguntar de quem foi a culpa pela crise, se do governo, da oposição, do setor privado, ou do mordomo. Isso pode ser assunto para as urnas. Colocá-lo na mesa agora, como premissa, é diletantismo. Levará a manter o País no pântano, atolando, juntos, governo, políticos e a própria economia. A pergunta a ser feita mira o presente e o futuro imediato. Diz respeito a que políticas e reformas de curto e médio prazo são economicamente racionais e pragmáticas (no sentido de se aproximarem do consenso, mais o que do dissenso, entre analistas e atores da economia) e politicamente viáveis, no sentido de que possam ser assumidas publicamente por líderes e partidos políticos sem que com isso eles estejam cometendo suicídio eleitoral.

As respostas, portanto, não podem ser encontradas no retrovisor ou em bolas de cristal e sim nos limites da crise e da democracia. A crise é momentânea e a democracia parece felizmente consolidada entre nós, embora possa, como em qualquer lugar, ter avanços incrementais e/ou retrocessos parciais. Nessas condições, tanto a competição como os direitos têm lugar e valor de coisas práticas, isto é, valor econômico, social e político.

A segunda ideia decorre da primeira. Empresas de diversos portes e empreendedores de variada força econômica são protagonistas da economia de mercado, mas os trabalhadores, de modo geral, também cumprem papel de agentes econômicos, além de serem atores sociais politicamente válidos, isto é, titulares de direitos e não só usuários ou clientes de políticas públicas e beneficiários de empregos da iniciativa privada. A política do pacto ultrapassa, portanto, a parceria ou a queda de braço entre setor privado e governo. As duas partes - aliadas aqui, litigantes ali - não encerram o problema. Por isso não o resolverão sozinhas. E não basta incluir na mesa o vago e não devidamente entendido (muito menos, bem representado) “terceiro setor”. Há que se levar em conta o mundo do trabalho propriamente dito, sua representação sindical e também sua cidadania eleitoral, pela qual os atores desse mundo do trabalho integram-se subjetivamente ao povo. Esse é um modo politicamente eficaz de atrair as elites políticas a um pacto público. E por que as atrair e convencê-las do pacto? Não para revogar o conflito político, cancelar a disputa eleitoral entre partidos e grupos, mas para fixar regras informais, de modo que a disputa regrada resolva e não agrave as crises.

Até bem pouco tempo (creio que até antes da última campanha eleitoral) essa extensa e intensa malha de agentes e interesses alimentava, em diferentes graus, uma presunção de prescindir da “política dos políticos”, isto é, dos partidos, do Congresso, do Estado. Vigoravam com força, também no Brasil, ideias que, segundo uma vertente da literatura internacional sobre partidos políticos (Peter Mair é dela um exemplo), contribuem para reforçar o indiferentismo político nas democracias do mundo atual.

A primeira dessas ideias é a de contrapor, quase platonicamente, a política real (rotineira, instrumental e impura) à política das virtudes cívicas, às quais se associam ideias sobre o que deveria ser a “boa”, ou a “verdadeira” democracia. A segunda idéia-força, ruidosamente presente nas ruas brasileiras, em 2013 e em 2015, é a crença na eficácia da subpolítica, isto é, a política da sociedade privada, que faz de um ativismo “cidadão” um substitutivo do seu envolvimento com a política convencional.

Cotidianamente, à subpolítica ativista dos cidadãos privados soma-se à dos grupos de pressão, dentre eles os empresariais. Muitas pessoas que vão à rua, como cidadãos individuais, pedir qualidade dos serviços públicos e ética na política participam, também, de pressões sobre governantes e burocratas do Estado, aí na condição de representantes de segmentos empresariais e mesmo de suas empresas. Esse conjunto de modos de ação não partidários e não assumidamente políticos faz parte de uma política “da sociedade” e consagra, na prática, uma terceira percepção alimentadora do indiferentismo político contemporâneo. Refiro-me, acompanhando a mesma literatura, à ideia da democracia como governo “para o povo”, julgado mais pela eficácia de políticas públicas no atendimento a demandas dos grupos de pressão do que pela qualidade da representação política. A essa última, âncora da ideia (antiga?) de governo “do povo” ou, em versão realista, de governo de partidos, resta a imagem de uma Geni.

Guiados por essas percepções desqualificadoras da política convencional, atores sociais consideram partidos políticos como intermediários inconvenientes e, até certo ponto, dispensáveis na representação de seus interesses, já que estado e políticas públicas mostram-se cada vez mais permeáveis à influência desses grupos. Analogamente, um eleitorado cada vez mais pragmático usa o mesmo metro (o do governo “para o povo”) para avaliar governos e eleger governantes. Assim, no caso brasileiro, eleitorado e grupos de pressão (inclusive empresariais) tornaram-se canais de legitimação do governo “para o povo” e assim legitimaram a estatolatria que, pela percepção de Werneck Vianna, anima a parte da esquerda brasileira que governa há mais de década.

Ocorre que a estatolatria governante, combinada a esquemas de corrupção, foi uma das variáveis que contribuiram para quebrar o próprio Estado. Assim ela perdeu a chave do seu argumento público. Resultam altíssimos índices de reprovação do governo e dos atores políticos mais identificados com ele. Estão situados, em sua maioria, no campo da esquerda política liderada pelo PT, embora disso não saiam ilesas as áreas do sistema político que validaram o processo, bem como os segmentos empresariais específicos que adubaram interessadamente o terreno para a produção de malfeitos em larga escala.

Se o Estado quebrou nas mãos de estatólatras é da lógica democrática que a busca de saídas para a crise seja guiada pelo oposto, isto é, pela valorização liberal do mercado. A política do pacto, porém, requer que essa lógica seja moderada por partilha social de danos. Trocando em miúdos: o discurso que vai vencendo à medida em que a crise avança e as forças que o proferem podem até ser implacáveis com os atores do campo político que vai sendo derrotado pelos fatos, mas terão que contemplar, numa nova política, os interesses dos beneficiários sociais da antiga. Mais uma vez é bom lembrar que numa democracia direitos são moderadores da lógica da competição. Ao liberalismo em ascensão não será dado condenar ao puro relento do mercado os pobres beneficiários sazonais da política superada, sob pena de torná-los força arredia à democracia. No mínimo, poderão ser órfãos eleitoralmente ativos de Lula e do PT e, no limite, massas sem rumo e impermeáveis a influências políticas. Justamente essas possibilidades fazem com que se esteja hoje falando em pacto, não só pura e simplesmente em impeachment.

Chego ao último ponto dessa reflexão, que se liga ao seu ponto inicial. A quebra fiscal do Estado, a usina do governo “para o povo”, deixa a ver navios não apenas o eleitorado do lulopetismo mas também a estratégia subpolítica dos grupos de pressão. Por outro lado, percebe-se os limites políticos do ativismo de cidadãos privados. Manifestações de rua contra o governo e o PT podem voltar a ser massivas e mais frequentes. Podem até mesmo agregar pautas e interesses, melhor do que os partidos e a política convencional. Mas não produzem governação. E sem ela a sociedade vai a pique, economia incluída.

A governação eleva-se à condição de exigência de primeira ordem, ou mesmo assume o grau zero de prioridade. E para ela partidos políticos são imprescindíveis, ainda mais quando há amplo consenso quanto à ausência de fortes lideranças políticas pessoais. Dizendo melhor, além de partidos é imprescindível um sistema partidário, isto é, não basta haver um conjunto aleatório de partidos, mas interação sistemática de partidos e desse sistema com Governo e Congresso. A boa notícia é que, bem ou mal, temos isso, após trinta anos de democracia. A má notícia é que a eficácia desse sistema está em suspenso há meses, pela situação de desgoverno e pela relativa paralisia decisória da Câmara, às vezes convertida em arena plebiscitária. Ambas as notícias devem moderar a afoiteza dos apetites por reforma política, cujos efeitos, sempre duvidosos, virão, se vierem, a longo prazo. Precisamos agora do edifício institucional existente, mesmo com rachaduras, pois suas dependências são as mais adequadas para sediar um pacto que envolva toda a sociedade e não só os que se acomodam no seu andar de cima.

O caminho que aposta nas regras e na estrutura do atual sistema partidário traz ônus e bônus: é mais complexo, mas em compensação dificulta o perigoso atalho de soluções salvacionistas. O pacto urge, inclusive para que o ambiente político não se torne propício a elas. E como urge, não pode esperar por partidos de amanhã e por um novo sistema partidário. Terá que ser obra dos partidos e do sistema partidário atual. Fique claro que não menciono nada semelhante a uma conciliação personalista entre líderes.

No início dos anos 90, após a renúncia de Collor, um pacto de sucesso foi feito a partir da constituição do governo interpartidário de Itamar Franco. Seu programa foi o Plano Real. Só agora se esgotou o impulso positivo daquele mergulho, inclusive do ponto de vista das instituições políticas. A partir dali a dinâmica do sistema partidário brasileiro passou a ser, para surpresa de muitos, próxima ao que a literatura clássica sobre o assunto (Sartori) chama de sistema de pluralismo moderado.

Apesar do grande número de partidos com representação congressual (que dava ao sistema feição de pluralismo atomizado) a interação entre os partidos relevantes estabilizou só duas opções de coalizão viáveis para disputa do poder. O PMDB posicionava-se no centro político, entre o PSDB e o PT, mas o poder revezava-se à volta dos partidos líderes das coalizões alternativas. O PMDB foi se tornando imã a atrair a política dos polos ao centro, fomentando moderação. A fórmula funcionou até o primeiro governo Lula, embora já então o mensalão - dando espaço no centro a partidos menores, concorrentes entre si, alguns sem tradição e vocação para o centro - sinalizasse subestimação do papel estabilizador do PMDB. A sociedade e talvez o próprio PT não viram isso, distraídos pela popularidade de Lula, que chefiava um governo polar e era também o moderador.

O sistema começou a trincar quando, na sucessão de 2010, o PT, não podendo contar com nova reeleição de Lula e já na ausência também de um centro político e partidário consistente a mediar as duas coalizões possíveis, adotou uma candidatura filha da liderança pessoal do Presidente. O advento da chamada nova matriz econômica foi a tradução, na política econômica, da veleidade petista de governar para si e a partir de si, esvaziando o centro político de outros atores relevantes, para tentar ocupá-lo sozinho. Como o PT não era centro e sim expressão nítida de um dos dois polos, o sistema partidário transitou aos poucos para o que Sartori chamou de pluralismo polarizado, com esse agravante de ser postiço o centro a partir do qual o PT queria governar. Como não havia partido antissistema relevante à esquerda do PT, o rei polar logo ficaria nu. Um arranjo como esse só costuma durar em democracias infantis.

Mesmo assim, mais uma vez, o grande número de partidos aparentava um pluralismo atomizado mas não impedia que a interação entre os mais relevantes conseguisse evitar a dinâmica da atomização. Só que, nessa nova fase, a interação, com o arredamento prático do PMDB, induzia não à moderação, mas à polarização crescente, da qual a campanha de 2014 foi o clímax. Nessas condições, com o polo governante subsumindo o centro e improvisando outro, a emersão da dinâmica de um pluralismo polarizado torto foi efeito colateral da estratégia de um ator. O PT queria evitar o risco de alternância de poder em favor da coalizão alternativa, liderada pelo PSDB, para a qual a balança eleitoral parecia pender, se a competição não se radicalizasse. Para evitar o desfecho provável foi quebrada uma regra básica do pluralismo moderado. Deu errado. O PT venceu as eleições, mas durante 2015 até a polarização desvaneceu e o sistema partidário brasileiro apresenta, pela primeira vez em duas décadas, dinâmica atomizada. A quebra fiscal do Estado brasileiro é o capítulo mais dramático desse processo político.

O sentido mais geral do pacto político cuja urgência aqui se discute é o da retomada, pelo sistema partidário, de uma dinâmica mais próxima de um pluralismo moderado. Para isso um pacto político pode ser mais veloz e eficaz do que uma reforma política que tente reduzir riscos de atomização sem sacrificar o pluralismo. As eleições de 2018 são um horizonte temporal possível, mas não obrigatório, para que a viabilidade desse objetivo seja testada. A retomada de um pluralismo moderado pode demorar mais.

De todo modo trata-se de recompor um centro político real do sistema, que modere e facilite a governação, cuja chave está guardada pelo PMDB. No curtíssimo prazo tratase de revogar a atomização atual. Para tanto, parece inevitável um estágio de retorno ao pluralismo polarizado, pelo qual o centro governa, privilegiando aliança com um dos polos e correndo o risco do outro assumir (ou reassumir, no caso do PT) traços de partido antissistema. Essa travessia pode ser feita com o PMDB na presidência ou com a (improvável) “despetização” da presidência atual. Mas as duas alternativas – especialmente a primeira – podem, ou não, implicar em que essa transição vá além de 2018, caso ali a polarização antiga possa ser retomada pelo PT, via candidatura Lula.

Durante o ano de 2015 o PT teve algumas chances de aceitar esse script, entregando gradualmente poderes no curto prazo para preservar-se como um ator capaz de recuar para dar uma volta por cima e disputar de novo o protagonismo político em prazo médio ou longo. Mera cogitação, sem base na realidade, pois tal estratégia colidiria com a tradição autárquica do PT, com limites de formulação política da atual liderança lulopetista e com motivações contrárias, oriundas do envolvimento do partido no Lava Jato, envolvimento que o faz cativo de táticas defensivas, restritas ao curto prazo.

Pode-se entender esses limites objetivos, evitando juízos morais. Mas isso não cancela a urgência de reconstruir-se o centro político, mesmo que isso tenha que se fazer, como em 1992, sem o auxílio do PT. O programa econômico do PMDB, que a princípio adere (aliás, contra a tradição do partido) a uma pura lógica liberal, não é por isso um programa de governo. Independentemente de supostas intenções de sinalização ao empresariado, ele pode e deve ser usado para dar partida à discussão dos termos de um pacto pela governação que vá além de uma conversa entre elites econômicas e políticas.

Reconhecer, com objetividade, o papel da política real (convencional, partidária) na solução das crises pode ser difícil e parecer perigoso para quem se acostumou a ver essa política como menor, supérflua, ou malévola. Mas ao menos enquanto um Zepelin econômico nos sobrevoa e já nos atira petardos, convém parar de jogar pedra na Geni.


(*) Cientista político. Professor e pesquisador da UFBA

**Palestra proferida no XI EAU (Encontro Anual de Usuários) da USUPORT – 23.11.15

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As lições dos italianos (Nelson Paes Leme)

Dois cientistas políticos italianos da virada do século retrasado para o século passado são leituras importantes para se compreender o que está sucedendo no Brasil de hoje. São eles Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, introdutores da chamada “teoria das elites”. Gaetano Mosca, em seu clássico “Elementi di Scienza Política”, de 1896, estabelece os princípios elementares do conceito de elite, vindo do arcaísmo à modernidade, passando pela Antiguidade.

Tal como seu compatriota florentino e renascentista Niccolò Macchiavelli, Mosca divide a sociedade em governantes e governados. Em todos esses momentos históricos, fica patente que a elite é o estamento social que domina a um só tempo o governo (a política) e as forças produtivas, ou seja, a economia. Já Vilfredo Pareto, sociólogo e economista, contemporâneo de Mosca, publicou dois trabalhos decisivos para a compreensão do tema, mais ou menos à mesma época: “Manual de economia política” (1906) e “Tratado de sociologia geral” (1916). Em ambos, trata da interação entre as diversas categorias de elites, dando ênfase às elites políticas e econômicas.

Por que esses pensadores italianos são importantes para o Brasil de hoje? Pelo simples fato de que as elites aqui, historicamente, engendraram um Estado gigantesco e inadministrável, onipresente e absorvente da economia e da política a um só tempo, gerando um presidencialismo de cooptação e favores. E agora veem-se reféns desse aprisionamento desconcertante nas mãos de uma burocracia partidária incompetente e corrupta que se apropriou desse Estado patrimonialista e paquidérmico. A aliança do populismo bolivariano com o fisiologismo do chamado “baixo clero” legislativo tomou de assalto o Estado brasileiro em todos os seus segmentos de forma metastática. E a sociedade não dispõe de meios democráticos imediatos para sustar a sangria hemorrágica das instituições que se debatem nesse caos. Nossas elites falharam e hoje fazem uma autocrítica tardia pelas ruas pintadas de verde e amarelo.

Resultado: o Poder Executivo não governa, o Poder Legislativo não legisla e o Poder Judiciário se atém a um arcabouço jurídico e processual arcaico, gongórico e lento, gerando a permanência da impunidade e a reincidência de crimes sucessivos contra o Erário. A mesma Itália de Machiavelli, Pareto e Mosca, nos lega a Mani Pulite e o juiz Moro, tentando abrir uma senda nessa silva oscura de outro italiano ilustre, o magistral Dante Alighieri, em seu ciclo infernal.

Vale a transcrição na íntegra do resumo e introdução do trabalho acadêmico transcendente do Direito Penal, de autoria do juiz Sérgio Fernando Moro, para se compreender o que virá ainda por aí: “Traça breves considerações sobre a operação Mani Pulite, na Itália, uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa. Discute as causas que precipitaram a queda do sistema de corrupção italiano e possibilitaram a referida operação — entre elas os crescentes custos, aliados a uma conjuntura econômica difícil —, bem como a estratégia adotada para o seu desenvolvimento.

Destaca a relevância da democracia para a eficácia da ação judicial no combate à corrupção e suas causas estruturais e observa que se encontram presentes várias condições institucionais necessárias para a realização de ação semelhante no Brasil, onde a eficácia do sistema judicial contra os crimes de ‘colarinho branco’, principalmente o de corrupção, é no mínimo duvidosa. Tal fato não escapa à percepção popular, constituindo um dos motivadores das propostas de reforma do Judiciário. A denominada ‘operação mani pulite’ (mãos limpas) constitui um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário. Iniciou-se em meados de fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Alberto Trivulzio).

Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros. A ação judiciária revelou que a vida política e administrativa de Milão, e da própria Itália, estava mergulhada na corrupção, com o pagamento de propina para concessão de todo contrato público, o que levou à utilização da expressão Tangentopoli ou Bribesville (o equivalente a 'cidade da propina’) para designar a situação. A operação Mani Pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente.

Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com efeitos tão incisivos na vida institucional de um país. Por certo, tem ela os seus críticos, especialmente após dez anos. Dez suspeitos cometeram suicídio. Silvio Berlusconi, magnata da mídia e um dos investigados, hoje (à época) ocupa (ocupou) o cargo de primeiro-ministro da Itália.Não obstante, por seus sucessos e fracassos, e especialmente pela magnitude de seus efeitos, constitui objeto de estudo obrigatório para se compreender a corrupção nas democracias contemporâneas e as possibilidades e limites da ação judiciária em relação a ela” . Tema para a profunda reflexão das nossas elites. Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal do Brasil.

(*) Nelson Paes Leme é cientista político

Fonte:Nelson Paes Leme (23/11/15)

domingo, 22 de novembro de 2015

A deseducação de Lula (Alberto Aggio)

Lula é um deseducador por excelência. Na semana que passou, em encontro da juventude do PT, ele “lecionou” para os jovens petistas e filopetistas proferindo a seguinte frase: "O ideal de um partido é que ele pudesse ganhar a Presidência da República, 27 governadores, 81 senadores e 513 deputados sem se aliar a ninguém. Mas, muitas vezes, temos que aceitar o resultado e construir a governabilidade". Enfatizo que ele estava discursando para a juventude, aquele setor da sociedade que, no Brasil, costumava-se dizer, que era o “futuro da Nação”.
Há problemas graves na frase de Lula. À juventude se pede geralmente que ela busque a utopia, busque o impossível, desafie, mude. E frequentemente esses anseios são também vocalizados juntamente com a noção de “ideal”; em política seria um “projeto ideal”. Na frase, Lula revela seu ideal: o PT, como qualquer outro partido (se supõe) deveria governar de maneira exclusiva, única e integral o país. O ideal de Lula é um desejo totalitário. Lula prega a utopia do totalitarismo aos seus jovens. Não os “ensina” ou os “educa” politicamente para uma realidade mais complexa, necessariamente mais plural, que deve ter na tolerância e na convivência de diferentes a perspectiva do seu “ideal”. A realidade diversa e complexa deve ceder, na política, a uma única parte, a um único partido.
Contra uma sociedade complexa e diferenciada, Lula apela aos jovens petistas que eles lutem pela conquista da unanimidade. O ideal de Lula seria aquilo que alguma vez Nelson Rodrigues identificou como burrice, afirmando que “toda unanimidade é burra”. Se o argumento vale, pode-se dizer que Lula quer emburrecer a juventude petista, com sua visão totalitária.
No entanto, ele sabe que qualquer partido político deve e deverá governar o Brasil com alianças. Mas o PT nunca entendeu sequer superficialmente essa questão e já deu vivas demonstrações de que lida com ela apenas a partir de critérios de máfia. Para o PT e obviamente para Lula, aliar-se a alguém é submeter o aliado, conquistar súditos e não parceiros. Lula sabe e deseduca sua militância dizendo, no fundo, que a aliança é sempre um desprazer, uma contingência, um mal que se deve suportar até que se possa romper com ela. Lula parece querer formar mais mafiosos do que jovens políticos de vocação democrática.
Um argumento combina com o outro: o totalitarismo como visão de partido único criou no petismo e em Lula, em particular, a imagem e o autoengano de serem o “partido da verdade”, olhando os outros com desconfiança, senão com repulsa, tendo, no fundo que “suporta-los”, já que ainda não tem todo o poder em suas mãos.
Gramsci dizia que Maquiavel havia escrito O Príncipe para aqueles que não sabiam e não lidavam com a política aprenderem como ela realmente funciona. Havia no sábio fiorentino uma intenção didática e pedagógica. Lula deve achar que a política é a imposição da sua verdade, de preferência de maneira totalitária. É isso que ele quer ensinar aos seus jovens. Deseduca a juventude petista para a convivência democrática.

(*) Alberto Aggio, historiador, professor da Unesp e presidente da Fundação Astrojildo Pereira

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Crise? Que crise? (Roberto Beling)

Há um ano, quase véspera de eleição, o então ministro Mantega perguntava: Crise? Que crise?
E coube então ao senador Cristovam Buarque retrucar, provavelmente, sem grande audiência:
"Eu respondo aqui. A crise está na pergunta.
Quando o ministro da fazenda, diante dos indicadores que estão aí estão, pergunta que crise, essa é a maior das crises, porque é a crise de que ele não está vendo a crise.
Quando a gente não vê uma crise, não enfrenta. E quando a gente não enfrenta, não resolve".
Pois é, há  apenas um ano.
E agora, como maquiagem contábil, pedaladas fiscais e marketing quase fascista de João Santana não dão conta de negar a realidade por todo o tempo, e a enganar a todos por tanto tempo, a crise escancarou, rompeu barreiras e barragens e levou ao nosso atual "mar de lama" da economia e ao histórico um dígito de aprovação de Dilma, e a perspectiva de volta do trágico e dramático dois dígitos na inflação brasileira. Será que voltaremos a estocar alimentos? As contas correntes de remuneração diárias? A fazer poupança comprando dólares? A ver os pobres terem de dez a doze dias da sua remuneração mensal engolidos pelo dragão da inflação? A volta dos gatilhos salariais? A indexação dos preços?
Muitos não conheceram essa realidade pré- Plano Real, eu a conheci e não quero mais passar por isso!

domingo, 15 de novembro de 2015

Avanço também é escolha (Alberto Carlos Almeida)




O artigo anterior desta coluna teve como título "Retrocesso também é escolha" e o assunto foi a proposta de corte de R$ 10 bilhões no orçamento de 2016 do Bolsa Família. Argumentei que será um retrocesso se isso vier a ocorrer, pelo simples fato de o Bolsa Família, considerando-se a pirâmide social, favorecer os mais pobres. Naquela coluna, não apresentei alternativas a não cortar os R$ 10 bilhões desse programa. É o que faço agora, e o que motiva o título da coluna de hoje, oposto ao da anterior.

Toda política econômica, sem exceção, define ganhadores e perdedores. Em geral, não conseguimos ver isso acontecer em períodos de bonança, tal como foi nos últimos 12 anos. Contudo, vencedores e perdedores lá estavam. Quando vem a crise, isso é desnudado O que antes era difícil de ser visto fica mais do que explícito. Enquanto havia um vigoroso crescimento econômico, todos tinham a possibilidade de aumentar sua renda, mas alguns segmentos sociais a aumentavam em ritmo maior (os vencedores), enquanto outros aumentavam em ritmo menor (os perdedores).

Sabemos que durante os governos Lula e Dilma a renda dos mais pobres aumentou em velocidade significativamente maior do que a renda daqueles que têm o grau superior completo. Dados abundantes comprovam isso. A diferença de aumento de renda foi resultado de uma política econômica que escolheu os vencedores, os mais pobres, e também os perdedores, os mais ricos. Os instrumentos para que esse objetivo fosse atingido foram decisões econômicas que asseguravam o pleno emprego - ou quase isso -, a política de valorização do salário mínimo e as políticas sociais de transferência de renda, entre as quais o Bolsa Família se destaca. Houve, no período, uma redução significativa do índice de Gini, que é o principal indicador de desigualdade de renda.

A bonança dos governos Lula e do primeiro governo Dilma mascarou diariamente os vencedores e perdedores. Contudo, eles apareceram em pelo menos três episódios, nas urnas, em 2006, 2010 e 2014. Se observarmos os mapas eleitorais, veremos que os mais pobres votaram em maior proporção nas candidaturas do PT e os menos pobres, nas do PSDB.

Os mapas eleitorais, entretanto, não revelam tudo. Em particular quando se trata de segmentos pouco numerosos de eleitores. Os empresários do setor de importação foram, até 2015, vencedores. Junto à elite, há quem conheça antigos industriais de vários setores, como o têxtil, que na última década decidiram reduzir drasticamente a produção interna, ou até mesmo extingui-la, e passaram a importar tecido e roupas da China. Isso serve para ilustrar o fato de que uma política econômica de combate à inflação que resulte em apreciar o real frente ao dólar leva a indústria doméstica a ser perdedora. Por outro lado, a desvalorização do real torna a indústria local vencedora. Neste caso, perdem os interessados em uma inflação baixa.

A entrevista de Ricardo Paes de Barros ao Valor, em 4 de novembro, deixou claro que, em época de crise, as políticas públicas, em particular a econômica, revelam ganhadores e perdedores. O maior especialista brasileiro no tema da desigualdade de renda coloca a questão relativa aos cortes orçamentários do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa de crédito para o ensino superior que atende em sua maioria jovens de menor poder aquisitivo. Em momento de crise, pensa-se em cortar os recursos do Fies, mas não se diz nada sobre cobrar mensalidade aos alunos das universidades públicas que têm condições de pagá-la. Isso é fácil de saber por meio do imposto de renda de seus pais na época em que cursavam o ensino médio. Quando não se cobra de quem pode pagar e cortam-se recursos do Fies, os ganhadores são a classe média alta e os perdedores, em sua maioria, pessoas da classe baixa.

O portal Siga Brasil, do Senado, revela que 103 instituições federais de ensino superior - a grande maioria, universidade públicas -, consumiram em 2014 nada menos que RS$ 34 bilhões no pagamento de pessoal e encargos sociais, valor maior do que é gasto com o Bolsa Família. Sabemos que universidades públicas são capazes de gerar recursos para se tornarem menos dependentes do Tesouro Nacional em seu custeio, o que daria mais margem de manobra no orçamento federal para políticas de transferência de renda voltadas para os mais pobres.

Uma das peças mais importantes e reveladoras, quando buscamos vencedores e perdedores da disputa política, é o orçamento da União - esta peça que, não por acaso, pois estamos em um momento de crise, de escassez, se tornou figura-chave do embate político. No orçamento, podemos achar inclusive o valor em reais das vitórias e derrotas de cada ator político (www.bit.ly/1SE11b0). Lá está a lista de renúncias fiscais, de renúncias de receitas. A magnitude orçamentária do Bolsa Família, por exemplo, é apenas metade da renúncia fiscal do Simples Nacional de comércio e serviços.

É isso mesmo: o governo federal deixará de arrecadar R$ 60 bilhões por efeito da isenção fiscal do Simples Nacional para as empresas de comércio e serviços. Podem-se acrescentar R$ 17 bilhões de renúncia, na mesma rubrica, em favor do setor industrial. Um total, portanto, de R$ 77 bilhões. É possível argumentar que o Simples Nacional permite que empresas que não se regularizariam o fizeram por conta das isenções. Portanto, deveriam ser mantidas. Admita-se o mérito dessa política pública. Entretanto, é preciso que a isenção totalize R$ 77 bilhões? Não poderia ser um pouco menor, sem prejuízo para os objetivos maiores da isenção? Talvez uma isenção da ordem de R$ 50 bilhões fosse suficiente para o sucesso da política. Em tempos de escassez, em tempos de necessidade de equilibrar o orçamento, seria interessante que os pequenos empresários passassem a ter menos isenções.

O anexo IV.11 do orçamento federal é revelador. As entidades educacionais sem fins lucrativos (que não lucram!) gozam de uma isenção fiscal que custará R$ 3,5 bilhões aos cofres públicos em 2016. Adicionalmente, a renúncia fiscal relativa às despesas com educação de pessoas físicas será, em 2016, da ordem de R$ 4,3 bilhões. A renúncia com despesas médicas é maior, atingindo pouco mais de R$ 12 bilhões. Somando-se as duas, que estão no imposto de renda daqueles que podem pagar por educação privada e planos de saúde, chega-se ao patamar de R$ 16 bilhões. As entidades filantrópicas de assistência social também têm um quinhão invejável de benefícios governamentais, algo como R$ 11,5 bilhões por ano.

Todos estão pendurados em recursos do governo, todos têm sua boquinha no Estado e a menor delas acaba sendo a dos beneficiários do Bolsa Família. O mais interessante é a transferência de renda que ocorre de todos os contribuintes para segmentos específicos, como pequenos empresários, classe média alta, entidades que supostamente não buscam o lucro e entidades cuja finalidade é a filantropia.

Aqui estamos de volta à panela de pressão da coluna anterior. Do ponto de vista social e da renda, o Brasil é uma enorme panela de pressão. Não por acaso, a criminalidade é alta e crônica. É claro que há várias causas para a criminalidade elevada, mas uma delas é a acentuada desigualdade social e de oportunidades. Em países mais igualitários, a criminalidade é bem menor do que a nossa. O principal exemplo é sempre o Japão, país que talvez tenha a maior classe média e que tem uma das menores, senão a menor, criminalidade.

Precisamos urgentemente de decisões que restaurem o equilíbrio orçamentário, sob pena de termos que enfrentar uma crise profunda e prolongada, na qual os maiores penalizados serão os mais pobres. Uma forma de buscar tal equilíbrio é por meio de redução das renúncias de receitas tão bem documentadas no orçamento federal. Aí entra a política. É preciso fazer política para que diminuamos os benefícios do Simples Nacional, assim como as isenções do imposto de renda de pessoa física e os privilégios de profissionais liberais que, por cobrarem como empresa, pagam muito menos impostos do que os assalariados com carteira assinada. São apenas exemplos.

Poderiam ser outros segmentos, outros grupos sociais e setores da economia. O fato é que o governo brasileiro pode começar desde já um longo e contínuo esforço para corrigir a geração de desigualdade causada pela estrutura de receitas e gastos públicos. Esse esforço é, acima de tudo, político. Não é um esforço técnico. O diagnóstico e a receita já existem. Agora é preciso persuadir a opinião pública, deputados e senadores da necessidade de caminharmos para desfazer nossa panela de pressão social. Trata-se de um esforço político, porque será necessário dobrar lobbies fortes, como é o caso dos professores de universidades públicas, das associações que congregam pequenos empresários, da classe média alta das grandes cidades. Não falta a Dilma coragem para enfrentar lobbies. É preciso agora agregar a isso a capacidade política de fazê-lo. Eis uma agenda para sairmos da crise.

O livro de FHC
Para quem gosta de política e quer entender como ela funciona, o livro de Fernando Henrique Cardoso acerca dos anos que passou na Presidência é peça de leitura indispensável. Trata-se de algo raro, o líder maior de um país grande em território e população, com uma economia complexa e forte, em um período de reformas e mudanças, documenta e publica o dia a dia de seu trabalho. Cada governante tem seu estilo, seu perfil próprio e o livro deixa claro quais eram as principais características de Fernando Henrique. Por outro lado, há os requisitos da política, o que é preciso fazer para alcançar seus objetivos, coisas demandadas a qualquer governante. O livro revela como foi a interação entre o estilo de Fernando Henrique e os requisitos da política. Repito, independentemente da visão ideológica, trata-se de leitura obrigatória para quem gosta, acompanha e se envolve com a política.

Fonte: Valor Econômico (14/11/15)

menos lenços, mais reforma (Francisco Weffort/Entrevista)





SÃO PAULO - O cientista político Francisco Weffort disse em sua página na internet que os casos de corrupção no PT se encadeiam como lenços de papel. "Quando você puxa um, saem pelo menos três". Nesta entrevista, Weffort critica com severidade o PT, mas não poupa o PMDB, que vê completamente descaracterizado - como também o PT - nem o PSDB, pelo que considera sua incapacidade de fazer uma política coordenada, de partido. Chama os pequenos partidos de "balcões de negócios", ressalvando algumas exceções. "São uma geleia geral, qualquer um pode dizer o que bem entende e fazer o que quiser, porque nada significa nada."

Para Weffort, a reforma política é um tema que foi desmoralizado. "Passou a ser um slogan para quem não quer mudar nada", mas precisa voltar com urgência. Em sua opinião, essa mudança, tanto partidária como eleitoral, será decisiva para superar a judicialização que está ocorrendo na política brasileira. "Mas tampouco você pode permitir que os governantes se dediquem a fazer fortuna com os privilégios outorgados pela representação que têm".

Weffort afirma que, embora não tenha sido o PT quem inventou a corrupção, "no PT ela se tornou sistêmica". Então, "o que se está combatendo no Brasil não é um episódio. É o sistema da corrupção".

Professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Weffort foi ministro da Cultura no governo de Fernando Henrique Cardoso. Como um dos fundadores do PT, esteve muitas vezes ao lado de Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, diz nunca ter se sentido de fato aninhado entre os membros do partido. Como já afirmou em diversas ocasiões, era, na época, "um fulano" saído da rua Maria Antônia (em São Paulo, sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, entre 1949 e 1968) que se aproximava da esquerda. Em outras palavras, sempre se sentiu mais próximo dos intelectuais de São Paulo do que das portas das fábricas de automóveis do ABC.

Fernando Henrique foi seu professor na USP. Trabalharam juntos no Chile. Politicamente, estiveram afastados por mais ou menos uma década. No fim de 1994, Weffort deixou o PT e em 1995 assumiu o Ministério da Cultura. Escreveu mais de uma dezena de livros, entre eles, "O Populismo na Política Brasileira", coletânea de ensaios publicada em 1978.

A seguir, os principais trechos da entrevista que Weffort concedeu ao Valor.

Valor: O senhor é muito crítico com o PT e diz que o partido não tem condições de estar no governo. E os outros?

Francisco Weffort: Os outros não são melhores.

Valor: O senhor acha que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do PMDB, acusado na operação Lava-Jato de ter recebido recursos desviados da Petrobras que estariam depositados na Suíça, tem condições de permanecer no cargo?

Weffort: Mas quem tem?

Valor: Os críticos do PSDB dizem que a única bandeira dos tucanos, atualmente, é o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O que pensa a esse respeito?

Weffort: Na minha opinião, a oposição comete vários erros, mas não é verdade que todo o PSDB esteja batalhando pelo impeachment. Um grupo do partido batalha pelo impeachment. Não creio que seja uma política do partido, no sentido global. Fernando Henrique mesmo tem manifestado muitas dúvidas sobre isso. O Alckmin [Geraldo Alckmin, governador de São Paulo] também. É um pouco mais complicado do que parece.

Valor: Quais são essas complicações?

Weffort: A complicação maior não é tanto o que faz um ou outro. É que eles não fazem nenhuma política coordenada, de partido. Por exemplo, quando surge uma votação que é contrária à Lei de Responsabilidade Fiscal, teriam que defender a lei, que, aliás, foi uma das grandes realizações do governo de Fernando Henrique. Mas isso não acontece.

Valor: O senhor diria que os partidos estão sem rumo?

Weffort: O Brasil já teve partidos ruins, mas nunca tão ruins. O Brasil do período democrático, de 1945 a 64, teve um sistema partidário fraco. Ainda assim, e apesar de todos os problemas que tinha, era um sistema muito melhor que esse. O atual é um dos piores que já tivemos. São dois fenômenos interessantes que aconteceram. Um foi a queda do Muro de Berlim, que arrebentou com as perspectivas da esquerda. A esquerda tinha uma ilusão. A partir da queda do Muro, já não tem mais nem ilusão. O outro fenômeno foi a generalização da globalização. Tivemos um fenômeno da incorporação do Brasil ao sistema econômico internacional extraordinário. Nós somos parte dele. É como se não houvesse outra política econômica senão aquela que vinha sendo realizada por Fernando Henrique e depois por Lula. Não dá para querer voltar atrás, para a política do tempo de Getúlio Vargas. Não temos mais como fazer isso. A política econômica do Brasil, seja lá o governante que for, será uma variante dessa que já tivemos com os últimos dois presidentes. Agora, a presidente Dilma Rousseff quer instaurar um novo modelo? Como? De onde? Isso complicou ainda mais o quadro partidário.

Valor: Por quê?

Weffort: Porque o Executivo tem um peso muito grande nos partidos. E os partidos se descaracterizaram completamente. O PT se descaracterizou. O PMDB se descaracterizou há muito mais tempo. Quanto aos partidos pequenos, com exceção de alguns poucos, são balcões de negócios. Não temos partidos. Temos 36 partidos, mas, como partidos, precariamente, são cinco ou seis.

Valor: E os outros?

Weffort: Pela mescolança, são uma geleia geral, qualquer um pode dizer o que bem entender e fazer o que quiser, por que nada significa nada.

Valor: E como seria possível mudar isso? Com a reforma política?

Weffort: Esse é um tema que foi desmoralizado, mas precisa voltar com urgência. Temos que fazer uma reforma política. Mas se isso ficar na dependência só dos deputados, não vai acontecer. Tem que partir de outros meios. Da imprensa, segmentos da opinião pública. Não é possível mais esse sistema partidário. É preciso ter uma nova lei eleitoral. Precisa ter uma representatividade, uma relação entre eleitor e deputado mais próxima. Não é possível uma cidade como São Paulo, com 12 milhões de habitantes, ter uma administração que vai depender do governo federal. É o que ocorre com o prefeito de São Paulo. Você tem que ter distritos numa cidade desse tipo, como há em outros países, na Alemanha, nos Estados Unidos, na Inglaterra. Temos que adotar um sistema distrital, que pode ser o alemão - que é misto- ou o inglês. Tem que ter uma proximidade maior entre o eleitor e o representante.

Valor: Hoje, o eleitor nem lembra em quem votou...

Weffort: É o que acontece hoje. O eleitor se esquece da pessoa na qual votou. Não sabe quem é seu representante. Na Câmara, dos 513 parlamentares, deve haver mais ou menos 15 ou 20 que são conhecidos. Quinhentos são desconhecidos. Talvez no bairro em que moram alguém conheça. Por isso a importância da eleição distrital.

• "Se há corrupção entre empresas e políticos, tem que punir a corrupção e não eliminar as possibilidades de financiamento"

Valor: Os parlamentares também parecem não se importar com os eleitores que lhes deram o mandato, não?

Weffort: Há um esquecimento de lado a lado. Não é possível um sistema democrático que funcione desse jeito. Por isso essa discussão precisa voltar. Quando Lula falou sobre isso, ou Dilma, ninguém sabia o que propunham. A reforma política passou a ser um slogan para quem não quer mudar nada. Mas, sem dúvida, precisamos fazer a reforma política. Não há nada mais irresponsável que o sistema partidário que temos. Não tem responsabilidade com nada. Hélio Jaguaribe, nos anos 50, falava que o Brasil tinha uma política intransitiva. O representante não se liga com o representado. Chegamos ao máximo da intransitividade política. A política virou um assunto só para eles. Baixo clero, alto clero, ninguém sabe muito bem como aquilo funciona.

Valor: As denúncias de corrupção, que envolvem muitos políticos, não pioram esse quadro?

Weffort Você tem a seguinte equação, hoje: dúvidas na Justiça sobre ações do presidente da Câmara e sobre ações da Presidência da República. Os atores mais importantes estão sob investigação judicial. O último a ser submetido foi Lula, que viu sua família começar a ser investigada. Tudo no sistema político brasileiro tornou-se um caso de polícia. A judicialização que está ocorrendo na política brasileira não nos deixa alternativas, a não ser mudanças. Ou muda o sistema partidário ou então vamos viver muitos anos - além dos que já vivemos - nesse jogo de acusações que paralisam o país. Mas tampouco você pode permitir que os governantes se dediquem a fazer fortuna com os privilégios outorgados pela representação que têm. E é isso o que ocorre. Pode estar ocorrendo no Executivo, pode estar correndo no Legislativo. A imagem que mais se adequa a esta crise é a do pântano. Não estamos atravessando um deserto, mas um pântano. É um lodo. No deserto, você tem algum tipo de orientação, pelas estrelas, pelo Sol. No pântano, fica difícil qualquer orientação. Você anda, anda e, como não vê nada, volta para o mesmo lugar. É o que acontece conosco.

Valor: O senhor acha que o fim do financiamento privado para campanhas pode ajudar a melhorar esse quadro?

Weffort; Isso é demagogia. Se há corrupção entre empresas e políticos - que é o que vemos - tem que punir a corrupção e não eliminar as possibilidades de financiamento. Inclusive, por que a salvação desse tipo de situação é sempre o Estado, o Tesouro Nacional. O financiamento público vai tirar recursos de onde?

Valor: Todos os partidos no Brasil, em maior ou menor grau, guardam pouca semelhança com a época em que foram criados. Ou mesmo com as propostas que os justificaram. O PT não seria mais um?

Weffort: O PT se desnaturou de maneira completa. Não é que deixou de ser um partido. Lula, que construiu o PT, perdeu o carisma. Ele é uma figura política importante. Mas hoje em dia aparece pouco, quer se resguardar. O PT se desmoralizou completamente. Era a UDN de macacão, como dizia Brizola. Hoje não é UDN nem tem mais macacão. E todos os símbolos que o PT tinha hoje são meramente formais.

Valor: O senhor, assim como outros fundadores do PT, faz pesadas críticas ao partido. Por quê?

Weffort: Honestamente, nunca pensei que o PT chegaria a esse ponto. Até a campanha das diretas, as condições da participação política eram bastante restritas e, naquela fase inicial, o PT tinha que lutar sobretudo para sobreviver. Era um dos partidos mais fiscalizados. Quem daria dinheiro ao PT? O PT não tinha nada, não tinha governadores, nada. Só os militantes contribuíam, davam dinheiro. Num certo momento, o PT tinha dois, três deputados. E as condições de trabalho dessas pessoas eram precárias. Entre eles estavam o José Genoino, o José Dirceu, condenados pelo mensalão. O que aconteceu? Quando? O partido, volto a dizer, se desnaturou. E, à medida em que foi chegando aos órgãos do Executivo, piorou. E mudou fortemente quando chegou à Presidência da República. Solidificou a ideia de que os fins justificam os meios, que é injustificável. Na política, como em tudo na vida, os fins já aparecem nos meios.

Valor: O senhor diria que a chegada do PT ao poder e, em especial, à Presidência da República, contribuiu para a desestruturação das ideias e convicções do partido?

Weffort: O poder corrompe. E o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. A proximidade do Estado no Brasil não é a proximidade de um poder absoluto, mas é a proximidade de um poder muito grande para segmentos muito frágeis da sociedade. A chance de corrupção aparece aí como uma probabilidade muito grande. É muito difícil entrar num sistema desses sem se corromper. Para evitar isso, precisaríamos de um sistema institucional muito forte. E não temos.

Valor: Entre os que apoiam o governo há quem diga que um dos méritos de toda esta crise é mostrar que as instituições no Brasil funcionam. Que trabalham com independência, e prova disso seriam as investigações da Polícia Federal. Antes dos governos petistas, dizem essas pessoas, a corrupção não aparecia por que não era investigada. O que acha?

Weffort: Isso é uma desculpa. É um álibi para a corrupção. Não foi o PT quem inventou a corrupção. Mas no PT ela se tornou sistêmica. O Brasil sempre teve uma certa margem de corrupção. Mas nunca foi nesta escala. Analistas internacionais falavam do México, da Argentina. Hoje, o Brasil deixa esse pessoal longe. O que se está combatendo no Brasil não é um episódio. É o sistema da corrupção.  

Fonte: Monica Gugliano/Valor Econômico (14/11/15)

sábado, 14 de novembro de 2015

Se desinflan los populismos de la región (Loris Zanatta)

Se equivoca quién piense que América Latina esté a punto de pasar de una etapa política dominada por la izquierda a una dominada por la derecha. Aun suponiendo que el eje derecha – izquierda sea útil para entender la historia política, cosa que siempre me ha parecido de un simplismo desarmante, sin duda no sirve para entender lo que está sucediendo hoy en día. Es un eje que tiene sentido en los sistemas representativos pluralistas, donde hay un amplio consenso sobre la institucionalidad democrática y donde la derecha y la izquierda son antagónicas, pero se reconocen legitimidad mutua.

No tiene sentido, en cambio, donde impera el populismo, que por su naturaleza pretende monopolizar el espacio de la legitimidad política y, por tanto, absorbe en su interior las funciones que suelen desempeñar la derecha y la izquierda: en esos casos, no casualmente, suelen chocar un frente populista y uno antipopulista.

Que así sea, de todos modos, lo demuestran los hechos: si la izquierda enfatiza el igualitarismo, no se ve cómo se pueda argumentar, con los datos en la mano, que los países gobernados por la “izquierda” en la última década sean más igualitarios de los países gobernados por la “derecha”. La verdad es que la pobreza se redujo en Bolivia como en Colombia, en Ecuador como en Peru, en Brasil como en México. Y lo mismo pasa con la desigualdad, que se ha reducido en todas partes, aunque mucho menos de lo que era de esperar.

En fin: no se ve ninguna relación directa y empírica entre una mayor equidad y el color ideológico del gobierno de turno. En todo caso, cabe señalar que, ahora que el ciclo económico favorable ha quedado atrás, las economías abiertas de la Alianza del Pacífico están demostrando, en general, ser más robustas y dinámicas que las nacionalistas y autárquicas de los países que bordean el Atlántico. Entonces, para entender el nuevo clima que según algunos indicios parecería abrirse paso en América Latina, mejor es utilizar como parámetro la naturaleza de los regímenes políticos. Al hacerlo, se verá que el amplio apoyo de que han disfrutado hasta ahora los regímenes populistas se está desinflando y que está creciendo la demanda de democracias normales, sin adjetivos.

Para empezar, ¿cuáles son las indicios del nuevo clima? El primero es el ocaso del kirchnerismo: cualquiera sea el resultado del balotaje, pocos imaginaban que su ciclo no se cerraría con un paseo triunfal sobre una red carpet, y se parecería en cambio a un via crucis. Via crucis cuya siguiente estación, para los populistas, podría ser aún más dolorosa cuando en diciembre los venezolanos vayan a votar: todas las encuestas dan al chavismo en sus mínimos históricos y al haber sido el chavismo el motor de la propuesta populista en toda la región, su débâcle electoral sonaría como una sentencia de muerte.

Más firmes en su posición de dominio absoluto están Rafael Correa y Evo Morales, con sus indudables peculiaridades. Pero las recientes elecciones a nivel local les han enviado señales preocupantes: cuando el candidato no es el líder carismático, su partido sale muy maltrecho. Ahora Morales planea perpetuarse en el poder mediante la modificación de la Constitución. Es un déjà vu patético. Atención al efecto boomerang. Sobre todos estos gobiernos ha gravitado siempre, como padre tolerante y cómplice, el de Brasilia. Pero la salud del PT está ya muy gastada y el ciclo inaugurado por Lula en 2002 corre un serio riesgo de agotarse, dejando muchos huérfanos políticos a sus alrededores.

Se dirá que otros líderes no disfrutan de mejor salud, que Michelle Bachelet vuela de crisis en crisis, que la popularidad de Ollanta Humala está por el piso, que Juan Manuel Santos se juega todo en la mesa del proceso de paz. Todo esto es cierto. Pero ninguno de ellos gobierna en nombre de una supuesta revolución: en esos países se cuestiona la calidad del gobierno, no la naturaleza del régimen político. Donde gobierna el populismo es al revés. En fin, son indicios, nada más que indicios. Pero hasta hace un tiempito atrás, esos indicios no existían.

Dicho esto, ¿qué es lo que distingue el populismo de un régimen democrático normal? Después de todo, excepto en Cuba, elecciones competitivas se celebran hoy en toda América Latina y todas las constituciones protegen los derechos individuales, la separación de poderes, el imperio de la ley. Por lo menos en palabras. ¿Donde está el problema? Dejemos que lo explique Nicolás Maduro: “no entregaría la Revolución”, dijo asumiendo la posibilidad de una derrota electoral. Y luego explicó: “pasaria a gobernar con el pueblo en unión cívico militar”. Traducido: si los electores no me votan ejerceré el poder con mi gente; las normas sólo se aplican si gano. Brutal pero claro.

Hay Pueblo y pueblo para los populistas, que, en su núcleo esencial, se reducen a esto: la creencia de que su Pueblo, por mucho o poco que sea, es moralmente superior a los demás pueblos, pues es la encarnación de ideales más elevados que las mismas instituciones democráticas, Justicia, Solidaridad, Igualdad, Identidad Nacional y así sucesivamente. Es en el nombre de ese Pueblo imaginario, mítico, que el populismo pretende la unanimidad; y que se niega a ver en la victoria de sus adversarios un hecho fisiológico de la democracia. De ahí que la crisis del populismo desestabiliza el régimen político, donde no habría otra cosa que una normal alternancia en el gobierno.

¿Cómo fue que unos gobiernos que tenían el viento en sus velas y las cajas repletas de dinero, como los de Chávez y los de los Kirchner, terminaron en una situación tan desesperada? ¿Por qué hoy sufren derrotas y amenazan con arrastrar pueblos enteros a peligrosas polarizaciones ideológicas? Las razones abundan: mala gestión, arbitrariedad, corrupción, recesión. Pero hay algunas más profundas que otras y del todo nuevas. La primera es que los populismos de hoy son híbridos: tienen el mismo impulso totalitario de sus antepasados, pero no pueden, como hacían aquellos, acabar con cualquier oponente. Los populismos de hoy viven, aunque incómodos, en la democracia, lo que les obliga a tolerar más pluralismo del que quisieran, hasta tener que competir y correr el riesgo de la derrota. Y no sólo eso, sino que, mientras en el pasado el ciclo populista era a menudo interrumpido por la intervención de las fuerzas armadas, que potenciaban así el mito de los populistas como custodios de la soberanía del pueblo, ahora ese riesgo ya no existe. Por suerte. El populismo puede así completar su ciclo y exhibir sin más excusas los frutos de su gobierno, en general nada atractivos. Si hubo un tiempo en que, al ser derrocado, el populismo dejaba flotando el sueño de una esperanza reprimida, ahora deja ropa sucia y platos rotos a la vista de todos.

Una segunda razón, no menos importante, ayuda a explicar por qué los populismos corren hoy el riesgo de convertirse en huérfanos del pueblo en cuyo nombre actúan. Se la podría llamar “la gran ilusión” de los populismos. Su pretensión de ejercer el monopolio del poder mediante la invocación de un pueblo mítico, homogéneo e indiferenciado, choca contra la realidad, que nos muestra cómo los países de la región se vuelven cada día más hetérogeneos y plurales. El fuerte crecimiento de la última década, en particular, ha acelerado en toda América Latina el avance de unas clases medias más independientes, exigentes, secularizadas e instruídas. A sus ojos, la típica mezcla populista de caudillismo, amiguismo, monólogos en cadena, demagogia barata aparece cada vez más primitiva. Son fenómenos que evocan más el pasado hispánico que una sociedad moderna, justa y eficiente. Se puede intentar justificar el nombramiento de la hija de un ministro a la presidencia de un banco pescando en la retórica progresista, pero al final todo el mundo entiende que está frente a un caso del más desvergonzado nepotismo. No por esto, claro está, los populismos tienen sus días contados: fueron, son y seguirán siendo una poderosa alternativa a la democracia liberal. A la cual, sin embargo, se ofrece ahora una nueva oportunidad. ¿Sabrá aprovecharla mejor que en el pasado? Esto es ya otro tema.

Fonte: Cipol/Centro de Investigaciones Políticas (La Nación/Argentina).