segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Carcaça de uma sociedade (José Padilha)





A tragédia carioca, maldito fruto de instituições públicas que convertem miséria em violência


Por que o Rio de Janeiro é uma cidade tão violenta? Por que tem um número tão alto de homicídios e de assaltos todo ano? Por que grande parte da capital carioca, sobretudo as áreas mais carentes, está dominada por grupos armados? Por que a história do Rio é marcada pela repetição de acontecimentos traumáticos na área de segurança pública, acontecimentos que chamam a atenção do mundo?

Vigário Geral e Candelária explicitaram a violência absurda da polícia carioca. O sequestro do Ônibus 174 demonstrou a precariedade dessa polícia e deixou à mostra a violência de um ex-menino de rua que preferiu “tentar a sorte” a se entregar ao Estado que o torturou a vida inteira. O brutal assassinato de Tim Lopes mostrou que os traficantes cariocas não são Robin Hoods do morro, mas criminosos que utilizam métodos brutais. A tortura de jornalistas de O Dia por milicianos deu origem à CPI que revelou máfias de bombeiros, policiais civis e policiais militares no comando de comunidades carentes, com o apoio de vereadores, deputados estaduais e até deputados federais. E, finalmente, o ataque sistemático do tráfico a vários pontos da cidade, e a reação subsequente da polícia, “desentocou” um verdadeiro exército armado na Vila Cruzeiro e o expôs para todo mundo ver.

Afinal, por que o Rio de Janeiro é assim?

Uma resposta, a da esquerda naïve, postula que a violência no Rio de Janeiro decorre da miséria e da luta de classes, e diz que para combatê-la é necessário acabar com as diferenças sociais, distribuir a renda e educar a população. Há também a resposta da direita naïve, que reduz a violência do Rio a um problema de repressão e diz que ela se explica pela falta de firmeza da polícia e das leis.

As duas respostas estão erradas, contradizem fatos conhecidos.

A primeira não dá conta de cidades que têm índices de desenvolvimento humanos (IDH) piores do que os do Rio de Janeiro e índices de violência menores. A segunda está na contramão da história, que demonstra que incrementos na repressão podem piorar os índices de violência. Foi assim no governo Marcelo Alencar, quando o Estado adotou a remuneração faroeste e passou a premiar os policiais em função do número de criminosos que “abatiam”. A partir daí, o número de autos de resistência, de policiais que declararam ter matado criminosos que resistiram à prisão, cresceu e continua absurdo até hoje.

Muitas vezes, o passo mais importante para encontrar a solução de um problema é enunciá-lo corretamente. Ônibus 174, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2 são uma tentativa de enunciar o problema da segurança pública do Rio de Janeiro a partir da premissa de que a violência carioca resulta, em grande parte, da atuação direta de instituições públicas que convertem miséria em violência. À luz dessa premissa, a violência urbana está relacionada à falta de educação e à concentração de renda, mas a relação não é direta e simples, é intermediada por fatores complexos. Acredito que no Rio o mais importante desses fatores seja o efeito perverso que certas organizações administradas pelo Estado têm sobre parte da população.

Ônibus 174 conta a história de Sandro Rosa do Nascimento, um menino que fugiu de uma tragédia familiar e foi viver nas ruas do Rio. Sandro se tornou um pequeno criminoso para sobreviver. Como menino de rua, viu representantes do Estado (policiais militares) matar crianças como ele na Candelária, foi preso e tratado com extrema violência pelo sistema socioeducativo do Estado, foi espancado e obrigado a conviver com traficantes e criminosos muito mais violentos que ele no Instituto Padre Severino e deu entrada no sistema prisional carioca, onde o Estado o colocou em uma cela superlotada e insalubre. O torturou por anos.

A tese de Ônibus 174, exemplificada pela trajetória de Sandro, é muita clara: as organizações que deveriam reeducar os pequenos criminosos os convertem em criminosos violentos. Não fui eu quem formulou essa tese, diga-se de passagem. Foi o próprio Sandro, que a gritou em altos brados da janela do ônibus para quem quisesse ouvir.

Em Tropa de Elite tentei dizer que a mesma coisa acontece no âmbito da polícia. O Estado trata muito mal os indivíduos que se propõem a trabalhar nas organizações policiais. Paga pouco, treina mal, e os submete a uma cultura organizacional militarizada e kafkiana, que tolera a corrupção e estimula a violência. Como disse o capitão Nascimento: “Quem quer ser polícia no Rio de Janeiro tem que escolher: ou se omite, ou se corrompe, ou vai pra guerra”.

Tanto a violência e o desrespeito aos direitos humanos do capitão Nascimento quanto a corrupção desenfreada do capitão Fábio são forjadas no mesmo lugar, pela mesma organização. Certa feita um governador do Rio de Janeiro disse a mim e ao jornalista Rodrigo Pimentel que Tropa de Elite era um filme demasiado pessimista. Em sua opinião, a PM do Rio não era tão corrupta quanto pensávamos. Pelas suas contas, um terço dos policiais do Rio é corrupto, outro terço é honesto, e o restante variava conforme o comando. Se a PM do Rio tem mais de 13 mil homens corruptos, então o problema não são seus homens, é a organização. Os policiais do Rio de Janeiro são vítimas da PM.

A tese de Tropa de Elite, instanciada na trajetória do aspirante André Mathias, é igualmente óbvia: as instituições que deveriam combater a criminalidade convertem boa parte das pessoas que trabalham nelas em policiais corruptos e violentos. Fazem isso com grande eficiência e em altas taxas.

Acredito que cada um dos casos simbólicos que listei, de Vigário Geral à tomada da Vila Cruzeiro, ilustra essa tese. Cada um deles envolve traficantes, policiais corruptos e policiais violentos cuja subjetividade e comportamento criminoso foram moldados por instituições do Estado.

Fiz um terceiro filme, Tropa de Elite 2, para tentar dizer por que o Estado funciona assim. Em Tropa de Elite 2 o capitão Nascimento é promovido a subsecretário de inteligência e obrigado a lidar com as conexões que existem entre a polícia e a política. São essas conexões, muitas vezes calcadas em interesses e lógicas eleitorais, que criam e mantêm as instituições que descrevi nos filmes anteriores.

Voltando ao mundo real, deixo claro que apoio as UPPs e sou favorável a esse projeto do governador Sérgio Cabral. Reconheço que ele é fundamental para recuperar o território que o tráfico tomou. Acredito que o Rio não pode recuar no primeiro confronto. Todavia, acho que o projeto das UPPs é apenas meio projeto, e não um projeto inteiro. Onde está a reforma da polícia? Não a maquiagem, mas a reforma concreta, o programa eficiente de seleção e treinamento de policiais, o programa de capacitação profissional, o pagamento de salários dignos, o seguro saúde e o auxílio-educação para as famílias dos policiais? Onde está a corregedoria que funciona? Onde está a reforma do sistema prisional? A capacitação dos agentes penitenciários? A reforma do sistema socioeducativo? A boa formação dos seus operadores?

O projeto das UPPs é fundamental para a sobrevivência do paciente, mas ignora as causas da doença. Na ausência de uma real reforma das instituições que mencionei, o esforço e o engajamento da população carioca no projeto das UPPs pode ser em vão. Afinal, quem vai ocupar as comunidades libertadas? A mesma polícia que conviveu com o tráfico de drogas na cidade por mais de 30 anos, o viu crescer e se expandir e o deixou se instalar. O projeto das UPPs não é um projeto da polícia, é um projeto do governo. O que garante, no médio ou no longo prazo, quando este governo sair e outro entrar no lugar, que as UPPs não se tornarão áreas de milícia?

Eu me lembro, na ocasião do Ônibus 174, que o então presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, foi à TV prometer um plano nacional capaz de reformar as instituições ligadas à segurança pública em todo o Brasil. Teve dois mandatos para cumprir a promessa, e não o fez. Depois veio o atual presidente Lula, do PT. Apresentou um Plano Nacional de Segurança bem bolado, escrito pelo professor Luiz Eduardo Soares. Estamos ao final do seu segundo mandato e o plano continua engavetado. Finalmente, não vamos esquecer o PMDB, do governador Sérgio Cabral, que em ambos governos nada propôs de significativo na área da segurança. A verdade é que nos últimos 30 anos nossos políticos ficaram vendo inocentes morrer. Lavaram as mãos.

O que aconteceu no Rio de Janeiro nessa semana foi significativo. Creio que vai acontecer de novo se o governador insistir com as UPPs. E, como a Copa do Mundo e a Olimpíada estão aí, não há outra alternativa viável. Os confrontos serão inevitáveis e recorrentes. Espero que esses confrontos sirvam para, além de libertar comunidades carentes, forçar o governo federal a entrar de cabeça na luta contra o crime e implementar um plano de nacional de segurança sério, capaz de resolver de uma vez por todas o problema da segurança pública no Brasil.


José Padilha é cineasta e diretor de "Ônibus 174", "Tropa de Elite", "Tropa de Elite 2", "Garapa" e "Segredos da tribo"
(O Estado de São Paulo, caderno Álias, 28/11/10)

"PT mudou a ponto de ficar quase irreconhecível"

entrevisa com Wendy Hunter


Wendy Hunter, da Universidade de Austin (EUA), escreveu livro sobre transformações do partido

Para pesquisadora, Lula teve papel central na "normalização" da sigla, que inclui escolha de Dilma como candidata


Uirá Machado

SÃO PAULO - A cientista política Wendy Hunter, professora da Universidade de Austin, Texas (EUA), acaba de escrever um livro sobre as transformações por que passou o PT entre 1989 e 2009. Para ela, o partido "mudou a ponto de ficar quase irreconhecível". Além de diferenças que ela chama de mais óbvias, como a moderação ideológica e as alianças que o partido atualmente faz ("inimagináveis há 20 anos"), Hunter menciona a própria candidatura de Dilma Rousseff à Presidência, uma "novata" na sigla. Para Hunter, o presidente Lula teve papel central na condução das mudanças, mas ela não vê as alas radicais conquistando mais espaço no governo Dilma. A seguir, trechos da entrevista concedida por e-mail.

Folha - A sra. acaba de publicar um livro em que estuda as transformações por que passou o PT desde 1989. Quais as principais mudanças?
Wendy Hunter - O PT mudou a ponto de ficar quase irreconhecível em relação ao que era na década de 1980. Um dos aspectos mais óbvios diz respeito à moderação ideológica, que pode ser percebida não apenas nos seus programas mas também em suas políticas de governo. As alianças que o PT faz hoje seriam inimagináveis há 20 anos. Tome como exemplo os dois últimos vice-presidentes: José Alencar (PL) e Michel Temer (PMDB). A atual posição do PT em relação ao PMDB mostra bem o quanto um processo de "normalização" ocorreu.

A eleição de Dilma Rousseff também faz parte desse "pacote" de mudanças?
Sim, é um ponto importante. O simples fato de que a candidata à Presidência neste ano foi alguém que ingressou no partido há pouco tempo -dez anos- é testemunha dessas mudanças. Além disso, há diversos candidatos que não vieram do sindicalismo ou dos movimentos sociais, por exemplo.

Lula foi a principal figura do PT durante todo esse tempo. Qual sua participação nesse processo de transformação?
Lula teve um papel central na administração e na promoção de mudanças no PT. Transformações programáticas precisam encontrar apoio não só no eleitorado, mas também na legenda. Lula foi crucial ao encorajar o partido a ouvir mais o eleitorado e suas aspirações. Ao mesmo tempo, foi sensível às lutas e às dinâmicas internas do PT e soube conduzi-las de forma a apoiar um caminho moderado.

O que podemos esperar do PT durante o governo Dilma? As tendências mais radicais ganharão mais espaço?
Acho que o PT está bem firme nas mãos dos moderados. Se olharmos as eleições internas do partido, veremos que não parece haver muito apoio às opções radicais, o que sugere que boa parte da base tornou-se moderada junto com os líderes. Os movimentos sociais também parecem bastante desmobilizados. Com a penetração de programas como o Bolsa Família, organizações como o MST já não conquistam adeptos como antes. Dilma, com suas tendências estatizantes, provavelmente não reduzirá o tamanho do Estado, o que encolheria os postos do partido.

As transformações foram positivas ou negativas?
Um pouco de cada. De um lado, o sistema político perde por não ter um partido que se apegue à bandeira de um governo mais ético. Parece preocupante que a eleição de Dilma tenha se baseado tanto no uso da máquina pelo presidente Lula. Por outro, a transformação do PT se deu junto com e contribuiu para a consolidação da democracia no Brasil. O PT no poder continuou e aprofundou tendências de redução da pobreza e da desigualdade social. O ponto é: talvez um governo de esquerda mais radical pudesse ter feito mais, mas as conquistas da esquerda moderada serão mais sustentáveis.
RAIO-X WENDY HUNTER

FORMAÇÃODoutora em ciência política pela Universidade da Califórnia, Berkeley (EUA)

CARGO
Professora de política comparada do Departamento de Governo da Universidade de Austin, Texas (EUA)

PUBLICAÇÕES Autora de "The Transformation of the Workers" Party in Brazil, 1989-2009" (2010), e "Eroding Military Influence in Brazil: Politicians against Soldiers" (1997); coautora de "Leftist Governments in Latin America: Successes and Shortcomings" (2010)
(Folha de São Paulo, 28/11/10)

Droga de combate (José de Souza Martins)

Droga de combate

José de Souza Martins


 
De como a desordem da sociedade da favela processa a cultura do medo e da dúvida, na qual a derrota da população torna-se óbvia: no conformismo, na resignação, até na subserviência eleitoral

Que guerra é essa? Uma semana inteira de luta armada na região metropolitana do Rio, com dezenas de veículos queimados, dezenas de mortos, feridos e presos e muitas vítimas inocentes, segundo os especialistas em conceitos e os leitores de manuais, não é, no que aos bandidos se refere, terrorismo nem tem conotação ideológica e política. Do lado da polícia e das Forças Armadas, trata-se de combate ao crime comum. Definição difícil de entender.

Para as pessoas comuns, crime ainda é o do assaltante, do ladrão, do agressor, do assassino, do sujeito socialmente destrutivo. Fica muito difícil entender a repressão à criminalidade organizada e territorializada, bem armada e onipresente, como repressão a batedor de carteira. Falta alguma coisa na doutrina e na prática entre nossa antiquada repressão institucionalizada à criminalidade e a obsoleta concepção de combate militar ao inimigo externo.

Qualquer um entende que quando um território cai sob tutela de um poder paralelo, como está acontecendo no Rio, com economia própria, exército próprio, e justiça própria, que resiste a medidas de policiamento e enquadramento por parte do Estado, já não estamos em face de crime comum. O tráfico de drogas, através de seus grupos armados, proclamou a independência política e territorial de favelas do Rio e, portanto, o Brasil já não é o Brasil dos mapas e livros escolares. Quando uma autoridade chega lá, no fundo, chega por concessão do tráfico. As autoridades federais e as do Estado estão interpretando como se fosse de menos o que é de mais.

O regime militar, por muitíssimo menos, combateu os que à ditadura se opunham como inimigos internos a serviço de potências estrangeiras. Mas o tráfico, sim, está a serviço de difusa potência estrangeira, ameaça a segurança nacional, compromete nosso modo de ser e ameaça o futuro do Brasil ao comprometer a saúde e as identidades das novas gerações, roubando-lhes pelo vício a lealdade que deveria ser a base da nação, o sentimento de pertencimento que nos faz pátria e povo. O drogado é reles cidadão do tráfico, um condenado a ser ninguém.

Para a população é muito difícil compreender o uso de tanques de guerra para combater esse inimigo interno e ao mesmo tempo ser tolerante e benevolente com os consumidores de drogas, fonte alimentadora do tráfico e de todos esses poderes antirrepublicanos e antibrasileiros. Sem cortar a veia que nutre com o dinheiro bem ou mal ganho do viciado os poderes crescentes do tráfico, há risco de que a movimentação destes dias não fique nos limites de mera demonstração de força do governo. Se não houver uma política coerente e de conjunto que desvende e desmantele as conexões entre o usuário de drogas e o produtor, o fornecedor e o distribuidor, em poucos dias as ligações criminosas se restabelecerão.

Os bandidos sairão fortalecidos porque terão aprendido as novas táticas dos que lhes oferecem combate, como, aliás, tem acontecido até aqui. Ao longo das últimas décadas aprenderam técnicas de organização corporativa, transformaram a mentalidade delinquente em ideologia política e mística social, adotaram padrões empresariais de gerenciamento de dinheiro e de criação de infraestrutura econômica, logística e militar. Criariam redes de intimidação e de apoio. Criaram outro país. Como, então, não se trata de terrorismo nem de política?

Sem uma política abrangente de combate ao tráfico, continuaremos nessa lenga-lenga de espetaculares demonstrações periódicas de poder pelas quais se tenta manter o tráfico nos limites estritos do comércio de drogas. Desde a década de 1990, o Exército é chamado a ocupar os morros cariocas, quase sempre quando ocorre um evento internacional no Rio ou se tem algum em perspectiva, como agora a Copa e a Olimpíada. Mas nesses casos a intervenção é para garantir a segurança dos visitantes, dos que passam, mas não ficam. Os nativos, a população local, especialmente a dos morros, continuarão sujeitos às balas perdidas da política perdida. Terão que continuar fingindo que está tudo bem, que a guerra não é com eles, saindo para o trabalho sem saber se vão voltar, voltando sem saber se vão sair novamente na manhã seguinte. A desordem da sociedade da favela está criando uma cultura, que é a cultura do medo, da falta de esperança, da falta de certeza, a cultura da dúvida e do duvidoso. Nenhuma sociedade se constitui com base nessas referências precárias. A derrota da população é óbvia, no conformismo, na resignação e até na subserviência política e eleitoral. Isso anestesia mais do que droga.


José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.(Estado de São Paulo, caderno Álias, 28/11/10)

Solidariedade ao RJ (Inês Simon)

Política de Segurança Pública acertada no RJ

Muito acertada a integração das ações policiais para restabelecer a paz nas comunidades do RJ, antes tomadas pelo poder do tráfico.
Esse sucesso não foi gratuito, casual. É fruto de uma vontade política e compromisso cotidiano para que a velha ordem mudasse para melhor. É possível ver a dedicação dos governos e polícias em superar as dificuldades, que desde sempre impediram a integração das forças de segurança com a sociedade, para de fato estabelecer a paz e a valorização da vida com dignidade, como temos visto agora no RJ.

É motivo de comemoração ver os moradores felizes reconhecendo a proteção que o Estado lhes deveu por várias décadas de abandono intencional. Há oito  anos o governo federal vem se esforçando para estabelecer o pacto federativo para tratar das questões de Segurança Pública e esta ação atual no RJ mostra que os esforços enfim deram certo. Sem o comprometimento do governo federal, governos estaduais e governos municipais não se pode implantar politica pública de segurança eficiente.

A nova proposta de Segurança Pública com Cidadania inaugurada pelo governo federal e abraçada com compromisso pelo governo do RJ é um exemplo concreto a ser seguido pelos demais governos estaduais. Venceu velhos preconceitos da exagerada autonomia das instituições de polícia e dos papéis engessados dos governos. Respeitando a natureza e função de cada instituição e trabalhando uma política nacional construída de forma democrática através do diálogo institucional, chegou-se à ação madura no RJ que vemos nos últimos dias.

Os mais conservadores sempre clamaram pelas forças armadas nas ruas em casos de crise de violência como órgão interventor sobre as polícias locais. Claro que nunca deu certo, só gerou banhos de sangue, pois a natureza das forças armadas é guerrear contra inimigos em campos isolados das cidades. Quem conhece a topografia e movimentos sociais das cidades são as polícias locais e seus governos, qualificados para o diálogo e intervenções em áreas urbanas, cheias de moradores e trabalhadores. Estes não podem se omitir de sua função em momento algum, de paz ou de conflito, para que não se chegue ao extremo da negligência que chegaram com as comunidades pobres do RJ.

A integração das polícias estaduais com as forças armadas e polícias federais foi muito madura e positiva da forma como aconteceu nesta ação na Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. Tem sido contruída nos últimos 3 anos e mostrou que chegou à maturidade nesta última semana. Com as formas armadas atuando em apoio à ação planejada do Estado e em parceria com o governo federal, cada ente federado e instituição é respeitado e aproveitado em suas responsabilidades e capacidades.

É muito gratificante ver um capitão do BOPE falar, calmamente, ao receber um traficante entregue pelo pai, que  "Estamos aqui com este rapaz, que trabalhava para o tráfico na comunidade, e estamos levando este cidadão para que possa tomar outro numo na vida criminosa que levava até agora". Sem humilhação, sem violência. É a nova polícia comprometida com a cidadania e os direitos humanos, formada pelo novo modelo de segurança pública implementado no país.

É claro que só a ação firme de repressão das polícias, com apoio das forças de segurança nacionais, não é suficiente para trazer de volta a paz nestas regiões conflagradas. O Estado precisa se manter com os serviços essenciais e as ações de fortalecimento da cidadania com implantação de mais escolas de qualidade, habitações dignas, lazer, cultura, esportes, saúde, trasportes, geração de trabalho e renda, creches, etc. E este conjunto de ações também integra esta política nacional de segurança pública.

É muito bom ver a imprensa nacional compreendendo o novo modo de fazer segurança pública e explicando de forma clara para população sentir-se protegida. Inclusive se esforçando para deixar de usar palavras preconceituosas e trocando por outras não ofensivas, tais como "favelas" por "comundades", "bandidos" por "jovem que trabalha pro tráfico". Mas é muito desagradável ver que parcela da imprnesa ainda clama por sangue, através de seus discursos narrativos cheios de sensacionalismo que só servem para espalhar o medo e o terror na população e em nada contribuem para o fortalecimento da cidadania, que é o seu papel primoridial.

Mais positivo ainda é ver a participação das redes sociais de Internet na cobertura, acompanhamento e crítica aos acontecimentos, em tempo real. Um bom exemplo é a equipe de jornalismo comunitario @vozdacomunidade, criada há cinco anos e composta por jovens de 11 a 17 anos, moradores da comunidade da Vila Cruzeiro. Em apenas dois dias eles conseguiram multiplicar sua audiência de 180 para 20 mil seguidores (até às 22h do dia 28/11) e passaram a pautar a grande mídia e a informar o Brasil e o mundo. Diante deste, e outros resultados similares, a política pública de comunicação deve passar a pensar também em fomento para estas iniciativas de utilidade pública real.

Garantir a retomada do território pelo Estado, com o respeito primordial à vida das pessaos envolvidas (moradores, policiais e criminosos) é a ação fundamental no momento. Mas, diante da fiscalização da sociedade pela imprensa e pelas redes sociais, cabe às forças de segurança mostar em público, no primeiro momento possivel, a destruição desta grande quantidade drogas e armas apreendidos, para que não tenham o risco de retornar por caminhos tortos novamente aos agentes do tráfico.

Apresento minha solidariedade ao povo das comunidades marginalizadas do RJ e aproveito para parabenizar a ação integrada das forças de segurança naquele estado. Temos companheiros que atuam na construção da cidadania nas comunidades, há décadas tomadas pelo poder do tráfico, e também nas polícias e governos. A estes estedemos nossa admiração e solidariedade e desejamos muito sucesso no restabelecimento da paz e da cidadania na cidade maravilhosa, lindo cartão postal do Brasil.

Inês Simon - ES
jornalista, especialista em Segurança Pública

sábado, 27 de novembro de 2010

Zumbis da representação política (Marco Aurélio Nogueira)

Zumbis da representação política

Marco Aurélio Nogueira



Depois do triste espetáculo de mediocridade que exibiram durante a campanha eleitoral, os partidos políticos brasileiros estão obrigados a prestar contas e esclarecer dúvidas que estão a martelar a cabeça dos cidadãos. Para que servem, o que pretendem fazer, o que podem acrescentar à vida política do País?

Não se esperem cenas de imolação em público. Partidos não são seres dispostos ao sacrifício ou à autocrítica. Funcionam como motores focados num objetivo que subordina tudo a si: o poder, sua conquista e seu uso. Quando perdem, dizem que não foi bem assim; quando vencem, que tudo foi mérito seu e resultado do descortino dos dirigentes.

Partidos são mais como o PMDB, que, nem bem terminadas a campanha e as comemorações, já arrumou novos amigos e constituiu um bloco parlamentar para interferir na montagem do próximo governo, largando pela estrada o PT e a presidente Dilma, até então tidos como seus parceiros incondicionais.

Os partidos ficaram assim: criam problemas para os aliados do coração, traem em nome da amizade, pelas costas, como se tudo fosse normal e natural. Questionados a esse respeito, esclarecem que só agiram com o intuito de colaborar.

Partidos são como boa parte dos políticos: cuidam de seus interesses. Fazem como o prefeito Kassab, que de juras de amor incondicional ao candidato presidencial do PSDB passou à posição "realista" de cortejar o PMDB, em busca de uma vaga mais qualificada nas próximas eleições.

Mas, mesmo que sejam personagens melífluas obcecadas por poder e influência, partidos são estruturas vivas que querem se reproduzir. Sabem quando estão em risco. Percebem quando os cidadãos os convertem em elemento da paisagem e motivo de escárnio ou piada. Sentem que precisam fazer algo para não naufragarem e não perderem espaço político, prestígio ou poder de veto.

Podem então tomar duas atitudes: ou maximizam os recursos de poder de que dispõem para manter alguma força e ensaiar uma "repaginação", ou vão de cabeça erguida para a berlinda, reconhecem os erros e se esforçam para ressurgir. Se a primeira atitude costuma ter sucesso no curto prazo, é trágica no tempo largo, pois cristaliza o que existe de pior nos partidos e os condena à condição de mortos-vivos. É na segunda atitude, portanto, que estão as melhores esperanças e perspectivas.

A época atual não tem sido generosa com os partidos. Não os favorece como estruturas abrangentes, dedicadas à conquista do poder e à organização da sociedade, à agregação de consensos e interesses, à formulação de projetos e ideias. Em vez disso, a época os desconstrói, fazendo que se convertam em zumbis da representação política, que só respiram quando agarrados ao Estado.

A época está tomada pela recriação acelerada e incessante, que os partidos não conseguem acompanhar nem decifrar. Rouba-lhes substância, porque os obriga a se concentrarem no processamento de informações de baixa qualidade e porque quebra os vínculos com classes e movimentos que deram força e sentido aos partidos de massas até os anos 80, mais ou menos. Os partidos de hoje estão afastados da população e dos cidadãos ativos. Não têm militantes, só funcionários. Fazem coisas, mas ninguém sabe bem quais são.

Brigam entre si, mas não deixam claro o que os diferencia. Gastam enorme energia para executarem o básico. Consomem montanhas de recursos e consomem-se nisso, ficando sem tempo e foco para cuidar da própria identidade, da relação com a sociedade, do diálogo com a cultura e a ciência.

A campanha eleitoral de 2010 foi uma vitrine de tudo isso. Nossos partidos estão em sintonia com a grande turbulência que atingiu os partidos e os sistemas partidários no mundo todo. Têm suas singularidades, que correspondem à nossa modernidade capitalista. Ainda praticam, por exemplo, formas arcaicas de clientelismo e mandonismo, fortes em nossos grotões, e não se perturbam em seguir cardápios assistencialistas e paternalistas quando chegam ao governo. Mas são muito piores do que jamais foram.

O que farão agora?

Não dá, evidentemente, para equiparar os desafios do PT e do PMDB, que endossam os louros da vitória, com os do PSDB e do DEM, que mal digeriram a derrota sofrida. Mesmo entre estes dois últimos há boas diferenças, pois não perderam do mesmo jeito nem com a mesma intensidade. Não é à toa que os peessedebistas falam em "revitalização" e os liberais não conseguem disfarçar profunda crise de identidade.

Todos, no entanto, incluídos os menores, terão de esclarecer se têm algo a oferecer. Se quiserem trabalhar para fortalecer a democracia e introduzir padrões dignos de distribuição de renda no País, não poderão mais ficar em silêncio programático, desprezando a inteligência dos cidadãos e evitando os temas fundamentais da vida, da política e da sociedade. Não poderão mais fingir que tudo vai bem quando estão no governo e que problemas só existem porque as oposições são más e incompetentes. Terão de levar a sério a complexidade da época, a gravidade dos problemas nacionais e as dificuldades do Estado democrático atual.

Sem reduzir ou ocultar suas diferenças, estão chamados a celebrar um pacto de novo tipo. Não para dar condições de governabilidade a quem quer que seja ou preparar as próximas eleições, mas para recuperar a dimensão republicana e democrática do Estado. Não para entregar seus discursos ao marketing e ao mercado eleitoral, mas para recuperar e dignificar o valor da palavra, da argumentação e do convencimento racional. Não para tomar posse de cargos e espaços públicos como se fossem coisas particulares, mas para zelar por sua integridade, lisura e eficácia.

Precisamos de um pacto contra a mediocridade, seja no sentido da falta de mérito, seja no sentido da mesmice ordinária. Se os partidos fizerem algo nessa direção, mostrarão que podem voltar a ter vida plena. Farão com que ganhem todos, e não somente os que captarem mais votos nas próximas eleições.

Professor titular de Teoria Política da UNESP.
(Estado de São Paulo, 27/11/10)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O risco dos tanques

 

César Felício

 

Os tanques ingressando em cena ontem no Rio de Janeiro podem ser o símbolo de uma inflexão da crise de segurança na cidade. O sociólogo Claudio Beato, colaborador das administrações tucanas em Minas Gerais, e o juiz aposentado Walter Maierovitch, integrante do governo Fernando Henrique que tornou-se um crítico ácido das políticas de segurança tanto do PSDB quanto do PT, divergem em muitas coisas, mas convergem no essencial: se o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB) resistir à tentação de fazer um pacto informal com o crime organizado, precisará também se acautelar contra a belicização do problema.

Uma guerra contra o crime organizado pode ser perdida, como está ocorrendo no México, onde o foco da ação é militar. Aliás, são abundantes os exemplos internacionais da pouca eficácia de tanques em conflitos urbanos. Ou pode ser razoavelmente bem sucedida, como se dá na Itália, onde se investiu em inteligência policial, legislação penal e a vigilância sobre as penitenciárias. No caso do Rio, já se sai com a enorme desvantagem de não se ter o governo federal no centro das ações, o que coloca como primeira missão para o governador pressionar Brasília a participar de um problema impossível de ser tratado no âmbito estadual estrito.

A militarização do combate aos cartéis no México, com a presença de 50 mil soldados do exército agindo em lugar da polícia, está na matriz do banho de sangue promovido por narcotraficantes naquele País.....................................
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Faltou ao México uma política de controle social nos territórios reconquistados ao crime, como se propõem fazer as UPPs. Mas a reação das facções criminosas à disposição do governo para o confronto levaram à perenização do conflito, um caminho que o Rio se arrisca a seguir, até porque o problema fluminense se divide em duas camadas: a do narcotráfico de base territorial, do Comando Vermelho e dos Amigos dos Amigos (ADA), com suas cúpulas instaladas dentro das cadeias, que está no centro dos acontecimentos dos últimos dias, e a das milícias que ajudaram a expulsar o primeiro grupo dos morros.

"As milícias por enquanto não estão sendo tocadas. Estes grupos possuem um enraizamento na polícia e na política muito maior que o das facções, que estão acuadas. Quando forem combatidas, levarão o nível de conflito a uma estrutura muito mais alta", comentou Beato, que coordena o CRISP, o núcleo de estudos de segurança pública da UFMG. Na opinião de Beato, comete-se no Rio um erro de estratégia simétrico ao do México. Naquele País, Calderón teria se equivocado ao querer atacar os cartéis e reformar o aparelho policial ao mesmo tempo. " Uma das mais célebres maneiras de não fazer nada é se propor a fazer tudo", comentou. No Rio, Cabral pecaria pelo extremo gradualismo: "UPP não substitui uma política de segurança. E neste sentido o governo do Rio não toma iniciativas. É apenas reativo. Há outras maneiras de agir além de botar tanques nos morros", disse.

Possivelmente um dos mais atuantes especialistas brasileiros em crime organizado internacional, o ex-secretário nacional Antidrogas Walter Maierovitch, lembra que um dos chefões sicilianos, Bernardo Provenzano, conseguiu ficar 43 foragido da Justiça sem jamais sair da Sicília. "Foi a prova mais cabal de como bandos de matriz mafiosa tinham o controle territorial e social das áreas em que atuavam", comentou. Tanto em Nápoles quanto no Rio, o crime se divide em uma miríade de facções que se articulam no momento em que são acuadas. Esta demarcação territorial, em sua opinião, aproxima o Rio do sul da Itália e o afasta do México.

Desde 1982, o País investiu na mudança de regras do sistema prisional e penal, e a desunião entre os grupos criminosos fomentou delações que culminaram na condenação de 360 mafiosos em 1987. Muitos magistrados e agentes do aparelho institucional do Estado, como Dalla Chiesa, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, foram fuzilados ou voaram pelos ares em atentados promovidos em represália pelas quadrilhas.

O resultado final, segundo Maierovitch, é que tornou-se inviável a comunicação entre as bases criminosas dentro e fora dos presídios, além da fonte financeira ter diminuído drasticamente. "Nos últimos dez anos, as divisões especializadas da Polícia e da Justiça desfalcaram o patrimônio da máfia em 3 bilhões de euros. No Brasil apreendem-se drogas e armas sem dinheiro e todo mundo acha normal", comentou Maierovitch.
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César Felício é correspondente em Belo Horizonte

Fonte: Valor Econômico (26/11/10).

Acabou a euforia sucessória e a crise mundial se impõe (Carlos Lessa)

Os debates sucessórios não mencionaram sequer a crise mundial. Antes da posse da nova presidente, a crise mundial se impõe na mídia brasileira. A virulenta manifestação de crise mundial em 2008, a partir da implosão da bolha financeiro-imobiliária nos EUA se propagou urbi et orbi e está solidamente instalada.

Economia é história, no sentido de transformação. A dimensão monetário-financeira da crise mundial é fruto do padrão-dólar instalado em 1971, quando foi decidido, por aquela nação, o cancelamento da cláusula ouro. Um dólar, baseado em confiança, passou a valer... um dólar! Objeto de desejo universal pois, ao dominar as transações de comércio internacional, passou a ser o item principal das reservas externas de toda e qualquer moeda nacional. Isso é mais importante para a geopolítica americana do que a bomba atômica. Representa a hegemonia de uma nação que emite (e é solicitada a emitir) dívida disputada por todas as outras nações. O Produto Interno Bruto (PIB) americano é um quarto do mundial, porém sua dívida desejada é lastro mundial. As emissões sucessivas de títulos do Tesouro americano confirmaram a inexistência de um ativo monetário de risco.

Quando explodiu a bolha, em 2008, quebraram bancos e houve a desvalorização substancial do patrimônio das famílias americanas, endividadas com lastro hipotecário de suas residências e imóveis de negócios. Apesar do imenso socorro do Federal Reserve (o Fed, banco central americano), os bancos americanos sobreviventes têm nos seus ativos mais de US$ 1 trilhão em papéis duvidosos.

Isso produziu duas mudanças de comportamento: as famílias americanas querem poupar e restringir o consumo, e os bancos não querem emprestar às famílias e aos pequenos e médios negócios. Dada a prevalência do dólar no monumental movimento cambial internacional, os bancos americanos estão se deslocando para ganhos em operações cambiais. A conduta poupadora das famílias americanas é o fundamento de uma crise de demanda mundial. Na zona do euro, os baixos juros, inspirados na Alemanha, levaram os bancos europeus a facilitar o crédito em euros em todas as dimensões.

Porém, a dívida soberana denominada em euros das nações europeias enfrenta também dois problemas: o Banco Central Europeu (BCE) não é o Fed e não absorve esses papéis. Com a crise de demanda, as economias europeias foram afetadas e os elos nacionais mais fracos começam a quebrar (Grécia, Irlanda, Portugal e outros), o que reduz a confiabilidade nos bancos europeus. Toda a zona do euro está em crise.

A economia japonesa está soldada à chinesa (mais de 50% do comércio exterior japonês é com a China). A China está monetariamente soldada aos EUA - tem a maior parcela de títulos do Tesouro americano. As filiais americanas atuantes na China (mais de 3 mil) completam o elo do G-2.

Os US$ 600 bilhões do presidente Obama, bem intencionado em reativar a economia, irão alimentar um processo monetário internacional doente e cada vez mais consciente dos riscos dos ativos em dólar, porém sem saber o que colocar no lugar.

A crise de demanda mundial irá atingir o Brasil. Nós não fazemos o controle dos investimentos estrangeiros no Brasil. Foi nossa política atrair capital cigano com a oferta de juros elevados; acumulamos grandes reservas de dólares e não fizemos investimento público na escala necessária para elevar a pífia taxa de 18% de investimento em relação ao PIB. Estimulamos o rentismo empresarial e um endividamento familiar maciço.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem o mérito de repor em discussão a questão do investimento em infraestrutura como chave para a sustentação da economia. Porém é quantitativamente insuficiente e tem tido uma implantação administrativamente difícil e financeiramente curta. No momento, informa a imprensa, os restos a pagar superam em muito os investimentos do PAC em 2010. Somente 22% do autorizado a ser dispendido em projetos em 2010 foram gastos. Dos R$ 32 bilhões autorizados para o corrente ano, dos restos a pagar de 2009 (R$ 26 bilhões), foram pagos 11,6%. Entretanto, ainda faltam ser pagos cerca de R$ 14 bilhões de gastos do PAC em 2009.

É fácil compreender porque a presidente eleita já sinalizou a reinstalação da CPMF. Além do mais, é visível que a inflação tem crescido, apesar da política paralisante de juros altos: entre 1995 e 2008, a inflação no Brasil superou a média mundial.

O retorno dos grandes bancos sobre o patrimônio líquido está na faixa de 25% ao ano. Esse desempenho bancário não é pró-crescimento de emprego e renda, o que condena, a longo prazo, a política de endividamento familiar. Uma elevação robusta do salário mínimo real ajudaria a sobrevida da bolha brasileira, porém o atual governo vê com preocupação fiscal a elevação salarial implícita no debate sucessório.

O Brasil tem que adotar controles de entrada de capital estrangeiro especulativo. E tem que estimular o investimento privado por uma ampliação significativa do investimento em infraestrutura. É necessário colocar um freio em um endividamento familiar perigoso, que deveria ficar circunscrito à compra da casa própria e de matérias para a construção em mutirão.

A nova presidente tem que ter coragem de alterar a receita dos anos Lula. Façamos votos para que as emanações da crise mundial não tornem a vida da nova presidente e a dos brasileiros um inferno.


Carlos Francisco Theodoro Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.Fonte: Valor Econômico (26/11/10)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Fruto da tortura deve ser repudiado (Mauro Malin)

Estão cobertos de razão, no caso dos documentos da ditadura sobre a atuação política de Dilma Rousseff, os que impugnam liminarmente tudo que foi obtido sob tortura. Ora, como podem os jornalistas construir reportagens com base no que ficou registrado judicialmente após a militante presa ter sido submetida a torturas? O Estado de S.Paulo, na edição de sábado (20/11), abordou o assunto com propriedade. Tanto na reportagem de Tatiana Fávaro como no comentário de Marcelo Godoy, o contexto em que foi produzida a papelada é colocado em relevo. A Folha de S.Paulo e o Globo, entretanto, tomaram ao pé da letra o legado dos esbirros.

Os três jornais, infelizmente, valorizam o fato de que a torturada tenha revelado isso ou aquilo. Cobrar de um torturado que se mantenha em silêncio (isso era chamado "ter bom comportamento") foi expediente stalinista inaugurado no Brasil pelo PCB.

Muito anos atrás, fiz na França um trabalho universitário sobre a política do Partido Comunista Italiano. Não encontrei, na considerável literatura compulsada, nenhuma "cobrança" em relação a "comportamento" de torturados. Nem na Itália, nem na França, nem em qualquer outro lugar onde agiram a Gestapo e outros organismos de repressão política. Lembro-me de ter comentado várias vezes o assunto com meu amigo Armenio Guedes, veterano dirigente comunista, e ter obtido sempre a mesma resposta: "Depois da guerra, ninguém na Europa se mostrou interessado em discutir quem falou ou não falou sob tortura. Isso não faz sentido."

Lição para as atuais e futuras gerações

A tortura, escreveu um sobrevivente da Gestapo e de Auschwitz, Jean Améry, "é o mais horrível evento que um ser humano pode reter na memória". Quando, portanto, jornais transcrevem "revelações" escritas por algozes, descem aos porões enlameados que eram o universo de eleição dos torturadores.

Em relação ao que Dilma Rousseff possa ter feito ou deixado de fazer ao longo de sua militância, remeto a tópico que escrevi em agosto sobre reportagem da revista Época. Chama-se "Revista ignora a anistia".

O melhor aproveitamento que pode ser dado à documentação sobre Dilma Rousseff é usá-la para denunciar a tortura ‒ ainda em pleno uso contra "presos comuns" ‒ e a repressão política. Essa é a lição que precisa ficar para as atuais e futuras gerações de brasileiros.
Fonte:
OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA


Movimento UMA NOVA VILA VELHA

Outra Cidade é Possível?

O seminário Políticas Públicas em Vila Velha, realizado ontem a noite, foi um sucesso. Roberto Garcia Simões (Ufes) e Rafael Simões (UVV), por mais de duas horas, debateram com um público que lotou completamente o auditório da CMVV.

O evento reuniu várias gerações de militantes políticos e sociais. Gente de partidos, ativistas culturais, lideranças comunitárias, parlamentares e estudantes garantiram um caráter plural, suprapartidário e não personalista ao Seminário. 

A repercussão positiva indicam a viabilidade do Movimento e a importância da proposta no contexto de uma Vila Velha submetida a uma gestão pública fracassada, com forte marca de atraso e fundada em políticas clientelistas e fisiológicas.  

Nesse espaço, vamos publicar a síntese das contribuições dos palestrantes do seminário, bem como divulgar outras atividades do Movimento.

O Movimento uma Nova Vila Velha realizará, ainda esse ano, um novo seminário. Se for de seu interesse  receber os informes sobre as nossas  atividades  envie seu email para cadastro em nossa mala direta. Para contatos: robertobeling@gmail.com 

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os 79 porquinhos (Rudolfo Lago)

“O legal da história de ter aceito com bom humor o apelido de “Três Porquinhos” é que a turma de Dilma mostra que não tem medo de Lobo Mau. Mas que está disposta a enfrentar a cara feia com um sorriso nos lábios”
Se disputassem um prêmio de simpatia, o presidente Lula venceria sua sucessora, Dilma Rousseff, de lavada. Todo mundo que conviveu mais de um minuto com a nossa presidente eleita sabe que ela não é lá muito de sorrisos gratuitos. Mas é engraçado como as circunstâncias e outras características dos indivíduos podem às vezes mudar as coisas. Apesar de toda a sua fama de fechadona e antipática, Dilma está se saindo muito mais bem humorada e tolerante com as cotoveladas do jogo político partidário do que Lula jamais foi.

O presidente nunca escondeu sua falta de paciência com os rapapés da etiqueta política. O jogo de encenação, de frases de duplo sentido, de insinuações e gestos comuns à política partidária e parlamentar nunca foi a praia de Lula. Tanto que, como ele mesmo sempre disse, Lula achou um porre a sua experiência como deputado. Foi nela que Lula concluiu que há no Congresso pelo menos “300 picaretas”, e foi pensando assim que ele presidiu. A existência do mensalão é um pouco decorrência disso. Algo assim: “Se o que esses caras querem pra votar conosco é dinheiro, vamos dar dinheiro pra esses caras e tocar a nossa vida”. Lula cresceu no meio sindical – de luta política mais direta, sem rapapés. Além disso, é extremamente vaidoso, coisa que só cresceu com seus acertos e o aumento da popularidade. Assim, ficar fazendo acenos e tentando decifrar recados de políticos sempre esteve longe das suas preferências.

Quando se trata de reagir a esse jogo político, Dilma tem se mostrado menos refratária às suas regras do que foi Lula nestes oito anos. A forma como ela e sua equipe de transição incorporaram na semana passada o apelido “Três Porquinhos” é um claro exemplo disso. Lula fica irritado até hoje quando chamam o avião presidencial que comprou de “Aerolula”, uma piada óbvia. Dilma e sua turma deram um nó naqueles que cunharam o apelido. Não há nada mais matador para um implicante do que você rir também do apelido que ele inventa.

Na hora em que Dilma e seu triunvirato – o presidente do PT, José Eduardo Dutra, e os deputados José Eduardo Cardozo e Antônio Palocci – aceitaram com bom humor o apelido de “Três Porquinhos”,  acabou a piada. E acabou também o que a piada representava nas entrelinhas: uma crítica do PMDB ao fato de Dilma ter se cercado apenas de petistas para formar o Estado Maior da sua equipe de transição. Sem cara feia, o recado está dado: “Olha, PMDB. É assim que será, e pronto”.

Em vez de ficar irritada com o apelido, Dilma demonstrou entender qual é o jogo que se inicia. Uma situação que ela terá que ter muito jogo de cintura para administrar, caso não queira ver toda a sua costura política desandar. Em vez dos “Três Porquinhos”, Dilma sabe que tem que se preocupar mesmo é com os “79 porquinhos”. Tomemos emprestada a bancada que o partido elegeu para a Câmara no ano que vem para designar o PMDB.

Os “79 porquinhos” jogam pesado. Não têm medo de Lobo Mau. Não constroem casas de palha nem de madeira. Ao embarcar como fizeram na campanha de Dilma, os “79 porquinhos” conseguiram algo que nunca obtiveram em todos estes anos de país redemocratizado: uniram-se, praticamente todos, num só projeto. Uma coisa dessas,no PMDB,não se faz por decreto. Nem Michel Temer, nem José Sarney, nem ninguém, tem poder, num partido que é uma confederação de interesses regionais, para impor nada. Houve, então, um consenso, um entendimento conjunto desses caciques de que a aposta valia a pena. E de que a aposta valia a pena para os interesses particulares de cada um.

Por isso, o PMDB não hesitará um minuto em lutar por cada espaço que conseguir obter no novo governo. No mínimo, exigirá um governo de fato com lógica de coalizão. Mas não ficará apenas nisso. Disputará cargo por cargo. Pasta por pasta.

Na cúpula peemedebista, a conclusão final para a história do blocão que o líder do partido na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN), tentou formar para tentar tirar do PT a primazia da escolha do presidente da Câmara foi de que o movimento foi um tiro no pé. Mas  o blocão ter surgido demonstra qual será a disposição dos “79 porquinhos”. E se Dilma não tivesse agido rápido para neutralizá-lo teria problemas lá na frente.

Se os “79 porquinhos” desistirem de engrossar na disputa pela presidência da Câmara, vão exigir uma compensação. E assim será, sempre. O legal da história de ter aceito com bom humor o apelido de “Três Porquinhos” é que a turma de Dilma mostra que também não tem medo de Lobo Mau. Mas que está disposta a enfrentar a cara feia com um sorriso nos lábios. Na política, parece ser uma prática recomendável.
fonte (Congresso em Foco 23/11/10)

Principado novo e bola de cristal (Luiz Werneck Vianna)

Para onde vamos depois que se findar esse longo entreato entre as eleições e a posse da candidata eleita, quando inauguramos principado novo? Por ora, de ciência certa, somente sabemos que o mar não vai virar sertão e nem o sertão vai virar mar. Dantes, em igual circunstância, os futuros presidentes programavam longas viagens, sob os mais variados pretextos, a fim de que, distantes de pressões, pudessem montar sua equipe de governo e definir os rumos estratégicos e as medidas de impacto com que imporiam suas marcas no exercício da Presidência.

Menos afortunada que eles, a presidente eleita não deve contar com esse trunfo antes de ser entregue à voragem dos acontecimentos que estão destinados a surpreendê-la nos quatro anos do seu mandato, que já nascem sob o signo de uma dúvida letal: programa-se para um mandato ou para dois? Trata-se de um governo tampão, sob a guarda de uma criatura que apenas ocupa por um tempo determinado um lugar reservado ao seu criador, aplicada à leitura, mesmo que criativa, de uma pauta já conhecida, ou de uma presidente que vai se aventurar nos mistérios da composição de uma peça nova? Mais que inédita na moderna república brasileira, essa má disposição dos fatos impõe à dramaturgia que ora entra em cena com o mandato de Dilma Rousseff um elemento estranho ao especificamente político em razão das conotações pessoais envolvidas, e que podem interferir no curso de suas ações.

De outro lado, já se pode saber que a parte dura do núcleo governamental será constituída por quadros formados na administração do mundo sistêmico, nele consagrados por seus desempenhos na condução das finanças, da indústria, dos serviços e do agronegócio, com os quais vai se dar sequência ao atual movimento de expansão e aprofundamento capitalista do país e da sua inserção no sistema mundial. Nesse núcleo não deverá haver lugar privilegiado para operadores especializados na leitura do fato político, como foram José Dirceu e Franklin Martins, aplicados monotematicamente a questões relativas à conservação e à reprodução do poder. Se tal linha de interpretação estiver correta, o perfil do próximo governo acabará confirmando o que foi o tom predominante na campanha eleitoral: mais próximo da agenda da administração do que da política.

Nesse sentido, as políticas públicas orientadas para o social deverão ser objeto de uma forte racionalização, o que deve importar uma maior autonomia na sua implementação diante dos partidos que compõem a ampla base aliada de sustentação congressual do governo. Tanto o cenário interno como o externo, sobretudo este, apontam para essa mesma direção, em que deveremos ter um governo de economistas, a começar pela própria presidente, em que os temas da macroeconomia devem sair dos gabinetes dos doutos para se tornarem linguagem corrente entre os partidos e os políticos. A oposição será obrigada a criar um sucedâneo de um gabinete das "sombras", apto a desafiar, no mesmo idioma, os rumos governamentais.

Pois, de fato, a economia-mundo, na rica expressão do sociólogo Immanuel Wallerstein, entrou em crise sistêmica com a assim chamada guerra cambial, parecendo nos querer devolver a uma cena internacional de marcação hobbesiana. Ressurge, ao menos no plano da retórica, o primado do princípio da soberania nas relações entre as nações sobre as concepções e práticas, como as do Direito Internacional e de suas instituições, que, nessas últimas quatro décadas, visaram moderar a sua influência nas relações entre Estados. Os mercados nacionais, em um tempo de globalização, ameaçam regredir a práticas abertas ou veladas de protecionismo, sob o risco de converter uma crise cambial em uma guerra comercial efetiva.

Os resultados da última reunião do G-20 deixaram patente a afirmação do princípio da soberania sobre as considerações assentadas em princípios de cooperação internacional. A política impõe-se à economia, com os países que lideram o mercado mundial instituindo, como recursos estratégicos para a defesa de suas hegemonias, políticas monetárias de desvalorização de suas moedas nacionais. Nesse cenário, não há lugar para a livre movimentação de capitais, especialmente, como anota Paulo Nogueira Batista Jr, quando "o principal emissor de moeda internacional [os EUA] adota políticas monetárias ultraexpansivas" ("O Globo", 13/11/10).

Será sob os auspícios dessa crise, que Dilma entrará em cena, tendo que fazer várias escolhas de Sofia, uma vez que não terá como contemplar a todos, marca política do governo a que sucede, inclusive por que os constrangimentos sistêmicos a que o país está exposto lhes chegam, em grande parte, do novo estado de coisas reinantes no mundo e que imperativamente exigem respostas adequadas. Nesse contexto, inevitável as pressões por algum nível de ajuste fiscal e pela reforma trabalhista e tributária - essa última já anunciada pela notícia de que o governo Dilma se vai empenhar em medidas de desoneração da folha salarial -, contrapondo interesses que, sob os mandatos de Lula, coexistiram em boa paz.

Assim, a espécie de concordata entre o mundo sistêmico e a política, sempre sob a arbitragem de Lula, que bafejou o governo que ora se conclui, deve encontrar seus limites. As políticas de defesa da atividade industrial e do agronegócio, de difícil composição diante da crise cambial, consistirão, entre outras agendas conflitivas pesadas, em um duro teste para ela. A previsão faz parte da análise política, e, no caso, parece razoável supor que a liberação de tantas tensões represadas no interior do Estado, que agora tendem a se desviar para o terreno livre da sociedade civil, venha a ativar os movimentos sociais e a animar em um impulso de baixo para cima os partidos, principalmente os de esquerda.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. (Valor Econômico 22/11/10)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ateu proscrito Antonio Gonçalves Filho)

 Ateu proscrito


Antonio Gonçalves Filho – O Estado de S.Paulo

21/11/2010

O inglês Philip Pullman é alvo de fundamentalistas cristãos por criar gêmeo de Jesus e subverter os Evangelhos

Nos evangelhos, Jesus Cristo é um só, mas no novo livro do inglês Philip Pullman, mais conhecido como escritor infantil e autor do best seller A Bússola de Ouro, Jesus e Cristo são gêmeos de caráter e metas diferentes. Em O Bom Jesus e o Infame Cristo (Companhia das Letras), Jesus é um orador carismático e acredita firmemente que o reino de Deus está próximo. Cristo, por outro lado, é um homem sem escrúpulos, que usa o talento do irmão para programar o futuro, isto é, organizar uma Igreja dentro dos padrões burocráticos, por concluir que os homens, sendo como são, só entendem a linguagem mundana – a do dinheiro, especialmente.
Pullman, ateu confesso, não esconde que desejou provocar a Igreja com o livro. A literatura infantil do escritor, aliás, é explicitamente anticlerical. O escritor altera passagens dos evangelhos que conferem a Jesus a autoridade de Deus e reinterpreta parábolas do Novo Testamento num gesto assumidamente voluntarioso. Em entrevista exclusiva ao Caderno 2, Pullman diz que usa os evangelhos como quiser. Fé, como diz, é irracional e as histórias contadas pelos evangelistas revelam uma discordância abissal entre eles.
Acusado por teólogos de sacrificar a verdade histórica pela ficção, Pullman recebeu cartas indignadas de fundamentalistas cristãos, que o condenaram ao inferno. Debochado como convém à tradição dos ateus ingleses, ele se comportou como o Fausto de Marlowe diante de Mefistófeles, dizendo que não tem medo do inferno, pois já viu coisa pior.
O desprezo de Pullman pela religião institucional está registrado em muitos dos seus livros, principalmente na trilogia da qual faz parte A Bússola de Ouro. O escritor sugere que o cristianismo foi fundado numa fraude, o que justificaria as liberdades tomadas por ele ao tratar da vida de Cristo, como, por exemplo, explicar a ressurreição num registro naturalista ou questionar sua identidade divina. Sobre esse e outros temas, Pullman fala na entrevista a seguir.
Alguns críticos religiosos insistem que seus livros para crianças são anticlericais. Você pensava na Igreja quando escreveu a trilogia da qual faz parte A Bússola de Ouro?
Sim, mas não especificamente numa Igreja. Minha crítica era direcionada a todas as Igrejas que usam seu poder político, quero dizer, o poder de dizer às pessoas como elas devem viver suas vidas, o poder de puni-las se elas agem errado, segundo as regras da Igreja, o poder de semear guerras, de mandar gente para prisão ou simplesmente executá-las. Há muitos religiosos que exercitam esse tipo de poder nos dias de hoje.
Você foi condenado ao inferno por cristãos fundamentalistas contrários ao seu livro O Bom Jesus e o Infame Cristo. Você recebeu mesmo cartas ameaçadoras? Por que será que as pessoas ficam tão chocadas quanto um escritor ou um cineasta abordam a condição humana de Jesus, como Kazantzakis e Pasolini fizeram no passado?
Recebi, sim, algumas cartas, mas elas não eram exatamente ameaçadoras – seus autores não foram além do que me condenar ao inferno. Eles podem realmente me mandar para lá, mas, em primeiro lugar, devem me fazer acreditar no inferno. Acho que muitas pessoas se chocam quando são lembradas de que Jesus era um homem. Não posso sentir pena de pessoas que se deixam manipular de uma forma tão estúpida.
Um de seus opositores, o religioso Gerald O”Collins, escreveu um artigo dizendo que você omitiu passagens dos evangelhos ou simplesmente modificou episódios contados pelos evangelistas para criar sua própria parábola sobre Cristo. Você tentou ser fiel aos Evangelhos ou simplesmente ignorou a história para contar a versão que acredita ser a verdadeira?
Pobre padre O”Collins. Deve estar terrivelmente confuso. Ele acha que escrevi uma novela histórica e, mais que isso, que tem o direito de ditar leis sobre como uma novela histórica deve ser escrita. Esta é a minha história e eu a conto do jeito que quiser. Não tenho de me reportar ao padre O”Collins nem pedir sua permissão para escrever. Imagino que ele pensa que ainda exista o Index Librorum Prohibitorum e esteja no comando da coisa. De qualquer modo, se alguém tentasse seguir rigorosamente o que os evangelhos dizem, se meteria numa bela encrenca, pois um evangelho contradiz o outro o tempo todo.
Sobre O Bom Jesus e o Infame Cristo há uma crítica comparando seu livro a uma ficção histórica publicada há alguns anos, Quarentena, de Jim Crace, cujo tema são as tentações de Cristo no deserto. Por que Jesus é um personagem que fascina tanto escritores ateus?
Gosto da obra de Jim Crace, mas não li Quarentena. Jesus é um personagem original, notável, poderoso e não admira que tantos escritores tenham ficado fascinados por ele. Uma das coisas que tornam interessante escrever sobre Jesus é justamente a profusão de lacunas nessa história. Não temos ideia se era alto ou baixo, do que ele gostava de comer no café da manhã, ou se sua voz era suave ou grave.
A Inglaterra virou um território de ateus, os mais combativos em toda a Europa. Por que é tão importante lutar conta a Igreja cristã num mundo cheio de outros fundamentalistas religiosos?
Eu escrevo sobre o cristianismo porque fui criado nele. Sou ateu, mas sou um ateu cristão e um ateu protestante, um ateu da Igreja da Inglaterra. Nasci cristão e cresci dentro dessa fé. Adoro as histórias, os hinos e a arte que vieram do cristianismo. Não poderia, portanto, escrever sobre outras religiões, pois não me sentiria em casa se o fizesse. Eu detesto com todas as minhas forças qualquer religião que se considere acima das críticas.
Você acusou o papa Bento 16 de promover o desrespeito aos direitos humanos. Por que acha que a Igreja Católica tenha seguido um caminho reacionário nos últimos anos?
As autoridades da Igreja Católica sempre estiveram do lado do poder secular. Roma sempre gostou de quem tivesse armas e dinheiro. Quando há alguns anos algum padre da América Central começava a protestar contra a pobreza e a injustiça, as autoridades romanas lhe viravam as costas. Padres e freiras que seguiram esse caminho foram abandonados pela Igreja quando começaram a incomodar grandes corporações e ditadores. Naturalmente, Roma é reacionária. Se fosse seguir Jesus, a Igreja já teria entrado em colapso.
O filme A Bússola de Ouro foi um sucesso entre as crianças brasileiras. Você poderia adiantar como está a sequência, The Book of Dust (O Livro do Pó)?
O Livro do Pó está crescendo lentamente. Tenho andado ocupado com outras coisas nos últimos tempos para me concentrar no livro. Gostaria que A Bússola de Ouro tivesse uma segunda e até uma terceira parte, mas, infelizmente, não sei se teremos uma sequência. Talvez algum dia tenhamos uma edição do diretor do filme original e assim possamos ver cenas cortadas da versão exibida nos cinemas. Quem sabe um dia…

 

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Movimento UMA NOVA VILA VELHA

Outra Cidade é Possível?
Como fazer de Vila Velha uma cidade melhor para viver?  Como resolver nossos problemas urbanos crônicos de ocupação urbana desigual e de enchentes e alagamentos constantes? Como dar conta de nossos bolsões de miséria garantindo uma cidade mais justa e mais igual? Como recuperar o orgulho e o sentimento do morador de uma cidade que ficou para traz na qualidade de sua administração municipal e na implantação de políticas públicas de qualidade?
Como transformar a Vila Velha de agora, triste e desgovernada, numa cidade que a exemplo das demais da Grande Vitória como Serra e Cariacica, recuperem a sua auto-estima na gestão de seu futuro?
Para discutir estes e outros assuntos sobre o futuro da cidade o Movimento Uma Nova Vila Velha convida você para participar do debate:
Políticas Públicas no Município de Vila Velha - Passado e Futuro
O evento vai trazer para debate os especialistas:
·         Roberto Garcia Simões: arquiteto, especialista em políticas públicas, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e comentarista da Rádio CBN,
·         Rafael Cláudio Simões – Historiador, professor da Universidade de Vila Velha  e membro da Transparência Capixaba.
Eles vão abordar o tema enfocando as possibilidades da cidade em viabilizar um crescimento econômico organizado em harmonia com um ambiente saudável, além de uma administração pública de qualidade, honesta e com controle gerencial público e participação popular.
Venha você também com sua participação, construir agora uma cidade melhor para viver. Uma Nova Vila Velha.
PARTICIPE!
Data: 23 de novembro de 2010, às 19h30, no plenário da Câmara Municipal de Vila Velha.
Movimento Uma Nova Vila Velha
Uma Nova Vila Velha é um movimento organizado por moradores, cidadãos, profissionais liberais, intelectuais, empresários e artistas canela verde, preocupados com a deterioração da discussão pública, com o rebaixamento da expressividade cultural e política da cidade e com o fisiologismo e clientelismo que toma conta da administração do município.
O seu objetivo é trazer para o espaço público o debate sobre o passado e o presente da cidade e as nossas chances de construirmos Uma Nova Vila Velha, mobilizando nossas forças políticas, culturais e históricas comprometidas com valores fundamentais para uma convivência fraterna no espaço da cidade: a ética,, a transparência no trato com a coisa pública, a tolerância, o respeito a etnodiversidade, a solidariedade e o exercício da paz para uma maior e melhor qualidade de vida para todos.

Movimento UMA NOVA VILA VELHA

Como fazer oposição?

 Roberto da Matta


 



Somos bons para mandar e, quando a ordem é dada pessoal e diretamente, a obedecer; mas não conseguimos seguir nenhuma regra. Não somos capazes de nos guiar por normas sem cara ou corpo, mãos e chibata, dívida e promessa. Se o mandão se relaciona conosco, seguimos; se é uma lei escrita num papel ou revelada num sinal de trânsito, mandamos plantar batata. Aprendemos, faz tempo, que seguir uma norma feita para todos, produz uma ordem anônima, impessoal e universal. Mas seguir tais leis é um sinal de inferioridade. Como discordar delas sem parecer grosseiro ou rebelde? Os superiores fazem as leis e com elas se enroscam em exegeses profundas e eruditas, distinguindo o não do nada e ambos do zero e do vazio; já os subordinados, obedecem. A lei não foi feita para todos do mesmo modo não governamos para todos, mas somente para os necessitados: para o "povo" pobre e faminto. O tão teorizado e um tanto gasto papel de cidadão, não engloba o de pobre, esse personagem favorito dos políticos, porque (como os ricos) ele é o foco irredutível de toda a vida política e moral. Em nome dos extremos, todos os extremos se justificam, pois eles são os meios que permitem chegar a um destino do qual o governo seria instrumento. Tudo o mais é ardil.

A lei vale para todos mas eu não sou todo mundo: sou especial. Filho de dona M. e do dr. P. Eleito pelo povo, sou exclusivo. Pelos laços de família escapulo como uma aranha dessas obrigações de todos. Esses que, para mim, são populares e inferiores. Coisas e gentes a serem elevadas e protegidas, salvas e entronizadas em alguns lugares e tempos, mas não todo o tempo. Elas justificam um ministério da cultura, jamais a cultura de um ministério. Eis a concepção de "cultura" vigente no País...

* * * *Isso explica por que é tão fácil indiciar e acusar e tão difícil prender os facínoras que livres, ricos, risonhos, engravatados e brejeiros, nos ensinam o estar em paz com a vida. Quanto maior o bandido, mais complicado fica julgá-lo e prendê-lo porque sua fama já o situa num nível especial e diferenciado. Não é por acaso que todo criminoso sonha virar político. Entre nós, não é o ato mas quem o pratica que condena. Se for pé rapado, "teje preso!". Se for deputado, entra o recurso e chega a veemente defesa porque "No caso de T., não! Esse eu conheço! Esse é meu amigo! É dos nossos! A ele eu devo favores!". Há a biografia que, na visão autoritária de um mundo graduado, as pessoas comuns não têm, porque sendo simples, honestas, indefesas, boas, pobres e humildes, - numa palavra: sendo cidadãos comuns e anônimos - elas não teriam, vejam o atraso e a arrogância histórica pessoal!

* * * *Um dia, ouvi perplexo, um médico famoso dizer que jamais havia pago um centavo de Imposto de Renda. O rompante do olhar tinha aquele brilho que ofusca os otários e os imbecis que, cidadãos, pagam e não chiam. Um americano que partilhava conosco o jantar engasgou-se. Nos Estados Unidos, todos sabem que só há duas certezas nesta vida: a morte e os impostos, esse dinheiro sagrado que vem do povo e permite a existência do governo. No Brasil, pelo contrário, é o governo que legitima o povo. Um papel timbrado vale mais do que o sujeito que ele representa. Na América, os impostos são as grades da jaula de ferro que, como viram Weber e Kafka, independem da vontade humana; aqui eles são as barras de chocolate comidas pelos políticos.

Fora da situação somos mais implacáveis do que um carrasco nazista e mais sérios e duros do que guarda americano da imigração. Dentro, amaciamos e viramos cúmplices. "Você deveria ter dito isso antes!", falamos num pedido sem desculpas. "Se eu soubesse que era o Chiquinho eu mesmo teria colocado uma cláusula especial no decreto." Ou, então: "Não custava pedir vistas ou engavetar o processo!"

* * * *Como ser oposição se um dia chegamos ao governo e, o poder é muito mais um instrumento capital para retribuir favores e não para tentar melhorar o mundo, servindo a este mundo? Se tudo se dividia entre nós e eles, mocinhos e bandidos, revolucionários e reacionários, vira de ponta-cabeça e agora "nós" somos "eles", como fazer? Normalmente, vamos por parte. Os mais próximos, primeiro; depois os outros e o que sobrar, vai para a sociedade. Mas o que ocorre quando a demanda igualitária aumenta e a mídia aproxima governo e governados, revelando suas incríveis proximidades? Mostrando como os hábitos ficam, embora a ideologia troque de lugar? Exibindo que, no fundo, todos são muito mais parecidos do que pensávamos?

A resposta, amigos, se resposta existe, é que não pode haver oposição se não há uma efetiva diferença. Democracia tem truques, mas ela não suporta uma ética de condescendência, um espírito com dois pesos e medidas.
Fonte:Globo (17/11/10)

Marina teve papel de modernização política, diz Touraine

Para sociólogo, há risco de retrocesso populista se Dilma usar capital político de Lula de forma pouco cautelosa
Francês diz que Serra não errou na eleição e que apoio do presidente Lula foi um "maremoto" que derrotou o tucano
Uirá Machado

SÃO PAULO - O sociólogo francês Alain Touraine, 85, afirma que Marina Silva (PV) teve nas eleições um papel de modernização da política brasileira.

Doutor honoris causa por 15 universidades, Touraine participa hoje às 17h do seminário "Queda e renascimento das sociedades ocidentais?", promovido pela Emplasa, em São Paulo (hotel Tivoli Mofarrej, na al. Santos, 1437).

Folha - O sr. tem manifestado interesse pelos movimentos ambientais. Qual sua avaliação sobre o desempenho eleitoral de Marina Silva (PV)? Há quem diga que ela aglutinou os votos dos descontentes.
Alain Touraine - É uma coisa positiva a busca por uma solução nova. Marina teve um papel de modernização política. Como um terceiro partido ganhar uma eleição presidencial é uma meta difícil, o desempenho eleitoral dela foi uma ótima surpresa. Isso significa que as pessoas não apenas dizem não a algo que está aí mas também estão procurando soluções novas. É uma tendência que se encontra em vários países. As novas classes médias não têm suas referências no socialismo, mas nos movimentos ambientais, na diversidade cultural, no papel da ciência. O mundo não viverá mil anos na briga entre liberais e socialistas.

A vitória de Dilma Rousseff (PT) tem algum sentido simbólico por ser a primeira mulher presidente do Brasil?
Francamente, acho que não. O tema da mulher que ganha uma eleição já é uma coisa bastante comum. Os problemas que ainda existem para as mulheres se dão mais no nível pessoal.

Qual sua avaliação política sobre a vitória de Dilma?
De maneira mais óbvia, há essa imensa popularidade de Lula e uma vitória de caráter pessoal. Dilma não existia, não tinha experiência política em sentido institucional. Alguns dizem que ela será uma espécie de "bis" de Lula, uma presidente interina para que ele volte daqui a quatro anos. Creio que há algo de verdade nisso. Mas também há aí uma coisa ingênua, porque ninguém pode governar um país interinamente. O que realmente preocupa é que há um perigo de retrocesso populista, pois há uma grande massa de excluídos. No Brasil, o risco é o de que Dilma utilize o fantástico capital político de Lula de forma menos cautelosa que ele. Mas esse não é um perigo imediato, até porque ninguém sabe o que Dilma fará.

Por que José Serra (PSDB) perdeu as eleições?
Tecnicamente, Serra é infinitamente superior. Mas, diante de um Lula no poder... Não é que Serra fez algo errado. Foi um maremoto.
Fonte: FSP(16/11/10) 

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Entrevista - Alain Touraine:'O perigo de um retrocesso (no Brasil) existe'


O GLOBO (15/11/2010)

O sociólogo francês Alain Touraine diz que governo Dilma Rousseff é uma incógnita e critica autoritarismo de setores do PT
SÃO PAULO. Um dos mais respeitados intelectuais franceses, o sociólogo Alain Touraine, de 85 anos, diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, apresenta amanhã, em São Paulo, o seminário “Queda e renascimento das sociedades ocidentais”.

Touraine chegou ontem à capital paulista e, em entrevista ao GLOBO, falou sobre o temor de um retrocesso no Brasil, após a eleição de Dilma Rousseff. Apesar de elogiar os governos Fernando Henrique e Lula, frisou que o país tem um passado marcado pelo populismo e alertou para o autoritarismo de “segmentos do PT”: — A verdade é que não sabemos o que será o governo da nova presidente.

O intelectual também acredita que o tucano José Serra é peça fundamental para a oposição.

Márcia Abos

O GLOBO: Como o senhor vê as transformações da sociedade brasileira nos últimos 16 anos? Como avalia a vitória de Dilma Rousseff?
ALAIN TOURAINE: Uma coisa é clara. O Brasil tem um sistema político horrível, corrupto. Fernando Henrique Cardoso, em seus oito anos de governo, construiu as instituições. Fez uma transição perfeita para entregar a Presidência a seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva.
Lula, por sua vez, realizou transformações sociais, tirando dezenas de milhões de brasileiros da miséria e da exclusão.
Graças aos dois, em igual importância, o Brasil tem os elementos básicos para desenvolver um novo tipo de sociedade. Mas não sou necessariamente otimista. Não sabemos o que acontecerá daqui para a frente. A nova presidente (Dilma) foi inventada por Lula. O Brasil tem um longo passado de populismo e a ameaça persiste devido ao nível de desigualdade social extremamente elevado. Após 16 anos dos governos FHC e Lula, é impossível questionar o potencial do Brasil. Mas o perigo de um retrocesso existe, até porque o passado do PT está longe de ser perfeito. Lula não foi autoritário, mas segmentos do PT o são. A ideia de Dilma esquentar a cadeira por quatro anos para Lula também me desagrada. Em uma democracia, não pode haver presidente interino. A verdade é que não sabemos o que será o governo da nova presidente, porque ela não tem experiência política. Mas eu acredito que o Brasil tem tudo para ser o lugar em que uma nova sociedade surgirá. Não vejo muitos outros países no mundo que tenham chances tão boas quanto o Brasil. José Serra, candidato derrotado do PSDB, deu a entender que fará com seu partido uma oposição mais dura ao governo Dilma, diferente da postura de seu partido frente a Lula.

Como o senhor vê a polarização entre os dois maiores partidos brasileiros?

TOURAINE: Neste momento, Dilma é Lula. Ninguém sabe nada sobre ela. Ela pode ter tendências populistas ou fazer um fantástico governo, não sabemos. O fato é que, depois de Lula, era impossível para José Serra vencer. Ele é extremamente competente, honesto e sério. Na oposição, é um ativo valioso para o Brasil frente aos riscos de irresponsabilidade e populismo.

Para o senhor, como a globalização transformou a sociedade pós-moderna?
TOURAINE: Globalização significa muito mais que internacionalização.Significa que nenhuma instituição política, social ou religiosa é capaz de controlar um sistema econômico globalizado.
Portanto, minha principal ideia é que a globalização significa o fim da sociedade. A diversidade dos atores é mais importante do que o sistema. O que restou é o mercado puro. Vivemos agora em uma não sociedade, na qual as pessoas estão interessadas em coisas sem significado. Eliminar significados tem sido a aventura da Europa nos últimos 20 anos. Por exemplo, o desenvolvimento industrial sendo eliminado para dar lugar ao mercado financeiro: dinheiro pelo dinheiro. Na vida privada, teorias românticas do século XIX deram lugar ao erotismo, à pornografia, ao sexo sem comunicação, emoção ou intenção. Interesse e desejo são a mesma coisa. Minha pergunta é se é possível reconstruir uma vida social a partir de nenhum elemento social, pois eles despareceram ao longo do caminho.

E é possível? Há esperança para a vida em sociedade?
TOURAINE: O único movimento político realmente forte hoje é a ecologia. Pela primeira vez na História abandonamos a velha filosofia de Descartes ou Bacon de que a cultura domina a natureza. Pela primeira vez estamos preocupados em salvar a natureza sem destruir a civilização e vice-versa. Outra força antropológica pela qual tenho grande interesse é o movimento feminista. Mulheres em geral têm uma visão de sociedade que é o contrário do modelo masculino de tensão extrema, polarização. Mulheres buscam a conciliação em vez da oposição. No entanto, o feminismo ainda não existe como força política. O sexismo domina. Já avançamos, mas as mulheres continuam tratadas como vítimas. Ninguém as menciona como alguém que faz coisas. São mais criativas que os homens, mas, por enquanto, aparecem como vítimas, principalmente da violência doméstica. A terceira força do que seria esta nova sociedade está no indivíduo, no direito a ter direitos, como dizia Hannah Arendt. Ninguém sabe o que democracia significa hoje, cada um tem sua definição. Para mim, democracia é ampliar o acesso de todos a serviços e bens básicos, como educação e saúde, entre outras coisas. É possível reconstruir uma sociedade baseada em termos não sociais universais, tais como a ecologia e os direitos individuais. Sou um grande defensor da ideia de universalização. É fundamental reconhecer e garantir valores universais como, por exemplo, a liberdade religiosa. Recriar formas de vida coletiva e privada baseadas em princípios universais. Se viver mais um ano, penso em escrever um livro com minhas ideias a respeito dessa nova sociedade possível.

Galera da paz, por Tarcísio Bahia


No fim de semana passado meu filho, que nem quatro anos completou, foi batizado numa roda de capoeira, ganhando a corda azul. A cerimônia toda durou duas horas, o que justifica o fato de eu poder ficar uns dois anos sem ouvir “é o a, é o b é o c, a de atabaque, b de berimbau e c de capoeira” entoado pelos animados capoeiristas repetidamente.
Misto de dança e luta, a capoeira é também uma espécie de culto capaz de encantar os leigos por um breve tempo, principalmente quando estamos passeando tranquilamente em férias de verão e vemos uma roda. Já para os próprios capoeiristas a coisa é séria. Mas não ao ponto de os tornarem sisudos ou críticos em relação aos não praticantes. Capoeira é uma coisa alegre, tem gingado, faz bem ao corpo e à alma. É da paz... Só falta mesmo um maestro arranjador para dar um jeito no ritmo e na harmonia das músicas.
Outra galera que só quer saber de curtir são os surfistas. E a música deles até que é bem maneira. Até hoje curto Dire Straits com Sultans of Swing e Lulu Santos cantandoComo uma onda. Falando nisso, a onda, o surf tem nela sua razão de ser, mas sem tirar importância do restante do contexto: a praia em si, gatas, luau, gatas, pôr do sol, gatas, natureza... gatas. Se hoje tá na moda praticar esportes relacionados à natureza, o surf é um dos pioneiros nessa relação idílica com o meio ambiente. Todo surfista, apesar dos poucos recursos gramaticais, é gente boa, tranquilão, desprendido, sem vaidades, enfim, tá sempre de bem com tudo.

O problema é que não dá pra viver de capoeira ou de surf (tá, sei que alguns conseguem, mas isso não é a filosofia da coisa), e o jeito é mesmo arrumar algum emprego para poder pagar as contas uma vez adultos. Mas, enquanto jovens, às custas dos pais, fazer capoeira, surf ou qualquer outro esporte, principalmente aqueles aonde não há disputa de desempenho, é bom na formação da disciplina (surfista, por exemplo, acorda de madrugada sem reclamar), no cuidado com a alimentação e na formação do caráter.
Nunca fiz capoeira, mas sim judô quando pequeno (tá bom, não cresci tanto assim) por incentivo e esforço dos meus pais, afinal meu pai pagava e minha mãe me levava para o tatame. Só que acho que não levava jeito para a coisa. Mas ao longo da vida já fiz natação, handebol, tênis, muita bicicleta e até ioga! E joguei bola, é claro, apesar de nunca ter sido craque com a pelota. E aí, das duas uma, ou passava para o futebol de botão, ou esquecia o esporte. Não foi uma coisa nem outra, afinal adoro quando o meu Botafogo ganha, fico louco quando ele perde, e sempre que sobra um tempo dou uma corridinha na orla da praia.
Mas se pudesse voltar no tempo, acho que teria tentado ser surfista, afinal são tantas gatas...



A pedagogia por um fio:: José de Souza Martins


DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
A limitação da controvérsia aos erros materiais e técnicos poupa os responsáveis pelas provas - há problemas de formulação e de conteúdo no elenco de perguntas apresentadas aos candidatos

Toda controvérsia sobre a prova do Enem recaiu exclusivamente sobre erros de qualidade na apresentação física do material aos inscritos. O noticiário diz que nos cadernos amarelos havia questões repetidas e faltantes. Nas folhas de respostas dos testes os cabeçalhos de ciências humanas e de ciências da natureza estavam trocados, o que pode ter induzido os examinandos a erro. Numa empresa privada, um descaso desses acarretaria em demissão dos responsáveis.

Mesmo que se alegue que a restrita parcela dos que se consideraram prejudicados poderá fazer novo exame, há que levar em conta que o princípio básico de uma prova dessas é probabilístico, todos se defrontando com dificuldades iguais. Se as questões da prova substitutiva forem diferentes das questões da prova defeituosa, como terão que ser, fica anulado esse princípio regulador.

A reação do governo federal no sentido de minimizar o acontecimento é deplorável, sobretudo em face do fato gravíssimo do ano passado, em que o sigilo das provas foi violado e seus resultados oferecidos à venda por uma quadrilha. A inépcia já recomendaria cautela redobrada neste ano, que não houve nem mesmo na revisão final do texto antes de encaminhá-lo à gráfica. O caso ficou mais complicado com os dois indevidos pronunciamentos que sobre ele fez o próprio presidente da República. São justificativas de tipo corporativo, que nada justificam.

A limitação da controvérsia aos erros materiais e técnicos poupa os responsáveis pelo teor das questões de outra e mais importante avaliação crítica das provas, que deveria ser a dos educadores. Há problemas de formulação e de conteúdo no elenco das questões apresentadas aos candidatos. No que diz respeito às ciências humanas, uma notória tendência ao materialismo vulgar perpassa várias questões, reduzindo ao econômico problemas sociais complexos da sociedade brasileira. Essas provas, como acontece com as dos vestibulares, acabam sendo interpretadas como indicadores do que deve ser um bom programa de ensino médio, coisa que estão longe de ser.

A inclusão de temas controvertidos, que comportam distintas interpretações, não é norma de prudência em testes objetivos de múltipla escolha, que pressupõem respostas incontroversas. No entanto, na folha rosa, a questão 2 propõe ao examinando que escolha a formulação indicativa do que é a estrutura fundiária brasileira com base nas Estatísticas Cadastrais do Incra, de 1998. A estrutura fundiária não permanece necessariamente a mesma tanto tempo. Além do dado antiquado, um dos intervalos vai de 100 ha a 1.000 ha, o que sugere extremos, mas não a gradação no tamanho das propriedades e, portanto, o que é a efetiva estrutura fundiária. Essa estrutura é dinâmica e não pode ser definida com base no recorte de um único ano, sobretudo em face de anos de reforma agrária. Sem contar o erro, na questão 25, quanto ao ano da abertura dos portos por dom João, com a chegada da Família Real a Salvador, em 1808, e não em 1810.

A questão 6, relativa à Guerra do Contestado (conflito ocorrido em Santa Catarina, de 1912 a 1916), a atribui ao surgimento na região de "uma série de empreendimentos capitalistas", quando, na verdade, o que chegou foi o complexo de atividades econômicas de um só empreendimento - o do empresário americano Sir Percival Farqhuar, contratado pelo governo para construir a ferrovia estratégica para o Rio Grande do Sul. A proposição ou as alternativas não mencionam uma única vez o fato de que a guerra se originou, no plano imediato, de um conflito de divisas entre os estados do Paraná e de Santa Catarina - daí o seu nome. Mas que, no essencial, foi um movimento messiânico e milenarista, ou seja, de natureza religiosa.

Para a prova de redação, de 30 linhas, foi indicado o tema "O trabalho na construção da dignidade humana", com base em dois textos de apoio, um deles sobre a escravidão contemporânea, estereotipado e frágil, impropriamente conceitual. Nele não se faz nenhuma referência ao que é, reconhecidamente, próprio desse regime de trabalho, que é de escravidão temporária por dívida.

O tamanho do problema pode ser medido não só pelas reações no âmbito da Justiça mas também pelos movimentos de estudantes na internet e nas ruas, em andamento ou em esboço. Foram 3,5 milhões de jovens que compareceram às provas. De certo modo colocaram seu destino e seu futuro nas mãos de funcionários do governo ou por ele designados. Os resultados das provas do Enem abrem e fecham portas. O preenchimento de 83 mil vagas em universidades e instituições federais depende desse exame, parcial ou totalmente. Se as provas tivessem sido realizadas em outubro, como foram as do ano passado, teriam ocorrido entre os dois turnos das eleições. É pouco provável que não afetassem o resultado eleitoral. O que indica que somos frágeis não só na avaliação do rendimento escolar dos estudantes, mas também de competências políticas. Tudo está sempre por um fio.

José de Souza Martins é professor emérito da FFLCH-USP e autor de ‘A aparição do demônio na fábrica’ (Editora 34)