segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

'Caminhamos para a paralisia do governo' (Sérgio Abranches/entrevista)

Criador do termo ‘presidencialismo de coalizão’ diz que Bolsonaro frustra parte de seu eleitorado e prevê que governo não conseguirá caminhar se não resolver articulação com Congresso
Thomas Traumann/O Globo/24 de dezembro de 2019
RIO - Em 1987, quando a Constituição ainda estava sendo debatida no Congresso, o cientista político Sérgio Abranches, hoje com 70 anos, cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão” para definir as novas relações entre o o Executivo e o Legislativo. Sem maioria no Congresso, o presidente seria forçado a compor seu governo com aliados. Essa relação complexa dominou a política até Jair Bolsonaro se eleger. “Este presidente se recusou a fazer a coalizão e se nega a se articular com os partidos. Não há possibilidade de funcionar”.
• Passados seis anos, quais foram os gatilhos das marchas de 2013?
Primeiro havia uma insatisfação generalizada com a economia, sinais de que o poder de compra da população estava comprometido. Isso criava uma insatisfação difusa. O segundo componente foram as redes sociais, a possibilidade de as pessoas saberem que existem outras tão insatisfeita quanto elas. Aí, um grupo mais organizado chamou para discutir a questão das tarifas de ônibus, e o que começou como uma coisa pontual se espalhou como um protesto generalizado porque havia gente descontente com o desemprego, outros com a política, outros com a corrupção.
Esses são movimentos de contágios, igual à Primavera Árabe (na África e Orienta Médio) ou dos Coletes Amarelos (França). É um movimento que reflui quando vai para a violência, com os Black Blocs, mas deixa nas pessoas a sensação de “foi legal ter ido para a rua. Pelo menos eles nos ouviram em algumas coisas”.
A partir de 2013 as ruas foram tomadas pela direita. Por quê?
Depois do lacerdismo (do ex-governador Carlos Lacerda, 1914-77) não apareceu ninguém capaz de legitimar o sentimento de direita. Ele ficou no armário, enrustido, enquanto PSDB e PT dominavam o debate. Mas quando os direitistas encontram outros falando sem censura o que eles só pensavam, passamos a ver a verdadeira cara do espectro ideológico brasileiro.
• Por que uma das novidades nas manifestações recentes é a defesa da intervenção militar?
Não é saudade, é ignorância. Aquela maioria com cartazes dizendo “volta” é de gente que nunca viveu a repressão, não teve pais perseguidos e mortos. Nunca me preocupei com a demanda de volta dos militares porque é de gente que não sabe o que está falando. E os que sabem são uma minoria que não vão vingar.
• O que achou das declarações de Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes sobre AI-5?
As menções ao AI-5 são feitas como ameaça. Nos dois casos referiam-se aos protestos do Chile e prometiam o AI-5 se ocorresse algo assim por aqui. Por outro lado, mostra que eles têm medo das ruas.
O mais importante são as muitas transgressões à democracia que o governo vem fazendo ou estimulado seus simpatizantes a fazer, como perseguições aos que pensam diferente, ameaças a professores que dão tópicos que eles consideram “ideológicos”; aparelhamento do estado para desmontar mecanismos de fomento à cultura e às artes; censura, que chamam de “filtragem” nas concessões para áreas de pesquisa; ameaças a funcionários que querem cumprir o seu dever, no Ibama e, no ICBMBio.
O ministro da Educação promete deixar as áreas de filosofia e ciências humanas sem apoio. Há muita vingança e retaliação por parte de membros do governo contra instituições nas quais não conseguiram entrar ou progredir por mérito. São inúmeras as ameaças à liberdade de expressão e à liberdade de cátedra. A tentativa de Bolsonaro de tirar a "Folha de S. Paulo" da licitação para renovar assinaturas, os ataques à TV Globo. Estão fazendo o país escorregar para o autoritarismo. Há risco institucional e, até agora, pouca reação articulada a essas ameaças
• Por que o discurso anticorrupção é tão popular?
Somos uma sociedade muito desigual, que se urbanizou tardiamente e muito rapidamente. Nossa classe média por muito tempo era toda estatal ou trabalhava em empresas fornecedoras do setor público. Com a crise dos anos 90 e as privatizações, temos a formação aceleradíssima de uma classe média capitalista, urbana, civil, que trabalha em empresas independentes do Estado.
É uma classe média que convive com o risco da demissão, sensível à inflação e com visão de curto prazo, que produz uma memória curta também. Quer dizer, eu me lembro das minhas aflições mais presentes. As minhas aflições passadas já não lembro porque eu tenho mais com o que me preocupar. Portanto, é uma nação que se desaponta rapidamente, muda de opinião constantemente e culpa o establishment político por essa frustração recorrente.
• A antipolítica é uma regra?
Se formos pegar o período pós-militar, todos os candidatos tentaram de alguma forma se apresentar como fora do establishment: o Collor era o caçador de marajás; Fernando Henrique, o pai do Plano Real; Lula, o cara que veio da pobreza; a Dilma era a gerente e o Bolsonaro, apesar de tantos anos como deputado, também se vendeu como antipolítica.
• O senhor cunhou a expressão “presidencialismo de coalização” para definir as relações entre o Palácio do Planalto e o Congresso. Por que existe a imagem de que essas relações são sempre espúrias?
Talvez porque ela tenha sido espúria mesmo, né? Agora, a realidade é mais sofisticada do que a noção de que um bando de ladrões entrou na política para assaltar os cofres públicos.
Tem a ver com o nosso sistema institucional, que desde os militares está baseado em um governo central que arrecada tudo, manda em tudo, e em governos estaduais e municipais
dependentes demais da União. Então, o presidente é o que tem recursos para doar e os deputados e senadores são os demandantes dessas verbas. Para se reeleger, eles precisam que o governo federal atenda suas comunidades. E essa necessidade de atender os estados produz uma distorção na função do Legislativo.
O congressista deixa de se preocupar com legislação e fiscalização do Executivo e passa a ser uma espécie de despachante, de vereador federal. Por isso, a pauta do Congresso é sempre fiscal. É sempre “me dá um dinheiro aí porque meu estado está com problema”. E a pauta do governo federal é sempre uma pauta de reforma porque essa pressão fiscal é insustentável financeiramente. Então, ficamos presos a uma armadilha. Temos um problema estrutural que não se resolve exclusivamente com leis anticorrupção, é preciso preparar os estados e municípios para serem autossustentados.
• Olhando em perspectiva o cenário de 2015, com as primeiras manifestações do impeachment, o governo Dilma perdendo a maioria no Congresso, a explosão do desemprego e da inflação, o impasse político era evitável?
Só se Lula tivesse escolhido outra pessoa em 2014 e tirado a Dilma.
• Em 2018, o desemprego já afligia 13 milhões de trabalhadores, o ex-presidente Lula estava preso, houve o atentado em Juiz de Fora... A eleição do Bolsonaro era inevitável?
Para isso era preciso que o candidato do PSDB não fosse o Alckmin e o PT tivesse lançado o Haddad logo no começo. Mas a quantidade de condições necessárias para manter a polarização PSDB-PT era tamanha que provavelmente o Bolsonaro era mesmo inevitável.
• Em um artigo recente, o senhor escreveu que a desilusão dos eleitores com o poder de voto para mudar a suas vidas pode aumentar.
A minha sensação é de que os eleitores brasileiros em 2022 vão querer votar. Porque como o presidente Bolsonaro vai governar o tempo todo em confronto e isso produz uma reação negativa na sociedade em busca de alguém que os eleitores imaginem ser capazes de derrotar o Bolsonaro
• Haverá um antibolsonarismo em 2022 como houve um antipetismo em 2016 e 2018?
Sim, nossa história é de seguidores fiéis versus uma massa que rejeita esse líder.
• Já está dado que a campanha de 2022 será entre Bolsonaro e o PT?
É cedo, muito cedo. Qualquer candidato que se apresente agora será alvo de vários lados. É desgaste na certa. Antecipação de campanha nunca funciona como os candidatos querem. A conjuntura é muito dinâmica. Pode alavancar ou fazer naufragar os que se lançam afoitamente. Muita coisa pode ainda acontecer, que crie condições propícias ao surgimento de uma candidatura alternativa à polarização que elegeu Bolsonaro.
• Qual a sua avaliação dos discurso de Lula pós-soltura?
Se Lula persistir na ideia de polarizar com Bolsonaro e não conseguir afastar sua inelegibilidade, decretará a derrota de quem saia pelo PT em seu lugar. Facilitará a recandidatura de Bolsonaro. Se fizer uma campanha com o discurso que usou na saída da prisão, corre certamente o risco de perder. Lula tem condições de formar uma frente pela democracia, mais ampla. Até agora não mostrou querer assumir este papel.
Muitas lideranças políticas e intelectuais do PT continuam a atacar setores democráticos que não apoiaram o partido, principalmente no governo Dilma. Fazem como Bolsonaro. O presidente declara qualquer um que pense diferente dele como “petista”, “vermelho" ou “comunista”. Parte dos petistas trata opositores como se fossem “bolsonaristas” ou “golpistas”. Há, no entanto, lideranças importantes e mais conscientes no PT que defendem uma frente mais ampla, pela democracia. Espero que elas prevaleçam e convençam Lula.
• A que o senhor atribui a queda de popularidade do governo?
Bolsonaro prometeu uma mudança instantânea, gerou uma expectativa muito difusa e produziu frustração por causa do amálgama muito disforme do eleitorado que o elegeu. Uma parte grande queria alguém que fosse o anti-PT. Hoje esses olham o caso Flávio Bolsonaro e falam “qual é a diferença?”. Por outro lado, a situação econômica piorou. Embora a inflação tenha caído, o desemprego persistiu, portanto, a renda real continua muito baixa. E as pessoas querem um alívio imediato.
• Essa frustração ameaça o futuro do governo?
Se olharmos o modelo que organizou a política brasileira desde a Constituição de 1988, Bolsonaro precisa de uma coalizão no Congresso, uma articulação política eficiente, uma pauta substantiva que gere também mudanças de curto prazo. Ele não está cumprindo nenhuma dessas condições. Portanto, por esse modelo, o governo não vai dar certo e não vai terminar o mandato. Só que...
• ...esse modelo não existe mais.
Teve a ruptura. O presidencialismo de coalizão não está funcionando, qual é a previsão do modelo? É de que vai haver um conflito crescente entre Executivo e Legislativo, vai haver uma paralisia decisória, produzindo uma piora generalizada das condições da sociedade e o governo cai. É o que diz o modelo, mas o modelo pode não funcionar. Mas este é o governo mais frágil desde Collor do ponto de vista de sustentabilidade.
• Mas o Congresso hoje não dissipa os confrontos e leva adiante as reformas?
Tem um mito hoje no mercado financeiro sobre o poder do Congresso. Só que o protagonismo do congresso no presidencialismo tem um nome: chama-se crise política. Se o presidente não tem protagonismo significa que alguma coisa está errada. Este presidente se recusou a fazer a coalizão, se nega a se articular com os partidos e prefere falar com os congressistas individualmente. Não há possibilidade de funcionar. O presidente precisa ocupar a agenda legislativa não é só para aprovar as coisas que quer aprovar; é para evitar que sejam aprovadas coisas que possam atrapalhar o seu governo.
• Falta coordenação?
Sim, o desalinhamento das eleições deixou o Legislativo sem um partido pivô. No caso do FHC, era PSDB e PFL. Com Lula e Dilma, era PT e PMDB. Sem um pivô, a tendência é a dispersão. O Congresso ou vota pontos já consensuados, como a reforma da previdência, ou para retaliar o governo, como nas derrubadas de vetos. Esse suposto protagonismo do Congresso é efêmero. A tendência é a divisão. Caminhamos para uma paralisia do governo.
• A criação da Aliança pelo Brasil afeta essa sustentação no Congresso?
O governo não tem base governista, por escolha. O presidente decidiu ficar sem coalizão e, agora, sem partido. Está criando uma casca sem miolo com a tal Aliança, se vai virar ou não um partido, a ver, a partir das próximas eleições gerais. Sem coalizão, não se pode falar em base governista. O que Bolsonaro tem é viabilizadores, políticos do DEM e do PSDB que usam sua liderança, experiência e penetração entre os parlamentares para patrocinar reformas, que o governo não se dispôs a articular e liderar. Mesmo revistas ou até redigidas por deputados e senadores, elas vão para a conta do presidente. Afinal, nosso regime é presidencialista e não parlamentarista.
• Qual o efeito de o Bolsonaro ser o primeiro presidente com forte vinculação com as igrejas evangélicas?
A adesão das igrejas evangélicas ao Bolsonaro foi brutal. A questão é saber se a defesa da pauta de costumes basta. Porque os eleitores evangélicos também comem, trabalham, são demitidos…
• Os sinais de uma economia melhor não ajudam?
Depois de um ano de governo, as pessoas já começam a culpar o governo Bolsonaro pelo seu desconforto. Não é mais o governo do PT. E não estou falando só de percentagem do PIB, mas do que acontece realmente na vida das pessoas. A economia brasileira está parada há muito tempo. Muita capacidade ociosa. Com pouco impulso, tende a crescer, porém moderadamente. 2022 está muito longe neste sentido.
Qualquer previsão que ultrapasse 2020 é muito imprecisa, condicional a mudanças na conjuntura interna e internacional. Para o ano que vem, há dois problemas novos. O acordo, precário, vá lá, entre EUA e China, que vai fazer os chineses trocarem parte da importação de soja brasileira, por soja americana. E o imposto que o governo argentino decidiu impor sobre as exportações de trigo pode pressionar a inflação interna. Sempre haverá muita pedra no caminho desta transição global, que primeiro se manifesta como uma sucessão de crises.

O ano do cavalo (Angela Alonso)

No horóscopo chinês, o animal de 2019 foi o porco, símbolo de paciência e bondade. Lá no lado comunista do mundo, pode ser que esses bons sentimentos tenham predominado. Já no Brasil, sem dúvida, este foi o ano do cavalo. Houve coices para todos os lados e declarações equinas para todos os gostos —ou para todas as faltas dele.
Começou com a posse do Cavalão, apelido de juventude do presidente no Exército. O codinome reporta as qualidades que o destacaram entre os colegas: as atléticas, não as intelectuais. Seu atributo nuclear é a força, como sublinhou o filho Carlos em tuíte depois da facada: “O ‘Cavalão’ passa bem”. “O velho é forte como um cavalo”.
O país logo soube o significado de ter um presidente Cavalão. Se quem apelidou conhecia cavalos, deve ter pensado nos xucros, animais rebeldes à doma, que atacam até quem os alimenta e cordatos apenas sob cabresto. No páreo eleitoral, o xucro venceu o manga-larga e ressuscitou uma maneira de governar que hibernava desde a primeira metade dos anos 1980.
O estilo Bolsonaro revitalizou esta linhagem empoeirada de governantes nacionais que apreciam a cavalgadura. O mandatário anterior a amar os cavalos —e o pau de arara— foi o derradeiro da ditadura. Em 1978, quando um repórter perguntou ao ainda candidato a presidente, indicado pela cúpula militar, se estava gostando do “cheiro de povo”, o general Figueiredo respondeu que “o cheirinho do cavalo é melhor”.
Depois da redemocratização, os bichos do horóscopo foram talvez menos cheirosos, mas mais educados. Tucanos e Lulas brigaram no bosque que vai do centro à esquerda, mas jamais chicotearam adversários com o vocabulário de estábulo que atualmente grassa no pasto da extrema direita.
Mesmo os vizinhos do gramado à direita, Sarney e Temer, suportaram com galhardia as piadinhas infames sobre maribondos e morcegos. Bem ou mal, todos os presidentes pós-ditadura, até o temperamental Collor, respeitaram a liturgia do cargo e as formalidades democráticas.
Bolsonaro retomou a tradição Figueiredo, desconcertando os que imaginavam que ferradura presidencial imporia a marcha da cavalgadura. Vem sendo o contrário. A quebra da liturgia foi completa, ao ponto de desrespeitar mesmo os bons modos. Já as formalidades democráticas viraram informalidades autoritárias.
O efeito dessa ruptura tem sido bifronte.
Parte da sociedade civil reagiu com indignação e depressão. Foi um ano de dissabores para progressistas, democratas e civilizados, que responderam ao desmonte das políticas de direitos humanos, de cultura e de proteção social e ambiental com críticas sérias e respostas satíricas —como um especial de Natal.
Mas esse lado da sociedade organizada tem dificuldade de reagir propositiva e concertadamente. Defende o que o governo ataca. Contudo não tem logrado se unir em torno de projetos alternativos de sociedade e patrulha os próprios aliados, como soube Marcelo Freixo na negociação das medidas de segurança.
Mas há outro lado da sociedade civil. Desde a redemocratização, quando cientistas sociais e profissionais da política de esquerda falavam em “sociedade civil” pensavam sempre nela como um polo de inovação, modernidade, progressismo. Viam nela o repositório do belo e do bem.
Esqueceram de olhar para seu outro lado, tão sociedade civil quanto, mas feito de igrejas, associações, redes de sociabilidade inclinadas para a tradição, a religião, a família, o conservadorismo. São também os valores do presidente que, ao contrário de Figueiredo, teve votos e foram muitos.
Esta parte conservadora da sociedade civil comemora, desde o fim do páreo eleitoral, a liberdade de trazer à luz do dia valores e condutas guardados no armário desde o fim da ditadura. Não se veem como autoritários, mas como restauradores de uma boa ordem perdida.
A exuberância e a excitação desta parte da sociedade civil está às vistas. Para além da própria agenda afim, a quebra de liturgia presidencial a liberou para dizer o que pensa, exprimir o que sente, agir como acha certo. Nisso o presidente é um abridor de porteiras. Seu mandato franqueou uma estrada boiadeira para a extrema direita orgulhar-se de si mesma, os preconceituosos se exibirem, os violentos executarem.
São duas partes da mesmíssima sociedade. Por mais de três décadas nos acostumamos, em política, ciência, cultura e costumes, ao predomínio de caravanas de mangalargas, agora estamos sob o tropel dos xucros. O ano novo não promete amansá-los. No horóscopo chinês, quem regerá 2020 será o rato.
Folha de S. Paulo/23 de dezembro de 2019

Sociedade está saturada e isso ajuda o populismo, diz pesquisador francês (Dominique Reynié)

Entrevista com Dominique Reynié, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris
(Paulo Beraldo Julia Correa)
A extrema direita nunca teve tanta chance de vencer uma eleição na França como agora. A avaliação é do professor Dominique Reynié, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Ele esteve no Brasil para apresentar os resultados da pesquisa Democracias Sob Tensão, que ouviu 36.395 pessoas em 42 países.
Reynié diz que os políticos que “simplificam” a realidade e apresentam soluções fáceis conseguem conquistar eleitores saturados de informação. “Uma parte do aumento do populismo no mundo tem a ver com a saturação cognitiva e essa demanda por simplificação”, disse.
A seguir, trechos da entrevista ao Estado.
• Em sua palestra, o senhor cita uma ‘saturação cognitiva’ da sociedade, onde os indivíduos buscam soluções mais simples. Como isso funciona com políticos populistas?
Vivemos uma época de mudanças profundas e poderosas em áreas muito diferentes da vida privada, política, da ciência, da cultura. Há informações demais, complexas demais para que possamos assimilá-las, entendê-las e aceitá-las. Evidentemente, por parte da sociedade, em especial as elites intelectuais e os homens de negócios, é possível viver com isso. É até uma oportunidade. Mas, para grande parte da sociedade, é uma fonte de angústia e de sofrimento. Uma parte do aumento do populismo no mundo democrático tem muito a ver com essa saturação cognitiva e essa demanda por simplificação, para reduzir o sofrimento psíquico de uma parte da população.
• No Brasil, o relatório mostra que 50% das pessoas não se interessam por política. Esse é um ingrediente a mais?
Sim, essa é uma razão importante. Vemos isso no Brasil, mas também no mundo democrático todo. É uma tendência que eu qualificaria de “despolitização”, um retiro em relação à cena pública. A gente se fecha em comunidades privadas, em redes. Mas a gente se separa da comunidade nacional, política.
• Como podemos melhorar a eficácia da democracia e a confiança das pessoas?
A crise da cultura democrática que observamos tem a ver parcialmente com a perda de confiança na capacidade do Estado democrático de produzir serviços fundamentais – segurança, educação, saúde. Essa perda vai levar uma parte dos cidadãos a arriscar a experiência de uma saída da democracia. É isso que nos ameaça. Toda questão é restaurar a eficiência. E o caminho é se apoiar na globalização que, provavelmente, é o grande desafio atualmente.
• Os países que mais enriquecem hoje não são as democracias. Por quê?
Há uma ameaça particular que pesa sobre a democracia: o fato de que, se não conseguirmos garantir um conforto material mínimo, não vai haver apego à democracia. E ela, por natureza, não pode obrigar os cidadãos a lhe sustentar. Para ser apoiada, precisa de um bom desempenho, do ponto de vista material e das liberdades. A força do governo autoritário é justamente poder se manter mesmo se os cidadãos não apoiam. No caso chinês, não há apenas força democracia em risco e repressão, há uma eficácia prática de enriquecer os chineses, melhorar o nível de vida, de educação. Então, temos um antimodelo que pode trazer uma parte dos cidadãos das democracias a perder a solidariedade com a ideia democrática. É a razão pela qual é essencial trabalhar no fortalecimento dos Estados democráticos.
• Como deve ser a relação entre Estados democráticos e não democráticos?
Esse ponto é importante. Podemos ter relações econômicas e comerciais com a China. É até recomendável. Mas a questão é não somente saber quais são as consequências dessas relações sobre a liberdade na China, ou sobre a autoridade
na China. A gente deve se indagar se é razoável as democracias ajudarem a China a se tornar mais poderosa sendo que ela não é um regime democrático.
• O senhor vê algum tipo de movimentação nesse sentido?
Hoje, vemos quase o contrário. Nas relações entre Brasil e França, EUA e Europa, prevalece o sentimento de divisão do mundo democrático. Ou isso é uma tendência que vai se afirmar com uma fragmentação que precipita o declínio da democracia no mundo, ou é uma fase intermediária, uma crise que vai levar os chefes de Estado dos países democráticos a começarem a discutir as condições de uma cooperação internacional democrática.
• Qual seria o efeito dos coletes amarelos na França e nas próximas eleições francesas?
Os coletes amarelos vão ter influência profunda sobre a sociedade, a vida política e sem dúvida sobre as eleições de 2022. Eles trouxeram uma politização de protesto de uma parte muito grande da sociedade francesa. Na França, havia eleitores da extrema direita e do populismo de esquerda. Mas os coletes amarelos não são essas pessoas. Não acredito que eles terão um voto moderado. Ou vão se abster ou fornecer eleitores a mais para o voto populista.
• Então as chances de a extrema direita vencer, com Marine Le Pen, são maiores do que nunca?
É exatamente essa frase que é preciso dizer. Ela tem mais chances do que nunca de ser eleita presidente da França em 2022. Não significa que vai ser eleita, mas que tem mais chances do que jamais teve.
• Há alguma comparação entre Marine, Viktor Orbán, premiê da Hungria, e Jair Bolsonaro?
Diria que o ponto-chave que os aproxima é o que Vladimir Putin chama de “soberanismo” democrático. Isso é uma democracia bizarra.
• Como o senhor vê o papel das redes sociais no declínio ao apego à democracia?
As redes sociais, que são ainda mais recentes, estão mudando profundamente o espaço público e democrático. E há efeitos positivos e negativos. É extraordinário quase todo mundo dar seu ponto de vista e participar de uma discussão. Mas também há aspectos terrivelmente negativos, como o efeito de bolha e a tendência de dialogar apenas com quem pensa igual.
O Estado de S. Paulo/22 de dezembro de 2019

A esquerda que elege a direita (Demétrio Magnoli)

Boris Johnson obteve maioria absoluta no Parlamento britânico, mas a votação dos conservadores aumentou em apenas 1,2 ponto percentual. Na raiz do triunfo, encontra-se o colapso da oposição trabalhista, que perdeu 7,8 pontos percentuais. A abstenção saltou de 22%, em 2017, para 33%, agora. Os eleitores descontentes ficaram em casa, para não votar em Jeremy Corbyn. A esquerda elegeu a direita.
Há pouco, participei de uma conferência internacional no Marrocos. Num dos painéis, dedicado à crise das democracias, uma jovem expositora, líder de uma ONG indiana, foi indagada sobre as iniciativas do governo de Narendra Modi. Ela circundou a pergunta, optando por um discurso ensaiado. Mencionou estatísticas acerca das carências da população jovem do mundo e, quase aos gritos, proferiu sucessivas exigências iniciadas sempre pela frase “Nós temos o direito” —a isso, aquilo e aquilo outro.
O “nós” da expositora significava “nós, jovens do mundo todo”. Ninguém a elegeu como representante, mas ela pratica o discurso identitário, esporte da moda. A reivindicação de direitos pertence à tradição democrática moderna, responsável pela progressiva ampliação dos direitos políticos e sociais.
Contudo, sua autoproclamada representatividade pertence a uma gramática autoritária pós-moderna. Justamente por exibir-se como porta-voz de uma vasta e heterogênea parcela da humanidade, a jovem não aceita inscrever suas reivindicações no campo das complexas transações políticas da democracia. Os berros da esquerda elegem a direita.
A revista Time nomeou Greta Thunberg personalidade do ano. A adolescente sueca acredita na ciência, ao contrário dos negacionistas que governam os EUA e o Brasil. Porém, como a jovem indiana, despreza a política, classificando tudo que fique aquém das exigências máximas do movimento ambientalista como “palavras vazias”.
Nos EUA, Trump aposta sua reeleição no “país profundo” do carvão e do petróleo. Na França, Macron tentou estabelecer uma taxa verde sobre os combustíveis fósseis, mas teve que recuar diante da pressão dos coletes amarelos. Na COP-25, não se obteve nem um acordo sobre o mercado de carbono. Greta fala só para convertidos.
Corbyn anunciou a “Revolução Industrial Verde” do Partido Trabalhista num encontro com Greta. O líder britânico joga em diversas posições. Anos atrás, enaltecia Hugo Chávez e flertava com a versão esquerdista do antissemitismo. Seu manifesto eleitoral radical, junto com suas ambiguidades sobre o brexit, provocou a maior derrota trabalhista desde 1935.
Os trabalhistas ganharam a adesão entusiasta da juventude urbana de classe média, mas romperam o diálogo com a massa de eleitores que rejeitam a velha fórmula econômica estatizante. A esquerda dura e pura elegeu um governo nacionalista, xenófobo e antieuropeu.
A esquerda americana inspira-se nos conceitos de Corbyn e no método discursivo de Greta. Os pretendentes democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren recusam a ideia de reforma imigratória, em nome da descriminalização da imigração ilegal e da abolição da agência nacional imigratória.
Também querem educação superior gratuita para todos e a anulação universal das dívidas de créditos estudantis. A deputada Ocasio-Cortez, ícone da ala esquerdista, rotulou a proposta de expansão dos subsídios educacionais apenas para os menos ricos, formulada pelos pré-candidatos moderados, como “conversa fiada republicana”.
A catástrofe trabalhista britânica não abalou os ativistas americanos. Presos às bolhas das suas redes sociais, eles engajaram-se na missão de torpedear os candidatos democratas capazes de conversar com os eleitores do Cinturão da Ferrugem que derrotaram Hillary Clinton em 2016. Sua chapa dos sonhos é Sanders/Warren, os heróis tribais dos campi universitários. Trump, não por acaso, acalenta o mesmo sonho.
Folha de S. Paulo/21 de dezembro de 2019

O PT de hoje é um partido desprotegido e frágil (José de Souza Martins)

“Desde a sua formação, o capital variável, o do trabalho, encolheu em face do capital constante, o da máquina. O capital mudou de composição à custa da crescente insignificância do trabalho e da pessoa que trabalha. Esta é a sociedade do desemprego, dos que foram descartados pelo sistema produtivo. Para que esta sociedade funcione, é necessário que haja sempre desempregados. São eles que tornam o trabalho barato para o capital. Portanto, a classe operária da formação do PT já não é mais a mesma. Os filhos do proletariado dos tempos de Lula ascenderam para a classe média, mergulharam na sociedade de consumo, já não aspiram apenas ao salário, tornaram-se adeptos do capitalismo, conservadores e até reacionários. As eleições no ABC mostram isso cada vez mais.
Um outro setor decisivo na formação do PT foi o setor católico, das comunidades de base e da aguerrida base dos trabalhadores rurais sem-terra, informalmente ligados à Igreja. No entanto, esse grupo está muito modificado. O episcopado já não tem pelo PT o mesmo apreço de antes. Em 2003, Lula foi entusiasticamente acolhido na assembleia da Conferência Episcopal. Não há nenhum indício de que os bispos se dispusessem, hoje, a repetir o ato. Ao longo dos últimos anos, não só Lula descartou os militantes católicos do PT que faziam a ligação entre bases sociais do governo e a CNBB, como os bispos reduziram significativamente sua proximidade com o partido.
Antes mesmo que o PT surgisse, uma parcela dos agentes de pastoral formou o MST, libertando-se da tutela dos bispos. Foram ativíssimos no enfraquecimento do governo FHC, com as ocupações de terras reguladas pelo calendário eleitoral. Mas foram enfraquecidos pelo surgimento de mais de setenta organizações similares e dissidentes. Foram decisivos na eleição de Lula. Mas quando Lula assumiu a Presidência, tratou, em pouco tempo, de esvaziar o protagonismo dessa organização, xiiita, como ele a denominava, sobretudo com a criação da versão petista do Bolsa Família, que acabou instituindo uma tutela sobre 42 milhões de pessoas, capaz de esvaziar um campo decisivo no recrutamento de militantes do movimento.
O futuro do PT não poderá depender da reconstituição de suas bases de origem, que foram as bases do PT radical e demolidor. Elas foram minadas pelos próprios governos petistas, mais por Dilma do que por Lula. O PT se aliou a inimigos históricos dessas bases. Vai ser difícil justificar essas alianças e ganhar novamente a confiança dos que foram deixados para trás. No entanto, Lula tem um carisma próprio e resistente que poderá dar ao partido novas oportunidades, especialmente num cenário em que os outros partidos estão enfraquecidos e desgastados. Talvez uma nova geração de dirigentes possa valer-se de Lula para reconstituir o partido, promovendo internamente uma rotação de elites.
No entanto, a principal arma que o PT começou a brandir, no dia da condução coercitiva de Lula à Polícia Federal, foi a da ameaça ‘posso incendiar o país’. Pode. Várias demonstrações tópicas da ação de multidões têm se espalhados pelo Brasil, raramente com clareza suficiente para agregar simpatizante e aderentes. O PT poderá eleger não só o governo Temer como alvo desse ímpeto incendiário. Mas os partidos que historicamente foram escolhidos por sua obsessão antagônica desde a disputa entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, em 1998, já não estão desabrigados. Estão munidos e documentados de todos os problemas que o PT deixa, justamente, nos campos mais nobres de suas promessas não cumpridas ou mal comprimidas.
O PT de hoje é um partido desprotegido e frágil, ainda que possa mobilizar multidões para vingar a derrota da eficácia de seu milenarismo, cujo governo está em julgamento. A consigna de considerar que a guerra ainda é a dos éticos do PT contra os maus das oposições não resistirá à metamorfose dialética que converte os opostos no seu contrário".
21 de dezembro de 2019

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Presidente perdeu para “A Pirralha” (José de Souza Martins)

Pirralha com maiúscula, porque ela mesma assumiu como batismo de fogo a classificação descabida e preconceituosa que lhe foi aplicada pelo presidente do Brasil. Como reação descabida por ter ela manifestado horror e indignação contra o assassinato de dois índios guajajara no Maranhão. E por ter compreendido que não se trata de um acaso, mas de um descaso, de um desinteresse do Estado brasileiro pela sorte dos nativos.
Na sequência, a adolescente sueca Greta Thunberg foi escolhida “Pessoa do Ano” pela “Time” e teve seu retrato na capa da famosa revista, que milhões leem, por sua luta justa e necessária em defesa de um mundo limpo, que seja, de fato, patrimônio da humanidade. E não usurpação praticada pela lucrativa economia de emporcalhamento da Terra. Justa homenagem, porque ela infunde esperança e o ânimo da resistência em milhões de jovens e estudantes do mundo inteiro, por sua coragem de interpelar os poderes e os poderosos.
Jair Messias não teve a capa da “Time”, mas tem a primeira página da Secção do Executivo do “Diário Oficial da União”. Não é a mesma coisa, pois é publicação que ninguém lê. Mas é o consolo que pode ter. Seu desdém pelas lutas sociais, pelo direito à diferença, pela liberdade de opinião, pelas questões humanitárias, nestes poucos meses de Presidência, tornou-se emblemático.
Aparentemente, ele quer falar apenas para a minoria obscurantista de seus iguais, os não esclarecidos, os condenados à solidão antissocial e antipolítica do autoritarismo e da intolerância.
O presidente brasileiro saiu em desvantagem, perdeu para uma adolescente. Ela fala a língua do mundo. Ele acabou sendo vítima do efeito bumerangue da falta de clareza e de consciência política nas decisões que toma, cujo sentido não é decidido por ele, o que nenhum político pode ignorar.
Não adianta socorrer-se dos explicadores oficiais do vocabulário presidencial para corrigir esses descuidos. O que o presidente diz não tem o sentido que ele quer que tenha, mas o sentido que pode ter, o da compreensão ditada pela circunstância social e política. Em boa parte, o sentido que o povo, a Pirralha incluída, sabe que tem.
O assassinato de dois índios guajajara, no Maranhão, indica que 519 anos depois da descoberta do Brasil ainda se mata índios no país com base na mesma dúvida que foi severa e criticamente analisada pelo padre Manoel da Nóbrega, no século XVI - se os índios tinham alma ou não, se eram gente ou não. Ou em termos do discurso político oficial, de hoje e da “política indigenista” atual, se são homens da caverna ou não.
Maior se tornam o problema e a apreensão decorrente quando as próprias autoridades do país minimizam as vítimas, satanizam quem as defende e desdenham a gravidade da violência descabida.
Não se trata de tomar ou não providências administrativas e providências policiais, se elas são implicitamente negadas nas falas e nos discursos e sobretudo nos clamorosos silêncios do Estado brasileiro, o silêncio da cumplicidade tácita.
O governante não é obrigado a gostar de índio nem de preto, de pirralho, de quem professa ideias de que discorda porque não as tem. Mas o mandato de nenhum governante tem legitimidade se quem governa não tem apreço por gente.
Do mesmo modo que ninguém é obrigado a gostar do governante tosco e preconceituoso, como mostram os significativos números das estatísticas de opinião política e eleitoral destes dias. Mas não pode deixar de respeitar as instituições e o contrato social que nas leis nos rege e o pacto da unidade na diferença que é próprio da sociedade brasileira.
Hoje, os índios são 900 mil pessoas, de 305 diferentes povos indígenas. Desde a violência genocida dos anos 70, multiplicaram-se nove vezes. Uma verdadeira insurreição demográfica. Já estão chegando ao Congresso Nacional.
São falantes de 274 línguas nativas. Uma delas, a língua tupi ou língua geral, que o general Couto de Magalhães, seu estudioso, batizou com o nome de nheengatu, língua bonita. Ela influiu significativamente na formação do que é propriamente a língua brasileira.
É a língua que falamos no dia a dia, no sotaque, na sonoridade, no vocabulário, na mansidão da pronúncia, nos significados propriamente brasileiros de nossa fala. Em nossa linguagem peculiarmente dupla, no dito e no não dito, na coisa e na sobrecoisa. Uma língua, de vários modos, diferente da língua mãe, a que se fala em Portugal.
O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, em um de seus livros, sublinha que o branco do contato com o índio é o pior tipo de branco, o mais desprovido de valores relativos à condição humana e ao seu semelhante. Cuja mentalidade pode estar perto do poder. Há exceções, e muitas, mas não suficientes.
Valor Econômico/20 de dezembro de 2019

Democracia como máquina moderadora (Fernando Schüler)

Ainda na transição, sugeri que o governo Bolsonaro traria dois movimentos. De um lado, muito barulho por conta de sua personalidade, da guerra cultural e da polarização política; de outro, a dinâmica moderadora das instituições e a vigilância difusa na sociedade.
Foi o que aconteceu. Temos um presidente com simpatias autoritárias, cuja propalada agenda conservadora, da qual constava coisas como a ampla liberação do porte de armas, redução da maioridade penal, escola sem partido, naufragou solenemente.
Em seu lugar, emerge um país em claro processo de recuperação econômica. Menor taxa de juros, menor risco país em uma década, inflação estabilizada e a perspectiva de um crescimento acima de 2% em 2020.
No plano institucional, temos um Congresso com inédito protagonismo. Ainda esta semana aprovamos o novo marco legal do saneamento básico. Pequena revolução que o Congresso tomou para si, num exemplo quase perfeito do modelo de corresponsabilidade institucional. Há quem fique nervoso vendo estas coisas. Gente que fica horrorizada quando o governo não tem o comando do Congresso. De minha parte, acho isso ótimo para a democracia.
Há ainda os que analisam o país a partir das confusões semanais do presidente. Dias atrás escutei um analista aborrecido com o fato de ninguém da “elite” dar muita bola para os bate-bocas de Bolsonaro com Greta Thunberg, Leo DiCaprio e setores da mídia. Coisas que nos fazem “passar vergonha”.
O analista tem razão, mas desconfio que isso não se resolveria mesmo que toda a elite gastasse algumas horas do dia chorando em algum cantinho da Faria Lima.
Este governo se move a partir de um dualismo: estridência retórica e algum pragmatismo na tomada de decisões. O modo como começamos e terminamos o ano é sintomático. No início, muita conversa sobre a transferência da embaixada em Israel. Logo depois, o recuo. Nas relações com a Argentina, o palavrório de guerra no inicio. Logo após, a reaproximação.
Nos dois casos, o mesmo movimento. Início retórico, alguma agitação nas redes sociais e o recuo no dia seguinte. Há muito de despreparo nisso, mas há também um método. Ao radicalizar, Bolsonaro mira sua rede de ativistas digitais; ao recuar, segue demandas de Estado e alguma racionalidade. Seu exercito militante entende o recuo (militantes sempre entendem o chefe, não?) e o mercado acha graça na conversa fiada. E a vida segue.
O efeito de contenção das instituições se fez presente o ano inteiro. Na reforma da Previdência, retirou-se a capitalização; na Lei da Liberdade Econômica, saiu a minirreforma trabalhista que o projeto do governo continha; no pacote anticrime, de Sergio Moro, o Congresso deixou para trás temas insustentáveis, como o excludente de ilicitude, sendo sua versão moderada aprovada por líderes da oposição, como Marcelo Freixo.
O governo cometeu erros importantes em 2019. O maior deles, não há dúvidas, é no terreno da educação. O ministro Weintraub se dedicou a uma inútil guerrilha ideológica com a esquerda educacional. Além de não ser esta a sua função, é inócuo. Sua aposta prossegue sendo em nossa falida estrutura estatal de ensino. Um centímetro abaixo da conversa ideológica, sua política, em particular no ensino básico, é a mesma que nos levou à tragédia nacional que surge no Pisa a cada três anos. Com isso, curiosamente, ninguém parece muito envergonhado.
Não poucos verão como acertos o que chamo de erros. Não sou dos que exigirão, na ceia de Natal, que o tio ou a cunhada peçam desculpas pelas ideias que apoiaram ao longo do ano. A beleza da democracia é exatamente tomar como legítima a visão dos outros. O resto é soberba.
Nossa democracia mostrou, neste ano difícil, uma imensa máquina moderadora de posições. Não da retórica (que não tem conserto), mas da decisão pública. Quem não entendeu isso, sugiro aproveitar o final de ano para pensar. E esqueça um pouco a política. 2020 com um pouco menos de toxina ideológica fará bem para todo mundo.
Folha de S. Paulo/19 de dezembro de 2019

Por que o centro não existe (Fernão Lara Mesquita)

Esse nada do bolsonarismo x lulismo em que andamos vagando é o resultado da vitória da censura. A razão de ser do bolsonarismo é o lulismo e a razão de ser do lulismo é o bolsonarismo. Um existe como a negação do outro e os dois se equivalem e se anulam.
O diabo é que o centro não existe porque não sabe o que querer. Os social-democratas, portadores da síndrome do “renegado Kautsky”, nunca se livraram do “pecado original” que lhes permitiria existir por si mesmos. São a eterna sombra da esquerda antidemocrática dona do corpo que a produzia e que agora está morta. E os liberais made in Brazil simplesmente não têm no mapa a vasta planície que existe entre os dois abismos que assombram seus sonhos, o da presente iniquidade institucionalizada e o da anomia em que temem que o País caia se sair disso para o que lhes parece território incerto e não sabido. Faltam escola e jornalismo que dê a conhecer a ambos a hipermapeada solidez e a lógica prosaica da alternativa democrática real em funcionamento no mundo que funciona.
O Brasil das vilas perdidas do sertão que, no seu isolamento, tiveram de se auto-organizar para prover todas as suas necessidades praticou por 300 anos a “democracia dos analfabetos”, elegendo com pacífica e ininterrupta regularidade as lideranças da sua organização para a sobrevivência. Mas foi subitamente arrancado dessa sua “americanidade”. Tiradentes foi o último impulso de descolamento das velhas doenças europeias emitido por esse nosso DNA histórica e geopoliticamente democrático antes de elas passarem a nos ser instiladas de dentro, a partir de um Rio de Janeiro que purga até hoje o trauma do estupro em plena adolescência por uma monarquia decadente e corrupta no momento mesmo em que a democracia ensaiava os primeiros passos da sua terceira caminhada pelo planeta. Desde então temos sido cirurgicamente excluídos da trajetória dela...
O governo bipartido entre os Bolsonaros e o time de Paulo Guedes e Cia. corporifica essa dualidade. Ele é o filho tecnocrático importado, mas órfão do pai político e ideológico que o fez nascer nas democracias que fixaram a inviolabilidade da pessoa como o ponto de partida e de chegada de todas as ações do Estado e a hegemonia da iniciativa individual sobre a pesporrência de uma “nobreza” corrupta na busca da felicidade geral da Nação. Falta a humildade para importar o pai da experiência humana para a experiência brasileira, como têm feito os asiáticos e o resto do mundo que vai pra frente.
A ciência moderna só pôde estabelecer-se a partir do momento em que o dogma imposto pelo terror da “ira divina” passou a ser “protestado”. Mas onde a Contrarreforma, armada da Inquisição, fincou pé os “terraplanistas” da política seguem com sua furiosa campanha contra as vacinas institucionais que há mais de 200 anos fazem despencar a incidência de miséria onde quer que sejam aplicadas.
O Brasil é refém de um “Sistema” fechado em si mesmo, ancorado num passado que está morto e hermeticamente blindado contra qualquer eflúvio de renovação. E o monopólio da oferta de candidaturas ao eleitorado atribuído aos partidos políticos, recém debatido no STF, é a peça fundamental dessa blindagem. Nada na nossa ordem partidária e eleitoral tem o propósito de reproduzir fielmente o País real no País oficial, o pressuposto básico da constituição de uma democracia representativa. O único objetivo do “Sistema” é autorreproduzir-se e prevenir a ferro e fogo qualquer hipótese de surgimento de concorrentes.
Que os seus sumos sacerdotes fulminem qualquer dissidência no altar do STF com a invocação da letra da sua própria lei e os seus inquisidores eletrônicos corram o reino prometendo o fogo do inferno a quem ousar desafiá-la não põe nada de novo sob o sol. Toda igreja, da primeira à última, acenou com o seu céu para impor o seu inferno. Mas quando ouço a afirmação de que candidaturas avulsas seriam “obras individuais” que “atentam contra a democracia representativa e o Estado Democrático de Direito” tento convencer-me de que se trata apenas de um equívoco acaciano e não consigo.
Tais candidaturas seriam atentatórias ao Estado de Direito se, como os nossos partidos, fossem sustentadas pelo Estado à revelia do que pensam delas os eleitores. Posta num contexto histórico então essa condenação emparelha, em matéria de anacronismo, com a afirmação em pleno terceiro milênio de que a Terra é plana e o resto do Universo é que gira em torno dela. Afinal, a própria Constituição de 88 confessa seu dolo “ao exigir filiação partidária e fazer depender o exercício do direito de se candidatar de uma aceitação prévia de seus pares”, e não da aceitação prévia dos eleitores, como acontece em todas as democracias sem aspas, que não apenas aceitam e incentivam candidaturas avulsas independentes, como também, para prevenir a apropriação indébita da vontade do povo, da qual todo poder emana, impõem aos partidos regras internas permeáveis de apresentação de candidaturas a serem decididas em eleições prévias diretas.
A cura do Brasil, assim como historicamente se deu com outras democracias que se curaram antes da nossa, passa necessariamente pela instituição de eleições distritais puras, as únicas a proverem uma identificação à prova de falsificações entre representantes e representados, pela aceitação de toda e qualquer candidatura que o povo chancelar, pela despartidarização completa das eleições municipais, tanto porque não faz sentido misturar ideologia com a gestão técnica da infraestrutura das cidades quanto para encurtar o espaço dos proprietários de partidos políticos, pela imposição de primárias diretas das eleições estaduais para cima e, finalmente, pela instituição dos direitos de recall, referendo e iniciativa legislativa para os eleitores manterem seus representantes sob rédea.
Isto porque – é claro como o sol! – democracia existe quando é o povo quem manda. Na outra ponta estão as venezuelas e as cubas da vida. E no meio, isto é, no nada, boia o Brasil junto com outros náufragos.
O Estado de S.Paulo/17 de dezembro de 2019