segunda-feira, 21 de março de 2011

Kassab, a tradição que se renova (César Felício)

O movimento partidário desencadeado ontem em Salvador pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, não apenas reafirma uma tradição brasileira - a da irrelevância dos partidos - como se tornou uma espécie de ato inaugural de 2014. Ainda não está claro se o partido de Kassab irá sobreviver a duas eleições, mas há pelo menos uma certeza: o prefeito paulistano migrou para a base de sustentação da presidente Dilma Rousseff. Basta ver quem estava na festa baiana, em que o vice-governador Otto Alencar assumiu a condição de articulador da nova sigla no Estado: os senadores Walter Pinheiro (PT) e Lídice da Mata (PSB) e o deputado federal Nelson Pelegrino (PT).

Esta é uma notícia ruim para José Serra, muito ruim para Geraldo Alckmin, boa para Aécio Neves e preocupante para o PT. Até agora uma ferramenta de Serra em São Paulo, Kassab situou nova perspectiva para o seu antigo líder nas futuras eleições presidenciais: o de ser uma espécie de "plano B", se algum fator externo inviabilizar a reeleição da presidente Dilma Rousseff e se Serra convencer o PSDB a lançá-lo novamente.

É difícil outra leitura das afirmações feitas por Kassab à revista "Veja". " O Brasil tem uma presidente que tem tudo para permanecer oito anos no poder", diz o prefeito, em determinado momento. Em outro, afirma: "Se a presidente Dilma Rousseff não corresponder às expectativas do país, não haverá razão para eu não ficar outra vez ao lado do Serra". O tucano deixou de ter um apoio certo para ter um apoio condicionado.

A aventura partidária de Kassab ganha gravidade para o governador paulista Geraldo Alckmin a partir do momento que envolve o vice-governador Guilherme Afif Domingos. Ao seguir Kassab, Afif atrelou-se a um segredo de polichinelo, o da candidatura de Kassab ao governo paulista de 2014, em relação ao qual toda negativa do prefeito é destituída de credibilidade. Se Alckmin se afastasse do governo paulista para tentar novamente a Presidência, perderia controle sobre a própria sucessão. É um motivo mais do que suficiente para prendê-lo a São Paulo.

Exatamente por prejudicar Alckmin e Serra, sem que esta tenha sido em nenhum momento sua intenção, Kassab termina por favorecer a Aécio Neves no campo oposicionista. O senador mineiro ainda tende a contar com uma base sólida de apoio no DEM, ainda que o partido fique enfraquecido.

O PT paulista é um potencial perdedor com o movimento de Kassab, já que o atual prefeito surge em 2014 como um palanque alternativo para uma nova candidatura presidencial de Dilma Rousseff ou de Lula em São Paulo. Kassab disse à "Veja" não acreditar em uma terceira via na próxima eleição presidencial, mas demonstra estar certo de que poderá quebrar dicotomia entre tucanos e petistas no âmbito regional.

Kassab cria seu partido para viabilizar um projeto pessoal e o principal atrativo da legenda é o de proporcionar um "macete", uma gambiarra para os políticos que desejam trocar de partido e sabem que a possibilidade com menos risco de problemas com a justiça eleitoral é a de participar da criação de uma agremiação. Ao agir assim, o prefeito paulistano está longe de ser inovador. Kassab disse ter se inspirado em um político mineiro, o presidente Juscelino Kubitscheck, para recriar o PSD. Poderia evocar outro, o ex-governador Hélio Garcia, que em janeiro de 1990 inventou um certo "Partido das Reformas Sociais". O PRS só existiu nas eleições daquele ano e teve uma única finalidade: servir de veículo para Garcia concorrer novamente a governador.

O efêmero PRS era a alternativa para Garcia, já que ele não poderia contar com o PMDB, nas mãos do então governador Newton Cardoso, nem com a simpatia do Palácio do Planalto, que ia para Hélio Costa (PRS), nem com o recém-criado PSDB, comandado à época pelo então prefeito de Belo Horizonte, Pimenta da Veiga, e muito menos com o PT. Finda e ganha a eleição, Hélio Garcia não se constrangeu em dissolver o partido.

Um traço distintivo da história brasileira é a pouca significação eleitoral dos partidos. Siglas como PCdoB, PSB, PP, PDT ou PMDB conseguem manter razoável consistência parlamentar graças a mecanismos institucionais que garantem a fidelidade das bancadas às suas lideranças. Do ponto de vista eleitoral, contudo, gravitam em torno de governadores ou de candidaturas isoladas. É um evidente absurdo considerar o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, "socialista", o pagodeiro Netinho, "comunista", ou o ex-presidente Fernando Collor, "trabalhista". É sabido, e determinação alguma da Justiça Eleitoral poderá mudar isso, que as siglas são peças intercambiáveis para o funcionamento de uma máquina.

E esta não é uma particularidade da estrutura partidária de hoje. Não se consegue contar a história do Brasil pela de seus partidos. É sintomático que o PSD que inspirou Kassab tenha sido a sigla mais bem sucedida no período de 1946 a 1964 na preservação do poder. Ao contrário do PTB e da UDN, era impossível associar o PSD com qualquer corrente ideológica: o partido encarnava o centro.

Como discorre a cientista política Lúcia Hipólito, em seu livro "PSD-de raposas e reformistas", de 1985, este modelo foi eficaz enquanto o sistema político não apresentava uma radicalização, ideológica e política, em seus polos. No momento em que o cenário foi tomado por posições extremas, o pessedismo se desagregou.

O partido exerceu um papel patético no seu ano final: a frase "declaro vaga a Presidência da República", que selou institucionalmente a deposição de João Goulart, foi dita por um pessedista, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. No momento em que o Ato Institucional que inaugurou o regime militar foi editado, o presidente nominal do Brasil, era o pessedista Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. Quando Juscelino foi cassado, em 1964, o vice-presidente era um dos ícones do PSD, José Maria Alkimim. Após o AI-2, em 1965, que extinguiu os partidos, 60 deputados pessedistas foram compor a Arena. Apenas 37 migraram para o MDB. Foi talvez a maneira particular que muitos encontraram para se manter fiel ao hino do partido: "O PSD é a voz do Brasil unido, PSD nunca foi nem será vencido".

César Felício é correspondente em Belo Horizonte. O titular da coluna, Luiz Werneck Vianna, não escreve hoje excepcionalmente

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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