segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Políticos imperfeitos (Marco Aurélio Nogueira)

Na conhecida conferência A política como vocação, proferida em 1919, o sociólogo alemão Max Weber sugeriu que o verdadeiro homem político deveria possuir ao menos três qualidades essenciais: precisaria combinar a paixão por uma causa, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Poderia ter uma dessas qualidades em maior dose, mas não poderia deixar de ter as três. Com elas, entre outras coisas, haveria como controlar a vaidade, o desejo de permanecer sempre no primeiro plano, e dar o devido peso à missão política propriamente dita.
A sugestão é útil para que se discuta, por exemplo, a conduta de parlamentares e governantes, seu maior ou menor sucesso, seu estilo de liderança, as razões que os fazem mais eficientes na representação política e na gestão e lhes dão maior capacidade pedagógica de interagir democraticamente com as massas.
Há governantes que se seguram tão somente na paixão pela causa, conseguindo compensar a ausência (relativa) das outras qualidades mediante a organização de uma boa equipe de auxiliares. Enquanto o chefe faz política e enfatiza sua causa, os assessores cuidam da administração e garantem alguma margem de responsabilidade e senso de proporção no processo de tomada de decisões. Lula pode ser aqui tomado como exemplo positivo. Dilma seria um exemplo negativo.
Em seus dois mandatos, o ex-presidente não deixou um minuto sequer de fazer política e reverberar sua causa. Conseguiu terminar seus governos nos braços do povo, sua equipe de auxiliares se encarregou, com eficiência, de fazer a máquina administrativa funcionar e estabilizar a base política, que forneceu ao governo a necessária sustentação. As circunstâncias nacionais e internacionais foram-lhe favoráveis e o beneficiaram com os ventos da Fortuna, mas é evidente que houve Virtù e bom desempenho entre 2013 e 2010.
Com Dilma Rousseff ocorreu o contrário. Apresentada ao mundo como “gestora rigorosa e técnica competente”, não mostrou aptidão particular para a política, não conseguiu expressar causa alguma nem exibiu a exaltada competência administrativa. Seu senso de proporção e responsabilidade foi reduzido, o que impulsionou a crise. Em decorrência, entrou em atrito com amigos, aliados e auxiliares, não estruturou uma equipe leal e eficiente, teve de aceitar a contragosto a transferência da operação política para outros personagens e não conseguiu organizar um Estado administrativo vigoroso. As circunstâncias não a beneficiaram e passaram, em decorrência, a exigir sempre mais talento político, que lhe era escasso. Dilma plantou, assim, os ventos que iriam transformar-se na tempestade perfeita do impeachment. A desgraça configurou-se quando ela, em 2014, bateu pé e fez questão de concorrer à reeleição. Sua vitória nas urnas foi de Pirro e só serviu para bloquear as chances que o PT teria de ajustar o curso do navio.
Faltaram a Dilma, portanto, as três qualidades essenciais estabelecidas por Weber, com o que ela foi devorada pela vaidade e pela dificuldade de interagir democrática e pedagogicamente com as massas. Sua queda foi uma espécie de profecia que se autorrealizou.
Trazendo o argumento para os dias correntes, encontramos Michel Temer como exemplo de político com dificuldades para combinar as três qualidades. Falta-lhe antes de tudo a devoção a uma causa, já que a ideia de fazer de seu governo um artífice da retomada do crescimento econômico e do ajuste fiscal não aquece mentes e corações. Com o tropeço nas pedras que surgiram pelo caminho (Joesley e Janot), Temer viu evaporar o que tinha de força para aprovar reformas, sobretudo porque não soube reunir os consensos sociais necessários para fazê-las e foi sendo desconstruído pelo próprio Congresso, que esperava ver apoiá-lo.
O presidente também não demonstra possuir um apurado senso de proporção e responsabilidade, o que fez com que vacilasse na composição de seu Ministério, para o qual convocou pessoas que pouco o ajudam e têm opaca imagem pública, e se entregasse desmesuradamente ao jogo político miúdo e fisiológico. Foi, assim, sendo devorado por predadores de várias espécies, perdendo condições de fazer política abrangente, a ponto, por exemplo, de influenciar sua própria sucessão. Tornou-se um governante inercial, refém do Congresso e sustentado pelos relacionamentos que amealhou durante a longa carreira parlamentar. Seus baixíssimos índices de aprovação e popularidade fecham a moldura.
Mas a crítica a ele deve ser bem calibrada. Temer é produto do quadro político atual, que está majoritariamente ocupado por políticos imperfeitos. Alguns têm causas, outros se declaram responsáveis, mas há poucos que se dediquem a unir uma qualidade à outra. Não porque não as tenham, mas porque não se dispõem a confrontar as bandas podres do sistema e recuperá-lo.
Bons políticos existem e continuarão a existir sempre. O que falta é que eles se reúnam, se articulem, se imponham nos espaços políticos institucionais e dialoguem abertamente com a sociedade. Sem a paixão que promove a entrega a uma causa e sem um sentido superior de responsabilidade (pública), os políticos são atraídos mais pelo brilho do que pela realidade do poder; e terminam por usufruir o poder pelo poder, sem cumprirem funções positivas. Precisam romper com isso.
Constatar que um país como o Brasil esteja entregue nos últimos 15 anos às desventuras de políticos “imperfeitos” – e imperfeitos porque “incompletos” – certamente levaria Max Weber a tremer no silêncio sepulcral em que repousa.
Quanto a nós, pobres seres viventes, a constatação provoca pasmo e uma perturbadora inquietação. O momento é exigente, pede empenho e discernimento. Não precisamos de “chefes”, mas de políticos dispostos ao sacrifício e vocacionados para colocar os dedos nas engrenagens da História, assumindo compromissos claros com uma agenda corajosa.
Fonte: O Estado de São Paulo (28/10/17)

domingo, 29 de outubro de 2017

Escravidão, hoje (José de Souza Martins)

A portaria do governo brasileiro que pretende redefinir o conceito e a teoria da escravidão, para atenuar a justa e necessária fiscalização e repressão ao escravismo entre nós, fere a Constituição, as leis e as convenções internacionais de que o país é signatário. Ela nos envergonha porque nos define como retrógrados. É um ataque a nossas conquistas históricas relativas à liberdade pessoal e também à emancipação da pessoa das iniquidades que nos afligem desde dom Manuel I.
Não se passaram muitos anos para que os nativos, definidos por Pero Vaz de Caminha como pardos, fossem submetidos a um cativeiro peculiar que ganhará nome jurídico na condição de índio administrado para ser convertido ao catolicismo e pagar a conversão com a escravidão. Esse cativeiro, formalmente, será abolido em 1757. Serão transformados em agregados, os nossos servos da gleba.
Com a escravidão indígena, convivera a escravidão negra, dos cativos importados da África, que diferentemente dos índios, eram escravos-mercadoria. Capturados por nativos inimigos e vendidos aos traficantes brancos, vieram nas Américas nutrir com seu trabalho, sob o regime da chibata, a acumulação originária do capitalismo que nascia na Europa. Era a escravidão que terminará em 1888 por iniciativa de homens lúcidos, como Joaquim Nabuco e Antônio da Silva Prado. A escravidão escravizava todo o país.
A criminalidade da escravidão, retrógrada e insidiosa, no entanto, persiste. Antes mesmo do fim da escravidão negra, já havia surgido entre nós a escravidão por dívida. Euclides da Cunha, em obra póstuma, "À Margem da História", de 1909, mesmo ano de sua morte, narra o seu florescimento nos seringais da Amazônia e descreve seus mecanismos. Ele a conhecera diretamente quando fez parte da comissão de demarcação de fronteiras no Alto Purus.
Em meados dos anos 1970, as jornalistas inglesas Sue Branford e Oriel Glock, com base nas fotografias aéreas de regiões de mata devastada da Amazônia e no número médio de peões necessários para derrubar um alqueire de mata para abrir novas fazendas, estimaram que ali havia de 200 mil a 400 mil trabalhadores escravizados. Remanescentes do escravismo persistem residualmente em diferentes aspectos das relações de trabalho.
Em 1995, o governo brasileiro, em discurso radiofônico do presidente Fernando Henrique Cardoso, reconheceu que havia prática de trabalho escravo no país e anunciou medidas para combatê-la. Criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e o Grupo Móvel da Fiscalização, acionados diretamente de Brasília e protegidos pelo sigilo. A corajosa ação do Grupo Móvel reduziu o número de casos a cerca de 12 mil em 2001.
Por essa época, sinais de recrudescimento da escravidão, que se espalhara para outras regiões brasileiras e até na indústria de confecções na cidade de São Paulo, levaram à criação de comissão especial no Ministério da Justiça e na Secretaria de Direitos Humanos que se incumbiria de rever a legislação e de propor novas medidas de combate à violação dos direitos sociais e trabalhistas.
A comissão, que presidi, constituída de representantes de vários órgãos do Estado brasileiro, produziu o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e Escravo, entregue ao presidente da República em outubro de 2002 para o crivo da assessoria jurídica da Presidência e legado ao novo presidente. A desproporcional influência do agronegócio na estrutura de poder, a partir do governo Luiz Inácio, bloqueou a aprovação, no Congresso, de várias medidas fundamentais para reverter a tendência à barbárie nas relações de trabalho.
A escravidão tem se mantido forte e se expandido em todo o mundo, especialmente na Ásia e na África. Mas há registros de episódios relativamente recentes na Europa e nos Estados Unidos. São hoje 40,3 milhões de escravos no mundo, dos quais 25 milhões em trabalho forçado. Os lucros da escravidão são poderosos. Gente está virando mercadoria. Há pouco mais de um ano, um traficante tentava vender dois escravos bolivianos por US$ 1 mil cada um na própria feira do Pari, praticamente no centro da cidade de São Paulo. Foi denunciado e preso.
No caso brasileiro, a maioria das pessoas escravizadas só percebe que foi reduzida ao cativeiro quando descobre que já não é dona de si mesma e se vê em face de ostensivas manifestações de repressão física ou psicológica. A mudança nas regras interdita a ação dos fiscais do trabalho, protege quem escraviza, anula direitos das vítimas e não premia os empregadores que cumprem as leis. Sobretudo quem reconhece que a emancipação dos seres humanos de qualquer forma de sujeição liberta a todos e não só quem padece a degradação do cativeiro.
Fonte: Valor Econômico (27/10/17)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A união indispensável (Marco Aurélio Nogueira)

Democratas de todos os partidos e quadrantes, uni-vos! Vocês nada têm a perder a não ser os grilhões que os aprisionam ao atraso, à inoperância, à demagogia. Têm um mundo a conquistar: um país mais justo, mais dinâmico, menos atropelado pelas estripulias obscenas de corruptos e aproveitadores, assim como de exploradores da ingenuidade política das multidões.
A paráfrase da frase célebre do Manifesto de Marx e Engels serve para indicar o caminho das pedras que os brasileiros devem seguir. Não há meio termo, atalhos alternativos. A estrada pode não levar de imediato a um novo mundo, mas se quisermos ter chances reais de futuro é por ela que teremos de trafegar.
Reúnam-se todos, liberais, socialistas, comunistas, ex-comunistas, liberais-socialistas, conservadores liberais, católicos, umbandistas e evangélicos. Façam com que importe menos o que os divide e deixem tremular mais alto a bandeira da democracia, que generosamente os abrigará a todos.
Unam-se, porque se não o fizerem a desesperança cívica corroerá os laços já débeis que ligam a sociedade à política. Os cidadãos fugirão da democracia representativa, como vêm demonstrando a pouco e pouco querer fazer. Os autoritários avançarão, as soluções mágicas cairão como perdigotos de ouro da boca dos salvadores de plantão, que não se pejam de chorar lágrimas de crocodilo em público e de posar de vítimas impolutas. Sem a união ativa dos democratas, crescerão os chamamentos à caserna, as vozes favoráveis a intervenções militares saneadoras, que limpariam a sujeira acumulada, como se fosse possível fazer isso contra cidadãos, políticos e democratas. Ganharão corpo, também, as iniciativas para trancar a política com as cordas da Justiça, vistas como antídoto infalível contra os “maus” políticos.
Se os democratas continuarem divididos e inertes, o futuro será comprometido. Escaparão pelos poros do sistema todos aqueles que desejam que tudo fique como está ou que pregam as virtudes de uma volta para trás, o retorno da força e da autoridade perdidas, a reiteração da interpelação direta e sem mediações do “chefe” e do “líder” com as massas marginalizadas e os crentes fanáticos, a absolvição generalizada dos corruptos e dos escroques de todas as correntes políticas. Ganharão fôlego os nefelibatas fundamentalistas, os sonhadores que com suas maquinações nos roubam o senso de realidade e nos empurram para o reino da fantasia.
Sem o concurso desprendido dos democratas, unitário a ponto de superar discordâncias tópicas, vaidades despropositadas e obstáculos circunstanciais, aumentarão os apelos ao protagonismo antipolítica de magistrados e procuradores, investidos de atribuições substitutivas que não lhes competem. Atenção cuidadosa, porém, deverá ser dada ao papel que vem sendo desempenhado pelo STF, pelo MPF e pela Polícia Federal. Pode haver algum viés jacobino aí, mas é melhor jogar o jogo nos tribunais do que sob o tacão das baionetas. O fato é que o protagonismo judicial se impôs quanto mais o Executivo e o Legislativo foram perdendo credibilidade e legitimidade. A raiz da crise não está nem nunca esteve no Judiciário. Assim como não é uma crise derivada da corrupção galopante. Trata-se de um problema político, grudado naqueles que fazem da política sua razão de viver.
Podemos dizer: a crise se alimenta da distância que se abriu entre um sistema político fragmentado, sem lideranças de coordenação, e uma ordem social em transformação acelerada, tudo devidamente assentado numa democracia política que subsiste e se reafirma. Se nada for feito, o choque produzirá conflitos de grande magnitude. Se a crise, porém, for democraticamente administrada, dela poderão nascer uma nova sociedade e um novo modo de fazer política.
A força do processoOlhem um pouco mais atentamente para o processo. Nas últimas três ou quatro décadas, o Brasil evoluiu, melhorou em inúmeros aspectos, deu mostras de que pode ultrapassar as barreiras do atraso secular, das deformações estruturais, da improvisação, da espoliação dos pobres pelos poderosos, do excesso de Estado, do desperdício.
É bem verdade que essa marcha foi descontinuada de 2013 para cá, período em que o desatino se sobrepôs ao discernimento e à responsabilidade e em que a corrupção veio a público com a força de um vulcão que libera uma lava tóxica que só provoca horror e desilusão.
Mas o eixo do processo – desenvolvimento com inclusão social – permaneceu vivo e mesmo neste ciclo político aziago e temerário em que estamos pode ser reativado, retomado, recuperado. A um único preço: o da suspensão dos antagonismos artificiais, das polarizações estéreis, dos particularismos exacerbados, do radicalismo retórico.
Unam-se pois, democratas! Passem um pano vigoroso na velharia político-partidária que nos atazana, na impunidade que nos envergonha, no desperdício de recursos e talentos que nos mantém parados no tempo, girando em falso.
Assumam o papel de vanguarda moderna que lhes cabe. Saiam da letargia, mobilizem a sociedade, rompam os grilhões do sistema político, resistam ao corporativismo multifacetado que vigora no Estado e na sociedade civil. Abracem o povo, interpelando-o ativamente para escutar suas pulsações e com ele elaborar uma agenda que nos impulsione para frente e nos distancie do regressismo autoritário, da palavra fácil que incendeia e da demolição política. As urnas de 2018 estão logo ali. Não cheguem desarvorados a elas.
Fonte: O Estado de São Paulo (21/10/17)

Ouro de tolo (Demétrio Magnoli)

"O nióbio vale mais do que o ouro", anunciou Jair Bolsonaro, meses atrás, acusando os "interesses estrangeiros" de se beneficiarem da demarcação de terras indígenas na Amazônia.
Bolsonaro não desistiu de sua obsessão nacionalista pelo minério, mas instalou-a na retaguarda de um discurso econômico de tons liberais, que procura conectar à defesa de valores conservadores.
A salada ideológica incongruente responde a uma estratégia eleitoral definida, cuja eficácia mantém relação inversa com a estabilidade de nossas instituições políticas. Nela, o dado mais curioso é o flerte de grupelhos ultraliberais ativos nas redes sociais com um candidato que não oculta sua nostalgia do regime militar.
Minérios e combustíveis fósseis são objetos de fetiche dos nacionalistas. Incapazes de compreender que a riqueza é uma relação social dependente da produtividade geral da economia, eles se apegam ao "concreto". Infantilmente, imaginam a riqueza como um tesouro que precisa ser protegido da sanha do inimigo externo: a salvação pelo nióbio inscreve-se na tradição do "petróleo é nosso" e da "defesa do Pré-Sal".
Bolsonaro poderia optar pela combinação coerente do ultranacionalismo com o conservadorismo fundamentalista. Mas, para se credenciar como candidato respeitável, adicionou à equação uma coleção de claudicantes sentenças econômicas liberais. E —surpresa!— encontrou eco entre nossos liberais.
No papel, liberais são inimigos jurados da opressão estatal contra os indivíduos —e, portanto, arautos de três ordens de liberdades: econômicas, políticas e individuais. Nos EUA, contudo, uma vertente liberal associou-se aos cristãos conservadores para empreender a cruzada intolerante da "guerra de valores".
O governo Trump é um fruto estranho, e inesperado, da profana aliança de duas décadas. Nossas seitas liberais, reforçadas pelo advento do MBL, inclinam-se a mimetizar os americanos —e, perfiladas a Bolsonaro, deflagraram uma "guerra de valores" tupiniquim.
O bloco liberal-conservador aperta as teclas quentes do combate à corrupção e à criminalidade, que soariam eleitoralmente como as teclas geminadas da imigração e do terrorismo na Europa ou nos EUA. Para a imitação ser perfeita, clama-se por um direito irrestrito à posse de armas.
Sem ruborizar, os liberais de megafone solicitam a intervenção estatal nas salas de aula (Escola Sem Partido ) e um controle oficial à expressão artística (MAM ). O Estado deles deve ser, simultaneamente, mínimo (para assegurar as liberdades econômicas) e máximo (para limitar as liberdades individuais).
Nada mais fácil que apontar o tamanho do abismo entre os princípios liberais e a estratégia dos liberais bolsonaristas. Suspeito, porém, que o enigma tenha solução: uma falha filosófica profunda arrasta os supostos campeões das liberdades para as águas sujas do conservadorismo autoritário.
O austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), um dos "pais fundadores" do pensamento liberal contemporâneo, imaginava que a liberdade nascesse na esfera privada das relações de mercado, espraiando-se dali para a esfera pública das relações políticas. Mises exilou-se nos EUA, fugindo do nazismo.
O americano Milton Friedman (1912-2006), inspirador da "escola de Chicago", não viveu sob o totalitarismo e, talvez por isso, deu um passo além, desvalorizando as liberdades políticas.
Friedman prontificou-se a oferecer conselhos econômicos à ditadura chilena de Pinochet e, mais tarde, ao regime comunista chinês. Sua justificativa: "Embora a liberdade econômica seja necessária para a liberdade política, o inverso não é verdadeiro: a liberdade política, ainda que desejável, não é necessária para que a economia seja livre".
Minha tradução: nada melhor que uma tirania para impor um programa econômico ultraliberal. Nossos liberais bolsonaristas já têm o seu nióbio.
Fonte: Folha de São Paulo (21/10/17)

Os três patéticos (Fernando Limongi)

Foi manchete da "New Yorker": "Conversa franca de um golpe militar desestabiliza o Brasil". Os gringos continuam com dificuldades para entender o país. Que se tenha notícia, ninguém achou que o pronunciamento do General Antônio Hamilton Martins de Mourão seria a senha para pôr tropas nas ruas. O sintomático, o que gringo algum consegue entender, é que o presidente em exercício tenha anunciado aos quatro ventos que há uma conspiração em marcha, que querem derrubá-lo a qualquer custo, mas não tenha censurado o General Mourão.
Nesta hora, impossível não evocar a boutade de Ulysses Guimarães quando outro vice em exercício quis se valer da expansão verbal de generais para calar a oposição. No cenário atual, falta alguém com a mesma autoridade para gritar: "Chega de patetices". Hoje, o Brasil está nas mãos de triunvirato tão irresponsável quanto o que levou Ulysses a se lembrar de Moe, Larry e Curly.
Outra frase famosa de Ulysses - "Impeachment é como a bomba atômica, serve para dissuadir, não para ser usada" -, recuperada no início da crise, acabou esquecida até por quem a lembrou. Ulysses, uma vez mais, estava certo. Decisões têm consequências. O que os gringos de fato estão dizendo é o seguinte: o Brasil virou uma República de Banana. Para os mais jovens, a expressão talvez não faça grande sentido. Ninguém mais se lembra da United Fruits. A referência, na verdade, é inadequada porque não há intervenção externa. Agora a bagunça é toda 'made in Brazil". Dispensamos o imperialismo.
Temer não encontrou tempo para repreender Mourão. Mas teve espaço na agenda para se sentar à escrivaninha e se dedicar ao seu gênero literário preferido: cartas-desabafo lamuriosas. A abertura é magistral: "Prezado parlamentar: a minha indignação me traz a você". As "torpezas e vilezas" de que vem sendo vítima convenceram-no da existência de uma "urdidura conspiratória" visando derrubá-lo. Por isto a carta: "Não posso silenciar. Não devo silenciar." A indignação teatral não convence. Os termos escolhidos traem o formalismo tortuoso dos círculos que traça com as mãos quando se dirige ao público. Temer raciocina em bacharelismo parnasiano. Sua mente se ocupa e é habitada por "urdiduras".
Dá-se como assentado que os destinatários da missiva absolverão o presidente. Também se tem como certo que será alto o preço que os 'prezados' cobrarão. As duas certezas, contudo, se contradizem. Se a vitória é certa, por que ceder a chantagens? Por que pagar pelo que é certo?
É um equívoco dizer que Temer cede a pressões ao levantar barreiras à exploração de minérios na Amazônia. Tampouco faz sentido afirmar que ruralistas arrancaram a infame portaria sobre o trabalho escravo. O governo Temer não está tomando decisões a contragosto para contentar uma 'base de apoio' que lhe é estranha. O presidente é a personificação acabada da base. Estas são simplesmente as forças políticas que exercem o poder político no Brasil hoje.
Engana-se, portanto, quem supõe que existem dois entes em conflito, com interesses diversos, a Presidência e a maioria legislativa. O governo é 'sincero' quando baixa tais portarias. Faz concessões quando agrada o mercado, quando afirma que sua prioridade são as reformas. Por isso o ministro Antônio Imbassahy gera tanto rancor e ódio das forças governistas. Ele é a concessão vista como desnecessária pela tropa de choque, pelos que estão com Temer e seu governo desde criancinha. É a turma comandada por Padilha. Temer e seu grupo lutam por um mundo livre da fiscalização ambiental e das condições de trabalho. E não estão sozinhos.
Comentando a última portaria, a do trabalho escravo, rindo da própria blague, o ministro do STF Gilmar Mendes se esmerou e conseguiu o inimaginável; arranhar ainda mais a própria imagem. Querer fazer graça e, ainda, sair em defesa da medida que confessou não ter lido é indefensável. Ninguém precisa da opinião do ministro para ter certeza de que ele não é um escravo. Bem ao contrário. As suspeitas de que o ministro deveria se ocupar são as levantadas pelo ex-ministro Joaquim Barbosa em sessão do Supremo e disponíveis no YouTube.
A fala de Gilmar trai o prazer sádico com que espezinha os cidadãos, reiterando a cada oportunidade que pode falar o que lhe dá na telha e que ninguém o chamará à razão.
Ninguém, não. Quando o chamado é do senador Aécio Neves, a resposta é imediata. A linha pode cair, a reunião pode ser importante e, mesmo, a decisão pode afetar o próprio Aécio, não importa, Gilmar acha tempo para batucar a resposta no celular. Não se sabe o porquê, mas para as conversas entre os dois não se aplica a "Doutrina Moro", segundo a qual "o povo tem o direito de saber". Gilmar não se explica. Para quem habita o Olimpo, não é preciso se declarar vítima de conspirações.
Aécio Neves, contudo, depende do voto dos seus concidadãos e precisa 'produzir' desculpas e quer fazer crer que é vítima de conspirações torpes contra sua honra. Destituído da verve bacharelesco-confessional de Temer, Neves recorreu a anódinos 'press releases' e a notas escritas pelos seus advogados. Reconhece que errou, mas só ao escolher palavras chulas; de resto, tudo normal, estava só negociando a venda de um apartamento para o dono de frigoríficos e abatedouros. Sugestionado, o senador caiu na armadilha e procurou alguém na categoria dos que "a gente mata antes de fazer a delação" para pegar a grana. Escolheu para a tarefa, vale lembrar, um familiar.
Ulysses Guimarães, com toda certeza, teria se dado conta de que o país se encontra nas mãos de um triunvirato. Os três presidentes que de fato governam o Brasil, o da República, o do TSE e o do PSDB, mostram-se três figuras patéticas, agarradas ao poder e que fazem qualquer coisa para mantê-lo. Ulysses acharia fórmula mais precisa. Quem sabe aí os gringos entendessem.
Fonte: Valor Econômico (23/10/17)

A batalha contra o autoritarismo não acabou (Fernando Abrucio)

Há uma data que minha geração não esquece: 15 de janeiro de 1985. Neste dia, Tancredo Neves, candidato de oposição ao regime militar, venceu a eleição indireta à Presidência da República. Depois de quase 21 anos de autoritarismo, o país voltava à democracia. Não foi um caminho fácil, numa transição "lenta, gradual e segura", como definira o general Golbery. Além disso, a morte de Tancredo e a posse de Sarney mantiveram o suspense em relação ao efetivo ocaso da ditadura. Mas parecia que o final feliz tinha chegado quando a Constituição de 1988 foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. A partir daí, tivemos o mais longo período democrático de nossa história. Porém, alguns fantasmas autoritários começam a rondar o Brasil novamente.
Os riscos à democracia estão na sociedade e na classe política. São grupos cada vez maiores de brasileiros que creem cada vez menos no jogo democrático, e políticos que fazem discursos que desrespeitam princípios básicos do Estado de direito - o pior é que um conjunto importante do eleitorado apoia essa visão de mundo. Soma-se a isso a perda de poder e coerência de muitas instituições após quase três anos de crise política.
Um primeiro indício assustador da sociedade brasileira foi dado pela pesquisa Medo da Violência e Apoio ao Autoritarismo, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com Datafolha. A partir de uma sondagem nacional inédita, construiu-se um Índice de Propensão ao apoio a Posições Autoritárias, baseado na pesquisa comandada, na década de 1950, pelo filósofo Theodor Adorno, junto com psicólogos da Universidade de Berkeley. Esse famoso estudo tinha como inspiração última entender o que levou milhares de pessoas a apoiarem um regime como o nazismo.
Os dados colhidos geraram um indicador de 8,1 de apoio a posições autoritárias entre os brasileiros, numa escala de 0 a 10. O número é alto, embora não haja uma série histórica para dar uma dimensão mais exata sobre o fenômeno. De todo modo, as respostas aos itens revelaram, sobretudo, uma alta propensão para submissão à autoridade, o que, no fundo, significa que uma grande parcela da população (bem mais do que a maioria) está querendo um "governo forte".
Os mais pobres constituíram o grupo que mais se posicionou em prol de valores tendentes ao autoritarismo. Para essa parcela da população, o principal problema que os levou a assumir tais posições é bem nítido: a falta de um Estado efetivo. Não por acaso, são também os integrantes das classes D e E os que mais defenderam uma agenda de expansão de direitos. São duas faces da mesma moeda: se o Brasil não conseguir melhorar a cobertura e a qualidade dos serviços públicos, os mais carentes vão querer alguma solução para lidar com sua vida sofrida e violenta. Uma avenida aberta para visões autoritárias ganharem o voto de uma ampla camada de eleitores.
Vale ressaltar que quanto maior a escolaridade, menor a propensão a posições autoritárias. É uma notícia alvissareira, pois fornece um caminho mais seguro à democratização plena do país. Todavia, o problema é que a política educacional começa a derrapar no país. Pesquisa sobre abandono e evasão escolar de jovens liderada pelo economista Ricardo Paes de Barros mostrou que há no Brasil 2,8 milhões de pessoas de 15 a 17 anos que não estão em nenhuma sala de aula. Isso quer dizer que um enorme contingente de brasileiros não tem o seu direito à educação garantido - e sem isso, a democracia perde um dos seus sustentáculos.
Tão preocupante quanto o obstáculo educacional é notar outro resultado da enquete feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: não há uma diferença muito significativa entre os mais jovens (de 16 a 24 anos) e os mais velhos (60 anos ou mais) em relação à propensão ao apoio ao autoritarismo. Trocando em miúdos: a juventude começa a descrer da democracia sem nunca ter vivido num regime autoritário. Na verdade, os jovens de hoje não têm a menor ideia do que foi a ditadura no país e, infelizmente, diversas lideranças que os influenciam praticamente argumentam que o regime militar não foi tão ruim quanto dizem por aí.
É preciso desmascarar aqueles que estão prometendo um mundo melhor para os mais jovens com visões autoritárias de mundo. Para a juventude mais pobre, que sofre com a falta de Estado e da garantia de direitos, deve-se lembrar que num regime autoritário a violência da polícia contra os moradores da periferia, especialmente os pretos e pardos, será muito mais difícil de controlar se não houver liberdade de imprensa e uma sociedade civil livre para denunciar. O filme "Cidade de Deus" já tinha mostrado como fora a ditadura que semeou o ovo da serpente que colhemos hoje com recordes de homicídios nas grandes cidades, onde quem mais morre são aqueles que têm menos idade e não são brancos.
À juventude da classe média para cima, geralmente tão ciente de sua liberdade para manifestar uma visão diferente da dos adultos, é necessário dizer que serão fortemente podados em suas tentativas de mudar o mundo. Países autoritários, por exemplo, controlam as redes sociais - e não acham graça em memes ou qualquer brincadeira juvenil. Isso não é dito por aqueles que espalham pela internet elogios à ditadura.
Igualmente é preciso lembrar aos jovens as lições da história: militares ou salvadores da pátria chegam com a promessa de colocar ordem na sociedade e, ao final, perpetuam-se no poder, colocando a "sua ordem", o seu modelo irrestrito de obediência, em todas as esferas da vida social, inclusive afetando negativamente a vida privada das pessoas. Nem a liberdade de culto fica ilesa: a Igreja Católica foi censurada na ditadura - e Dom Hélder Câmara teria ganho o único Prêmio Nobel de nossa história (o da Paz), mas o Governo Médici atuou contra isso. Eis aí um desserviço óbvio dos militares ao avanço civilizacional do país.
O Brasil também está mal na foto na comparação internacional. Sondagem feita pelo Centro de Pesquisas Pew, em 38 países, revela que o apoio a governo militar no Brasil é maior do que na média dos países estudados e pior do que os resultados médios da América Latina. Os resultados dessa enquete realçam que uma das principais razões da maior aceitação do autoritarismo estaria na menor confiança no governo e no sistema político brasileiro.
Se não bastasse o clima favorável na sociedade ao crescimento de tendências autoritárias, políticos ensaiam cada vez mais um discurso contrário a pontos básicos do Estado de direito garantido pela ordem constitucional, por aquela que já foi chamada, na definição precisa de Ulysses Guimarães, de Constituição cidadã. A defesa dos índios, a proteção contra o trabalho escravo, a garantia do primado do poder civil, todas essas lutas que significavam um avanço de séculos realizado em poucos anos estão hoje na linha de tiro, para usar uma imagem cara aos brucutus de plantão.
O exemplo máximo, mas não único, dessa escalada autoritária entre os políticos é a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Aquele que disse que o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ser fuzilado no paredão. O mesmo que falou que não estupraria a deputada Maria do Rosário "porque ela não merece" - essa grosseria deixaria até Donald Trump envergonhado. Bolsonaro, o que defende a castração química dos estupradores, a exploração indiscriminada da Amazônia, vai aos EUA convencer o sistema financeiro de que é um liberal de verdade! Se os liberais autênticos, que defendem reformas saneadoras do Estado, pregam a igualdade entre os cidadãos e querem nos levar ao "Primeiro Mundo", não falarem nada sobre essa profusão de discursos autoritários, eles não farão jus à tradição do pensamento no qual dizem acreditar.
O Brasil não fez o ajuste de contas necessário com sua trajetória autoritária, de Vargas aos militares. Tivemos muitos avanços nas últimas décadas democráticas, mas não soubemos mostrar, sobretudo aos mais jovens, como vivemos hoje melhor do que no passado. Pior: a crise política prolongada e a necessidade de remodelar o modelo de Estado para que ele seja um excelente provedor de serviços públicos são dois fatores que estão minando a confiança na democracia. Por isso, é urgente que as lideranças políticas e sociais saibam que se não ocorrer uma reformulação profunda no modus operandi do sistema político e da administração pública, estará em jogo não o governante de plantão, mas a capacidade de sustentar o próprio regime democrático.
Voltou o filme da eleição de Tancredo Neves à minha cabeça quando vi o deputado Paulo Maluf defendendo o presidente Michel Temer da acusação de corrupção. Sim, Maluf, aquele que era o símbolo máximo da ditadura, da arrogância autoritária e do "rouba, mas faz", e que foi derrotado por Tancredo naquele glorioso 15 de janeiro de 1985. Já passamos dos 30 anos de democracia e sonho em ultrapassarmos outras marcas. Mas nunca estive tão consciente de que a batalha contra o autoritarismo não acabou ainda. Será que o vencedor das eleições de 2018 conseguirá restaurar a confiança no regime democrático? Essa é a tarefa mais importante do próximo presidente.
Fonte: (Valor Econômico)

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Doria e o umbuzeiro (Jose Roberto de Toledo)

Saber quando descer do umbuzeiro é a grande lição do maior gênio político brasileiro. Seu melhor biógrafo, Lira Neto exaltou-lhe a importância ao contá-la logo na abertura da trilogia sobre Vargas. Aos 13 anos, o pequeno Getúlio aprendeu a esperar a hora certa. Após espatifar retrato do principal ídolo paterno, escondeu-se na árvore mais frondosa da estância da família. Trepado, tiritou de frio noite e dia, até garantir que a surra certa pelo pai virasse recepção carinhosa da mãe. Em vez do relho, beijos.
Manipular o tempo e a expectativa das pessoas para fazer-se desejado é algo que políticos aprendem por bem ou na marra. Os indecisos se atrasam e perdem a oportunidade. Os ansiosos se antecipam e queimam a largada. Os incautos se esborracham.
Faz um ano, João Doria foi o grande vencedor da mais superlativa eleição já disputada no Brasil. Entre centenas de milhares de candidatos a prefeito e vereador, teve a maior votação e dispensou 2º turno – fato inédito para um prefeito paulistano. Virou símbolo da antipolítica e de um retrofit de fachada. No cangote da renovação, galgou o umbuzeiro mais rápido e alto do que seus avalistas no PSDB poderiam e gostariam de imaginar.
Sem paciência para esperar, Doria furou a fila tucana e fez do padrinho padrasto. O mesmo Alckmin que o ajudara a ganhar as prévias do partido na eleição paulistana virou rival. Prevendo derrota entre correligionários, o prefeito lançou-se em campanha Brasil adentro. Pressionando por fora o PSDB a escolhê-lo candidato a presidente, pediu pesquisas de opinião em vez de prévias. Mas o galho em que Doria pisou mostrou-se fino demais.
Após três meses, a fantasia de gari de fim-de-semana começou a desbotar. O “buzz” nas mídias sociais caiu à metade, depois a um quarto, antecipando o que viria a ser confirmado nas pesquisas. Doria tem tanto ou menos intenção de voto do que Alckmin no Datafolha. Pior para ele, a maioria dos paulistanos não o quer candidato, mas prefeito. Se é para sair, que fosse a governador. Sua popularidade entrou em declínio. Perdeu o momentum.
Doria reage mal no contratempo. Bateu boca com um ex-comensal de 80 anos que ele agora chama de “velho”, “fracassado” e “de pijamas”. É briga na qual se perde mesmo quando se ganha. Além de revelar destempero, o presidenciável deu munição para os inimigos. Eles imediatamente truncaram seu vídeo contra Alberto Goldman e o transformaram em uma declaração que parece se voltar contra todos os desempregados e aposentados do país. Viralizou.
“Quando a circunstância não se mostrar garantida, o melhor a fazer é esperar, resistir, transformar o tempo em aliado. Jamais descer do umbuzeiro antes da hora”. A sentença de Vargas segue atual. Não apenas para Doria, mas para todos os candidatos a candidato a presidente. Não basta exibir qualidades demandadas pelo eleitorado. É preciso dominar o timing da eleição.
Quem se expõe cedo demais apanha por mais tempo. Com Doria em queda, aumentarão as especulações sobre quem tem a ganhar com a sua precipitação do umbuzeiro. Alckmin e Doria dividem uma parte dos respectivos eleitorados, mas a sobreposição não significa que haverá uma transferência automática do restante de um tucano para o outro. Basta ver como o MBL trata prefeito e governador no Facebook: impulsiona 11 vezes mais Doria do que Alckmin.
Outro que espera se beneficiar, porque também tem parte do eleitorado em comum, é Bolsonaro. Mas o deputado e favorito das corporações armadas também entrou na linha de tiro (retórico). Além dos dois, abre-se a porta para um terceiro virar novidade.
Tão importante quanto saber descer do umbuzeiro é controlar a hora de voltar a subir nele.
Fonte: O Estado de São Paulo (09/10/17)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Suicídio do reitor ou da universidade livre? (Roberto Romano)

As universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo, reitor da UFSC. A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. O primeiro traço a chamar nossa memória encontra-se em algo que desagrega toda sociedade, em especial a reunida nos campi. Trata-se da abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento repressivo por agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria universidade. No caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação contra o reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público sem os mínimos requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes de encarcerado. Os repressores e seus aliados da imprensa não se preocuparam um só instante com a sua honra e a dignidade do cargo por ele ocupado. Ele foi exposto à execração popular sem nenhuma prudência. Em país onde ocorrem a cada instante casos como o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.
Todos os pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e aniquilação dos direitos.
Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de ensino superior, com os dedos em riste contra adversários ideológicos ou concorrentes bem sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade junto aos poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP traz relatos nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as baixezas emulavam a covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi tangido rumo às prisões ou exílio. O indigitado, não raro, era posto na “cadeira do dragão” e outros tormentos, após seguir o caminho de orgãos como o Dops em veículos oficiais, cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.
De certo modo o Brasil, na ditadura e na aparente democracia atual, retoma a proeza que tornou infame parte da antiga democracia grega. Nela existiu uma lei, tida como exemplo de injustiça, que punia os “atimoi”. Ao surgir um indivíduo com força para vencer eleições, os seus inimigos o acusavam de desvios comportamentais (por exemplo, de ter mantido relações eróticas com adultos, pagas por presentes). O candidato era destituído dos direitos cidadãos, condenado sem julgamento e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os processos registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinha a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos contemporâneos segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados sem ter sido declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell: (The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os acusados de prostituição deviam “evitar o exercício dos direitos de cidadania, ao serem tidos como “atimoi”, pois eles seriam processados se ignorassem tal veto”. A pena era a morte. Na dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, segundo S.C. Todd (The Shape of Athenian Law, Oxford, Un. Press, 1993). Este “só” não tranquiliza, porque o grego é animal político. As penas de atimia também eram aplicadas aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os seus débitos aos tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia. A honra e a desonra de um político eram entregues aos delatores, interessados na sua expulsão da cena pública.
Na ditadura de 1964, os acusados eram tidos, ipso facto, como “sem honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”. Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto, naqueles dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo, erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável “à direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e “corruptos” pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”.
Desapareceram os acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre autoridades religiosas e políticas, sobretudo as policiais, mantiveram tal retidão ética. E mesmo após o regime autoritário, a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser reiterada em todos os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo gera boa consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus concorrentes, pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos judiciais, a “delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para garantir a diminuição de penas, a língua do prisioneiro articula frases cujo conteúdo, não raro, avança inverdades e calúnias. Quase todas a eles ditadas pelos proprietários do poder.
Quando alguns procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado para a Comissão Especial da Câmara que analisava o projeto de lei resultante. Ali critiquei o uso dos delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez Medidas, seria de 5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas atenienses, genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas ilícitas, mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara dos Deputados: “Especialistas apontam falhas em medidas de combate à corrupção sugeridas pelo MP”, 22/08/2016).
Além do vício ético reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado para perseguir quem pensa de modo diferente ao costumeiro, com prisões espetaculares e reportagens idem, precisamos examinar a prática política no interior dos campi. A Universidade Federal de Santa Catarina, a mesma do reitor falecido, tem uma história melancólica a ser exposta. Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética essencial. Se um reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os ditames do poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na companhia daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de respeito aos outros, fanatismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existiu durante longo tempo o vezo indicado acima. Tal procedimento trouxe para a instituição os mesquinhos interesses políticos do Estado federal, estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida pelas técnicas empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente, nas eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta (...) O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das urnas: 20 anos de Eleições Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).
O costume viciado das delações, jungido aos interesses múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada, logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram acarinhados pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam, destruíam os vínculos de confiança e companheirismo que devem imperar na vida intelectual. Se os delatores não forem detidos e se continua a subserviência acadêmica aos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado – logo todos os que não curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos entre os “atimoi”. A morte do reitor é um aviso sinistro. Saibamos aproveitá-lo.
Fonte: Jornal da Unicamp (04/10/17).

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Coronelato sem nanicos (Maria Cristina Fernandes)

A deliberação de 15 minutos e sem votos contrários da reforma política no Senado encobriu a insurgência, agora inscrita no texto constitucional, contra qualquer tentativa de intervenção na vida partidária. Acossados por resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que os obrigava a substituir comissões provisórias por direções eleitas, os parlamentares aprovaram dispositivo que lhes dá autonomia para escolher a forma e a duração de seus comandos partidários.
As normas da casa da mãe Joana, agora abrigadas na Constituição, beneficiam, principalmente, o partido do presidente da República e as duas legendas que comandam o centrão. Desde que entrou em vigor a resolução do TSE, o PMDB aumentou em 50% o número de comissões provisoriamente escolhidas. Na outra ponta, o estreante Partido Novo não tem uma única instância municipal no país que não seja eleita pelo voto de seus delegados. PP e PR são recordistas absolutos em coronelato partidário, sendo que este último tem 4.296 comissões municipais em todo o país que funcionam na base do eu-mando-você-obedece.
O dispositivo não resume a emenda constitucional promulgada ontem no Senado mas a insurgência explica o resto do texto. A adoção da cláusula de desempenho e o fim das coligações partidárias poderão, de fato, enxugar o número de legendas, mas não será suficiente para torná-las mais democráticas ou limpas. O clube dos cinco maiores partidos do Congresso (PMDB, PT, PSDB, PR e PP) é também aquele dos campeões de inquéritos da Lava-Jato.
A cláusula de desempenho e o fim das coligações eleitorais estão preconizados no mais recente e minucioso apanhado sobre as regras eleitorais e seus impactos na vida política brasileira, "Representantes de Quem" (Zahar, 2017). Seu autor, o cientista político Jairo Nicolau, contém, no entanto, a euforia daqueles que associam a redução do número de legendas ao eldorado da política nacional.
Primeiro porque as legendas nanicas não deixarão de ter acesso à Câmara. Aquelas que não atingirem o 1,5% dos votos válidos, mas ultrapassarem o quociente eleitoral, poderão tomar assento, mas não terão acesso a recursos como horário eleitoral gratuito e fundo partidário. Partidos que não têm sua atuação estruturada por esses recursos, como Psol e Novo, não devem ser muito atingidos, ainda que esbarrem na cláusula. Mas parlamentares de outras legendas nanicas podem, no início da legislatura, se sentir estimulados a se filiar a um partido maior, ainda que não levem consigo a cota de TV e dinheiro embutida em seu mandato.
O enxugamento tende a acontecer no médio prazo, mas que ninguém estranhe se a redução não passar de um terço das atuais 28 legendas. Isso depois de começar a valer o fim das coligações, o que, para a Câmara dos Deputados apenas se dará nas eleições de 2022. Ainda que adiada, por pressão de lobby liderado pelo PCdoB, sua adoção parece difícil de ser revertida, uma vez que passou a ser protegida pela blindagem dos três quintos dos votos. Falta saber ainda o que será feito das cadeiras que sobram da repartição e hoje são distribuídos dentro das coligações.
O que Nicolau dá por inalterada depois da reforma é a trava à formação de partidos grandes. A era das bancadas de 30 a 60 cadeiras, chegou para ficar. Seja qual for o presidente a ser eleito em 2018, a maioria parlamentar ainda dependerá da reunião de seis a oito legendas. Também permanece intocada a regra que, na opinião do autor, mais afetará a eleição presidencial de 2018, a proibição de financiamento empresarial, a ser acrescida, em votação a ser concluída hoje, do limite para candidatos ricos se valerem do seu dinheiro e dos seus aviões para fazer campanha.
A conclusão da reforma política não dá por acabado o quadro normativo da próxima disputa eleitoral. Ainda está pendente de decisão, no Supremo Tribunal Federal, o agravo contra uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral que impediu candidaturas avulsas. O agravo conta com parecer favorável da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que se valeu do pacto de São José da Costa Rica e da Constituição. O primeiro, por não incluir a filiação partidária entre os motivos de restrição à participação eleitoral e, a segunda, por determinar que apenas o voto direto, secreto, universal e periódico é imutável.
Para o embate, cujo relator é o ministro Luís Roberto Barroso, o tribunal presidido pelo ministro Gilmar Mendes se valeu de uma apavorante nota técnica a informar que a mudança é incompatível com o software que comanda as urnas eletrônicas, bagunça a distribuição do fundo de campanha e do tempo de televisão e desnorteia a segurança da engenharia eleitoral.
A França que elegeu Emmanuel Macron enfrentou este apocalipse simplesmente negando aos avulsos qualquer recurso de campanha. O presidente e os parlamentares eleitos pela associação "Em Marcha" apenas a transformaram em partido depois de iniciada a legislatura da assembleia nacional.
A candidatura avulsa foi proibida no Brasil com o fim do Estado Novo. A proliferação de movimentos que, no Brasil, pretendem arregimentar empresários e profissionais liberais para a vida política remete-se à experiência francesa, mas há iniciativas pregressas, como a do Rede, de Marina Silva, que pretende oferecer 30% de suas vagas para candidatos que não queiram compromissos com a legenda. São movidos pelo discurso de que não se submeterão aos ditames de cúpulas partidárias que, como se viu na votação de ontem, são insubmissas a qualquer controle externo.
Os avulsos têm, pelo menos, duas candidaturas assumidas. A primeira é a do ex-presidente do Conselho de Administração da Eletrobras e crítico do modelo de privatização proposto pelo governo Michel Temer, José Luiz Alquéres.
A segunda é de Modesto Carvalhosa. Aos 85 anos, o advogado, como relatou Camila Maia, do Valor, arregimenta 200 investidores em um processo que pode custar R$ 20 bilhões à Petrobras. Não é exatamente um partido, mas já têm uma causa que é tudo, menos nanica.
Fonte: Valor Econômico (05/10/17)

Ainda é tempo (Sergio Fausto)

A eleição de outubro na Argentina será um teste decisivo para o governo de Mauricio Macri. Está em jogo quase metade das cadeiras da Câmara e um terço do Senado. As pesquisas indicam que Cambiemos, a coalizão de partidos que apoia Macri, vencerá nos principais colégios eleitorais do país. Provavelmente a vitória não lhe dará maioria, mas o presidente ampliará em muito sua bancada nas duas Casas do Congresso. Com seu principal adversário abatido, o kirchnerismo, e sem uma oposição alternativa de peso, Macri evitará o destino de todos os presidentes derrotados nas eleições de meio de mandato (tornar-se um “pato manco”) e se projetará como favorito às eleições presidenciais de 2019. Trata-se de um fato inédito: pela primeira vez na Argentina, desde o surgimento do peronismo, um presidente não peronista chegará ao fim de seu mandato. E mais, com chances de se reeleger.
A provável vitória de Cambiemos não se explica pelo desempenho da economia. Em 2016, primeiro ano do mandato do atual presidente, o PIB argentino reduziu-se e a inflação aumentou, por força dos ajustes tarifários e da desvalorização cambial que Macri foi obrigado a fazer. Só agora o crescimento econômico começa a despontar. A popularidade de Macri manteve-se elevada porque ele conseguiu convencer a maioria dos argentinos de que a culpa cabia a Cristina Kirchner.
O cientista político Juan Germano, em exposição recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, sustentou a tese de que está em curso na Argentina uma mudança estrutural das preferências políticas e das identificações partidárias do eleitorado. Dividido internamente e diante de eleitores que, em sua maioria, nasceram depois da morte de seu líder icônico, Juan Domingo Perón, o peronismo declina e em seu lugar uma força política de centro começa a ganhar corpo: Macri e Cambiemos.
Germano reconhece que a consolidação dessa nova força política dominante não são favas contadas. Já a polarização peronismo versus antiperonismo, que marcou a história política argentina desde os anos 40 do século passado, parece mesmo página virada. Macri escapa a essa dicotomia, assim como a governadora da província de Buenos Aires, Maria Eugênia Vidal, uma política de primeiro mandato com índices de popularidade ao redor de 70%. Se a sustentação de uma força política depende da disponibilidade de sucessores à altura, Cambiemos, ao que tudo indica, está bem servido por muitos anos.
Diante desse quadro, salta aos olhos o contraste com a situação brasileira. Aqui o centro político está desarrumado, num quadro de alta fragmentação partidária, sem uma candidatura à Presidência que prevaleça naturalmente sobre as demais alternativas. O chamado “mercado”, a julgar pelos preços dos ativos, minimiza o problema. Aposta que a melhora da economia pavimentará o caminho para a vitória de um candidato de centro em 2018. Além disso, confia que a agenda de reformas, previdenciária à frente, se imporá inevitavelmente no próximo período presidencial.
O contraste com a Argentina ajuda a ver por que a reconstrução do centro político no Brasil é um problema mais complexo do que faz crer a leitura economicista do “mercado”. A diferença mais visível reside no fato de que a crise econômica, política e moral que atingiu o kirchnerismo nem sequer respingou nas forças políticas aglutinadas em torno de Macri. Aqui a crise que pôs fim aos governos do PT abalou também o centro político, atingido igualmente pela Lava Jato. Com a melhora da economia, os danos político-morais podem ser mitigados, mas não deixarão de ser profundos e duradouros.
Outra diferença diz respeito ao tempo transcorrido na reconstrução do centro político na Argentina, tempo de que o centro político brasileiro não dispõe até as eleições de outubro de 2018. Cambiemos é a decantação de um processo que teve início em 2005 com a fundação do Compromisso para el Cambio (depois renomeado Propuesta Republicana, PRO, o partido de Macri) e se desdobrou na eleição e reeleição do ex-presidente do Boca Juniors para à prefeitura da cidade de Buenos Aires em 2007 e 2011. Um ano antes das eleições presidenciais de dezembro de 2015, não restava dúvida sobre quem carregaria as bandeiras de uma política renovada e pós-ideológica.
No Brasil, a um ano das eleições, há muito mais interrogações do que certezas no centro do espectro político, seja em relação a nomes, seja em relação às ideias-força que deverão diferenciar uma candidatura e conectá-la com os sentimentos majoritários do eleitorado. Jogará o centro político a carta da condução segura e previsível da economia ou da renovação do establishment político, a da conciliação ou da polarização política, a da polarização com a direita ou com a esquerda? Claro que qualquer candidato, para ser competitivo, deve jogar com mais de uma carta, mas as mensagens principais não podem ser embaralhadas a ponto de confundirem o eleitor.
Ainda é tempo, porém, de reconstruir o centro político para as eleições. Macri não era o favorito um ano antes das eleições, e sim Sergio Massa, candidato do peronismo dissidente. A costura da aliança que o levou à Casa Rosada foi obra de ousadia e sabedoria política do então prefeito de Buenos Aires, da deputada Elisa Carrió, símbolo da intransigência contra a imoralidade pública, e do senador Ernesto Sanz, líder da velha União Cívica Radical, que deu a Macri a capilaridade territorial que seu partido não tinha.
A melhora da economia pode contribuir, mas a inteligência política e o desprendimento pessoal das lideranças são o que poderá oferecer à sociedade melhores escolhas para o próximo mandato presidencial. Não se trata de criar o candidato dos sonhos, mas de evitar o pesadelo de uma escolha de Sofia entre uma direita truculenta e uma esquerda populista.
Fonte O Estado de São Paulo (02/10/17)