terça-feira, 28 de maio de 2019

O novo presidencialismo (Bruno Carazza)

Filibuster. No final de 2018 foi ao ar a entrevista de Barack Obama no podcast de David Axelrod, seu ex-conselheiro político e agora diretor do Instituto de Política da Universidade de Chicago. Em certa altura da conversa, o ex-presidente americano é convidado a analisar retrospectivamente seu relacionamento com o Congresso. E ele cita o filibuster, a tática de obstrução em que o partido adversário tenta barrar as discussões, como o principal culpado por não ter conseguido implementar sua ampla agenda de reformas, frustrando muitos de seus quase 70 milhões de eleitores.
De acordo com Obama, em apenas 4 meses dos seus 8 anos de mandato seu partido teve 60% das cadeiras do Senado, percentual regimental que impediria a obstrução dos republicanos. Em praticamente todo o período em que ocupou a Casa Branca, portanto, Obama precisava convencer pelo menos um membro do partido adversário a mudar de lado e votar a favor do governo.
Para complicar as coisas, a política vem se tornando cada vez mais polarizada. Na mesma entrevista Obama aponta o fato de que, do fim da Segunda Guerra até pelo menos os anos 1980, mesmo com a alternância no poder entre democratas e republicanos, os presidentes americanos conseguiam obter apoio nos partidos rivais para os grandes projetos nacionais. Havia parlamentares democratas com visão econômica um pouco mais conservadora, assim como republicanos mais moderados. Isso foi fundamental para o incrível desenvolvimento americano no pós-guerra.
Na visão de Obama, nas últimas décadas esse quadro tem mudado radicalmente com a polarização política da sociedade. Ele sentiu na pele esse efeito, assim como Trump está tendo o mesmo problema com as obstruções dos democratas.
Corta para o Brasil. Desde a década de 1990 consolidou-se na academia brasileira a interpretação de que nosso presidencialismo de coalizão funcionava, a despeito de todos os incentivos contraditórios advindos da combinação de sistema presidencialista com uma Câmara eleita de forma proporcional e em lista aberta, dezenas de partidos e um Senado representando uma federação extremamente desigual.
Apesar dessa receita para o caos, os presidentes conseguiam levar adiante suas agendas de reforma valendo-se dos superpoderes que a Constituição lhes confere: distribuição de cargos para aliados, liberação de verbas orçamentárias e poder de legislar por meio de medidas provisórias. Para facilitar, os líderes partidários no Congresso também detêm prerrogativas para garantir a fidelidade de seus comandados - cabe a eles indicar parlamentares para as comissões, designar relatores e até controlar quem fala no palanque para aparecer na TV e na Voz do Brasil. Assim, bastava ao Presidente da República se acertar com os líderes do Congresso que a mágica acontecia, o caos era evitado e o governo fluía.
Os números dão razão à teoria: em média, no âmbito de cada partido a disciplina se mantém acima de 80% desde os tempos de FHC, garantindo ao governo um apoio de mais de 70% nas votações nominais - suficiente para passar mudanças na Constituição. Mas a vida é real e de viés, como diria o poeta de Santo Amaro. Por trás da teoria e dos números, porém, uma nova ordem surgiu.
As dificuldades enfrentadas por Bolsonaro no Congresso não se devem exclusivamente à sua inacreditável falta de habilidade política. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, deputados e senadores têm se fortalecido ao longo do tempo frente ao Poder Executivo. Um importante passo nesse sentido foi a Emenda Constitucional nº 32/2001, que estabeleceu limites à edição de medidas provisórias pelo Presidente da República. Apesar da mudança, contudo, FHC e Lula continuaram abusando desse instituto, conseguindo taxas de sucesso superiores a 80% de aprovação. Com Dilma o percentual caiu para 75% e Temer, com toda sua experiência de liderança no Congresso, só conseguiu 57,8% de conversão de MPs em lei. Bolsonaro ainda não conseguiu passar, nem ao menos na Câmara, nenhuma das 13 medidas provisórias que propôs - e elas começam a expirar em duas semanas.
Em 2015 o Congresso impôs outra restrição ao Executivo. Com a Emenda Constitucional nº 86, emendas orçamentárias de parlamentares passaram a ter execução obrigatória até o limite de 1,2% da receita corrente líquida. Numa das mais acachapantes derrotas de Bolsonaro até agora, a PEC nº 34/2019 está prestes a ampliar o limite em mais 1%, desta vez abarcando as emendas coletivas.
Ao restringir a margem de manobra para o Presidente legislar e ao garantir a execução de suas emendas parlamentares mesmo num quadro de grave crise fiscal, os parlamentares minaram duas das principais fontes de poder do Poder Executivo. Com um Congresso cada vez mais fragmentado, o preço do apoio subiu. E foi aí que o presidencialismo de coalizão se converteu em cooptação; primeiro com o mensalão, depois com o petrolão e um comércio desenfreado de emendas beneficiando grandes doadores de campanha.
Jair Bolsonaro foi eleito acreditando que seria fácil subverter essa ordem. Mas sem ter apresentado um projeto de governo consistente e recusando-se a compartilhar o poder, o capitão mostra-se sem estratégia e perde o comando da tropa. Do outro lado da trincheira, um Congresso cada vez mais poderoso toma as rédeas e lhe impõe seguidas derrotas.
Bolsonaro e seus filhos acreditam que superarão os tsunamis da política intensificando ainda mais a polarização. Agindo assim, eles destroem pontes com setores da sociedade que poderiam oferecer apoio, ainda que eventual, às suas propostas. O mercado já parece estar abandonando o barco. E, sem soluções concretas para os inúmeros problemas brasileiros, boa parte dos 57.797.847 de seus eleitores poderão fazê-lo em breve. O grande desafio é saber quando (e como) vamos parar de afundar.
(*) Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
Valor Econômico/20 de maio de 2019

A democracia e a nossa conjuntura (Celso Lafer)

Ao longo dos anos 1980, um abrangente consenso em torno da democracia uniu todas as vertentes da oposição ao regime autoritário-militar, favorecendo a redemocratização por meio de uma ação política que se valeu de brechas institucionais existentes. A Constituição de 1988 é expressão do consenso em torno da democracia, e a Constituinte, da qual emanou, traduziu em normas a imaginação e os sentimentos que impulsionaram o esforço coletivo abrangente de uma cidadania, que se tornou ativa no seu empenho em prol da redemocratização.
A Constituição de 1988 foi a moldura e o parâmetro no âmbito do qual transcorreu a vida política do país da Presidência Sarney à de Temer. Teve resiliência institucional para permitir que o País lidasse, em consonância com as regras da democracia, com uma complexa pauta e muitas tensões políticas.
Nesse contexto é importante realçar que a democracia é um método de convivência civil e pacífica, uma prática de aprendizagem permanente. Por isso pressupõe, como ensina Bobbio, confiança – “a confiança recíproca entre os cidadãos e dos cidadãos nas instituições”, que postula também a confiança no diálogo democrático, ou seja, o reconhecimento do Outro como adversário, e não como inimigo a ser dizimado, o que a convulsão dos sectarismos não favorece. Sectarismos excludentes e populismos de vários tipos são um dos dados que, em vários países, vêm levando à degeneração do poder democrático e à autocracias eletivas.
Os laços de confiança entre governos e governados foram se esgarçando em nosso país. Para isso contribuiu a revelação da corrupção. A corrupção, como dizia Políbio, é um tenaz agente da cupinização das instituições políticas. Daí a percepção de que a gestão da res publica estava se transformando na administração dos particularismos da res privata. No início, isso alcançou o PT e suas redes, porém nos desdobramentos impactou todo o espectro dos atores políticos.
A semente da desconfiança permeou as eleições de 2018. Todos os partidos que atuaram no pós-redemocratização foram derrotados. Padeceram a erosão de sua capacidade de vincular o indivíduo ao coletivo, PT incluído. Na dinâmica eleitoral, Bolsonaro soube valer-se das novas mídias da era digital, que diminuíram a prévia relevância da mídia tradicional no processo eleitoral. Catalisou um forte e significativo sentimento anti-PT existente na sociedade, para o qual contribuiu a inépcia da gestão do segundo mandato de Dilma. A isso se somaram no ano eleitoral a preocupação com a segurança e a violência, o desemprego e a falta de oportunidades.
Foi nesse caldo de sensibilidades que Bolsonaro, até então figura periférica e solitária na vida política, se viu catapultado para o âmago bem-sucedido das eleições. No Congresso, como deputado em várias legislaturas, não se destacou. Manifestou em suas intervenções grande simpatia pelo regime militar, foi muito crítico dos direitos humanos, altamente conservador em matéria de costumes, no que se viu respaldado pela visão e força política dos evangélicos, encontrando eco na sociedade.
Na campanha e nas constantes manifestações na Presidência, na qual se vale, como Trump, da preferência pelo sintético-não-argumentado do Twitter, tem arguido que ele e seu governo representam uma nova política. Esta, no seu tom e estridência, é uma contestação, para me valer de formulação de Fernando Henrique Cardoso, “ao terreno comum, público e privado, no qual o interesse das pessoas se encontram e em nome do qual um país cria um destino nacional”.
Esse terreno comum foi dado pela moldura da Constituição de 1988 e seus adquiridos axiológicos. A “nova política” questiona esse terreno comum e a respeitabilidade dos seus valores. É um deslocamento de paradigma do funcionamento da vida política brasileira, que, com todas as dificuldades e todos os conflitos, sustentou a democracia em nosso país.
A “nova política” poderá assegurar o bom governo? A dicotomia bom governo/mau governo é um dos temas clássicos da teoria política. Passa pelo “governo das leis” e pelo exercício do poder em prol de um ideal e de uma prática voltada para o bem comum. Um dos ingredientes que desde os gregos e de toda a literatura subsequente leva à desagregação do bom governo, como lembra Bobbio, é a prevalência da formação de facções e o estímulo à discórdia.
Uma das características da presidência de Bolsonaro é a formação de facções dentro de seu próprio governo, que nas suas discórdias fragmentam a nitidez dos rumos governamentais.
O espírito de facção inspira o cerne ideológico do governo, que, alinhado com o perfil do presidente, anima a sua comunicação com o País. Esta alimenta o núcleo duro dos seus seguidores, que é minoritário, mas afasta a maioria remanescente dos seus eleitores e também o vasto grupo de brasileiros que tiveram, no início, uma certa boa vontade com o “novo” que encarnava. Em síntese, o forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País e não contribui para a reconstituição dos laços de confiança entre governo e governados. Sustenta-se na ideia de que existem inimigos e conspirações no Brasil e no mundo que cabe combater com vocação de cruzados, que desconhecem a distinção entre fatos e ficção e os critérios do pensamento na lida com o verdadeiro e o falso.
Hobbes, no De Cive (XII, 13), analisa os riscos da multiplicação de facções dentro do Estado e da sociedade para a boa governança. Ilustra a questão com uma narrativa mítica. As filhas de Peleu, rei de Tessália, inspiradas pelo conselho de Medeia, cortaram o velho rei em pedacinhos, cozinharam-no no fogo, esperando, inutilmente, que ressuscitasse com o pleno vigor da juventude. Assim também, continua Hobbes, é a estultice das facções, que na sua conduta querem renovar o velho abrasando o governo, em vez de reformulá-lo. Esta cozinha do abrasar generalizado da “nova política” é um dos riscos da degeneração do poder democrático.
O Estado de S.Paulo/19 de maio de 2019

Cinquenta tons de barbárie (Luiz Sérgio Henriques)

Pudéssemos confiar em alguma forma de evolucionismo ou supor que a política acontece numa espécie de ringue previamente ordenado, em que os contendores só por descuido desferem golpes abaixo da cintura, então estaríamos num mundo em que extremistas não teriam vez nem voto. As democracias maduras do Ocidente teriam mantido força e capacidade expansiva, demonstradas quando, por exemplo, personalidades como Barack Obama, um negro, ou Angela Merkel, uma mulher egressa da velha Alemanha Oriental, se puseram à frente de seus países e se mostraram comprovadamente capazes de administrar situações complexas, como a grande recessão de 2008 ou os desafios da integração europeia.
As populações desses países, mesmo diante do impacto desorganizador trazido pela aceleração de mudanças tecnológicas ou por eventos extraordinários, como migrações massivas e a consequente formação de sociedades culturalmente heterogêneas, sempre teriam preferido tratar os conflitos daí decorrentes segundo padrões razoáveis e já submetidos aos testes da História. Longe de desaparecer, tais conflitos, inseridos na lógica democrática e tratados, quando fosse o caso, em instâncias internacionais assentadas nos direitos do indivíduo e na convivência pacífica, produziriam frutos positivos para todos, ao menos tendencialmente.
Nós, no Extremo Ocidente, a nosso modo replicaríamos esse procedimento. A planta frágil dos valores liberais e da incorporação social estaria finalmente sob bons cuidados. Seríamos educados politicamente pela Carta de 1988, a qual por sua própria natureza nos impôs a todos – centro, direita, esquerda – a tarefa da autorreforma de atitudes e modos de pensar. Nenhuma concessão ao golpismo tantas vezes manifestado em momentos críticos do passado. Ódio e nojo permanente às ditaduras, tal como proclamado por um dos pais da refundação da República. E como consequência, disputa áspera, mas institucionalmente enquadrada, em torno de ideias, projetos e políticas capazes de integrar milhões de concidadãos aos benefícios – e deveres – de uma sociedade aberta e dinâmica.
É evidente que falhamos coletivamente em pontos decisivos desse programa. A Carta de 1988 permanece como ideal regulador extremamente potente, razão pela qual devemos nos reunir em sua defesa sempre que ameaçada ou levianamente criticada por impor obstáculos de qualquer natureza ao nosso desenvolvimento como sociedade. Mas, como fatos e números atestam, eis-nos já na parte final de uma segunda década perdida, sem que, diferentemente da primeira, a dos anos 1980, possamos agora nos orgulhar de conquistas de alta relevância, como, naquela altura, a reconquista da democracia. Ao contrário, estamos em meio às tempestades naturais de uma conjuntura em que, mesmo mantidas as regras do jogo, autoritários estão no poder, embora não possam (ainda?) pôr em prática todo um repertório que, muitas vezes, reproduz o de uma estranha “internacional” que tenta depredar as instituições do Ocidente político.
Falhamos – e nisso a esquerda petista deu nociva contribuição – em enraizar solidamente a crença de que adversários políticos não são inimigos. Apesar do aspecto aparente de senso comum, como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller sobre o colapso “suave” das democracias contemporâneas, essa crença é “uma invenção notável e sofisticada”. O “eles contra nós”, irredutivelmente martelado durante anos entre “nacional-populares” e “neoliberais”, foi a senha para a entrada em cena de antagonismos ainda mais ferozes e inconciliáveis. A democracia requer e suporta polarizações produtivas, mas tem dificuldade de conviver com aquelas de que se aproveitam atores e personagens demagogicamente contrários ao establishment, especialmente quando, na verdade, tais atores expressam os poderes fortes da sociedade, e não o “povo” convocado para passivamente sustentar mitos e legitimar autocratas.
É possível apontar o caráter mais ou menos global desses fatos, embora seja este um consolo mau e precário. Não vivemos em solidão a ofensiva populista contra as instituições, para usar o ambíguo termo – populismo – a que críticos e adeptos têm recorrido com igual frequência. Mark Lilla, em O Progressista de Ontem e o de Amanhã, anotou uma expressão extraordinariamente radicalizada do subversivismo de direita que vai pelo mundo: “Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada”. Aqui se condensam, de modo lapidar, os desvalores de uma direita patologicamente individualista e supostamente antipolítica, ainda que, por óbvio, possa combinar-se com variadas formas de governo despótico.
Ao empregarmos a noção de populismo, não devemos contar com ideias e programas coerentes. A natureza proteiforme do fenômeno lhe permite vestir-se de direita ou de esquerda, como na imensa tragédia venezuelana. O populista pode entoar loas à “tradição judaico-cristã” ou, como na Hungria de Orbán, recorrer ao vulgar antissemitismo. A islamofobia, se for o caso, convém-lhe como uma luva, servindo para catalisar medos coletivos. Pode renunciar ao individualismo à americana, como aquele captado por Lilla, e apelar, ao contrário, à “ressurreição” do povo e de usos arcaicos que sufocam o indivíduo. Só não pode, em qualquer caso, renunciar aos cinquenta ou mais tons de grosseira demagogia antidemocrática.
Se o evolucionismo não nos serve e, por isso, nenhum progresso está assegurado de uma vez por todas, pode ser que este tumultuado processo de unificação do mundo em algum momento nos surpreenda com o amadurecimento e a mobilização das mais diferentes forças e tradições, laicas e religiosas. Todas elas, em sua diversidade, são preciosas na luta contra a barbárie.
O Estado de S.Paulo/19 de maio de 2019

A viagem ideológica de Bolsonaro (Sergio Fausto)

O Itamaraty prepara viagem do presidente aos três países europeus de sua predileção: Hungria, Itália e Polônia. O périplo pela troika do nacionalismo xenófobo e politicamente antiliberal no velho continente atende a agenda ideológica de Bolsonaro, a mesma de seus filhos e do ministro das Relações Exteriores, expoentes do olavo-bolsonarismo no interior do governo.
Em seu discurso de posse, Ernesto Araújo destacou os três países como exemplos de sã afirmação da nacionalidade num mundo supostamente ameaçado pelo “globalismo”. Omitiu deliberadamente o fato de que na Hungria e na Polônia a “afirmação da nacionalidade” se faz à custa da democracia liberal. Contra ambos os países a União Europeia acionou em julho passado, por deliberação da maioria do seu Parlamento, o artigo 7 do Tratado de Lisboa, que prevê punições a países-membros que violem a liberdade de expressão, o direito das minorias e a independência do Judiciário.
Na Itália, onde a direita antiliberal e xenófoba não governa sozinha, ainda não há danos visíveis à democracia. Mas a Liga Norte é a força política em ascensão. Seu líder, o vice-premiê e ministro do interior Matteo Salvini, homem forte do governo de coalizão, embora não reivindique explicitamente o legado do fascismo, com frequência invoca Mussolini em atos e palavras.
No aniversário do Duce, ano passado, Salvini escreveu um tuíte repetindo frase famosa do líder fascista, com pequena variação vocabular: “tanti (molti) nemici, tanto (molto) onore”.
Os inimigos de Salvini são os mesmos de Viktor Orbán, o premiê húngaro, e de Lech Kaczynski, líder maior do partido Lei e Justiça, na Polônia. Nesse grupo estão todos os que colocam obstáculos ao projeto que compartem com a francesa Marine Le Pen. Eles querem rebobinar a fita da História para devolver seus países a um passado idealizado, jamais existente, em que Estados-nação europeus abrigavam populações homogeneamente brancas, cristãs, heterossexuais, regidas por uma clara hierarquia de gênero, com homens dominantes à testa do Estado e das famílias e mulheres submissas limitadas ao lar.
Ao apelo nostálgico a direita xenófoba agrega um elemento do repertório democrático (o princípio da soberania popular na eleição direta do chefe do governo e da maioria parlamentar), dispensando-os, porém, de respeitar o sistema de freios e contrapesos, as liberdades fundamentais e os direitos das minorias. Eis o tal oxímoro chamado “democracia iliberal”.
A besta-fera de Orbán & Cia. são os imigrantes muçulmanos do Oriente Médio e do Norte da África. No caso da Hungria, observa-se também um traço antissemita, perceptível na demonização de George Soros. A Europa é terreno fértil para o sucesso de uma política que reduz os imigrantes e a imigração islâmicos à condição de ameaça à segurança pública e à civilização europeia: a proximidade geográfica das regiões de origem, a problemática integração de comunidades de imigrantes às sociedades locais, a ocorrência de atentados terroristas perpetrados por islamitas radicais, a ausência de uma política europeia coordenada em relação à imigração, a redução do tamanho das populações de origem europeia.
No Brasil, o olavo-bolsonarismo opera com lógica política semelhante. Identifica alvos que poriam em perigo a pátria, a família e os valores tradicionais. À falta dos imigrantes, a extrema-direita brasileira encontrou no “marxismo cultural” e nos “corruptos” categorias abrangentes e elásticas para alvejar seus inimigos, incluída a centro-direita liberal. As Forças Armadas não têm escapado a esse enquadramento paranoide da realidade. Aqui como lá, são estigmatizados preferencialmente os gays, as feministas, os movimentos LGBT e os demais “ativismos” da sociedade civil, com exceção dos que têm base cristã.
Se pudesse, o olavo-bolsonarismo não hesitaria em mobilizar dois cabos e um soldado para ferir de morte o sistema de pesos e contrapesos e sufocar as garantias das liberdades democráticas e dos direitos das minorias. A questão é saber se podem fazer o que querem. Em princípio, a resposta é não, por mais de uma razão.
Polônia e Hungria são Repúblicas unitárias, em que o poder se enfeixa no governo central. O Brasil é uma federação, em que o poder se dispersa pelos diferentes níveis de governo. Aqueles são países parlamentaristas, onde o poder se concentra na Câmara. Aqui ele se divide entre o Executivo e o Legislativo, este com Câmara e Senado. O Fidezs, partido de Viktor Orbán, detém a maioria absoluta no Parlamento húngaro, assim como o partido Lei e Justiça, na Polônia. São duas agremiações bem estruturadas, com alguma história na bagagem. O PSL é um ajuntamento de última hora que conquistou pouco mais de 10% da Câmara e menos de 5% do Senado.
A Constituição brasileira incluiu a separação dos Poderes, os direitos e as garantias fundamentais entre as cláusulas pétreas e confere poderes ao Supremo Tribunal para resguardá-las. Na sua ofensiva antiliberal o Fidezs e o Lei e Justiça não encontraram barreiras constitucionais de igual porte.
Hungria e Polônia vêm crescendo a taxas médias superiores a 3% nos últimos quatro anos, com o desemprego em níveis historicamente baixos. O Brasil ainda está às voltas com a pior crise e a mais lenta recuperação econômica de sua História e o olavo-bolsonarismo é parte do problema, não da solução.
Significa que não há razões para nos preocuparmos? Longe disso. Se a crise se agravar, com colapso das finanças públicas, desorganização dos serviços prestados por Estados e municípios, greves de servidores, policiais militares incluídos, e inquietação nos escalões de baixo das Forças Armadas, aumentará o risco de um curto-circuito institucional. O olavo-bolsonarismo joga as suas fichas nesse cenário. Cabe às forças responsáveis do País, civis e militares, evitar que ele se consuma.
(*) Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e membro do Gacint-USP
O Estado de S.Paulo/18 de maio de 2019

Bolsonaro é refém da lógica da guerra (Fernando Abrucio)

Numa sociedade democrática, governar é o inverso da lógica da guerra. O bom líder procura reduzir o alcance dos conflitos que são inerentes às democracias, por meio da negociação e da busca de consensos. Quando não for possível vencer, sua liderança crescerá se for capaz de aprender com as derrotas.
Mas muitos governantes seguem outra estratégia, como até agora tem sido o caso do presidente Jair Bolsonaro. Sua opção pelo guerrear constante tem deixado os atores políticos e sociais atônitos. A pergunta que fica é qual será o destino dessa estratégia para o presidente e para o país.
O estilo de governo de Bolsonaro alimenta-se da polarização e do ataque a inimigos padrão. Estes podem ser os petistas, os artistas, a universidade, a mídia e tudo aquilo que representa duas coisas: primeiro, algo diferente e/ou independente do pensamento bolsonarista, e, segundo, grupos, pessoas e ideias que significaram, de algum modo ao longo da história, um obstáculo à trajetória política do capitão-deputado e dos seus seguidores.
A lógica da guerra presente no bolsonarismo-raiz tem como consequência a construção de uma definição muito restrita de aliados e inimigos, que não capta grande parte da sociedade. E foi um enorme e majoritário contingente de atores políticos e sociais que, ao fim e ao cabo, elegeu Bolsonaro.
Bastaria optar por alianças estratégicas e táticas com o mundo para além da dicotomia e assim se produziria um governo com um grau suficiente de coerência e estabilidade para se governar o Brasil.
Só que não tem sido esse o caminho adotado pelo presidente Bolsonaro. O modelo mental que guia o bolsonarismo segue a máxima de que as ações necessárias para a montagem da governabilidade podem atrapalhar o principal objetivo, que é a demarcação rígida do terreno frente ao antagônico, o qual, se necessário, deve ser extirpado do jogo político.
Daí que a guerra contra o inimigo ocupa o principal lugar na estratégia política do presidente e de seus seguidores mais fiéis. Isso reduz a importância da conversa com o Congresso, particularmente com os partidos mais ao centro, pois isso pode tirar a pureza do "movimento renovador da política". Mais do que isso: os bolsonaristas não confiam nos políticos e na política como um exercício de convivência e barganha entre grupos com posições diferentes ou antagônicas.
O resultado disso é a montagem de uma visão antipolítica e messiânica de atuação. Não quer dizer que essa estratégia seja irracional. Sua racionalidade está em contentar basicamente o grupo mais fiel dos seguidores e mantê-los unidos pela busca de ideias que não podem ser negociadas, pois perderiam sua pureza.
O presidente Jair Bolsonaro quer mais do que eleitores: precisa de uma torcida organizada para pressionar o sistema político e para protegê-lo nos momentos de crise e confronto, que serão corriqueiros dentro da lógica de guerra que orienta essa ação política.
Para liderar essa visão de mundo, mais do que um político, precisa-se de um "mito", um herói que não se submete à velha política e cuja revolução está em ir contra as modernidades (o politicamente correto e outras degenerações) e em favor de uma tradição reconstruída a partir de um passado idealizado num formato conservador.
Para tanto, os bolsonaristas reescrevem a história: não houve ditadura, a escravidão deveria ser vista como algo intrínseco à sua época (embora o Brasil tenha sido o último país ocidental a aboli-la) e outras releituras cujo objetivo é mudar a intepretação recente do presente, dominada por aqueles que acreditam na proposta da Constituição de 1988.
É importante ressaltar que Bolsonaro está propondo uma revolução conservadora. O modo revolucionário muitas vezes significa atuar pela desinstitucionalização do Estado e das principais formas de resolução dos conflitos coletivos. Por isso, o propósito do governo não é só fazer emendas constitucionais, mas mudar o sentido da Constituição feita na redemocratização.
Além do mais, o governo procura enfraquecer instituições importantes do país: o patriotismo guiado por um mito substituiria os interesses partidários, as famílias no lugar das escolas, as redes sociais acima da mídia tradicional e a livre ação dos indivíduos, sobretudo no campo das armas mas também em áreas como o "direito dos motoristas", coloca-se contra as leis e o monopólio do poder estatal.
Quando se compreende essa lógica de pensamento, ficam mais claras as razões do olavismo insurgir-se contra os militares. Sendo um dos polos fundadores da visão bolsonarista na década passada, trata-se de uma proposta que atua fundamentalmente em prol da desinstitucionalização do país e pela construção de uma revolução conservadora cujos marcos vão além do governo de plantão.
Para Olavo de Carvalho e seguidores, as Forças Armadas podem ser um dique contra a transformação radical que eles propõem - o que é verdade.
Todo esse projeto bolsonarista sustenta-se numa lógica de guerra, segundo a qual não há compromissos duradouros possíveis com as outras forças políticas e sociais, mesmo que somadas elas representem mais do que a polarização e controlem instituições ou arenas centrais para as decisões públicas.
É verdade que, por vezes, Bolsonaro cede ao modo político mais típico da democracia, que supõe o diálogo, a busca de alianças para se ter maioria e prestar atenção nos alarmes de incêndio acionados pela mídia, pelo mercado ou por movimentos organizados da sociedade. Mas tais momentos ou duram pouco, ou ocorrem juntamente com o maior acirramento político em outras questões. No geral, o presidente tem dobrado suas apostas no modelo de guerra permanente.
Mesmo com todos os fatos ocorridos até agora, espera-se ainda que se acontecer uma crise maior, na reforma da Previdência ou nos desdobramentos das investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, o presidente adotará uma postura mais pluralista e realista.
O problema é que isso provavelmente descontentará o bolsonarismo-raiz e toda a ideologia que sustentou a campanha presidencial. Será que Bolsonaro conseguirá cortar esse cordão umbilical e mudar sua natureza política? Para tanto, terá que convencer a sua própria família, especialmente seus filhos, em quem confia mais do que nos partidos ou em qualquer outro balizador político.
A manutenção da lógica da guerra como estratégia básica só pode ter dois resultados: ou a submissão dos outros Poderes e grupos sociais que não sejam bolsonaristas puros à agenda e ao poderio do presidente; ou o enfraquecimento do Governo Bolsonaro. Em relação ao primeiro cenário, há duas possibilidades.
Na primeira, o bolsonarismo torna-se hegemônico porque aumenta a popularidade presidencial. Essa hipótese está se tornando mais distante, seja por conta dos erros seguidos do presidente e sua equipe - como tem ocorrido no MEC, que gera uma crise atrás da outra -, seja pela enorme dificuldade de se tirar o país da crise econômica e social.
Mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada até o fim do ano, começa a se perceber que o Brasil vai demorar mais para sair do buraco, e isso afetará o poder de comando de Bolsonaro sobre o sistema político, em especial no ano que vem, quando haverá eleições municipais.
A outra forma de aumentar o poderio de Bolsonaro passaria por um conjunto de ações que concentrem mais o poder no Executivo federal. Lembrando de experiências recentes, como na Hungria, Filipinas ou Venezuela, tal cenário poderia se vincular a medidas de iliberalismo político mais sutil ou até a algumas de cunho autoritário mais explicito.
Creio que esse caminho vem se tornando mais complicado, embora não impossível. Isso se deve não apenas a reação de grupos sociais e instituições democráticas, algo sem dúvida relevante. Essa via ficou mais difícil por causa dos próprios erros de Bolsonaro e seus aliados.
Neste sentido, vale lembrar que o conflito do bolsonarismo com os militares e a adoção de uma política externa obtusa são fatores que podem geram obstáculos para o projeto de reforço do poder do presidente.
A ação política baseada na guerra permanente pode, no entanto, gerar maior enfraquecimento do governo. Na verdade, isso já tem acontecido, com as derrotas no Congresso, a perda de popularidade presidencial, o aumento da animosidade entre os bolsonaristas, o isolamento externo e o crescimento das pressões do mercado.
O que não se sabe é de que maneira e em qual velocidade poderá seguir esse processo. Um governo que opte pelo insulamento num grupo político e social minoritário pode derreter mais lentamente, tornando o presidente Bolsonaro um "lame duck" frente ao sistema político, sem que tenha completado nem metade do seu mandato.
O outro desfecho é alguma forma de saída do poder, situação muito mais imprevisível no atual momento, embora a cada semana se espere um novo tsunami, coisa que tem acontecido regularmente.
De todo modo, qualquer que seja o fim da história, a manutenção da lógica da guerra não prejudica apenas o exercício democrático do poder pelo presidente Jair Bolsonaro. A maior vítima dessa forma radical e insana de se fazer política é a nação, principalmente o povo mais pobre do país.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/17 de maio de 2019

Pesadelo kafkiano (José de Souza Martins)

A cultura de uma escolaridade simples foi o espetáculo, nas últimas semanas, nas falas de membros do governo, que a expressaram em manifestações sobre diferentes temas da educação e da ciência. O ministro da Educação considerou-se vítima de um processo como o de kafta (churrasquinho árabe).
Provavelmente, quis dizer "O Processo", livro de Franz Kafka, escritor tcheco, autor de obras emblemáticas da literatura do absurdo. Como em "A Metamorfose", desse autor, amanhecemos, no dia 1º de janeiro, como o estranho ser que não somos. Esse é nosso pesadelo kafkiano.
O mesmo governo que sataniza a universidade pública tem um ministro da Economia, que foi bolsista do CNPq, cuja ascensão ao poder coincidiu com extemporâneas chamadas de reportagem de TV sobre a Universidade de Chicago. Onde ele fez cursos de pós-graduação depois de uma graduação na UFMG, universidade pública e gratuita. Os Prêmios Nobel de Chicago foram ressaltados. Nas boas universidades, porém, é a nota do próprio aluno, e não a nota dos outros, que diz qual é sua competência.
Faz lembrar Thorstein Veblen, em seu "A Teoria da Classe Ociosa", e sua tese sobre prestígio vicário que decorre da dependência em relação a quem tem prestígio próprio. Aqui, competência não é vicária: ou se tem ou não se tem. O país está à espera da comprovação de que a economia do ministro resolverá nossas questões sociais para criar mercado e resolver nossas questões econômicas.
O vistoso talento se confirmará se o problema gravíssimo do desemprego for resolvido, apesar das medidas draconianas que vêm por aí e da falta de políticas sociais. E se os graves problemas nacionais decorrentes de ignorância e de impróprias políticas de educação forem resolvidos como passo decisivo para a integração social dos banidos da modernização e do crescimento econômico rentista.
No capítulo da obsessão pelo diploma e seu simbolismo e a pouca preocupação com o conteúdo do que o diploma representa, temos fatos melancólicos. Quando era ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho foi à operária Osasco (SP) participar de uma cerimônia de diplomação de alunos do curso de alfabetização de adultos do Mobral. Que, aliás, adotava o mesmo método de Paulo Freire, hoje satanizado pelo governo, que não sabe quem ele foi, mas dele tem raiva. Para espanto de um jornalista, o diploma dizia que "Fulano de Tal não está alfabetizado". Diploma de analfabeto, mas diploma é diploma. Diz algo, ainda que nem sempre diga tudo.
Idolatrar o diploma, e não o conhecimento, é pluripartidário. Lula, um dos políticos brasileiros mais inteligentes, apesar de não ter a escolaridade que gostaria, frequentes vezes demonstra sua frustração pela falta de diplomas. Emocionou-se ao receber da Justiça Eleitoral o diploma de presidente da República, mais do que na posse.
Petistas destacaram os diplomas de doutor honoris causa que ele recebeu no Brasil e no exterior. Um deles chegou a comparar o número de diplomas que recebera com os recebidos por Fernando Henrique Cardoso. Destacou que Lula tinha mais diplomas. Mas não disse que os de FHC não eram só os honoríficos. Eram sobretudo os da competência científica e das teses defendidas. Lula gosta de depreciar, sem motivo, os títulos acadêmicos. De outro modo, é o que faz o governo de agora. Vários de seus sábios chegaram ao poder porque passaram por curso americano de ciência oculta de uma nota só.
Mais que a idolatria do diploma vazio, ameaça a sanidade política do país o desapreço pela ciência e pelos méritos da ciência brasileira que vem da boca do governante. O governo deprecia a filosofia e a sociologia, o que mostra ignorância, e não sabedoria.
Em deplorável afirmação do presidente da República, na Universidade Mackenzie, ao louvar a pesquisa naquela universidade sobre o grafeno, desinformado, declarou que a universidade pública brasileira não faz pesquisa científica. Emitiu juízo sobre o que desconhece.
O projeto do Mackenzie tem como parceira decisiva a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), instituição que recebe 1% da arrecadação estadual para apoio a projetos de pesquisa e concessão de bolsas de estudo para formação de novos cientistas. É ela governada por cientistas vinculados sobretudo a universidades públicas, que apoia pesquisas principalmente nelas e também nas empresas, em todos os campos do conhecimento. O que é próprio das instituições de fomento da educação científica e da ciência.
O projeto do grafeno só foi viável com recursos da Fapesp. Ignorar esse fato é ignorar muito mais. Só São Paulo, sobretudo nas universidades públicas, produz mais da metade da pesquisa científica do país.
Valor Econômico/17 de maio de 2019

Não confunda o país com sua timeline (Fernando Schüler)

Yuval Harari fez uma provocação interessante em seu último livro, sugerindo que as massas se tornaram um dado menor e dispensável, nas democracias. "É muito mais difícil, diz ele, lutar contra a irrelevância do que contra a exploração."
A irrelevância, para Harari, é um subproduto do avanço tecnológico. Da economia globalizada que torna rapidamente obsoletos setores tradicionais da economia e suas ocupações. É possível que vá aí algum romantismo. A política foi, desde sempre, um jogo de elites. De qualquer modo, o diagnóstico faz sentido: perdeu-se um ator clássico da democracia, associado às estruturas sindicais e partidos da tradição social-democrata.
O ponto que parece escapar a Harari é o surgimento de um fenômeno relativamente novo na democracia, a saber: a nuvem digital. A massa difusa, fluida e dissonante de vozes, no espaço digital, que se põe como um espelho do que chamamos costumeiramente de sociedade.
O problema é que se trata de um espelho distorcido. O The Hidden Tribes Project identificou com precisão o fenômeno. Uma pesquisa realizada com simpatizantes do Partido Democrata mostrou que 53% se definiam como politicamente moderados ou conservadores, contra apenas 29% dos simpatizantes ativos na internet. Entre este último grupo, 28% haviam participado de algum tipo de protesto, no ano passado, contra apenas 7% dos democratas em geral. A pesquisa indica que o nível de consenso e moderação, na base da sociedade, é significativamente maior do que habitualmente sugerem os argumentos em torno da "democracia polarizada".
É um erro elementar confundir o que se passa no ambiente tóxico das mídias sociais com o sentimento mais amplo e difuso da sociedade. Isto levou, por exemplo, a campanha de Hillary Clinton, em 2016, a uma ênfase exagerada nos temas identitários, na crítica formulada por Mark Lilla. A minoria barulhenta dá o tom. A maioria silenciosa, em algum momento, cobra sua fatura.
Em boa medida, a habilidade para expressar sentimentos e demandas deste espectro mais amplo da sociedade, que a pesquisa apropriadamente chama de maioria escondida, pode explicar o sucesso de líderes populistas em nossa época.
Há, efetivamente, um novo ator na democracia: a minoria volátil e barulhenta que protagoniza o debate público nos meios digitais. Trata-se de um ecossistema marcado pela imediaticidade, a reação instintiva e sem filtros, e pela baixa empatia, como bem identificou a neurocientista britânica Susan Greenfield. O debate feito à distância, longe do rosto e do sentimento real das pessoas, em que a agressão e o argumento ad hominem surgem como padrão.
De tudo isso, o que mais me impressiona (ou diverte) é a lógica do ruído, da informação irrelevante, que se tornou um elemento central da política. Dias atrás andávamos entretidos com o bate boca entre "olavistas" e militares. Um tipo novo de debate, capaz de ganhar manchetes em bons jornais sem que ninguém saiba exatamente explicar do que se trata.
Anthony Giddens acertou na mosca ao dizer que, no mundo digital, "as grandes comunidades têm as mesmas características de pequenas comunidades. Há emoções, fofocas, os bullies de vilarejo".
Talvez seja isto: a incorporação em grande estilo da política à lógica do pequeno entretenimento.
O ponto é que se trata de um erro elementar imaginar que o ambiente tóxico das redes sociais possa traduzir uma leitura adequada sobre o país. Ativistas digitais compõem, segundo pesquisas conduzidas pela Bites, um percentual aproximado de 15% do eleitorado, no caso brasileiro. Trata-se da minoria ativa da sociedade. Nem todos, por óbvio, são militantes insensatos e hooligans digitais. Mas sua presença ali é desproporcional em relação ao conjunto da sociedade.
Erra feio, mas muito feio, quem tentar compreender o que se passa com o Brasil a partir do humor das redes sociais. Algo na linha da observação recente do ministro Luís Roberto Barroso, quando disse se preocupar quando uma Suprema Corte toma reiteradas decisões na contramão do sentimento da sociedade. Sentimento de quem, exatamente?
O que é perigoso para um ministro do Supremo é perigoso para qualquer um. A confusão elementar entre o que se passa na sociedade e o que faz barulho, todos os dias, na nuvem digital pode atenuar o tédio e confirmar nossas certezas. O risco é o sujeito perceber, de repente, que ele mesmo foi tragado pela nuvem e passou a se mover com seus piores trejeitos.
(*) Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
Folha de S. Paulo/16 de maio de 2019

Sobre o ‘marxismo cultural’ (Roberto DaMatta)

A Rádio Guaíba me perguntou sobre esse “marxismo cultural” que, como um canibal, devora consciências. Ele, diz a vulgata bolsonarista, distorce realidades tão claras como o evangelismo cristão ou um conservadorismo radical, igualmente sectário.
Um ataque de pusilanimidade me fez driblar a entrevista. Mas não consigo fazer o mesmo com minha consciência.
Eis o que penso.
O problema das Ciências Sociais é estudar coisas que todos experimentam. Quem não tem opinião sobre sexualidade, religião, política, pobreza e corrupção? Mas quantos buscam compreender tais assuntos com distanciamento?
As Ciências Sociais contrariam o senso comum e investigam temas e assuntos proibidos. Um exemplo forte é a sexualidade infantil estudada por Freud, um outro é a transição do lucro como paixão escusa a investimento produtivo num universo de múltiplos interesses que, leiam Albert Hirschman, bloqueia despotismos.
Por outro lado, quem não pensa em transformar a vida dos pobres e oprimidos, sobretudo num Brasil onde eles fazem parte da vida de cada um de nós? Seja como ricaço ou miserável; cidadão comum ou celebridade com o direito a escapar da terrível igualdade republicana? Quem não se preocupa com o mínimo de bens e serviços obrigatório para todos os brasileiros?
O coração ideológico da consciência política da minha geração, formada no final dos anos 50, foi o marxismo. Um marxismo lido em traduções de edições russas censuradas. Lembro que essa geração da Guerra Fria — condescendentemente chamada de “geração Coca-Cola” — não falava apenas de “direita” e “esquerda”. Ela ia além, classificando as pessoas como “conscientizadas” e “alienadas”. Os pais eram alienados, as mães — católicas e preocupadas com os pobres — pré-conscientizadas. Fui contaminado por Karl Marx e pelo pouco falado Friedrich Engels quando entrei na faculdade. Quem, aos 20 anos, não tem o direito de se deslumbrar com o Manifesto Comunista e vibrar com o fim da opressão encontrando, de quebra, a chave-mestra da História da Humanidade?
Foi o protomarxismo mais evolucionista do que funcionalista (o Marx do 18 Brumário e o da Questão Judaica) que me levou a perceber o Brasil que gravitava em minha volta. Brasil com o qual, como aprendiz de antropólogo do Museu Nacional, entrei em contato quando vi o seu lado mais fundo e dramático — suas sociedades indígenas que, mesmo com a tal “proteção oficial”, estavam sendo dizimadas enquanto os sertanejos reclamavam de injustiça.
Foi, pois, o altruísmo contido no “comunismo” que me levou a essa identificação com um Brasil a ser transformado. Não abandonei esse comunismo até hoje entrelaçado ao meu amor pelo Brasil.
O que abandonei foi a infantilidade dos radicalismos. Do “esquerdismo” nas suas versões radicais e patologicamente malandras e populistas. Um posicionamento cujo pendor acusatório e condescendente, ressentido e repleto de má-fé (aos nossos, tudo; aos inimigos, o berro, a negação, a mentira e a calúnia!) reproduz o autoritarismo fascistoide do regime militar. A prova do pudim foi (como ocorre em todo lugar) a chegada ao poder, pois nada é mais revelador do que o poder.
O esquerdismo irresponsável produziu o contexto polarizado que vivemos. Pode-se controlar excessos, mas enjaular o “marxismo cultural”, cujo espírito marca toda uma época, seria como tentar colocar de volta a noite na Caixa de Pandora. Do mesmo modo, não há como carimbar o liberalismo como um paraíso de rentistas ladravazes. Basta pensar na filantropia e no mercado como um equalizador de interesses pulverizados — esses produtores de meritocracia coletivista. Por outro lado, o comunismo recria o individualismo capitalista quando se reconhece o talento dos seus líderes. Senão ninguém falava em Stalin, Lenin, Mao e Fidel.
O que não pode ocorrer é a tentativa de eliminação suicida da esquerda pela direita. Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa dos dois lados que nela concordam em discordar. Direitas e esquerdas perfeitas — que deixam saudade! — só ocorrem nas ditaduras que, lamentavelmente, conhecemos bem demais.
O Globo / O Estado de S. Paulo/15 de maio de 2019

Uma âncora ao centro (Carlos Pereira)

Os eleitores de centro ficaram órfãos nas eleições presidenciais de 2018. A intensa polarização que caracterizou a campanha entre petistas, num extremo, e antipetistas, em outro, reduziu drasticamente as chances de candidatos centristas.
Entretanto, o resultado eleitoral desastroso talvez não tenha retirado o poder dos partidos de centro de influenciar decisivamente na formulação e definição de políticas públicas, especialmente no Legislativo. Em presidencialismos multipartidários, caso brasileiro, partidos de centro têm a oportunidade de exercer o papel de legislador mediano; ou seja, ocupar a posição pivô no processo de decisão de políticas públicas.
Nesses sistemas, parece haver necessidade de uma âncora, especialmente quando a legislatura é altamente fragmentada. Na ausência dessa âncora política, um sistema teria uma chance maior de se tornar polarizado e, portanto, disfuncional. Supondo que um objeto com grande massa tende a atrair gravitacionalmente objetos menores, essa âncora mediana em ambiente fragmentado evitaria muita concentração de poder num ou em ambos os extremos do espectro ideológico, diminuindo assim a polarização ideológica e potenciais problemas de governabilidade.
No limite, a existência de um partido do legislador mediano é a razão pela qual o sistema presidencialista se torna viável. Assim como a criação da matéria se deve à atração gravitacional entre os objetos, partidos centristas do tipo legislador mediano impedem que dois partidos grandes e ideologicamente opostos atraiam e suguem as siglas menores, pois estas não teriam força de resistir às pressões dos partidos polarizados sem a existência de uma massa mediana que equilibre o sistema.
Portanto, para se proteger, um sistema multipartidário tenderia a gerar tais partidos medianos centristas. Em vez de desencorajar a criação de novos partidos, como um sistema majoritário (comum nos EUA) normalmente faz, o sistema proporcional, através da figura do legislador mediano, fornece incentivos para novas partes se desenvolverem com o objetivo de ocupar essa posição estratégica e de pivô no sistema político e partidário.
Muito raramente o partido do presidente consegue sozinho sair das eleições com a maioria de cadeiras no Legislativo. Para governar livre da condição desfavorável de minoria, o presidente terá que montar coalizões pós-eleitorais. Para tanto, vai necessitar de partidos dispostos a apoiá-lo fazendo parte da sua coalizão. Os candidatos naturais para essa tarefa coadjuvante são justamente os legisladores medianos de perfil centrista.
Por outro lado, partidos que miram a trajetória legislativa tendem a apresentar um perfil ideologicamente mais fluido. Isso, justamente, é o que atribui flexibilidade a esses partidos para que exerçam o papel de âncora em uma coalizão presidencial, independentemente do perfil ideológico do presidente. Quanto mais ideológicas são as legendas, menor a capacidade de exercerem o papel de mediano, amortecendo os conflitos e evitando saídas extremas ou polarizadas.
A vitória do polo conservador em 2018 — com uma agenda política ambiciosa, mas com uma estratégia de governar sem uma coalizão majoritária e estável — tem gerado muitas dúvidas sobre a efetividade do novo governo em aprovar reformas. Diante dessas incertezas, partidos de centro, como o PSDB, DEM e PSD (ou uma possível fusão entre eles), podem justamente atuar qualificando as políticas públicas evitando saídas radicais que possam se distanciar da preferência mediana do Congresso.
Portanto, eleitores simpáticos a partidos centristas e suas agendas políticas não radicais não precisam se desesperar, pois mesmo sem serem eleitoralmente vitoriosos à Presidência, tais legendas são fundamentais para o funcionamento do jogo de forma equilibrada. Um bom exemplo é a reforma da Previdência. Talvez não tenha sido por acaso que o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) foi justamente o escolhido para ser o relator da reforma da Previdência. Na legislatura atual é o PSDB que ocupa exatamente a posição de legislador mediano; ou seja, a posição que melhor espelharia a preferência agregada de todos os legisladores.
(*) Carlos Pereira é professor da FGV/Ebape
O Globo/15 de maio de 2019