quinta-feira, 24 de março de 2011

Comissão da reforma política: empolgado eu não estou, mas dou o beneficio da dúvida (Bolívar Lamounier)

Justiça se faça, a comissão da reforma política não fugiu da raia. Poucos dias atrás eu fiz aqui uma queixa quanto ao método de trabalho – à falta de um método, melhor dizendo -, que ela adotou, mas quero começar reconhecendo que as decisões parciais tomadas até aqui têm relevância.

Refiro-me em particular ao fim das coligações partidárias em eleições legislativas e à volta ao mandato de cinco anos em vez da reeleição para presidente, governadores e prefeitos nos municípios com mais de 200 mil eleitores.

Se estas decisões são boas ou más, é outra questão; mas relevantes, no sentido de que potencialmente impactantes, isto elas são. Vou abordar hoje a questão das coligações e deixar o fim da reeleição para outro dia.

As coligações em eleições proporcionais deviam ter acabado há muito tempo. Quanto eu me lembre, uma das dificuldades em sequer discutir o tema era a resistência do PT. Quando compunham uma agremiação pequena, os petistas, aliás os grupos de esquerda de modo geral, obviamente não iam dar cabo desse maná.

Toda vez que a questão era suscitada, lá vinham eles com um balaio de objeções. Qualquer argumento servia. O carro-chefe, como é fácil imaginar, era uma espécie de direito divino que os partidos pequenos se arrogavam (ou se arrogam, sei lá). Tudo se passava ou passa como se o pequeno porte fosse a maior das virtudes, portanto fonte de uma legitimidade superior.

Tempos atrás, quando se presumia que a política “burguesa” era apenas uma estação intermediária rumo à política “ideológica”, o argumento fazia certo sentido. Sob o regime militar, mais sentido ainda. Podia-se mais ou menos supor que as pequenas siglas traziam na alma um futuro de liberdade.

No momento, há 29 siglas registradas no TSE; se a lógica daquela época continua em vigor, podemos estufar o peito de orgulho e proclamar aos quatro ventos que nenhum outro país planeja a liberdade com tanta antecedência. Temos liberdade garantida para os próximos trezentos ou quatrocentos anos.

Mas a questão de fundo é na verdade bem simples. A mecânica eleitoral brasileira está baseada no princípio proporcional. A proporcionalidade é considerada inegociável, tanto assim que a comissão do Senado já fincou o pé contra a eventual adoção de um sistema majoritário. Tudo bem, mas então, sejamos coerentes.

A idéia-mestra do sistema proporcional é cada partido poder se diferenciar dos demais e mostrar aos eleitores a sua identidade doutrinária ou ideológica supostamente única. Os adeptos de tal teoria resistem a sistemas majoritários justamente porque não querem ser forçados a integrar alianças grandes e heterogêneas (“espúrias”, como se costuma dizer).

Mas na regulamentação específica do processo eleitoral, muitos desses mesmos partidos que supostamente desejam assumir uma identidade diferenciada reclamam o que? Reclamam um direito não menos sagrado de formarem coligações, para dessa forma atingirem mais facilmente o quociente eleitoral.

Quer dizer, sujam com a mão eleitoral a identidade que acabaram de lustrar com a da ideologia. O que há, portanto, não é uma aversão “nobre” a alianças “espúrias”, e sim um desejo de jogar ora com um dado, ora com outro, conforme o momento e as conveniências.

Dir-se-á que o meu argumento é ingênuo, teórico, idealista etc – ou seja, que eu estou presumindo uma legislação baseada em princípios, quando na verdade o que há é interesse, fisiologismo ou picaretagem.Mas é lógico que estou presumindo uma legislação baseada em princípios! Nenhuma pessoa de bom senso haverá de imaginar um cientista político ou jornalista dando-se ao trabalho de escrever um texto apenas para dizer: “então tá, limitemo-nos a dar forma jurídica aos interesses”.

No meu modo de ver, as coisas funcionam justamente ao contrário. “Interesses” sempre há; num mundo de anjos talvez não haja – é um ponto que não tenho condições de esclarecer -, mas neste aqui há, isto é óbvio. Há interesses dos mais variados tipos: interesse em poder, em dinheiro, em ideologias, em estar bem com os outros etc, e é também óbvio que alguns são mais fortes que outros, dependendo do tipo e do momento.

Mesmo com a melhor legislação do mundo – a mais bem concebida e satisfatória para o conjunto dos contendores -, tais interesses vão se manifestar e um sempre pode tirar melhor proveito dela que outro. Em futebol, a regra do escanteio, por exemplo, é a mesma para os dois times, mas aquele que tiver jogadores mais altos poderá se servir dela de maneira mais eficaz.

É pois evidente que a legislação eleitoral, como qualquer corpo de leis, pode e deve ser discutida à luz dos princípios que encarna. Daí eu ter abordado o assunto em função da distinção entre sistemas proporcionais e majoritários. O que eu quis dizer – nem mais, nem menos – foi isto: (1) os partidos que embaralhem as cartas como quiserem, isso faz parte do jogo; (2) à lei eleitoral cabe desembaralhar : se os partidos querem o sistema proporcional para se tornarem mais ideológicos, ótimo, vamos por aí; se não querem ser ideológicos, ótimo também, vamos por ali. Pensemos noutro sistema, não necessariamente proporcional.

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