quinta-feira, 30 de junho de 2011

‘Eu vi Borges apaixonado por duas mulheres ao mesmo tempo’

Ariel Palacios

“Borges gostava das mulheres originais, loiras, altas e inteligentes. Mas a realidade é que a única coisa que Borges amou foi a literatura”. A frase, dita com voz suave porém firme, foi pronunciada ao Estado por María Esther Vázquez, ex-colaboradora, amiga e biógrafa – além de uma das paixões – do escritor Jorge Luis Borges.

“Borges apaixonou-se muitas vezes. Eu vi Borges apaixonado por duas mulheres ao mesmo tempo”, explicou Vázquez durante uma entrevista em sua casa no bairro de Palermo, onde se recupera de uma grave fratura na perna. Segundo Vázquez, o autor de O Aleph apaixonava-se por uma mulher diferente “a cada dois ou três anos”. “Desde Concepción Romero a Viviana Aguilar, que foi seu último amor, aos 80 e tantos anos, Borges sempre esteve apaixonado por alguém”, afirma.

Sobre a diplomata uruguaia Emma Riso Platero, a biógrafa diz:. “Ela era muito divertida. Uma mulher que emitia luz. Bonita”. Segundo Vázquez, “um dia Emma estava em num restaurante com o escritor quando seu elegante casaco, pendurado da cadeira, caiu no chão. O garçom aproximou-se, avisou Emma sobre o casaco e o recolheu. A uruguaia, com um sorriso, respondeu: ‘Ah, como se eu fosse me incomodar por um casaco’. Borges ficou fascinado. Ele gostava dessas frases”.

No entanto, María Esther Vázquez sustenta que as mulheres, nos contos de Borges, “são o objeto do prazer masculino, às vezes bestial, como em Emma Zunz ou A Intrusa. Uma mulher que tem uso carnal. Mas, nos poemas é diferente. Ali a gente pode vê-lo apaixonado. Contudo, é uma coisa muito literária, não é passional. Ocasionalmente é um amor dolorido”.

Alejandro Vaccaro, presidente da Sociedade Argentina de Escritores (Sade) e autor de Georgie 1899-1930, uma detalhada biografia sobre a infância e juventude de Borges, concorda com Vázquez: “Borges estava sempre apaixonado por alguma mulher. Sempre eram bonitas. Emma Riso Platero foi mais uma das mulheres bonitas e inteligentes pelas quais Borges de apaixonou. Mas, não foi um dos maiores amores da vida dele, de forma alguma”.

Trechos de cartas de Jorge Luis Borges para Emma Risso Platero
Carta 1
Querida Emita,
Tenho pensado (e ainda penso) tanto em ti, leio e releio tanto tuas cartas, ligo-te de tal maneira à minha vida, associo-te tão inevitavelmente a lugares onde estivemos ou simplesmente por onde passastes – aos quais gostaria de ter ido contigo – que confundi essas contínuas e ilusórias atividades com o ato de escrever-te. Com algum horror, comprovo que até agora não o fiz.

Na segunda, 21, virás a (…) e te entregarei tua formosa página. Há dois ou três dias vi C… e ritualmente te evocamos (sabes que ele e eu professamos a mesma religião). Enquanto falávamos, tocou o telefone. C… entoou a palavra alô! segundo a melhor tradição e me pareceu incrível, Emita, que não fosse tua a suntuosa voz que falava com ele. O livro sairá em breve; na próxima semana receberei as provas para agregar ao prólogo, que escreverei com muito entusiasmo e secreta nostalgia. Terás, então, recebido um agradecimento efusivo (…) Quando voltarás a colaborar na revista?

Carta 2
Emita,
Agradeceria infinitamente que dedicasses alguns minutos de tua mágica voz para lembrar a Gallimard que ele me propôs uma vez uma edição francesa de Ficcões. Mais que infinitamente, agradeceria que respondesses logo a estas nada caligráficas linhas, ainda que fosse para reprová-las, como merecem, sem dúvida. Responderei em seguida. (…)Emita, ter te conhecido, ser alguém para ti, é uma das coisas mais importantes que aconteceram em minha vida. Não é a primeira vez que penso nisso.

Carta 3
-Sexta-feira, 6 de julho -
O mundo é notoriamente misterioso e até indecifrável, mas espero saber um dia porque deixei acumular-se tanto tempo sem te escrever. Será por que tenho pensado (e penso) incessantemente em ti que o ato de escrever me parece, de algum modo, supérfluo? Tua operação me deixou infinitamente preocupado; só agora, por Guy, soube que estás bem e que voltarás brevemente a Buenos Aires. Tu, Emita, és uma das raras pessoas que justificam a realidade, que salvam este deficiente universo pelo simples fato de existir, pela generosidade de existir.

Fonte: Danubio Torres Fierro

À VONTADE COM A PALAVRA FALADA

Wilson Alves-Bezerra

Para falar do recente relançamento no Brasil das conferências do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) – proferidas em 1978 (Borges Oral) e 1980 (Siete Noches) – é preciso considerar que a oralidade é um gênero em Borges, detentora de tantas particularidades como em suas incursões como contista, poeta, prefaciador, resenhista ou ensaísta. E também que a oralidade é mais do que um gênero, pois em Borges ela é fruto de uma conjunção física: o tímido autor alcança a plenitude na oralidade quando sua cegueira já é quase total e sua idade bastante avançada. Dizer isso tem a importância de considerar os temas e os pontos de vista defendidos pelo autor, e o modo como os aborda e os desenvolve.

A cegueira é familiar ao universo borgiano desde o procedimento de composição de sua poesia; nas palavras do autor, ao escrever poemas, ele elaborava primeiro “rascunhos mentais”, para só então ditar à secretária o texto em sua forma definitiva. Algo semelhante parece ocorrer em sua fala pública, cujas versões estenografadas sofreram bem poucas correções. A potência da fala de Borges faz pensar nos seminários de seu contemporâneo francês Jacques Lacan (1901-1981), tanto por seu poder de mobilização da audiência, quanto em relação à diversidade de assuntos e à ordenação do que lhes sai da boca, como se tudo aquilo já houvesse sido ensaiado ou escrito antes de ser dito. Mas as semelhanças cessam aí e os estilos não poderiam ser mais distintos: ao Lacan caudaloso opõe-se o Borges contido.

Em Borges Oral, o que há são cinco conferências proferidas sempre às sextas-feiras na Universidade de Belgrano, na Argentina. Duas delas são dedicadas a autores – Edgar Allan Poe e Swedenborg – e as restantes, a temas inquietantes: o livro, a imortalidade e o tempo. O ouvinte – e agora o leitor – poderiam se perguntar: o que é um livro para um cego? Borges responde logo de saída: “Uma extensão da memória e da imaginação”. Para ele, o livro é um dos poucos objetos criados que não é mero prolongamento do corpo humano. E passa a fazer a história da ideia do livro na cultura ocidental. É quando faz sua profissão de fé, de não cultuar livros, tal como os homens da antiguidade clássica, e de valorizar o ensino oral, tal como Sócrates e Platão. Diz Borges: “O mais importante de um livro é a voz do autor, essa voz que chega até nós.”

No encontro seguinte, Borges parece enfrentar uma questão que lhe diz respeito diretamente e que, segundo ele, foi sempre pouco abordada pela filosofia: a imortalidade. Com a morte em seu horizonte, diz: “Não quero continuar sendo Jorge Luis Borges, eu quero ser outra pessoa. Espero que minha morte seja total, espero morrer em corpo e alma”. E a partir daí faz o elogio da morte serena, como a de Sócrates, que depois de tomar cicuta, reúne seus discípulos para falar de dor, prazer e de suas sensações. Borges elogia em Sócrates o eleger uma relação não patética com o próprio aniquilamento. E propõe um argumento matemático bastante consolador – retirado da obra de Lucrécio – para argumentar contra o anseio desmedido da imortalidade da alma individual: “Se você perdeu o infinito passado, o que lhe importa perder o infinito futuro?”

É de se notar que nessas cinco conferências ao mesmo tempo em que coloca em primeiro plano sua circunstância presente – o estar velho, cego e diante da morte -, nunca o faz de modo patético: erige-se, mais que nunca, em sua dimensão de poeta clássico.

No livro seguinte, com o sugestivo nome de Sete noites, Borges, em 1980, volta à carga com sete temas de sua predileção: A Divina Comédia, As Mil e Uma Noites, o pesadelo, o budismo, a poesia, a cabala e a cegueira.

A conferência sobre o pesadelo é curiosa porque revela o interesse do autor perante as produções oníricas, sem filiar-se à psicanálise ou à religião. Borges lamenta-se inclusive pelo fato de os livros de psicologia naturalizarem o sonhar, e não conferirem a ele nenhuma dimensão de estranheza. O que lhe interessa é a dimensão de assombro que os pesadelos podem trazer, e o seu caráter de fabulação: “Chego à conclusão, ignoro se científica, de que os sonhos são a atividade estética mais antiga.”

Finalmente, na conferência que encerra a série, aparentemente contradizendo seu pendor clássico, Borges resolve abordar sua cegueira pessoal, mas também sem acudir ao patetismo: explora as cores que foi perdendo (o negro e o vermelho) e as que se mantêm (o amarelo e um verde azulado); trata da ironia de ter sido nomeado diretor da Biblioteca Pública quando sua cegueira se acentuara, em 1955, e enumera outros dois antecessores cegos no mesmo cargo.

Jorge Luis Borges fecha as conferências falando de si próprio entre os maiores poetas ocidentais, como se falasse de outro, como se saboreasse a cicuta da tradição e se soubesse, acidentalmente, mais um deles.

Wilson Alves-Bezerra é professor do Departamento de Letras da UFSCar, tradutor e autor de Reverberações da Fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP)

BORGES ORAL & SETE NOITES
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução. Heloisa Jahn
Editora: Companhia das Letras
(216 págs. R$ 42 )

Amigo ou inimigo, o jogo continua (Sergio Fausto)

A carta de Dilma Rousseff a Fernando Henrique Cardoso reconhecendo os seus méritos como político, intelectual e presidente da República tem importância histórica. Tem também significação política, na medida em que desdiz a catilinária lulopetista sobre a "herança maldita". Não tem, contudo, efeito sobre o jogo político-partidário do PT porque, neste, quem continua a dar as cartas é o ex-presidente Lula. E ele já deixou bem claro que continua a operar dentro da lógica amigo-inimigo, como se de fato a política fosse o prolongamento da guerra por outros meios.

Que o PSDB é o inimigo escolhido já se sabe há muito tempo. É escolha feita desde a preparação do Plano Real, quando Lula, sob os maus conselhos de seus assessores econômicos, preferiu denunciar o suposto "estelionato eleitoral" a apoiar o programa que pôs fim a mais de duas décadas de inflação alta, crônica e crescente e criou as condições para a retomada do crescimento com distribuição da renda. Na Presidência, buscou apropriar-se dos louros da vitória sobre o processo inflacionário, como se fosse ele, e não o seu antecessor, o responsável político pela estabilização monetária, embuste que Dilma indiretamente denuncia em sua carta a FHC.

Desde meados dos anos 90, a escolha do PSDB como inimigo principal vem sendo reiterada a cada passo, sem nenhum escrúpulo de consciência. Ainda recentemente, em meio à crise que levou à renúncia do ministro Antônio Palocci, Lula atribuiu ao PSDB paulista o surgimento na imprensa das informações sobre a inexplicada - possivelmente porque inexplicável - evolução patrimonial de seu ex-ministro da Fazenda. Provas? Não as tinha. Nem mesmo indícios. A acusação leviana servia a um único e deliberado propósito: arregimentar a tropa petista no Congresso Nacional para blindar Palocci na Casa Civil. Em vão.

O pouco-caso pelas instituições e pelos princípios republicanos - para não falar no desdém pela verdade histórica - é parte da lógica amigo-inimigo. Em encontro de dirigentes petistas realizado no interior de São Paulo, logo após a queda de Palocci, o ex-presidente afirmou em discurso que os problemas com os companheiros só surgem quando o partido está desunido. Foi assim no "mensalão", disse ele, invocando o testemunho de José Dirceu, postado ao seu lado. Foi assim também agora, arrematou, fazendo referência ao escândalo que derrubou o ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff. Ou seja, não importa se houve ou não houve corrupção, desvio de recursos públicos, enriquecimento ilícito, etc., nesses e em outros tantos casos envolvendo dirigentes do PT e ministros de seu governo. O que importa é preservar a unidade e a força da organização, na luta contra o inimigo.

Mais uma vez, no discurso referido, o propósito do ex-presidente foi arregimentar a base parlamentar petista, desta feita em apoio a Dilma Rousseff. Objetivo legítimo e iniciativa oportuna do ponto de vista do governo. Como líder partidário, Lula tem todo o direito de convocar os seus a respaldar a presidenta. Ninguém o faria com maior eficiência.

O problema é que o ex-presidente, e não é de hoje, se comporta como chefe de uma organização dedicada a acumular poder e evadir-se tanto quanto possível do controle público (não para se autorregular, mas para proteger os companheiros, aloprados ou não). Cada vez mais raras são as vezes que se vê em Lula o homem público preocupado com as instituições e a qualidade da vida política. Vício adquirido na oposição, agravado na Presidência e cultivado depois de deixar o cargo.

Dilma Rousseff não é capaz de operar com a mesma eficiência política, o que era previsível. A presidenta é mulher de convicções - não importa se certas ou erradas - e compromisso com o que lhe parece tecnicamente correto. Custa-lhe visivelmente abrir mão deles, assim como é perceptível sua falta de gosto pelo fazer convencional da política.

Tipo meio ascético, Carlos Lacerda, em seu livro de memórias, relata as dificuldades que vivia para controlar uma parte da bancada da UDN na Câmara dos Deputados no final dos anos 1950, formada por parlamentares boêmios que viviam na noite carioca. Resolveu, então, fazer o sacrifício pessoal de cair na farra por uns dias para criar maior camaradagem com seus liderados. Virou duas noites, de bar em bar. Diz ele que deu certo.

Registro essa história para ressaltar o tamanho do desafio político com que se defronta a presidenta. Sua tarefa é muito maior e mais complexa que a de Lacerda. Para começar, porque não é na farra boêmia que está interessada a maioria da base de sustentação do governo. Para concluir, porque liderar uma bancada parlamentar é algo infinitamente mais simples do que presidir um país como o Brasil.

Passados seis meses de governo, Dilma Rousseff ainda não encontrou resposta para o desafio básico da boa governança no sistema presidencial brasileiro: como compor e preservar de modo estável uma coalizão de partidos que dê sustentação parlamentar ao governo, entregando-lhes cargos e recursos na administração federal, e ao mesmo tempo realizar um programa que requer coerência e eficácia na implementação das políticas públicas.

Jejuna na vida político-partidária, em geral, e na vida parlamentar, em particular, a presidenta acumula tropeços e zigue-zagues na relação de seu governo com o Congresso, como mostram as idas e vindas na questão do sigilo dos documentos oficiais.

Tomara que ela se firme, consiga estabelecer limites à voracidade dos aliados, separando o joio do trigo, e imprima a sua marca pessoal ao governo. É importante para o País que faça um bom trabalho e não permita a Lula exercer, desenvolto, o seu protagonismo anti-institucional, seja em cena aberta ou nos bastidores da vida política (e empresarial).

OS QUE SÃO SELVAGENS SEMPRE O ALCANÇAM (Juca Magalhães)

Tem amigos que acontece de nos deixar em pleno feriado nacional. Parece que querem aproveitar a pausa. Foi assim com o pianista Josué Louzada que se foi numa semana santa, meu querido professor de artimanhas das oitenta e oito teclas. Vladimir Horowitz conta que um ator o escreveu mencionando o número de teclas do piano e ele não entendeu, pensou que fosse alguma buate. Sua filha perguntou surpresa: “papai você não sabe quantas teclas o piano tem?” Ele respondeu de maneira divertida: “Ora, eu nunca contei”.

Nesse último feriado um outro desses meninos rebeldes e selvagens nos deixou. Um cara que tinha essa coisa da simplicidade profunda e da opção temerária de viver de acordo com suas próprias regras.

Marcão Lima foi uma figura importante para os roqueiros de Vitória, nos anos oitenta representava no Espírito Santo a conhecida gravadora CBS, tinha uma boa visão do mercado e estava por dentro de muita coisa que acontecia naquele universo que todos ansiavam por freqüentar. Em sua casa tinha uma sala com grandes estantes abarrotadas de discos que eram compartilhados a título de “dever de casa” e vinham com um carimbo de amostra invendável ou algo do gênero.

Visto que todos compatilhávamos de uma obrigatória porralouquice selvagem, uma das maiores influências que Marcão me deixou não tem nada a ver com a música pop e foi, certamente, das mais improváveis...

Devia ser o ano de 1988 e eu estava passando uma fase dark side de arrepiar os cabelos, ia rolar na Praia do Canto uma festa “anos sessenta” para lançar uma cerveja - acho que o nome era Americana - e pedi uma jaqueta de couro emprestada ao velho mestre. Passei o fim de semana entrando e saindo de festas e bares, quando chegou o domingo eu simplesmente não me lembrava de muita coisa que tinha aprontado. Salvo alguns flashes incompreensíveis, tinha sofrido um apagão.

No domingo de noite fui devolver a jaqueta de Marcão, ele me perguntou da festa e eu não lembrava nada, fiquei perceptivelmente angustiado. O cara veio com um livro de capa amarela e disse para mim daquele jeito engraçado dele: “Juquêlho! Abre aí em qualquer página e lê”. Não consegui mais desgrudar daquele livro, depois vieram outros e outros. Foi o início de um longo período de busca interior que passei e que culminou com a descoberta de uma escola espiritual de mistérios, o conjunto da experiência, por sinal, renderia também um bom livro do gênero.

Em plena quinta-feira do feriadão de Corpus Christi nos reunimos em torno do Marcão pela última vez. Alguns de nós ostentando cabelos brancos, outros já sem tantos cabelos, alguns mais barrigudos outros do mesmo jeito de sempre. Alguns cobrando o sumiço, outros querendo montar novas bandas. Trifin intimou o Renso para fazer guitarra, hoje um pacato pai de família, o amigo escorregou dizendo que ia dar um apoio moral, aproveitando falei que iria também só que para dar um Apoio Imoral. E fomos assim, como era o Marcão, fazendo piada até os aplausos que hoje encerram esses momentos de despedida que a vida nos enfia de goela abaixo.

Só para quem ficou curioso, o livro que o Marcão me aplicou é intitulado “Tantra: A Suprema Compreensão” de autoria do guru Rajneesh que está aqui do meu lado olhando para mim (não o guru, mas o livro). Então vou fazer de novo aquela experiência, abrir ao acaso e compartilhar o que rolar com vocês:

“A vida é selvagem.
O amor é selvagem.
E Deus é absolutamente selvagem.
Ele jamais entrará nos teus jardins, porque são demasiadamente humanos. Ele não irá às tuas casas, pois são demasiadamente pequenas. Ele jamais será encontrado em teus caminhos canalizados. Ele é selvagem.”

“Lembra-te: Tantra diz que a vida é selvagem. Temos de viver entre todos os perigos, entre todos os riscos – e é belo, porque nisso há aventura. Não tente fazer da tua vida um esquema fixo; deixa que ela tome seu próprio curso. Aceita tudo, transcende a dualidade através da aceitação, permite que a vida tome seu próprio curso – e chegarás, com toda certeza chegarás. Esse “toda certeza” eu digo não para tornar-te seguro, mas porque é um fato; eis por que o digo. Não é a tua certeza de segurança. Os que são selvagens sempre o alcançam.”

“Transitório é este mundo:
Como fantasmas e sonhos, ele não tem substância alguma.
Renuncia a ele e abandona teus iguais,
Corta os laços da luxúria e do ódio,
E medita em bosques e montanhas.
Se, sem esforço,
Permaneceres desprendidamente em estado natural,
Logo Mahamudra alcançarás
E obterás a não-obtenção, o não-aquisitivo.”

Bhagwan Shree Rajneesh, também conhecido como Osho.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Seis anos após o mensalão, Vladimir deixa o PT

Fundador do partido alega agora que volta de Delúbio Soares à sigla "faz com que todos se pareçam iguais"

Alessandra Duarte

Seis anos após o escândalo do mensalão, Vladimir Palmeira deixou o partido que ajudou a fundar há 30 anos. Em carta de desligamento entregue ao diretório municipal do PT no Rio publicada ontem em seu site, Vladimir, figura histórica da esquerda e lembrado como líder da Passeata dos Cem Mil no regime militar, diz que a razão para sua saída é a volta ao partido de Delúbio Soares, que era tesoureiro do PT no mensalão. Ao GLOBO, Vladimir afirmou que o retorno de Delúbio mostra que sua expulsão foi "só um remendo", e que o PT tem atualmente "problemas éticos e orgânicos".

- Um partido não pode funcionar se as pessoas que estão nele podem fazer o que querem - disse, destacando que a volta de Delúbio afeta a credibilidade de quem defendeu o PT. - Fui um dos que mais se expuseram defendendo o partido, pois isso afeta sua credibilidade. Se você fica dizendo uma coisa que depois não acontece... Passamos dois anos indo à TV dizer que o partido punia. Agora, é quase como dizer que não deveríamos tê-lo expulsado. O que houve então foi suspensão, não expulsão; venderam um peixe à opinião pública que não era verdadeiro. Dá a entender que a expulsão foi só um remendo e reflete problemas não só éticos, mas orgânicos do partido.

Na carta de desligamento, Vladimir diz que não está saindo por "divergências políticas fundamentais", mas porque "a volta ao partido de Delúbio Soares, justamente expulso no ano de 2005, me impede de continuar nele. Pela questão moral, pela questão política, pela questão orgânica". Na carta, destaca: "é evidente que houve corrupção. Não se pode acreditar que um empresário qualquer começasse a distribuir dinheiro grátis para o partido. Exigiria retribuição, em que esfera fosse. O procurador federal alega que são recursos oriundos de empresas públicas, sendo matéria agora do STF. Mas alguma retribuição seria, ou a ordem do sistema capitalista estaria virada pelo avesso".

Ainda na carta, o ex-deputado federal - que diz ter preferido esperar a crise com o ex-ministro Antonio Palocci passar para comunicar a saída - afirma que "o ex-tesoureiro não só agiu ilegalmente com relação à sociedade, mas violou todas as normas de convivência partidária, ao agir à revelia da Executiva Nacional e do Diretório Nacional. A volta de Delúbio faz com que todos se pareçam iguais e que, absolvendo-o, o DN esteja, de fato, se absolvendo. Ou, mais propriamente, se condenando".

Afirmando que não há chance de voltar ao PT, Vladimir - que antes de comunicar a saída conversou com petistas, mas preferiu não revelar com quem - diz que não pensa em ir para outra sigla, "só em dar aula e escrever na internet":

- Sempre fui um ser partidário. Agora não penso em nada. Uma vez na vida não faz mal.

Presidente municipal do PT no Rio, Alberes Lima disse que "as portas estão abertas" para Vladimir, e que as divergências dele "não foram com o diretório municipal, nem com o estadual, mas com o nacional".

FONTE O GLOBO

Marchas, abraços e contramarchas (Marco Aurélio Nogueira)

Foram três manifestações distintas. Todas na cidade de São Paulo e na mesma semana, como que encadeadas. A coincidência delas, ainda que não seja inusitada, sugere alguma reflexão.

Quarta-feira, dia 22, foi o dia do abraço coletivo na Paulista, concebido como "um gesto de amor à cidade e respeito ao próximo", além de um repúdio aos atos de violência contra homossexuais ocorridos recentemente na região. Centenas de pessoas deram-se às mãos ao meio-dia, caminhando simbolicamente na contramão da avenida, um dos maiores ícones da cidade e expressão perfeita da vida frenética, tensa e impessoal que tem feito a fama dos paulistanos. Bela demonstração de que por aqui também há ações cívicas no sentido mais básico da expressão, qual seja, o da conduta que busca compartilhar o desafio de construir uma ordem social justa, igualitária e governada por todos e para todos.

No dia seguinte, sob o embalo do Corpus Christi, foi a vez da Marcha para Jesus, promovida por igrejas e congregações evangélicas com o intuito de expressar publicamente a fé, o amor e a exaltação do nome do filho de Deus, que precisaria ser mais valorizado. Muitos milhares de pessoas foram às ruas proclamar "o Senhorio de Jesus", cantar e dançar ao som de bandas e cantores gospel. Diversas famílias aproveitaram para agradecer os milagres e as dádivas recebidas.

Pelo andar da carruagem, porém, o que se viu na manifestação foram mais trevas do que luz. Valendo-se do nome e da imagem de Jesus, a caminhada desfilou uma sucessão de ataques aos que são considerados os atuais piores "inimigos" da cristandade, verdadeiros aliados do demônio: os homossexuais, atacados em si, em seus direitos e em suas reivindicações. Puxada por pastores-políticos, a passeata não perdoou algumas instituições do País (o STF, antes de tudo) que, por se mostrarem sensíveis a temas tidos como tabus, deveriam ser vistas como auxiliares do processo de entronização de Satanás na Terra.

O ato foi festivo e familiar na formatação geral, mas teve um subtexto que lhe deu o tom de marcha fúnebre, uma contramarcha, triste na evolução e reacionária no objetivo. Deixou claro que a fé muitas vezes caminha abraçada com o fanatismo e o fervor obscurantista, veículos certos da intolerância e da discriminação. Para piorar, a marcha forneceu palco para campanhas políticas explícitas, deixando-se arrastar por elas.

Por último, fechando a semana, o domingo assistiu à 15.ª Parada Gay, festa alternativa que há anos contagia a cidade e a insere no circuito das mais avançadas lutas por direitos. São Paulo se acostumou e se identificou tanto com ela que chegam a surpreender as manifestações homofóbicas que ainda ocorrem entre os paulistanos. Os gays dão vazão em alto e bom som, de modo espalhafatoso, irreverente e alegre, muitas vezes chocante, a uma agenda sintonizada com o modo de vida atual, em cujo centro está um sempre mais ampliado desejo de liberdade. Põem-se no meio da democratização social em curso, processo que encontra resistência em hábitos seculares, manifestações de fé cega e fanática, postulações machistas de autoridade, fundamentalismos de todo tipo. A parada por eles organizada proclama um mundo estruturado pela diversidade, pela tolerância, pelo respeito à liberdade de cada um e aos direitos de todos, mundo que não existe de modo pleno, mas já dá mostras de sua potência civilizacional. O tema da parada 2011 fala por si: "Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!".

O registro das três manifestações mostra uma São Paulo de múltiplas comunidades e agendas, uma cidade plural, marcada pela diversidade - uma terra onde todos têm voz e se podem manifestar. A Marcha pela Descriminalização da Maconha, realizada semanas atrás, deve ser igualmente lembrada. A cidade condensa essa pluralidade em sua própria dinâmica, em seus bairros étnicos, em seu multiculturalismo, nos milhões de imigrantes europeus, escravos africanos, brasileiros de outros Estados, latino-americanos, que ajudaram a construí-la e cujos descendentes aqui permaneceram, amalgamados e pouco segmentados entre si. Uma cidade plural e sem guetos.

Com o passar do tempo São Paulo se tornou uma cidade hipermoderna, globalizada, que deslocou a vida tradicional, que prevalecia soberana, ainda que não com exclusividade. Basta lembrar que foi aqui que se realizou a Semana de Arte Moderna, em 1922, com a qual se anunciou o destino que estaria reservado à futura metrópole. Hoje a cidade avança sob os fluxos de uma vida mais "líquida", tecnológica, pouco controlável e dificilmente governada. Não deixou, porém, de ser capitalista nem conseguiu civilizar seu capitalismo, que continua responsável pela reiteração do que há de desigualdade, pobreza e alienação na cidade. A "vida líquida" prevalecente também não soterrou a "vida sólida" de antes, que encontra muitas maneiras de se reproduzir, recebendo oxigênio até mesmo do que a hipermodernidade produz de mais típico. A liberdade e a tolerância incentivadas pela "vida líquida", por exemplo, fazem a fé cega e as convicções rígidas da "vida sólida" se encrespar e sobreviver.

Gays e evangélicos, com suas marchas e contramarchas, mostram uma São Paulo em transição. O predomínio de um modo "líquido" de vida não produz imediatamente uma boa sociedade, nem mesmo uma sociedade melhor, pois oculta demasiadas distorções e injustiças, obriga a que se viva no risco e na incerteza, de maneira excessivamente frenética e fora de controle. Nem sequer facilita a mobilização social. Mas a "vida sólida" de antes não tem mais como nos dar segurança ou nos orientar, o que faz com que tenhamos de viver entre dois mundos, um que ainda não se afirmou plenamente e outro que pena para sobreviver.

Assim com São Paulo, assim com a maior do planeta. Bem-vindos ao século 21, no correr do qual estaremos imersos numa batalha para saber que eixo, que ética e que ideias estruturarão a "vida líquida" em que passaremos a viver.

Professor titular de Teoria Política da UNESP.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Partido da Marina (Fernando de Barros e Silva)

Agora é certo, Marina Silva deixará o PV -o partido que gosta do verde... e das verdinhas.

A data do desligamento está marcada para o próximo dia 6. Será o fim litigioso de um casamento breve e movido por interesses de ambos os lados. Para Marina, o PV foi um hospedeiro das suas pretensões presidenciais. Para o PV, Marina era um instrumento de alavancagem que poderia consolidá-lo como legenda de porte médio no país.

Passada a lua de mel eleitoral (ela também sujeita a mais tapas do que beijos), a disputa que se seguiu pelo controle dos rumos do partido levou à implosão do matrimônio.

Com 20 milhões de votos, Marina imaginou que poderia amoldar o PV ao seu projeto político. Acabou triturada pelos interesses pragmáticos ou fisiológicos da máquina presidida há mais de década pelo deputado José Luiz Penna.

Marina levará com ela outras lideranças verdes, mas quem tem mandato ou pretende disputar as eleições de 2012 pode adiar a decisão de acompanhá-la. A pergunta principal, porém, é: sem partido, Marina conseguirá reunir forças em torno de si para se viabilizar politicamente a partir de 2013 -aí, sim, fundando um novo partido?

A sua proposta de deixar temporariamente a política partidária para "mobilizar a sociedade" e "ganhar capilaridade" lembra um pouco as "Caravanas da Cidadania" de Lula -mas Lula, além da sua história, tinha o PT como alicerce.

Marina tem a seu favor uma biografia igualmente comprometida com os pobres, ancorada em valores e feita de superações, além da causa ambientalista, que entrou para ficar na agenda mundial.

Apesar desse currículo, ela não está livre do risco de embarcar numa viagem personalista. Marina às vezes parece movida pela crença de que pode aglutinar "os bons" e regenerar a política atuando por cima dos partidos. Sua figura progressista e de vanguarda tem algo de messiânico que a conecta com aspectos arcaicos da cultura brasileira.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

G-8 tira do PMDB mofo do fisiologismo (Rosângela Bittar)

A recente e decantada união do PMDB, agora com um cargo vistoso, a Vice-Presidência da República, que não lhe garantiu mais poder do que tinha mas lhe deu uma segurança inédita, remete o desavisado a uma mesa redonda em torno da fisiologia. Todos juntos por cargos e verbas. O partido, porém, é o fracionado de sempre. E com sua inesgotável capacidade de surpreender o eleitorado, tem inovações a apresentar nesse campo. Na atual temporada surge com uma novidade: o fortalecimento de dois movimentos com origem em suas bancadas parlamentares.

No Senado, nesta legislatura, o PMDB deu uma arejada. Não se livrou dos perfis mofados do seu portfólio, ao contrário, reelegeu ícones da espécie, mas o grupo de independentes - do jugo da cúpula partidária, não do governo - aumentou significativamente.

Ao lado dos senadores Jarbas Vasconcelos, ex-governador e senador por Pernambuco, último dos autênticos do partido, e Pedro Simon, senador pelo Rio Grande do Sul, combatentes antigos, estão agora o senador catarinense e ex-governador Luiz Henrique, um dos grandes amigos de Ulysses Guimarães, símbolo do MDB dos áureos tempos.

Os debates do grupo têm reunido ainda os senadores Casildo Maldaner (SC), Roberto Requião (PR), Waldemir Moka (MS); Eduardo Braga (AM), Vital do Rego (PB). É o G-8, como foi batizado o grupo, numa bancada de 19 senadores. "É um fato novo, precisávamos melhorar o PMDB, estava sufocante", define um dos mais atuantes.

Não são necessariamente dissidentes, nem mesmo todos independentes com relação ao governo. São raros os que se declaram em oposição e a imensa maioria é formada por aliados.

Os diferencia, entretanto, o fato de desejarem tirar o PMDB da sarjeta, da linha das denúncias e da prática do fisiologismo escancarado, das crises e das críticas. Querem ser independentes, sim, da pseudo liderança dos senadores José Sarney, Renan Calheiros, Romero Jucá, em quem a cultura do fisiologismo está impregnada. Os senadores perceberam que os três comandantes da bancada ficam com tudo, não só do governo como do próprio Senado. "Aqui tudo é Sarney, a Gráfica, a Polícia Legislativa, tudo é do tempo do Agaciel Maia", critica, enojado, um senador.

Quando existiam apenas Jarbas Vasconcelos e Pedro Simon, o presidente da Casa e o líder do partido os ignoravam. Agora não são apenas os dois, mas oito, às vezes nove, nas reuniões de discussão sobre seus mandatos e seu partido. Se for necessário determinar sua tendência, esses senadores são mais governo que oposição. Mas pode-se dizer que em sua imensa maioria são de oposição ao Sarney, ao Renan, ao Romero Jucá, o líder do governo no Senado de cujos métodos e forma de atuação um bom número de senadores aliados da presidente Dilma discorda.

Esses senadores do PMDB que são independentes do fisiologismo concordam, por exemplo, com a reforma administrativa do Senado proposta pelo senador Ricardo Ferraço (ES). É uma boa reforma, moralizadora, e devem apoiá-la. A conferir se o presidente da Casa deixará as propostas irem adiante.

"Sarney, Renan e Jucá são donos do partido, limitam o acesso ao governo, falam como se fosse em nome de todos e restringem o PMDB à sua imagem. Isso tem que mudar", diz um dos que chegaram para dar novo alento à bancada.

Os integrantes do grupo têm um acordo tácito: nenhum pressiona o outro para votar contra ou a favor do governo. Não haverá cooptação nem amarras de espécie alguma. Também não haverá omissão.

A ideia contagiou e formou-se um grupo também na bancada do PMDB da Câmara. Com o mesmo espírito, o de se desvincular dos mal afamados, cujo representante mais condecorado é o deputado Eduardo Cunha (RJ), um grupo de deputados também se reune, discute o mandato, os projetos e sua postura diante do eleitorado.

No movimento que se desenvolve na Câmara participam, até o momento, 12 parlamentares. Um, de Pernambuco - Raul Henry; três do Rio Grande do Sul - Osmar Terra, Alceu Moreira e Darcisio Perondi; dois do Paraná - Reinhold Stephanes, Osmar Serraglio; de Santa Catarina têm frequentado as reuniões os deputados Ronaldo Benedet e Mauro Mariani; do Mato Grosso do Sul aparecem Fábio Trad e Geraldo Resende. Às vezes participam Lelo Coimbra, do Espírito Santo; Gastão Vieira, do Maranhão; Marcelo de Castro, do Piauí.

"Decidimos nos reunir no início da Legislatura, havia um conjunto de deputados muito incomodados com a pecha de fisiologismo do PMDB. O Eduardo Cunha mandando nas nomeações, a cúpula só tratando de cargos, decidimos não deixar que o partido fosse dominado por isso e mostrar que boa parte da bancada preferia aparecer defendendo ideias e projetos", diz um participante assíduo dos encontros políticos.

O que se discute, nessas ocasiões, é como evitar que o PMDB seja tomado pelas disputas para a conquista do "poder pelo poder", para ocupação dos cargos, para fazer negócios, para indicar diretor administrativo de estatal ou de fundos de pensão, todas questões que vêm à mente quando a sigla é mencionada.

Nesses encontros, têm discutido muito a Emenda 29. Há vários médicos no grupo e não se preocupam com o risco que esta regulamentação representa para a volta da CPMF. Sabem que o governo só aceitará mais encargos e perda de arrecadação se houver uma fonte nova de verbas, mas a discussão de conteúdo da emenda obscurece, para esses deputados, o ônus político do aumento de imposto para o contribuinte.

Na agenda de discussões já constaram a votação de uma legislação de responsabilidade educacional, a necessidade de apoio a qualquer política de melhoramento de qualidade do gasto público, e a definição de uma legislação que garanta o aumento da transparência e rigor na máquina pública.

Acreditam esses pemedebistas que estão tendo um mandato mais efetivo, não apenas do ponto de vista de conteúdo como da postura ética na relação com o eleitorado. Acreditam no caráter educativo da iniciativa: desindentificar o PMDB com a fisiologia e provar que há ali vida partidária.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Eles não conseguem desenhar o futuro (Marco Antonio Villa)

1930 foi um marco na história do Brasil. Inaugurou o moderno Estado e uma nova visão econômica para o país. A importância econômico-social do período acabou apagando a memória repressiva. Se devemos ter muito cuidado com a “contabilidade do mal”, porém não custa lembrar que a ditadura varguista prendeu e condenou muito mais presos políticos que o regime militar. Contudo, o período é lembrado pela legislação trabalhista e a industrialização.

A memória seletiva e instrumental permitiu que cada corrente política escolhesse o que desejava resgatar do período.

A crise dos anos 60 sinalizou que o processo iniciado em 30 tinha se esgotado. Novos desafios estavam sendo colocados pelas modificações ocorridas nos anos 1950. A abertura ao capital estrangeiro, a intensificação do deslocamento populacional do Nordeste para o Sudeste, a crescente urbanização, os dilemas sobre a distribuição de renda, críticas ao funcionamento do sistema político, entre outros fatores, conduziram o país para um verdadeiro caldeirão de turbulência, que acabou no golpe civil-militar de 1964.

O regime militar fez várias reformas. Obteve êxito. O papel do Estado na economia foi ampliado numa escala nunca vista. Qualquer setor onde havia alguma dificuldade econômica, a saída encontrada era a criação de uma empresa estatal. E foram surgindo às pencas. O país melhorou a infraestrutura, desenvolveu novos setores produtivos e se integrou à economia mundial diversificando sua pauta de exportações.

Virou uma página histórica: deixou de ser um país com “vocação agrícola”. Como é sabido, houve um duro ataque às liberdades democráticas, como se não fosse possível compatibilizar crescimento econômico e a existência de um estado democrático de direito. A dificuldade de compreender, a partir de 1974, que estava ocorrendo uma transformação na economia mundial — com a quadruplicação do preço do petróleo, o surgimento dos “tigres asiáticos”, o início das mudanças econômicas na China após a morte de Mao Tsé- Tung, o fortalecimento do Mercado Comum Europeu e a crise da economia americana — fez com que o regime militar endividasse o país, desorganizasse a economia e jogasse a inflação anual, no fim do governo Figueiredo, para três dígitos.

O término do regime militar, em 1985, iniciou uma década de promessas, soluções mágicas e voluntarismo. De rompantes dignos de uma republiqueta latino-americana. Como a economia não se impressiona com discursos, a fraseologia não trouxe qualquer resultado positivo. Mas o malogro não foi imputado à teoria, mas à economia de mercado. Em meio ao fracasso dos planos de estabilização, veio a Constituição de 1988. Foram 20 meses de sessões. Nos últimos 60 anos, entre os países de democracia consolidada, não há registro de Constituinte tão longa. Foi feita a Carta mais extensa da nossa história. Transformou a Constituição em um pro grama de governo. Legislou sobre tudo. Concedeu benesses a todos os setores sociais. E o pior: em meio a uma grave crise econômica, que levou o país à maior inflação anual da nossa história.

A estabilização econômica parecia impossível. Dentro daquele espírito nativo tão adaptativo, surgiram até “teorias” que justificavam a inflação como um meio de crescimento econômico. Neste ambiente, tudo conspirava para que nada fosse modificado. A inflação e suas mazelas eram uma espécie de sina com que o país tinha de conviver.

Em 1994, o Plano Real mudou a hist ória econômica do Brasil. Teve, à época, muitos detratores. Nenhum deles fez autocrítica. Preferiram esquecer o que falaram (hoje estão no governo). Se foi importante a moeda voltar a ter valor e derrubar os índices de inflação — sem qualquer tipo de congelamento de preços e salários —, mais complexa foi a reestruturação econômica, que envolvia, inclusive, redefinir o papel do Estado na economia.

Não foi tarefa nada fácil enfrentar mitos, preconceitos e acusações, tanto da direita como da esquerda. Afinal, o Estado brasileiro acabou, ao longo do tempo, soldando uma curiosa aliança das duas correntes, cada uma com seu projeto, mas identificando- se com o expansionismo estatal e a defesa dos interesses corporativos.

O surto de desenvolvimento que estamos assistindo é consequência direta dos efeitos do Plano Real. Sem ele, não teríamos um crescimento sustentável. E nem o Brasil estaria entre os países emergentes. Não é exagero afirmar que 1994 foi economicamente tão importante como 1930. E melhor ainda: manteve as plenas liberdades democráticas, diferentemente do que fez o regime de 30.

Assim como os atuais detentores do poder não reconhecem a importância histórica do Plano Real, também não conseguem desenhar o futuro. Revelam uma absoluta ausência de pensamento inovador. Olham o futuro com a ótica do passado. No fundo, odeiam o capitalismo e o livre mercado. São prisioneiros de uma visão de mundo do século XIX. Vivem uma eterna crise de personalidade, entre o que politicamente pensam e, algumas vezes, agem; e o que realizam no campo econômico.

Daí as concessões aos “movimentos sociais” ou o apoio aos tiranos do antigo Terceiro Mundo. É como se as palavras lavassem a alma “contaminada” pela ação capitalista.

Mas a economia vai seguindo o seu próprio caminho. Só que necessita de correções. Dificilmente o governo vai identificar o rumo correto. A carcomida ideologia é um verdadeiro obstáculo epistemológico. Não é nenhum exagero afirmar que o Partido Comunista Chinês acredita mais no capitalismo do que o Partido dos Trabalhadores.

Hhistoriador e professor da Universidade Federal de São Carlos-SP

FONTE: O GLOBO, 28/6/2011

Verdes e cidadania (Merval Pereira)

Os 20 milhões de votos que a ex-senadora Marina Silva obteve no primeiro turno das eleições presidenciais do ano passado poderão ser canalizados para um movimento que gestará a formação de um partido alternativo ao Partido Verde com vistas à eleição presidencial de 2014.

A ideia que está sendo amadurecida é lançar um movimento cujo conceito seria baseado em duas palavras: "verde" e "cidadania".

Um movimento político que consiga criar uma capilaridade pelo país todo, com a utilização "intensa e audaciosa" dos novos instrumentos de relacionamento social da internet como o Facebook e o Twitter, inclusive como forma de tomada de decisão com a audiência dos militantes, consolidando uma maneira radical de democracia.

Essa "democracia direta" foi proposta à atual direção nacional do PV, mas a maneira centralizada como o partido está organizado favorece a que ele seja dirigido de forma a reduzir, e não a ampliar, a participação de seus filiados.

Na Câmara existiriam cerca de 20 deputados que estariam dispostos a aderir a um novo partido capitaneado por Marina Silva, mas o entendimento é de que não há tempo hábil para registrar um partido para disputar as eleições municipais de 2012.

Tentar fazer um partido novo de afogadilho poria o risco de ele ter os mesmos problemas que hoje justificam a dissidência dos "marineiros".

Depois das eleições de 2012, o grupo de Marina analisará se há possibilidade de mudança do PV, ou se esse movimento dissidente deve criar seu próprio partido com vistas a 2014.

O movimento será constituído por pessoas que sairão do PV, outras que ficarão no partido, pessoas de outros partidos que comungam ideias semelhantes e mesmo cidadãos sem partido, que buscam uma alternativa nova à maneira de fazer política dos partidos atuais.

O movimento vai apoiar o PV onde de fato ele for "verde" e, em outros lugares, vai apoiar candidatos de outros partidos.

Na análise do grupo de Marina, os problemas detectados não são peculiares ao PV, mas resultantes de uma política que é engendrada pelo sistema eleitoral, pelo clientelismo.

Tudo indica que esteja se aproximando um desenlace da crise, provavelmente na próxima semana, mas os seguidores de Marina não querem repetir as divisões tradicionais dos partidos de esquerda, com grupos falando mal dos outros.

Na definição deles, o que existe é uma imensa energia na disputa interna que precisa ser liberada, criando um movimento na sociedade.

Se não houver o acatamento das condições mínimas exigidas, a tendência é abrir a dissidência. Ao mesmo tempo em que querem dar mais algum prazo para ver se "um mínimo de lucidez se abre na cabeça do Penna e de alguns dirigentes", ainda há consultas e reuniões a fazer, um trabalho de preparação do novo movimento, e estudos jurídicos em relação a quem tem mandato, como o deputado federal Alfredo Sirkis.

Ele gostaria de sair para firmar sua posição de solidariedade a Marina, mas ainda estuda os aspectos jurídicos da questão para não correr o risco de perder o mandato. Fernando Gabeira ficou uma época sem partido, e é possível que Sirkis faça o mesmo se a legislação permitir.

O que está acertado é que uma parte vai sair para claramente afirmar a existência de uma dissidência, até como solidariedade a Marina, porque o tratamento que foi dado a ela pela burocracia dominante no PV é considerado "ignóbil".

Quando ela chegou para o PV, definiu que não poderiam continuar existindo executivas provisórias, formadas pela direção nacional em processo de cooptação, teria que haver um processo democrático, com eleições para a escolha de seus diretórios em todos os níveis, desde a base municipal até a nacional.

Depois das eleições, quando Marina obteve 20 milhões de votos, a Executiva Nacional passou cinco meses sem se reunir, como se quisesse esfriar o movimento que levou o Partido Verde a ter esses milhões de votos.

Na primeira reunião que fez, surgiu a proposta de prorrogar o mandato de José Luiz Penna, que já está na presidência há 11 anos e tem uma maioria clientelista no PV.

Essa estratégia de manter as executivas regionais como "comissões provisórias" é uma maneira de controlar as bases partidárias com pessoas da confiança da direção nacional, que podem perder esse poder local com uma intervenção da Executiva Nacional.

A manobra para manter Penna na presidência foi considerada "uma espécie de tocaia" que fizeram para o grupo de Marina, que é minoritário dentro da estrutura burocrática do partido.

O grupo de Marina sentiu-se traído na medida em que não conseguiu impor ao PV uma nova forma de fazer política.

O que está acontecendo no momento é um embate entre os integrantes da estrutura atual do PV e os que querem mudá-la, abrir o partido para a sociedade.

Há ainda divergências conceituais sobre o movimento ecológico e divergências políticas com setores específicos do partido em Rondônia, Amazonas, Mato Grosso e Distrito Federal, que controlam a sigla e não querem que pessoas mais representativas, ligadas a movimentos ecológicos, cheguem aos postos de comando, para continuarem a fazer acordos políticos até mesmo com forças antagônicas ao movimento ecológico.

Em Brasília, por exemplo, o comandante do PV é um amigo do Penna, e, embora Marina Silva tenha ganhado a eleição presidencial lá, as pessoas ligadas a ela são boicotadas, não são chamadas para as reuniões.

Há comunidades no Facebook "Fora Marina". Na semana passada, a assessora jurídica da Executiva Nacional, Vera Mota, de confiança do presidente Luiz Felipe Penna, deu uma declaração dizendo que Marina tinha que ser processada por haver criticado os dirigentes do partido. E em nenhum momento Vera foi desautorizada pelo partido.

Nada avançou, portanto, no sentido de reformular a estrutura partidária. Ao contrário, há uma atitude de hostilidade a Marina, como se a estrutura atual tivesse ficado com medo dos 20 milhões de votos que ela teve.

FONTE: O GLOBO (28/06/11)

Marina e seu grupo decidem sair do PV

Parte do grupo da candidata derrotada do PV à Presidência, Marina Silva, deixará o partido. A saída será oficializada em 7 de julho. Parte fica e tenta tomar o controle do partido. Marina quer disputar a Presidência - de volta ao PV ou em outro partido

Marina vai deixar o PV

Sem acordo com a direção do partido, ex-senadora anunciará a saída na próxima semana

Marcelo Remígio

Já decidida a sair do PV, a ex-senadora Marina Silva promoverá uma plenária com seu grupo, na quarta-feira da semana que vem, para anunciar que deixará o partido. A saída será oficializada no dia seguinte. Marina e seu grupo já se articulam para definir qual rumo irão tomar visando às eleições de 2014. Em reunião com o deputado federal Alfredo Sirkis (RJ) e o ex-deputado Fernando Gabeira, na noite de domingo, ficou acertada a criação de um movimento em prol da candidatura de Marina à Presidência da República e de defesa de questões ambientais. A previsão é que a ex-senadora só se filie novamente a um partido em 2013, passadas as eleições municipais do ano que vem.

Parte do grupo de Marina deverá continuar no PV - os nomes ainda serão definidos. A estratégia será manter um bom número de descontentes com o atual comando nacional do partido - incluindo parlamentares com mandato - para que tentem derrubar a Executiva Nacional e preparem um possível retorno de Marina em 2013. Caso a estratégia não obtenha sucesso, o grupo recorrerá a um plano B. Eles criarão um partido, tendo como alicerce o movimento lançado em prol de Marina - a ex-senadora é contrária à fundação de uma nova legenda este ano. Nomes importantes do partido, como Sirkis e Gabeira, ainda têm destino indefinido.

Para contornar problemas que poderiam surgir com a criação de um novo partido, como a falta de tempo na TV e no rádio na próxima campanha presidencial, em 2014, os verdes dissidentes recorreriam ao capital eleitoral de Marina. O bom desempenho da ex-senadora nas eleições presidenciais do ano passado ajudaria na formação de alianças com outros partidos, aumentando a participação na propaganda eleitoral gratuita. A ex-senadora somou cerca de 20 milhões de votos no pleito de 2010.

Ainda como uma terceira saída para o grupo, alguns seguidores da ex-senadora defendem o ingresso em um partido pequeno que defenda questões ligadas ao meio ambiente. Mas, para isso, exigiriam o controle da legenda. A opção é a que encontra a maior resistência entre os descontentes.

Grupo reclama de desprestígio

A reunião de domingo durou cerca de quatro horas e aconteceu no apartamento de Gabeira, em Ipanema, Zona Sul do Rio. Além da criação do movimento, ficou decidido que o anúncio da saída de Marina só seria feito após seu retorno da Europa. A ex-senadora embarcará na quinta-feira para a Alemanha, onde participará de um encontro internacional de partidos verdes. O período até o anúncio oficial da saída, no dia 7 de julho, será dado como prazo para uma última tentativa de negociação com a atual Executiva Nacional.

- Estou indo nesta quinta-feira para a Alemanha, onde participarei do encontro internacional de partidos verdes. Ainda tenho outras reuniões marcadas antes de tornar pública qualquer decisão - afirmou a ex-senadora, após a reunião no apartamento de Gabeira.

Marina e seu grupo têm demonstrado descontentamento com a direção nacional do partido e reclamam da falta de espaço nas decisões da legenda. Eles travam uma queda de braço pesada com o presidente nacional do PV, José Luiz Penna, e pedem sua saída do cargo. Ele ocupa a função há 12 anos. O grupo de Marina cobra mudanças no processo de condução do PV.

De acordo com Sirkis, o PV enfrenta, atualmente, "uma crise séria" . Os descontentes cobram eleições para os diretórios municipais e a fixação de um prazo de mandato para a Executiva Nacional.

- Não estamos pedindo a lua, estamos pedindo eleições nos diretórios municipais. Hoje o que se vê no PV é a escolha dos diretórios municipais pelos estaduais, que por sua vez são indicados pela nacional, que acaba controlando todas as esperas do partido. O PV tem hoje uma situação catastrófica, com alianças políticas contestáveis, como em Mato Grosso e no Amazonas. O partido está sendo penalizado - diz Sirkis, que reclama do "fechamento" da legenda para novos nomes. - Não estão deixando o partido crescer, não permitem que pessoas com mais representatividade entrem no partido - critica o deputado.

Um possível retorno de Marina ao PV em 2013 é defendido por boa parte do grupo, em função de o partido ter uma forte identificação com a imagem da ex-senadora. Sua volta, caso Penna deixe o comando da legenda ou abra espaço para o grupo, seria sem traumas.

A criação de um novo partido também é bem aceita pelos seguidores de Marina, desde que haja a possibilidade de alianças com outras siglas na eleições municipais. A opção de migração em massa para um partido menor não tem a simpatia de todos os descontentes. Mas não é descartada. Hoje, dois partidos pequenos focados em causas ambientais estão em fase de criação: o Partido Ecológico Nacional (PEN), que já tem representação em nove estados, e o Partido do Meio Ambiente (PMA).

O presidente do PV, José Luiz Penna, informou ontem, por meio de sua assessoria, que aguarda o comunicado oficial da saída de Marina para poder avaliar o caso. Quanto às eleições para os diretórios municipais, o PV diz que faz um levantamento dos diretórios estaduais e municipais onde os mandatos das executivas já expiraram, como é o caso do de São Paulo (estado), para definir, nos próximo dias, se autorizará a eleição das executivas ou se o grupo continuará a ser indicado pela Executiva Nacional.

Poderio eleitoral de 20 milhões de votos

Ao anunciar sua saída do Partido Verde, a ex-senadora Marina Silva deixará pela segunda vez uma legenda. Antes de ingressar no PV, Marina permaneceu por quase 30 anos no PT, partido no qual começou sua carreira política, desfiliando-se em agosto de 2009. A ex-senadora disputou sua primeira eleição em 1986, quando concorreu a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo Acre, seu estado natal, mas sem sucesso. Dois anos depois, foi eleita vereadora, a primeira de um partido de esquerda na Câmara de Rio Branco. Já em 1994, Marina, aos 36 anos, se tornou a mulher mais nova a se eleger senadora.

Com um histórico de lutas sindicais e de defesa da ecologia, Marina conseguiu projeção internacional e chegou ao comando do Ministério do Meio Ambiente no primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva. Sua passagem pela pasta se estendeu até o segundo mandato, quando já enfrentava resistências dentro do próprio governo, que a deixaram em uma posição pouco confortável. Marina foi contra decisões como a liberação do plantio de transgênicos, construções de algumas hidrelétricas e a transposição do Rio São Francisco, na Região Nordeste. Sem espaço e com poder reduzido no governo, a ex-senadora deixou o ministério e também o PT.

Poucos dias depois de se desfiliar do partido de Lula, Marina ingressou no PV, partido pelo qual disputou as eleições presidenciais no ano passado e surpreendeu nas urnas. A ex-senadora obteve cerca de 20 milhões de votos. Em locais como o Distrito Federal, chegou a ganhar dos adversários Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), credenciando-a disputar a Presidência da República em 2014. Mas seu bom desempenho eleitoral veio acompanhado de duros embates com a atual Executiva Nacional do PV, que reduziu seu espaço e de seu grupo, deixando-os fora de decisões da legenda.

FONTE: O GLOBO (28/06/11)

Lula não deveria concorrer em 2014 (Renato Janine Ribeiro)

Nestes momentos difíceis em que a presidente Dilma Rousseff mais ou menos joga o seu futuro, não faltam vozes para lembrar que o PT dispõe, para as eleições de 2014, se tudo o mais der errado, de uma bomba atômica: a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, como há poucos dias lembravam Raymundo Costa e Rosângela Bittar, em suas colunas. E sem dúvida esse é seu direito, como o de todo brasileiro maior de 35 anos que tenha o nome lançado em convenção partidária. Lula foi, nos últimos meses de seu governo, o presidente mais popular do Brasil, desde que esse quesito começou a ser avaliado, há coisa de meio século. Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, completou a obra a que se propôs: estabilizou a moeda, privatizou bom número de empresas estatais e assegurou uma transição calma ao primeiro presidente brasileiro de centro-esquerda. Mas obra completada quer dizer obra terminada - tanto assim que em 2006 o candidato de seu partido, Geraldo Alckmin, se comprometeu a não privatizar mais nenhuma joia da coroa estatal, como os Correios, a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa.

Lula, por sua vez, teve êxito em mudar a agenda política do país. Lembro que em 2002, após sua eleição, foi entrevistado no "Jornal Nacional". O casal de apresentadores interrogou-o demoradamente sobre como lidaria com a moeda e as finanças. Ao terminarem, Lula lhes perguntou: e a fome, a miséria, a pobreza? disso não se vai falar? Pois é. Esses temas entraram na pauta da política brasileira de maneira decisiva. Mesmo os críticos mais acerbos da Bolsa Família tiveram de ver o candidato que apoiavam, José Serra, prometendo na reta final da eleição de 2010 que aumentaria a bolsa e acrescentaria a ela uma 13ª mensalidade: as políticas acusadas de populistas vieram para ficar. Não há como um candidato se opor a elas, pelo menos no discurso. Soubemos recentemente que a pirâmide social tinha cedido a vez a um losango. Ou seja: tínhamos uma pirâmide, em que as classes A e B somavam, juntas, menos pessoas que a classe C, e esta tinha menos brasileiros que os pobres e miseráveis, pertencentes às classes D e E, que formavam a base da pirâmide. Já no losango, que representaria a nova estratificação social no Brasil, a classe C sozinha tem mais membros do que as duas classes mais ricas - e também que as duas classes mais pobres. Pelo menos 50 milhões teriam passado da pobreza para a classe média baixa. É certo que há críticas a essa representação, até porque leva em conta sobretudo o dinheiro ao dispor das pessoas e seu consumo, mais que a educação; mas um passo enorme foi dado.

O problema é que essa obra - que converge com a proposta da presidente Dilma, no sentido de constituir um "país de classe média" - demora a ser efetivada. Lula não a concluiu, nem poderia tê-lo feito. Daí que seu retorno ao poder seja viável. Ele ainda tem o que propor à sociedade brasileira. Some-se a isso a capacidade que demonstrou de comunicar e liderar, em especial na relação com os menos cultos, e temos um homem político que pode concorrer à Presidência e vencer, em 2014, quando terá 69 anos.

Mas, se Lula pode concorrer, essa opção traz muitos problemas, para ele e o PT.

O primeiro é que sua candidatura seria uma saída para o caso de Dilma não dar certo. Ora, se o governo dela for um insucesso, Lula não sairá ileso das críticas dirigidas à atual presidente, de quem foi fiador. Sua popularidade atual pode sofrer, até 2014. Três anos de problemas na política nacional poderão comprometer o PT como um todo, e não apenas a atual mandatária.

O segundo problema diz respeito à biografia do próprio Lula. Ele deixou a Presidência muito bem avaliado. Só a história fará o balanço, mas hoje seria difícil tirar dele o galardão de ter sido um de nossos melhores governantes, porque soube equilibrar as finanças, a economia e a inclusão social. Num país marcado por tanta injustiça e desigualdade social (FHC: "O Brasil não é um país pobre, é um país injusto"), ele se empenhou seriamente em reduzir esses problemas. Ora, o que seriam um terceiro e quarto mandato seus? Não estaria seguro de que, em novas circunstâncias, seu desempenho e popularidade se manteriam. Lula poderia perder seu encontro marcado com a história. Isso pode parecer pouco, a quem pensa segundo a realpolitik, mas não é. Em suma, Lula teria pouco a ganhar e muito a perder.

Finalmente, por paradoxal que seja, um retorno de Lula à Presidência pode significar o fim do Partido dos Trabalhadores. Se o PT, fundado em 1980, se aproximar dos 40 anos sem conseguir se emancipar da sombra de Lula, mostrando-se incapaz de gerar outros líderes que possam disputar a Presidência da República, o partido poderá cerrar as portas. Lembremos que, bem no começo da campanha de 2010, Lula afirmou que ainda estaria presente na eleição: "Meu nome agora é Dilma", disse. Essa redução de uma pessoa diferente, a primeira mulher a presidir o país, a um pseudônimo de Lula foi decisiva para impeli-la à vitória - mas será um desastre se não der lugar a uma personalidade autônoma, ainda que leal aos ideais dele. Além disso, com a liquidação de todo um grupo de líderes petistas no episódio do "mensalão", e com os principais líderes remanescentes se aproximando nos próximos anos de uma idade que pode torná-los pouco competitivos para a Presidência, o PT precisa garantir a capacidade política da presidente que elegeu e de novos nomes para que, em 2018 ou já em 2014, concorram a sua sucessão. E o melhor, mesmo, é que ela supere a atual crise e consolide sua imagem na Presidência.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO (27/06/11)

domingo, 26 de junho de 2011

Segredo de Paulo Renato atinge o PSDB

Gilberto Dimenstein - Folha de S.Paulo

Por ter criado durante sua gestão um sistema de avaliação (brigando com muita gente), implementado num nova forma de financiamento da educação e desenvolvido parâmetros curriculares avançados, Paulo Renato Souza já mereceria ficar na história da educação brasileira. Mas há um fato menos conhecido na biografia dele --e, certamente, sua medida de maior impacto, que, aliás, ajudou a fazer a fama do PT, no geral, e de Lula, no particular. Daí uma mágoa de Paulo Renato com o PSDB.

Morre o ex-ministro Paulo Renato Souza

Foi ele que universalizou a bolsa-escola, criada em Brasília por Cristovam Buarque e, ao mesmo tempo, embora sem tanta ênfase educativa, por José Roberto Teixeira. No final da sua gestão como ministro da Educação (1995-2002), eram milhões de famílias beneficiadas. Lula veio, então, ampliou o projeto e mudou o nome para Bolsa Família.

Ele me contou que era uma de suas frustrações. Tentou convencer a equipe de comunicação de Fernando Henrique Cardoso (que tinha dado o sinal verde) a fazer uma campanha publicitária sobre a bolsa-escola para ter uma marca de governo, mas foi boicotado.

Como era período de eleição, acharam que tinha jogada aí, afinal Paulo Renato era pré-candidato para a sucessão de FHC.

Na visão do ex-ministro, o PSDB perdeu então a chance de fixar uma marca social de sua gestão, facilitando o projeto de Lula. Até hoje os tucanos tentam recuperar o prejuízo de não terem uma marca social.

FONTE: Folha de S. Paulo

Sem espírito de patota (Alon Feuerwerker)

(Observação no twitter do Alon: O que escrevi sobre o ex-ministro Paulo Renato. E escrevi quando ele estava vivo: "Sem espírito de patota")

A revolução educacional brasileira pede foco absoluto no aluno e no aprendizado deste, que deve subordinar as demais variáveis. Inclusive as sindicais

Talvez o último grande salto adiante na educação brasileira tenha acontecido com o ministro Paulo Renato, no governo Fernando Henrique. Ali universalizou-se o ensino fundamental. Restou entretanto o desafio da qualidade. Nossas crianças estão nas escolas, mas as públicas ainda não são boas. Para ser elegante.

O governo do PT promoveu avanços importantes. Vitaminou o antigo Fundef, que melhorava a renda dos professores, mas por não querer dividir o mérito com quem tinha trabalhado antes mudou o nome para Fundeb. Coisas da pequena política.

O PT também carrega o mérito de ter criado o Prouni, mecanismo compensatório para o jovem de origem popular não suficientemente competitivo para conseguir vaga no ensino superior público.

Seria injusto concluir que o PT se preocupa de menos com a qualidade do ensino público fundamental e médio, esse nó górdio à espera de ser decepado. Mais provável é que o petismo ainda não tenha reunido as necessárias condições políticas para o upgrade.

E por uma razão simples. A revolução educacional brasileira pede foco absoluto no aluno e no aprendizado deste, que deve subordinar as demais variáveis. Inclusive as sindicais.

Uma reportagem de Luciano Máximo no Valor Econômico deste fim de semana aponta o crescimento do número de estados brasileiros propensos a adotar políticas de remuneração variável. Ganha mais o professor ou funcionário da escola onde as crianças e jovens demonstram que aprenderam mais. Simples.

O assunto andou frequentando a última campanha presidencial, por causa da oposição cerrada do sindicalismo paulista de professores a um plano com essas características implementado pelo governador de São Paulo, José Serra, do PSDB. O PT, naturalmente, tratou de pegar uma carona.

A mesma ideia foi implantada em Pernambuco, mas como ali o governador Eduardo Campos (PSB) está aliado ao PT o sindicalismo ficou sem suporte político, ficou a ver navios. Ninguém de peso no petismo se compadeceu.

Em Pernambuco, por sinal, os pais podem hoje em dia controlar pela internet se os professores de seus filhos foram dar aula e como deram aula. Um belo "controle externo" da atividade didática.

Recorde-se que o reeleito Eduardo Campos foi o candidato a governador proporcionalmente mais votado no ano passado.

A coragem de enfrentar os lobbies corporativos quando está em jogo o interesse público costuma dar dividendos, mesmo se o resultado imediato parece ser desgaste.

A trajetória de vida do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é bom exemplo de que uma origem pobre não necessariamente significa a condenação social. Cabe às políticas públicas dar uma mãozinha às estatísticas.

A proporção de recém-nascidos inteligentes e capazes não é diferente nos ricos e nos pobres. A diferença está nas oportunidades oferecidas às crianças.

Mesmo os distintos patamares de estímulo intelectual no ambiente familiar podem ser razoavelmente equalizados por uma escola excelente, ainda mais com a disseminação maciça da internet.

É útil haver sistemas de avaliação cada vez mais sofisticados, mas eles não são um fim em si. Comparando, seria como se numa epidemia de malária as autoridades estivessem concentradas em aumentar a fabricação de termômetros para medir a febre dos pacientes, em vez de colocar todas as energias na cura dos doentes.

A educação pública para nossas crianças e jovens antes da universidade ressente-se também de outro detalhe. Os herdeiros da elite estão na escola particular. A regra aplica-se aos filhos e netos de presidentes, governadores, ministros, secretários de educação, parlamentares, empresários, fazendeiros, juízes, promotores e, por que não?, jornalistas. Inclusive os especializados.

É como nas tragédias de origem natural (ou de origem na ação do homem sobre a natureza). Quando só os pobres morrem, ou perdem a casa e a família, a repercussão é uma. Quando morre também gente "da alta", ou famosa, é outra. Bem maior.

Ajudam aqui as cicatrizes que carregamos de quatro séculos de escravidão. Se não houvesse a alternativa da escola particular, se os filhos e netos da elite só tivessem a opção da escola pública, certamente as políticas educacionais não estariam atoladas no blá-blá-blá, no corporativismo e no espírito de patota dos especialistas.
Publicado no Correio Braziliense de 23 de janeiro de 2011

sábado, 25 de junho de 2011

Progresso e extinção (entrevista István Mészáros)

Filósofo marxista fala sobre livro em que discute avanço histórico e destruição

Um dos principais pensadores da esquerda contemporânea, o filósofo húngaro István Mészáros construiu desde seus primeiros escritos nos anos 1950 uma trajetória intelectual marcada pelo diálogo com a obra de Karl Marx. Em seu novo livro, “Estrutura social e formas de consciência II: A dialética da estrutura e da história” (Boitempo, tradução de Rogério Bettoni), Mészáros volta mais uma vez a Marx para criticar as correntes intelectuais que, segundo ele, pretendem descrever relações sociais sem pensálas num contexto histórico. Mészáros, que esteve no Rio de Janeiro esta semana para lançar o livro, conversou com O GLOBO sobre a obra.

Miguel Conde

O GLOBO: No segundo volume de “Estrutural social e formas de consciência”, que está sendo lançado aqui agora, o senhor argumenta que as estruturas sociais e a mudança histórica devem sempre ser pensadas em conjunto. Como exemplo de uma separação indevida dessas duas categorias, o senhor cita o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, cujas posições teóricas teriam resultado numa visão pessimista do processo histórico. Por que é necessário pensar História e estrutura em conjunto? E o senhor, ao fazer isso, teria então uma visão otimista da História?
ISTVÁN MÉSZÁROS: A base do ser é sempre estruturada, inclusive no mundo natural, mas estou pensando aqui em estruturas humanas. Toda atividade humana é estruturada, e há sempre uma interação ou afecção mútua entre todos os campos da ação humana. Claro que o impacto da arte, da literatura ou da filosofia sobre o desenvolvimento histórico é muito menos direto do que o da economia, mas elas também têm seu tipo próprio de impacto. Há um marxismo vulgar que fala das ideias como consequência mecânica da economia, um mero efeito, mas isso é uma grande falsificação do que Marx pensava. Ele passou a vida, afinal, lutando por certas ideias. Quanto a Lévi-Strauss, ele rejeitava a ideia de processo histórico e chegou a falar do conhecimento histórico como uma mera classificação de diferentes estruturas descontínuas. Nesse sentido, ele não reconhece a existência do progresso nas sociedades humanas. A mudança histórica, no entanto, nunca é simplesmente uma mudança. Ela supõe um certo avanço, estamos sempre nos movendo para frente.

● Por que a mudança histórica implica necessariamente um avanço? E haveria então algo como um estágio final da História?
MÉSZÁROS: Não, isso é o que diria um charlatão como Francis Fukuyama. Não há final feliz para a História, ela é sempre um confronto. Quando digo que o avanço é “necessário”, não estou fazendo uma analogia com as leis naturais, como a gravidade. A ideia de inevitabilidade histórica é uma grande fantasia. A necessidade com a qual os seres humanos lidam é estabelecida por certas circunstâncias criadas pelos próprios seres humanos, e é nessa medida que somos capazes de superá-las. Podemos pensar, por exemplo, num contraste entre o feudalismo e o capitalismo por meio do conceito do excedente de trabalho, aquilo que as pessoas produzem além do estritamente necessário para sua sobrevivência. No feudalismo, esse excedente, esse “a mais” era alocado por meio da dominação política direta dos senhores sobre os servos. No capitalismo, o excedente passa a ser extraído economicamente, o que abriu o caminho para formas de produção muito mais desenvolvidas. A extração política do trabalho excedente é muito pouco eficiente, pois exige todo um aparato custoso para garanti-la. Isso foi um dos problemas que levou ao colapso da União Soviética.

● Avanço histórico significa para o senhor, em primeiro lugar, aumento de produtividade?
MÉSZÁROS: Claro. Nas sociedades primitivas, onde as pessoas vivem “da mão para a boca”, como dizem os ingleses, você não tem o espaço para a arte e a filosofia que existe em formações mais avançadas. É à medida que o ser humano ultrapassa a mera produção para a própria sobrevivência que pode se dar um processo de expansão cumulativa de sua liberdade.

O projeto civilizatório ideal seria, então, um aumento progressivo da capacidade produtiva?
MÉSZÁROS: Temos que pensar numa mediação entre o ser humano e a natureza. A ideia de crescimento eterno continua a ser a mitologia do nosso tempo. A solução para a crise do capitalismo é sempre pensada como mais crescimento. Existe essa ideia de que o céu é o limite, quando na verdade quem estabelece o limite não é o céu, mas a natureza. Se hoje nos vemos diante de ameaças ambientais consideráveis, no entanto, mais uma vez é preciso reconhecer que está em jogo aí uma atividade humana, e portanto somos capazes, também por nossa ação, de solucionar esses problemas. É ao não se confrontar com os requisitos objetivos da produtividade que o homem é arrastado de volta para a determinação natural. Existe uma fundação natural que não pode ser ignorada, e que se reafirma.

Então também existe um sentido destrutivo da produtividade.
MÉSZÁROS: Todo poder de produção é um poder de destruição. Hoje o ser humano pode de fato mover montanhas, mas com que objetivo? Os tremendos avanços do poder de produção nos colocam ao mesmo tempo diante da possibilidade de extinção do ser humano, de um futuro em que o planeta seja habitado apenas por baratas. Isso se tornou um perigo muito real, que deve ser entendido num contexto de crise e militarização do capitalismo, iniciado ainda no século XIX. Ser otimista a respeito do curso da História, portanto, seria tolo. Mas acredito que o ser humano é capaz de neutralizar esse caminho que leva à sua autodestruição. ■

Anote o nome deles, presidente (Luiz Cláudio Cunha)

Presidente Dilma, que coisa feia, hein? Resistiu bravamente à pressão do ex-presidente Lula e agora está sucumbindo vergonhosamente à pressão combinada dos ex-presidentes Fernando Collor e José Sarney.

Semana passada, apesar do bafo salvador de Lula, que carimbou Antônio Palocci como “o Pelé da Economia”, Dilma defenestrou o poderoso ministro-chefe do Gabinete Civil, aquele que caiu no governo passado por estuprar o sigilo do caseiro e que voltou a cair neste governo pela comovente defesa da virgindade de seu próprio sigilo.

Esta semana começa com Dilma se dispondo a manter o abjeto “sigilo eterno” (sic) sobre documentos oficiais, uma ignomínia que atravessou incólume os 16 anos de governo somados do sociólogo FHC e do metalúrgico Lula, uma dupla que garantia ter um pé na cozinha da esquerda mais consciente.

Discurso malcheiroso

Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Fernando Collor sentou em cima do projeto original de Dilma, que quebrava a eternidade do sigilo e permitia o máximo de 50 anos de segredo.

“É temerário”, repudiou o senador das Alagoas, alegando “constrangimentos diplomáticos” para fatos como a ditadura militar (1964-1985), o Estado Novo getulista (1937-1945) e até a Guerra do Paraguai (1864-1870), episódio este ocorrido há século e meio e que levou à morte 50 mil brasileiros.

Presidente do Senado Federal, José Sarney vem agora em socorro de seu temerário sucessor no Palácio do Planalto, alegando que segredos eternos evitariam lesões nas relações diplomáticas do Brasil com seus vizinhos.

“Documentos que fazem parte de nossa história diplomática, que tenham articulações como Rio Branco teve que fazer muitas vezes, não podem ser revelados, senão vamos abrir feridas”, explicou, sem explicar nada, o cuidadoso Sarney, que nasceu 18 anos após o falecimento do Barão do Rio Branco (1845-1912).

Diante da curiosidade geral, cabe a pergunta: que feridas, cara-pálida? O que poderia sangrar tanto nossa diplomacia? Que bobagens teria cometido o bom barão, o homem que redesenhou nossas fronteiras, para merecer esta santa proteção do bem informado Sarney?

Dias atrás Sarney expurgou da exposição oficial do “túnel do tempo” do Senado o glorioso impeachment de Collor – o único afastamento legal de um presidente em 122 anos de República –, relegado por seu solidário colega de sigilo como um simples “incidente”, talvez uma ferida a ser escondida.

É sempre bom lembrar que, dentro de 48 dias, completam-se dois anos em que o jornal O Estado de S.Paulo vive sob a censura patrocinada pela família Sarney, que deseja um sigilo eterno para as estripulias do filho do senador, Fernando, indiciado na (agora secreta) “Operação Boi-Barrica” da Polícia Federal por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e caixa 2.

Sabemos todos o que teme no presente o senador Sarney, mas ninguém imagina o que no passado pode assustar tanto o senador Collor, que aparenta um personagem bifronte da política brasileira.

Na tribuna, com voz grave e empostada, porte ereto e ternos sem vinco que parecem recém saídos da lavanderia, Collor pode ser confundido com um lorde inglês desavindo num parlamento qualquer ao sul do Equador. De repente, porém, Collor pode perder a compostura, o palavreado e a elegância para revelar seu lado mais tosco, mais agreste, mais indecoroso.

Como fez em 2009, quando ganhou a imortalidade dos anais para um fétido discurso, no plenário do Senado, onde confessava que estava “obrando, obrando e obrando” na cabeça de um colunista da revista Veja. Como fez em 2010, quando ameaçou enfiar a mão na cara de um repórter da IstoÉ, num telefonema gravado onde o polido senador distinguia o jornalista como “filho da puta”.

Candidez impune

Sabemos todos o que são Sarney e Collor. O que não se sabe, porém, é o que pretende Dilma Rousseff ao capitular diante de argumentos tão pífios de uma dupla de ex-presidentes tão contestados por episódios tão polêmicos no passado e no presente.

Dilma fez muito bem ao seu governo ao seu livrar, em boa hora, de Palocci. Dilma faz muito mal à sua biografia ao se render tão facilmente aos desígnios pouco claros de Collor e Sarney.

A presidente da República deveria respeitar mais sua própria história, bem mais exemplar do que seus dois oblíquos aliados e antecessores. Dilma combateu de armas na mão o regime militar que Collor e Sarney, no verdor da idade e no fervor da utilidade, apoiaram sem peias, nem meias medidas.

Um foi jovem da Arena, outro foi cacique da velha Arena. Dilma foi ao limite do sangue para combater essa gente e aquele regime.

Agora mesmo, 39 documentos sustentam uma ação civil pública na 4ª Vara Cível de São Paulo contra três oficiais do Exército e um da PM paulista, integrantes da Operação Bandeirante (Oban), mãe do DOI-Codi da rua Tutóia, símbolo maior da repressão da regime.

O grupo é acusado pela morte de seis presos políticos e pela tortura em outros 20. Um dos acusados pelo suplício é o tenente-coronel reformado do Exército Maurício Lopes Lima, uma das presas torturadas é uma guerrilheira de 22 anos da VAR-Palmares chamada Dilma Rousseff.

Com o cinismo típico de sua turma, o coronel Lopes Lima deu uma entrevista, em novembro passado, logo após a eleição de Dilma: “Se eu soubesse naquela época (1970) que ela seria presidente, eu teria pedido – ‘Anota aí meu nome, eu sou bonzinho’”, admitiu ao jornal Tribuna de Santos.

O coronel teve o seu nome anotado pela história, como queria, mas com certeza não era bonzinho – apesar da fantasia de pacato veranista que hoje desfila nas águas mansas da praia das Astúrias, no Guarujá do litoral paulista, onde vive.

O frade dominicano Tito de Alencar Lima, o frei Tito, sobreviveu a terríveis torturas no Dops do delegado Fleury. O que restava dele foi levado ao DOI-Codi do coronel Lopes Lima, que o deixou sob o trato de seis homens de sua equipe e do inefável pau-de-arara. No seu depoimento, frei Tito contou: “O capitão Maurício veio me buscar em companhia de dois policiais: ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’, ele me disse”.

Meses depois, cada vez mais atormentado pelos fantasmas da tortura, frei Tito foi para o exílio e acabou se enforcando numa árvore de um mosteiro nos arredores de Lyon, França, em 1974, um mês antes de completar 30 anos.

Agora, com a candura dos impunes, o coronel que teve seu nome anotado por Dilma e frei Tito reconhece: “Tortura no Brasil era a coisa mais corriqueira que tinha. Toda delegacia tinha seu pau-de-arara. Dizer que não houve tortura é mentira, mas dizer que todo delegado torturava também é mentira. Dependia da índole”.

Nomes anotados

Dilma conhecia bem a índole da turma do capitão Lopes Lima, que ela mesma impugnou como testemunha de acusação no seu processo da Justiça Militar: “O capitão é torturador e, portanto, não pode ser testemunha”, alegou Dilma, com lógica exemplar e o nome do bonzinho Lopes Lima devidamente anotado.

Apesar da natureza de seu algoz, Dilma sobreviveu a 22 dias de tortura e superou o trauma da dor. Quatro décadas e uma ditadura depois, em vez de escalar os galhos do balouçante desespero de Tito, Dilma subiu a rampa do Planalto como primeira mulher eleita presidente sobre o chão sólido da democracia.

Os homens que machucaram e atormentaram gente como Tito e Dilma eram simpatizantes, aliados, partidários e defensores do regime sustentado pela Arena de gente como Sarney e Collor.

Entende-se, claramente, por que Sarney e Collor defendem o sigilo eterno. O que não se entende, presidente Dilma, é como a senhora possa estar ao lado dessa gente, depois de tudo o que a senhora fez, depois de tudo o que eles fizeram.

Os nomes deles, presidente Dilma, estão todos anotados. Sarney e Collor, presidente, não eram bonzinhos. Nunca foram.

Por favor, anote aí!

Marina quer partido

Ex-candidata a presidente e seus aliados podem anunciar na terça-feira a saída do PV e a criação de uma legenda.

Marina prepara desembarque

A ex-senadora e seus aliados estudam anunciar na próxima terça-feira a desfiliação do PV

Vinicius Sassine e Paulo de Tarso Lyra

A ex-senadora Marina Silva e o grupo que a acompanha desde a saída do PT, em 2009, estão decididos a deixar o Partido Verde (PV), depois da fracassada tentativa de ampliar seu espaço político dentro da legenda. Já existe até mesmo uma ideia de data para a desfiliação do PV e o lançamento de um movimento culminando com a criação de um novo partido, após as eleições municipais de 2012. Uma reunião e uma entrevista coletiva à imprensa estão previstas para a próxima terça-feira, 28, em São Paulo, onde Marina Silva passou o feriado de Corpus Christi imersa em conversas políticas. A tendência é que ela e seu grupo anunciem a desfiliação nessa data, ou, pelo menos, digam quando farão isso. "Um entendimento (com a direção do partido) é improvável", diz João Paulo Capobianco, que coordenou a candidatura do PV na campanha presidencial do ano passado.

A ex-senadora ficou em terceiro lugar na eleição presidencial do ano passado, com 19,6 milhões de votos nas eleições de outubro. O resultado foi foi determinante para levar a disputa entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) para o segundo turno. Agora, Marina faz as últimas consultas às lideranças verdes aliadas a ela, como o ex-deputado e ex-candidato ao governo do Rio Fernando Gabeira antes de sacramentar a saída do PV.

Depois da eleição, Marina empenhou-se em renovar o PV, o que, pelos seus planos, passava pela destituição do deputado José Luiz Penna (SP) da Presidência da sigla. Não conseguiu. Penna ignorou o acordo feito no momento da filiação da ex-petista que, além da revisão programática do partido, o fim da reeleição do presidente e o fim das comissões provisórias. A recondução de Penna à Presidência do PV, neste ano, levou Marina e seu grupo a criarem o movimento Transição Democrática.

A mobilização de Marina não conseguiu o efeito esperado, em razão da falta de interesse da militância — poucos compareceram aos eventos organizados pela ex-senadora. Menos de três meses depois de lançado o Transição Democrática, e com menos de dois anos de filiação ao PV, ela já não vê qualquer espaço dentro do partido, o que é corroborado por seus aliados. "Sabíamos que mudanças no ano eleitoral seriam difíceis, por isso esperamos que algo acontecesse nesse ano. Mas nada mudou e a relação tornou-se insustentável", diz o integrante da executiva do partido no Distrito Federal Pedro Ivo Batista.

Resistência

As chances do lançamento de um novo movimento, desta vez pavimentando a criação de um partido, têm oscilado nos últimos dias. Depois de ser considerado algo inexorável na quarta-feira, quando ela se reuniu com seu grupo em Brasília, as lideranças preferiram ontem ser mais cautelosas, evitando revelar detalhes sobre os planos para o evento previsto para a próxima terça-feira.

Persistem focos de resistência, porém, dentro do próprio grupo de apoio a Marina. Um deles é o deputado Alfredo Sirkis (PV-RJ), que publicamente afirma acreditar numa solução no âmbito do partido. "Não estamos pedindo a lua. Seria desastrosa para a direção do PV essa saída do grupo de Marina", afirma o deputado. Há cinco dias, Sirkis publicou em seu blog as condições para a permanência no PV: alterações estatutárias, por meio da convocação imediata de uma convenção nacional, e incorporação ao programa do PV das ideias defendidas por Marina na última campanha eleitoral.

O presidente da sigla, José Luiz Penna, continua sem dar qualquer indicação de que irá acatar as condições do grupo de Marina (leia texto abaixo). Essa resistência, na opinião de integrantes do grupo de Marina, faz com que a dissiência ganhe força e "capilaridade de um partido político", nas palavras de um dirigente que prefere não se identificar. A nova legenda não seria criada, porém, a tempo da disputa nas eleições de 2012.

A criação de um novo partido exige 500 mil assinaturas, em nove estados. Com grande número de jovens, usuários de redes sociais, e a pauta ambiental, os aliados de Marina Silva acreditam que não teriam dificuldades para recolher as assinaturas. A dúvida, porém, é se conseguiriam um resultado expressivo nas eleições municipais. Um eventual fracasso poderia ofuscar o sucesso de Marina na eleição presidencial do ano passado. Assim, a tendência do grupo de Marina é deixar a criação de um novo partido para 2013.

Racha no Distrito Federal

Filiados ao PV próximos a Marina Silva reclamam da falta de espaço na legenda. É o caso de integrantes da executiva no Distrito Federal, que dizem não ser chamados para as reuniões realizadas. O presidente do PV no DF, Eduardo Brandão, disputou o governo e hoje é secretário do Meio Ambiente no governo do petista Agnelo Queiroz. Brandão, passadas as eleições, tem procurado se distanciar de Marina Silva. Quando ela promoveu a reunião do Transição Democrática em Brasília, o secretário não compareceu.

FONTE: CORREIO BRAZILIENSE (24/06/11)

O Brasil não é católico nem evangélico (Hélio Doyle)

Líderes religiosos têm de entender que o Estado é laico

A Constituição brasileira assegura o direito de manifestação e a liberdade religiosa. É natural que evangélicos realizem em São Paulo uma “marcha por Jesus”, ou que católicos saiam às ruas em procissão no dia de Corpus Christi. Assim como os seguidores de qualquer outra religião e como os que não têm uma religião, evangélicos e católicos exercem um direito ao ir às ruas e defender suas ideias e princípios. Nada impede, inclusive, que critiquem decisões do Supremo Tribunal Federal com as quais não concordam.

Muitos evangélicos e católicos, porém, têm de entender que o Brasil é um país laico, secular. Aqui vigora a separação entre Estado e igrejas. Não existe uma religião de Estado, como no Irã (muçulmano), no Vaticano (católico) e no Reino Unido (anglicano), entre outros países. O Estado é neutro diante das religiões e permite que todas atuem em seu território e que cada cidadão goze de plena liberdade de culto, desde que cumprida a lei.

Portanto, uma coisa é seguidores de uma religião, ou uma igreja, manifestarem sua opinião. Outra, é querer impor essa opinião ao conjunto da população. Como o catolicismo romano sempre foi amplamente majoritário na população, cardeais e bispos ainda estão acostumados a dizer o que o país pode ou não pode fazer. Agora, evangélicos querem ter essa prerrogativa também.

Durante muitos anos, por exemplo, a Igreja Católica manteve o país no atraso ao impedir a aprovação da lei instituindo o divórcio, que já existia em quase todos os países. Ora, o divórcio é pecado para católicos, não para todos os cidadãos. Se quiserem seguir os preceitos de sua igreja, os católicos não devem se divorciar -- e, se se divorciarem, esse é um problema entre eles e o vigário confessor. Mas isso não quer dizer que têm o direito de impedir os não católicos de se divorciarem.

Embora constitucionalmente laico, o Estado brasileiro ainda sofre da enorme influência da Igreja Católica, que vem desde a colonização. Ainda existe ensino religioso obrigatório em escolas públicas, feriados em datas católicas (como o de Corpus Christi e de Nossa Senhora Aparecida), crucifixos em repartições públicas, invocações a Deus em textos oficiais. Em um Estado laico verdadeiro, nada disso existiria.

É mais do que simples: o Estado representa todos os cidadãos, cada igreja representa seus seguidores. A parte, por maior que seja, não pode querer se impor irracionalmente ao todo. Católicos e evangélicos podem ficar tranquilos, porque nenhum deles vai ter de assumir uma união civil homoafetiva só por causa da decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas, com medo de Satanás, eles não têm o direito de impedir os que quiserem estabelecer essa união. A ação do juiz de Goiânia, que colocou suas crenças religiosas acima da lei, é um exemplo do que não pode ser feito em um país laico.

Por isso, quem quiser pode ser contra a legalização do aborto, as pesquisas com células-tronco e as marchas pela liberação da maconha, por considerar que ferem seus preceitos religiosos. Mas ninguém pode querer impedir que os demais brasileiros, com outros juízos de valor, queiram abortar, pesquisar células-tronco ou lutar para que a maconha seja discriminalizada. Desde, claro, que dentro do que a lei estabelece ou vier a estabelecer.

O problema, para o país, é que católicos, com 63% da população, e evangélicos, com 25%, têm enorme poder político. Não que sejam muitos no Congresso (segundo a Folha de S. Paulo, a chamada bancada religiosa tem 71 deputados e 3 senadores). Mas líderes religiosos têm influência natural sobre seus seguidores e líderes evangélicos neopentecostais, entre os quais estão alguns dos maiores picaretas da República, manipulam com facilidade os votos de seus rebanhos pouco instruídos.

Esse peso dos líderes religiosos se manifesta com mais clareza sobre os políticos que disputam eleições majoritárias. Para ter pelo menos 50,1% dos votos, candidatos a presidente da República, governador, prefeito e senador têm de estar bem com padres e pastores. Alguns até se convertem de ateus convictos em fieis praticantes. Basta lembrar o lamentável episódio da exploração do aborto na última eleição presidencial, que teve até a intromissão indevida do papa, que é chefe de Estado: uma candidata voltando atrás em suas convicções e um candidato fingindo ser beato.

É lícito a um pastor sintonizado com o século 19 bradar que quem estiver contra a família (leia-se: contra os preceitos de sua igreja) não terá o voto dos evangélicos. O problema é que os candidatos, especialmente a eleições majoritárias, tremem de medo diante disso e impedem a aprovação de medidas necessárias e modernizantes no país, submetendo-se ao atraso fundamentalista.

Tudo isso leva a uma contradição em nosso sistema democrático. O Congresso Nacional tem medo de tomar decisões que levem a polêmicas com os líderes religiosos. O Executivo vai no mesmo caminho, para preservar a famosa “base”. Aí os ministros do Supremo Tribunal Federal decidem, pois não precisam de votos e tomam as decisões à revelia das pressões religiosas atrasadas.

Assim é o STF, quem diria, que garante a liberdade de crença e a modernização dos costumes no Brasil.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Contra o mérito! (Flavio Sacco dos Anjos)

É visível e patético o ocaso da Associação Nacional de Docentes de Nível Superior; hoje, ela é uma trincheira de partidos políticos minoritários

Especialistas em cienciometria indicam que a produção científica brasileira aumentou 56% entre 2007 e 2008, situando-a na 13ª posição no ranking mundial de artigos publicados em revistas especializadas. É no bojo desse processo que se constata o avanço substancial do sistema brasileiro de pós-graduação, com um incremento notável no número de programas destinados a formar recursos humanos em todos os campos do conhecimento.
Há, entretanto, um aspecto que é crucial para entender a mecânica dessa transformação de nosso país na última década.
Refiro-me, sobretudo, ao fortalecimento de sistemas de avaliação centrados na perspectiva do mérito científico e acadêmico, traduzido no neologismo, já consagrado nas hostes universitárias, como o regime da meritocracia.
Sob sua égide, a missão de aprovar um projeto e de conseguir recursos para financiar suas pesquisas tornou-se o centro de uma acirrada disputa que se instala entre os membros de uma comunidade científica, sagrando-se vencedor aquele que mais publica em revistas qualificadas.
Essa dinâmica alimenta complexo sistema, em que a transparência e a veracidade das informações são asseguradas por instrumentos como a plataforma Lattes do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico).
Qualquer pessoa acessa a base de dados de currículos e conhece a trajetória de todo e qualquer pesquisador, do ponto de vista de sua produção intelectual.
Não é à toa que os salários dos docentes de nível superior das instituições federais de ensino incluem gratificações cujo pagamento está atrelado ao cumprimento de índices de desempenho.
Lamentavelmente, tal imperativo vem sendo reiteradamente rechaçado pela Associação Nacional de Docentes de Nível Superior (Andes). Fugindo de seus propósitos, essa instituição se converteu numa trincheira de partidos políticos minoritários ou em local para abrigar verdadeiras nulidades, que, por sua total incompetência e despreparo, não encontrariam espaço para trabalhar em qualquer instituição respeitável de ensino deste e de qualquer outro país do planeta.
O ocaso da Andes é visível e patético. Assembleias de docentes são recorrentemente minúsculas, em que um número reduzido de professores decide pelos demais, propondo a deflagração de greves que só contam com o apoio da militância de plantão, que se locupleta de vantagens para financiar suas viagens ao planalto central e a outros locais do país, onde realizam congressos cujas teses são cada vez mais absurdas e distantes do cotidiano das universidades.
Não me parece um exagero afirmar que a Andes se converteu numa sinecura mantida com os salários dos demais e ao arrepio de qualquer princípio de legitimidade.
Basta olhar o currículo dos membros que compõem a diretoria da Andes para entender essa espúria realidade. Há docentes que jamais orientaram um só aluno de pós-graduação ou publicaram um único artigo científico em toda a sua vida.
Evidentemente, esse tipo de excrescência não representa a regra, mas, sim, a exceção.
A maior parte dos professores tem seu dia a dia marcado por jornadas intermináveis de aulas, orientações de alunos ou elaboração de novos projetos.
Mas o aspecto paradoxal é que são essas as pessoas que se consideram aptas para falar em nome dos demais, sendo a expressão última de flagrante crise de representatividade que se negam a enfrentar, porque, tomando as rédeas do debate, cairiam no ridículo, expondo as vísceras desse ingente paradoxo.
FLÁVIO SACCO DOS ANJOS, 49, é sociólogo, professor da Universidade Federal de Pelotas e pesquisador do CNPq.

Segredo é para quatro paredes (Fernando Gabeira)

Em duas formas diferentes e diferentes relações com o tempo, o sigilo entrou na agenda política brasileira. Na forma de segredo de Estado, ele aparece nas objeções de Sarney e Collor à divulgação de documentos depois de um prazo de 50 anos. É perfeitamente razoável que se oponham levantando questões de Estado. O surpreendente foi o recuo de Dilma Rousseff, uma vez que o projeto aprovado na Câmara sempre teve o apoio do governo. O outro sigilo classifico de mais indigesto: o dos gastos com as obras da Copa do Mundo. Com esse nem Sarney concorda.

Quando a maioria esmagadora das pessoas entende esse sigilo como sospechoso, torna-se inadequado dizer que foi mal interpretado. Como estamos no universo político, e não das ciências exatas, o razoável é afirmar que diante da interpretação majoritária o governo se explicou mal. São nuances.

Falando diretamente: não passará. Sobretudo num momento em que acaba de cair o chefe da Casa Civil e a Fifa e CBF são acusadas, na Suíça e na Inglaterra, de corrupção. Uma questão de tempo e bom senso para dizer: esqueçam, não está mais aqui quem propõe sigilo para os gastos nessa empreitada, com esses atores.

Já o projeto que estabelece o acesso aos documentos públicos é muito mais amplo do que eventuais vazamentos revelando que obtivemos terras da Bolívia, escalpelamos os paraguaios na guerra ou compramos o seu governo no projeto de Itaipu. A quebra desse sigilo é fundamental, reconheço, para os historiadores e a afirmação da maturidade democrática brasileira. O argumento que Dilma apresenta para justificar seu recuo, objeção do Itamaraty, é surpreendente. Nossos diplomatas não podem dizer, parodiando Drummond: os amigos não me disseram que havia uma comissão. E havia. O presidente era do PT, José Genoino; o relator, do PMDB, Mendes Ribeiro. Mais do que isso, o Itamaraty não poderia ignorar que o governo marchava nessa direção e que Dilma, já candidata, fez um discurso público a favor do projeto.

Quem faz pressão pública para que o governo volte atrás? Sarney e Collor. Um presidente que todos nós criticamos, outro que todos nós derrubamos. Mais fácil seria dizer a eles que a democracia brasileira vive um outro tempo, que suas observações são ponderáveis, mas seguiremos com nossos prazos para o sigilo. O problema é que o curto-circuito introduzido por Sarney-Collor obscurece a importância do projeto não só para a opinião pública, como também para o indivíduo.

A partir dele, o Estado terá de montar uma estrutura para atender às demandas de informação. Quando discutíamos o tema na Câmara, aprendemos que os EUA gastam US$ 300 milhões anuais para satisfazer às perguntas que chegam e honrar o compromisso de garantir acesso.

O primeiro obstáculo a ser vencido é do sigilo eterno. Mas, infelizmente, depois de vencido, a luta estará apenas começando. É mais fácil para o governo anunciar que aprovou a lei de acesso aos documentos públicos e afirmar que, nesse ponto, o Brasil se equipara a outras democracias.

Vai haver uma rápida celebração. Mas, e depois, quando as pessoas quiserem, realmente, utilizar o seu direito de saber? Estaremos preparados para isso?

Numa tentativa - desesperada, creio eu - de desqualificar o projeto, Sarney afirmou que o Brasil não se poderia expor ao WikiLeaks sobre sua História. Nada mais inadequado que essa comparação. O WikiLeaks obtém informações contra a vontade dos governos, sem se preocupar com a dimensão legal de sua obtenção. O projeto brasileiro prevê as formas legais de acesso, determina os prazos para a abertura dos arquivos. É, na verdade, um antídoto contra vazamentos, uma vez que oferece os documentos. Nos casos em que isso não for possível, a pessoa interessada ficará sabendo, claramente, quanto tempo falta para conhecer os dados.

Muitos não conhecem o poder da informação. Ou nem mesmo calculam como na sua vida, em determinado momento, pode ser essencial obter do governo um certo documento. Houvesse essa compreensão, certamente teríamos algumas marchas pelo acesso aos documentos oficiais.

A presidente Dilma tentou confortar a crítica ao seu recuo afirmando que os documentos sobre a ditadura militar não podem gozar de sigilo. Tudo bem, mas não devemos utilizar a ditadura como uma espécie de biombo. O que está em jogo não é apenas o conjunto de documentos sobre aquele período. É toda a vida do País, do fim até o começo.

Ditadura, Guerra do Paraguai, consolidação das fronteiras, tudo isso é muito interessante e vai dar excelente debate entre historiadores e acadêmicos. Mas a questão central é aqui e agora. São as demandas que os jornais fazem na Justiça para terem acesso a documentos que o governo esconde, são as dúvidas que um indivíduo, às vezes, tem para definir sua trajetória.

A história dos documentos secretos ligados às fronteiras nacionais ou mesmo às guerras do passado pode se transformar numa espécie de bode na sala.

No mesmo momento em se discute o sigilo com retórica de estadistas, a Câmara aprova o segredo nas contas da Copa do Mundo, o governo não diz quanto gastará para pôr o projeto de acesso em funcionamento, nem monta a estrutura necessária para que ele funcione no cotidiano.

Gravada também por João Gilberto, que faz 80 anos, uma canção popular brasileira diz que segredo é pra quatro paredes e o peixe é pro fundo da rede. Mas o segredo da canção é entre amantes que compartem a mesma casa. Não há segredos eternos nas questões públicas.

Por acaso, a ministra Ideli Salvatti deixou a Pesca e, ao assumir Casa Civil, comunicou o recuo de Dilma no caso do sigilo. Não sei se um dia ouviram a canção, mas, seguramente, estão em conflito com ela. O segredo para quatro paredes não é uma questão do governo. E o peixe no fundo da rede, bem, essa é mensagem mais inequívoca, mas parece que a ministra Ideli não a entendeu, a julgar pela sua passagem pelo Ministério da Pesca