sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O liberalismo é uma via estreita no Brasil (Fernando Schüler)

O ministro Paulo Guedes misturou as palavras “AI-5”, “Lula”, “povo na rua” em sua entrevista de Washington. É evidente que nada disso faz sentido. Não há ninguém quebrando nada pelas ruas, a retórica de Lula serve para animar sua base militante, o país tem uma pauta imensa de reformas a fazer no Congresso e há sinais claros de retomada econômica.
A fala de Guedes, como seria previsível, serviu como prato cheio a nossa algazarra digital. Qualquer fala sugerindo, ou aventando a hipótese absurda de um ato de exceção no Brasil deve ser repudiada como uma irresponsabilidade. Há menções desse tipo todos os dias, aos milhares, nas redes sociais. Mas elas não podem vir de quem ocupa posições de Estado.
O ministro Paulo Guedes durante entrevista à imprensa na embaixada do Brasil em Washington - Olivier Douliery-25.nov.19/AFP
Diria que a leitura política do país feita por Guedes é equivocada (não há uma “ameaça chilena” no Brasil), assim como sua menção a uma época que o país soube superar, a duras penas. Além disso, há o dito popular: não se fala em corda em casa de enforcado.
A fala de Guedes incomoda por uma razão peculiar: nosso ministro é um liberal e comanda a economia em um governo que não faz mistério de suas simpatias pelo ciclo autoritário na América Latina. Imagino que tenha sido isso que levou um analista a sugerir que Guedes se mostrava cada vez mais como um pinochestista.
Descontando o óbvio exagero, há um ponto interessante aí. Pinochestista é alguém que preza a liberdade de mercado, mas dispensa a democracia política. Por estranho que pareça, há muita gente que simpatiza, nos dias de hoje, com variantes dessa tese. Ela foi alimentada, à direita e à esquerda, pelo sucesso econômico do modelo chinês.
Jason Brennan e sua epistocracia, isto é, o governo dos que “sabem”, em vez de um sistema refém da irracionalidade da multidão, navegam por essas águas. A tese é estranha à grande tradição liberal, por muitas razões. A ideia de que um ditador benevolente e racional serviria para garantir nossos direitos e uma vida tranquila no mercado não responde a uma questão muito simples: como fazemos para mandar embora o ditador quando ele perde sua racionalidade e benevolência?
James Madison matou essa charada à época da formação americana. É porque os homens não são anjos que precisamos de uma engenharia complexa de freios e contrapesos para garantir nossos direitos. O Brasil, entre idas e vindas, vem construindo uma engenharia desse tipo. Ela ainda é tremendamente falha, mas (como diz o próprio ministro Guedes) somos uma “democracia vibrante”, e seria muita burrice abrir mão do caminho que já percorremos.
Há uma razão mais profunda que torna o liberalismo e a democracia irmãos siameses. O exercício da palavra e da política expressam, em si mesmos, um direito individual. Vale o mesmo para as demais esferas da liberdade humana. Não faz sentido determinar (a partir de que lugar?) que a liberdade de empreender é mais importante do que a liberdade de opinar, criar uma obra de arte ou professar esta ou aquela religião.
É isto, no fundo, que define uma sociedade liberal: um delicado respeito aos infinitos modos de realização humana. Isso inclui o cidadão que deseja “mudar o mundo”, a jovem empreendedora da pet shop e um casal, não importa o sexo, que deseja criar os filhos de uma certa maneira. Infinitos modos de vida capazes de se expressar sem que as pessoas se matem pelas ruas.
É por ai que dançam tanto a esquerda como certo conservadorismo de costumes, muito em moda por aqui. Este último tem um problema com a ideia de “diversidade”. Bolsonaro expressa isso quando sugere que o governo deveria financiar apenas filmes compatíveis com nossa “tradição judaico-cristã”.
À esquerda, o problema congênito é aquele que John Tomasi chama de “excepcionalismo econômico”. Em resumo: liberdades são importantes, desde que elas não envolvam a palavrinha “mercado”. Tipo particular de conservadorismo que põe à sombra uma esfera “não relevante” da liberdade individual. E não me refiro às distopias socialistas, que seriam um alvo fácil, mas ao que se vê no dia a dia do debate público e nas votações no Congresso.
A verdade é que o velho e bom liberalismo é uma via estreita no Brasil. Sua recusa simultânea do autoritarismo político, do mandonismo econômico e da tutela do Estado sobre a cultura faz de seus simpatizantes aves raras por estes trópicos. Se somarmos a isso certa disposição para o diálogo e aversão à gritaria política, a imagem que surge é a de um quase deserto.
Folha de S. Paulo/28 de novembro de 2019

A torre de Babel (Gaudêncio Torquato)

Fato um: a era petista desfraldou no país a bandeira do apartheid social, cuja cor vermelha, com o lema “nós e eles”, composto por Lula ainda nos tempos do estádio da Vila Euclides, no ABC paulista, pode ser lido como “os bons e os maus”, “oprimidos e opressores”, “elite e massas trabalhadoras”.
Fato dois: o bolsonarismo, mesmo em seu início, luta para aprofundar a divisão social, batendo na mesma tecla, agora com o sinal invertido. Em um lado do muro estão “comunistas, esquerdistas, simpatizantes de Cuba e Venezuela” —e, no outro, radicais de extrema direita, militaristas, saudosistas dos tempos de chumbo.
Fato três: a polarização a que o país assiste, ao contrário da tendência de arrefecimento, previsível após a virulência eleitoral, se acirra a ponto de se ouvir do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, a pregação de “um novo AI-5” se a esquerda “radicalizar”. Esse ato institucional, recorde-se, abriu o período mais sombrio da ditadura, com perseguição e repressão, fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos, confisco de bens privados, censura aos meios de comunicação, tortura, mortes.
Pode a temperatura social tornar-se amena nos próximos tempos? Não se aposta na hipótese. A índole do capitão governante e os sinais emitidos pelo seu entorno sinalizam endurecimento de posições. De um lado, se um posicionamento mais radical dá munição aos dois “exércitos”, expandindo os tiroteios recíprocos, de outro afastará segmentos até então simpatizantes das alas conflitantes. Assim, é possível divisar o adensamento dos espaços centrais. Núcleos que ainda atuam como puxadores do “cabo de guerra” tendem a arrefecer sua participação.
A maior parcela da nossa população não cultiva a velha luta de classes, teme os efeitos de acentuada animosidade social, preocupa-se com questões da micropolítica —escola perto de casa, transporte fácil e barato, maior segurança, hospitais com serviços de qualidade.
Somos um povo emotivo, que padece grandes carências, mas não perde a fé. E começamos a alargar a trilha da lógica, como mostrou a última eleição. Infelizmente, a troca de comando —inspirada pelo espírito de um novo tempo— tem se mostrado amarrada ao passado, incluindo o que esse tinha de pior, o culto à ditadura. O fato é que o universo social se divide hoje em três estratos: um terço dos brasileiros vivendo no chão bolsonarista, um terço habitando o território da esquerda e um terço ocupando o centro.
Traços de incerteza se espalham para cima, para baixo e para os lados. Não se sabe o que vai ou pode ocorrer. Pior, não têm aparecido líderes capazes de galvanizar as forças sociais. Quem emerge como líder de um projeto para o país? Quem acena com esperança? Bolsonaro, com seu espírito belicoso, terá longa vida?
Os novos quadros que começam a surgir não inspiram confiança. Alguns são populares e bem visíveis, como Luciano Huck, o apresentador da Rede Globo. Que veste o manto do entretenimento, podendo, até, encarnar a novidade. Seu figurino atrairia as massas. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, é acusado de oportunista. Mas sabe lidar com comunicação. João Amoedo, do Partido Novo, expressa renovação, mas tem origem na área dos ganhos financeiros, não muito bem vista. Faltaria lastro para entrar nas margens. Ciro Gomes (PDT)? Ora, o ex-governador do Ceará é peça velha no tabuleiro. E Lula ainda tem chance ou patrocinará alguém? O PT com a lama da Lava Jato pode voltar ao centro do poder?
É triste constatar que nem bem o governo completa um ano e as conversas já adentram o cenário de 2022. Uma torre de Babel se instala sob tiroteio expressivo do próprio presidente, que anuncia vontade de continuar no assento presidencial, antecipando momentos e instalando a balbúrdia. Apesar de avanços na trilha do civismo, a incultura ainda se faz presente nas margens, cuja tendência é a de buscar a novidade.
O experimentalismo de outubro de 2018 abriu longa temporada no país.
Folha de S. Paulo/25 de novembro de 2019

Longe do povo perto do Estado (Jairo Nicolau)

A força da burocracia partidária no Brasil, fruto de modelo sustentado por verbas estatais, que favorece caciques e dificulta a renovação, ganha evidência com decisão de Bolsonaro de criar sigla e com punições a deputados que fugiram à orientação de seus partidos.
Um candidato à Presidência da República filia-se a um novo partido sete meses antes das eleições. Empossado no cargo, rompe com seus correligionários e anuncia a criação de uma nova sigla antes de completar seu primeiro ano de governo.
Excêntrica se examinada pela lupa de democracias mais consolidadas, essa história é bastante plausível para quem acompanha a inconstante trajetória das lideranças políticas nos partidos brasileiros. Levando-se em conta que o presidente é Jair Bolsonaro e tudo o que marcou sua campanha eleitoral, a história soa inusitada, para dizer o mínimo, mesmo para os padrões nacionais.
No bojo de sua vitória, Bolsonaro levou seu antigo partido, o PSL, a ser o mais votado nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2018, embora tenha eleito menos deputados que o PT. Além disso, a “onda Bolsonaro” contribuiu para a eleição de quatro senadores e dezenas de deputados estaduais.
Por que então Jair Bolsonaro, com todo seu capital político, abandonou o partido que ajudou a transformar em um dos maiores fenômenos da história das eleições no Brasil e anunciou a intenção de uma nova legenda, a Aliança pelo Brasil? Como um presidente da República se mostrou incapaz de retirar do controle de sua legenda um desafeto, o deputado federal Luciano Bivar, um parlamentar quase desconhecido em âmbito nacional?
Outros episódios recentes mostraram a força das direções partidárias no país. Os diretórios nacionais do PSB e do PDT puniram 17 deputados federais por terem votado a favor da reforma da Previdência apresentada pelo governo. O PDT suspendeu de suas atividades e abriu processo contra oito deputados. O PSB expulsou o deputado Átila Lira e também suspendeu outros oito de suas atividades.
Trata-se do maior número de punições por descumprimento de decisões partidárias na história da Câmara dos Deputados.
Em ambas as siglas, congressistas alegaram que teriam recebido sinal verde no momento da filiação para não seguir a orientação da liderança nas votações no Congresso.
Os casos do presidente da República e dos deputados punidos contrariam a visão tradicional de fragilidade dos partidos brasileiros. Nos dois episódios, chama a atenção a força das burocracias partidárias.
O que é um partido político? Na definição mais trivial, encontrada em antigos manuais de ciência política e direito constitucional, é uma organização composta por cidadãos que ambicionam chegar ao poder por intermédio do voto.
O partido teria essa dimensão híbrida, uma associação civil que ora ocupa o Estado, ora se encontra fora do Estado. Como uma associação, necessitaria de militantes para cuidar de sua estrutura, divulgar suas ideias e contribuir financeiramente para sua manutenção. Os partidos se distinguiriam ainda por professarem diferentes ideologias e diferentes propostas de políticas públicas.
Nada mais distante da prática recente do que essa definição. No Brasil, mais que uma associação de cidadãos que ocasionalmente chega ao poder, os partidos se assemelham a uma organização paraestatal, uma entidade fomentada pelo Estado mesmo que não faça parte da administração pública. Como é o caso, por exemplo, das organizações sociais (OSs), das entidades do Sistema S, como Sesi e Senac, e de organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip).
Desde a promulgação da Lei dos Partidos Políticos, em 1995, registrar uma nova legenda passou a ser tarefa dificílima. Não tenho notícia de outro país em que seja tão árdua. É necessário o apoio, por intermédio de assinaturas, de 492 mil eleitores. Cada assinatura é checada pelos cartórios eleitorais em um processo que pode demorar anos.
Desde que a lei entrou em vigor, apenas dez partidos foram criados. Nenhum foi registrado nos últimos quatro anos —o último deles, o Partido da Mulher Brasileira, surgiu em setembro de 2015. Será um milagre se Bolsonaro conseguir que seu novo partido dispute as eleições municipais do próximo ano, dadas as exigências da Justiça Eleitoral.
No Brasil, o Estado controla também a listagem de filiados às legendas. Estabelecer um vínculo formal com uma agremiação política vai muito além de apenas de criar laços com o grupo. A filiação oficial pressupõe o preenchimento de uma ficha de inscrição junto à Justiça Eleitoral. Só pode ser candidato quem se filiar a um partido no mínimo seis meses antes da eleição.
É no financiamento, contudo, que a dimensão paraestatal dos partidos brasileiros fica mais evidente. O volume de recursos recebido do Estado é bastante amplo. Não identifiquei até hoje nenhum caso similar no mundo. Além do fundo eleitoral e da propaganda veiculada em ano de eleição, os partidos passaram a receber generosos recursos para fazer campanha. O valor para a disputa em 2020 ainda não está definido, mas no pleito de 2018 foram gastos R$ 1,7 bilhão em pouco mais de 60 dias de campanha oficial.
Um último aspecto importante do controle da vida partidária: cabe à Justiça Eleitoral a decisão final sobre os casos em que políticos abandonam os partidos pelos quais foram eleitos. Centenas de eleitos perderam seus mandatos após tribunais eleitorais considerarem improcedente a troca de legenda.
Nesse quadro, a Justiça Eleitoral tornou-se uma grande máquina de regulação partidária. Tem o poder de aceitar o registro de novas legendas, controlar a filiação dos cidadãos, distribuir dinheiro para partidos e campanhas, fiscalizar os gastos e ainda julgar a procedência das trocas de legenda.
Os cientistas políticos Peter Mair e Richard Katz batizaram de partido de cartel esse novo modelo de agremiações políticas, cada vez mais regulado pelo Estado e, sobretudo, cada vez mais dependente da transferência dos recursos estatais. Com financiamento assegurado, os partidos dependem menos do trabalho voluntário de seus militantes. A revolução produzida pela internet e pelas redes sociais tornou essa necessidade ainda menor.
Hoje quase todos os partidos recebem recursos que lhes permitem manter uma sede em âmbito nacional, contratar funcionários e financiar a realização de eventos. Em anos eleitorais, ainda recebem verbas para as campanhas e tempo de difusão de propaganda no rádio e na TV.
Lembro que nos anos 1980 e 1990 um dos maiores desafios de fazer uma reunião partidária era pagar as passagens dos dirigentes. Na era do financiamento público, isso já não é problema para boa parte das legendas.
Neste cenário em que os partidos dependem cada vez mais do Estado para sua manutenção e criam uma burocracia para administrar esse novo status, o incentivo para renovação diminui. Para que atrair jovens para suas atividades? Qual é o estímulo para adotar mecanismos de consulta aos filiados ou instituir a participação via eleições primárias?
Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou uma diminuição na proporção de jovens filiados nos últimos anos. Em 2008, havia 5,2% deles (de 16 a 24 anos) inscritos nas siglas do país; em 2019 o percentual caiu para 1,5%. Nos partidos mais tradicionais, o percentual de jovens é reduzido: 0,8% no PT, 1,4% no PSDB, 0,6 % no DEM e 0,8% no MDB. No total de eleitores, esse segmento representa 14%.
Mas nesta década, houve um maior interesse da juventude pela política em sentido mais geral. São exemplos as manifestações de 2013 e 2015, o engajamento no debate nas redes sociais, o envolvimento na campanha presidencial de 2018. Mesmo assim, esse fenômeno não se traduziu na filiação em massa de jovens. Pelo contrário, houve queda de 658 mil para 247 mil no número de cadastrados.
Há muitas causas para o afastamento dos jovens da atividade partidária e o consequente envelhecimento dos líderes. Creio que a mudança recente na natureza dos partidos é uma delas. As siglas transformaram-se em organizações pesadas, com muito pouco incentivo para desempenhar o tradicional papel de intermediárias entre sociedade e Estado. Colaram-se ao Estado, afastaram-se da sociedade. O alheamento juvenil é uma evidência desse distanciamento.
Simultaneamente a isso, surgiu no país um conjunto de associações que conseguiu atrair jovens para as suas fileiras. Entre as mais destacadas estão o RenovaBR, o Acredito, o Livres e o Agora, além do MBL. Embora tenham diferentes estratégias de atuação e doutrinas, movem-se por um propósito comum: oferecer uma formação política e estimular a juventude a entrar na vida partidária.
A proposta parece bem razoável. Já que os partidos não têm conseguido se renovar e formar quadros qualificados, as novas associações serviriam para ocupar esse lugar. Algumas delas resolveram agir mais ativamente, influenciando a atividade de seus representantes no Legislativo —seus deputados dão a impressão de que estão apenas abrigados nas siglas. A prioridade é defender a pauta desses movimentos, e não o programa do partido.
A carta-compromisso celebrada entre o Acredito e o PDT-SP em abril de 2018 é reveladora da independência ambicionada pelo movimento —e, o que é mais curioso, aceita pelo partido. Em um trecho, lê-se: “O PDT se compromete a respeitar a autonomia política e de funcionamento do Acredito, bem como a identidade do movimento e de seus representantes”.
É possível que alguns deputados estabeleçam uma nova forma de mandato, com grande autonomia em relação aos partidos, e inovem em diversos aspectos: contratação de assessores por concurso; audiência online para que os eleitores decidam onde investir os recursos das emendas parlamentares; consulta online para saber o que os eleitores pensam sobre determinado assunto. Um deputado estadual do Rio, representante de um desses movimentos, comparou seu mandato a uma empresa startup.
O problema é que esse tipo de mandato drena a energia renovadora desses movimentos para fora da política partidária e alimenta uma ilusão: a de que é possível prescindir dos partidos.
A quem alimenta essas fantasias, sugiro as seguintes reflexões: como as decisões seriam tomadas em um Congresso com 513 deputados empreendedores? Como o debate sobre politicas públicas seria feito sem a agregação dos diversos interesses da sociedade realizada em associações definidas? Ou como uma eleição seria realizada sem que os partidos selecionassem os nomes dos cidadãos aptos a concorrer?
O desencanto com os partidos políticos no Brasil estimulou alguns intelectuais e ativistas de movimentos sociais a defenderem a implementação da candidatura avulsa. A ideia é muito simples: cidadãos poderiam concorrer a um cargo eletivo sem estarem filiados a um partido.
A candidatura avulsa seria o outro lado da face do mandato gerencial defendido pelos movimentos de renovação. Se a norma estivesse em vigor, não haveria punição para os parlamentares que não seguiram a orientação partidária.
A deputada federal Tabata Amaral, uma das punidas pelo PDT, por exemplo, defenderia suas ideias, votaria a favor da reforma da Previdência e prestaria conta a seus eleitores. Nada de bancada, diretório nacional ou programa partidário.
Algumas democracias, sobretudo as que utilizam o sistema eleitoral majoritário-distrital, permitem que cidadãos não vinculados a partidos concorram. Assim, em um determinado distrito, candidatos independentes podem se apresentar. Poucos, contudo, conseguem se eleger para o Legislativo nacional. No Reino Unido, por exemplo, apenas dois independentes conseguiram uma vaga na Câmara dos Comuns nos últimos 20 anos.
No Brasil, a adoção da candidatura avulsa esbarra em dois problemas logísticos. O primeiro é que adotamos a representação proporcional, em que cada partido apresenta uma lista de candidatos. Os avulsos comporiam uma lista específica (ou seja, um partido de avulsos)? Teriam que ultrapassar o quociente eleitoral?
Outro obstáculo é o grande número de candidatos já existentes. Quem estaria apto a concorrer? Os independentes também receberiam recursos públicos para as suas campanhas? Como organizar o tempo de TV entre os milhares de candidatos que seriam inscritos? E a fiscalização das campanhas?
As histórias de um presidente da República que não controla o seu partido e dos deputados que acreditaram poder votar contra a orientação de suas legendas demonstram que a organização partidária é um aspecto essencial a ser considerado para entendermos o sistema representativo brasileiro.
Minha hipótese é que a força dos partidos brasileiros estaria associada ao processo pelo qual eles se transformaram em entidades paraestatais. Neste quadro, os dirigentes que controlam os recursos passam a ter um poder desproporcional em relação a outros segmentos da sigla. Com um mercado fechado (novos partidos não são criados facilmente) e com poucos incentivos para renovação, os partidos tornaram-se organizações pesadas e pouco atraentes para os jovens.
O leitor deve ter percebido que, a despeito de criticar o modelo de representação política em vigor no país, não antevejo uma forma de as democracias funcionarem sem os partidos. Eles precisam, todavia, de abertura, capturar a vitalidade do país e atrair uma parte dos cidadãos que passou a se interessar pela política nos últimos anos.
A pasmaceira da vida partidária brasileira será chacoalhada agora por Bolsonaro e sua Aliança pelo Brasil. Quase todos os analistas enfatizaram a estranheza do gesto: um político com largo vaivém partidário (esteve em oito siglas em 30 anos de carreira política) e evidente desinteresse pelo aperfeiçoamento do sistema resolve criar uma agremiação.
Para além das intenções e da inaptidão partidária do presidente, vale observar em que medida ele será capaz de agrupar em sua legenda parte dos milhões de seguidores que cultiva nas redes sociais.
Desde a redemocratização, pela primeira vez uma liderança popular de direita se envolverá na tentativa de organizar um partido. Fernando Collor transformou o Partido da Juventude (PJ) no Partido de Reconstrução Nacional (PRN) para viabilizar a sua candidatura à Presidência, mas não fez praticamente nenhum movimento para ampliar a sigla.
Há muitas experiências recentes que poderiam inspirar a renovação no Brasil. Na Espanha, na Itália e na França, novas legendas trouxeram milhares de cidadãos para a atividade partidária. Na Argentina e no Uruguai, os partidos utilizam as eleições primárias para escolher seus candidatos. Na Inglaterra, os militantes do Momentum, um movimento criado originalmente para persuadir os eleitores a comparecerem às urnas, se filiaram ao Partido Trabalhista e ajudaram a modernizá-lo.
Ainda é muito cedo para avaliar se a Aliança pelo Brasil se transformará em um partido relevante. Permitam-me, a despeito disso, uma dose de ceticismo em relação à sua capacidade de renovar a política brasileira. O PSL sofreu os males de ter, repentinamente, virado um grande destinatário de recursos estatais (dinheiro e tempo de TV em demasia) e está entrando em colapso. Por que seria diferente com a Aliança?
Folha de S. Paulo/24-11-2019

Polarizações paralisantes (Marco Aurélio Nogueira)

Política é luta, disputa, busca de poder. Não pode ser vivida e praticada como se a harmonia e o entendimento apagassem contradições e diferenças. O elogio do conflito como fator de propulsão política é comum ao pluralismo liberal e à teoria da luta de classes.
O dissenso – o direito a ele, a liberdade de expressão, pensamento e crítica – faz parte da democracia, que não pode viver sem ele e sem os embates por ele propiciados. Nem toda polarização produz guerra de extermínio. Nas democracias os polos se respeitam, convivem, fiscalizam-se, podem até cooperar.
A ideia de consenso deve ser posta em termos claros, determinados. Apresentada em abstrato é uma ilusão perigosa, que pode levar à banalização do conflito e à “reconciliação” entre atores que precisam manter-se como diferentes para que a luta política adquira pleno significado e possa até mesmo dissolver os antagonismos maniqueístas. Consenso de modo algum significa a suspensão do conflito ou a dissolução das diferenças.
Observadores da cena política nacional dizem que a atual polarização entre bolsonarismo e lulismo não pode ser eliminada por um consenso centrista, que não teria força social para prevalecer. Alguns veem o consenso não como algo a ser construído, mas como mera tradução da realidade. Acreditam que, se nenhum bloco de forças é suficientemente forte, a proposição de um amplo entendimento seria diversionismo fadado ao fracasso.
Para complicar, entendem a polarização de modo restrito: só a percebem como virtude, numa reprodução empobrecida da visão liberal-pluralista que concebe o conflito como impulsionador da democracia. Preocupam-se em atacar uma hipotética “terceira via”, que entendem em chave funcionalista, como “meio-termo”. Pensam que ser radical é proclamar as razões de um polo contra outro, com o que rejeitam qualquer esforço de mediação.
A política é sempre polarizada, mas nem toda polarização fornece oxigênio à política. É necessário ir além das abstrações teóricas, admitir e reconhecer especificidades para, então, compreender o limite e o equívoco das polarizações binárias, não dialéticas: nós contra eles.
Polarizações paralisantes podem ser inevitáveis, mas não são virtuosas. Envenenam a luta política e alienam a população, na medida em que sugerem que toda decisão sempre reflete o interesse de um polo em combater o polo oposto. Nelas não há um movimento de superação, o encontro de um terceiro termo que negue os termos polares e os incorpore num novo arranjo.
É o caso da atual contraposição entre bolsonaristas e lulistas, que impede a sociedade de conhecer propostas renovadoras. Tudo é exibido na cena pública como um filme já visto. Vive-se o conflito polarizado com doses extra de intolerância e agressividade, de onde sai uma névoa de desentendimentos (mais aparentes que reais) que incrementam o atrito e a fragmentação.
Romper polarizações desse tipo requer tenacidade, liderança personalizada, símbolos fortes, ideias. Nenhum sucesso virá da repetição ad nauseam do mantra do “centro”. Mas é improvável que haja avanço substantivo na vida nacional sem uma inflexão para o centro de um dos polos dominantes. Se tal não ocorrer, uma eventual disputa eleitoral será vencida pelo polo que detiver mais recursos de poder, usá-los com frieza e alcançar uma boa narrativa de campanha. Não é preciso muita inteligência para descobrir qual polo seria esse.
O bolsonarismo não tem capacidade de infletir para o centro, nem sequer para o centro liberal-conservador, em que pese ter hoje a seu lado uma figura como Paulo Guedes, que está no governo por questões outras. Seu autoritarismo retrógrado e suas grosserias abjetas o tornam repulsivo ao moderantismo liberal, do mesmo modo que o “libertarismo” cosmopolita dos liberais causa engulhos nos bolsonaristas.
Uma unidade democrática pelo centro e com o centro só será vitoriosa se for progressista. Ou seja, se estiver aberta para a esquerda, se for sensível aos problemas sociais do País e fizer da democracia política uma cláusula pétrea. Seu sucesso depende da capacidade que tiver de articular as correntes moderadas numa operação democrática com vocação para se aprofundar. Nas circunstâncias de hoje, significa pensar em unidade democrática: um teto sob o qual os diferentes se reúnam.
A hipótese de um “centro progressista” que exclua ao mesmo tempo os eleitores do bolsonarismo e do lulismo não tem espaço suficiente para progredir, o que explica suas recorrentes dificuldades de afirmação.
Muita coisa passa pelos cálculos de Lula e do PT, que hoje oscilam entre uma frente ampla e um frente de esquerda. Nas personalidades e forças que orbitam o partido, a ideia de “frente ampla” não é tão ampla assim e prevê alta dose de protagonismo petista, o que a restringe. Se o foco for o confronto generalizado – rage against the machine –, com ataques às instituições e apelos a um revolucionarismo retórico, se essa esquerda agir em nome da autoafirmação e de uma visão programática sectária, ela se autoexcluirá e o “centro progressista” terá de buscar novas fontes de energia, por ora inexistentes.
O problema são os vetos cruzados.
A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre lulistas e bolsonaristas, conservadores e reacionários, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política perfeita. Estrutura-se como choque de “narrativas” que se excluem reciprocamente, misturadas com postulações identitárias e batalhas corporativistas. A polarização paralisante reflete a dificuldade que democratas liberais, de centro e de esquerda têm de apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder. Cada um, até agora, permanece mergulhado em seus meandros e fantasias.
A polarização entre lulismo e bolsonarismo está dada, mas não interessa à democracia. Só beneficia o atraso político. Não deveria ser alimentada.
O Estado de S.Paulo/23 de novembro de 2019

Política negativa e política positiva (Paulo Fábio Dantas Neto)

A fórmula que inspira o título foi de San Tiago Dantas, ministro de Jango, nos idos de 1964. Ajuda a pensar a frente democrática exigida pela experiência de 10 meses de mandato de Jair Bolsonaro. Sistema político, instituições jurídicas, algumas corporações profissionais do Estado e setores da sociedade civil, imprensa incluída, reagem com cautela ao ataque do Executivo a fundamentos democráticos da ordem política. O professor Werneck Vianna chama essa estratégia defensiva de guerra de posição. Uso política positiva em sentido análogo.
Em conjuntura crítica, San Tiago Dantas chamou de esquerda positiva a política que propunha, com senso agônico de urgência de um político progressista que pressentia a aproximação do pior. O horizonte da política positiva era um país com progresso social e economicamente moderno, horizonte submetido a duas regras de ouro: respeito rigoroso às instituições políticas e recusa de ideias de revolução ou de refundação do País. Certos conservadorismo e ceticismo, em vez de obstáculos ou argumentos contra as reformas, eram o método político para fazê-las.
San Tiago perdeu e a derrota foi do Brasil, que viveu duas décadas de ditadura. Sua agenda foi, com o tempo, revisitada, pelos militares, do modo autocrático que ele rejeitava por convicção. Pragmatismos em contraste: o de San Tiago, que propunha um futuro pela via da democracia e da civilização do conflito social pela moderação da política; e o de Golbery do Couto e Silva, que atrelava o presente a uma guardiania contra o demos, um regime que revogava a política (ou a restringia a jogo palaciano) em nome de eliminar os extremos. Num caso, construção moderada do centro político, no outro, extremismo de centro, que a história de outros povos nos ensina ser um dos biombos do fascismo.
A transição democrática e a Carta de 88 remeteram Golbery ao passado e agora ele quer voltar. Sua estratégia para vencer a linha-dura do regime que ajudou a fundar parece inspirar movimentos da direita democrática que tentam conter o extremismo do presidente Jair Bolsonaro, de sua família e sua facção. Assim como Golbery e Geisel ajudaram, na política de porões, a nos livrar de coisa pior, ajudará se, na nossa democracia atual, a aliança liberal-conservadora do presidente da Câmara com o governador de São Paulo detiver a aventura obscurantista que ocupa o Planalto.
Essa estratégia positiva, porém, será insuficiente se limitada à união de liberais e conservadores. A frente democrática necessita de um pé esquerdo, para a dissidência se separar, de fato, da extrema direita e se tornar oposição. Outra lição da experiência da transição democrática é que a abertura lenta, gradual e segura de Golbery não seria viável sem o avanço, no sistema político e na sociedade civil, da estratégia que mirava a democracia, e não uma guardiania light. Se Rodrigo Maia quiser ter um papel à altura do que teve Tancredo, terá de encontrar seu Ulysses e seu PCB, quer dizer, aliados capazes de mobilizar a margem esquerda da política pela via positiva, dando à frente democrática seu pé esquerdo. Essa articulação precisará alcançar, além de todo o centro, a esquerda convencional, um maciço ideológico que hoje rejeita e pune jovens políticos que tentam renovar a política pela política, e não contra ela.
O andar da carruagem da esquerda não favoreceu o polo positivo. Sob mediação do arranjo de poder caído em 2015-2016, fabulações nacional-desenvolvimentistas, de comunitarismo cristão e de democracia de alta intensidade foram linkadas ao identitarismo pós-moderno, emergente na sociedade civil. Conexões de sentido que exilam ideias de nação, de povo, em assembleias, conselhos deliberativos e coletivos identitários deixaram a esquerda brasileira mais distante da via cosmopolita, institucional e incremental da esquerda positiva. A política da esquerda negativa difundiu crenças e mobilizou interesses artífices do estilingue que hoje a alveja com força de bumerangue. A ponta da lança é a política negativa da direita soberanista e autoritária.
Para construir a frente democrática há ainda que desfazer uma confusão: o termo conservador não ter uso para nomear esse mix de ideologia e pragmatismo míope. Um conservadorismo que se preze está na oposição a um governo cuja pauta, inédita no Brasil, é destruir instituições.
Além de formar a frente democrática, um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor. Ataques do capitão convertem consensos civis em dissensos selvagens, rebaixando crenças democráticas, mesmo se ficam na ameaça. Por isso dão razões para processos de denúncia formal e pedidos de impeachment.
O realismo político descarta essa via legal preventiva, ainda mais com Lula solto. O script racional da sua política atual é negar tudo o que está no governo, mas complementa o script de um governo que nega a complexidade legal e social do País. O quadro é favorável a essa mútua negatividade bipolar. A campanha de 2022 já começou e a frente da política positiva não se construirá em ritmo de valsa. Tocando dobrado, terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político, como em outros tempos encarnou em Tancredo e Ulysses, em FHC e no ex-Lula. Como não existe liderança natural, ela só pode sair de acordo político em torno de quem mais unir os fragmentos que hoje se supõe representarem 40% do eleitorado.
Para desmentir quem chamar essa solução de conluio sem programa, a voz do centro unificado precisará combinar realismo político, convicção democrática, responsabilidade econômica, pluralismo cultural e forte compromisso com reforma social. Para quem achar essa combinação impossível, ou indesejável, é simples: dobrar a aposta e alinhar-se a Lula ou a Bolsonaro.
(*) Cientista político, é professor da Universidade Federal da Bahia
O Estado de S.Paulo/20 de novembro de 2019

De curtos-circuitos e centelhas (Luiz Sérgio Henriques)

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.
Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.
Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.
No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.
A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.
Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.
A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.
Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.
O Estado de S.Paulo/17 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A República imperfeita (Marco Aurélio Nogueira)

Nascida em meio às crises que abalaram os equilíbrios políticos, militares, religiosos, sociais e ideológicos do Segundo Império, a República sacudiu o torpor que tomava conta da sociedade brasileira em decorrência da morosidade e do caráter seletivo da Monarquia, travada que estava pelos compromissos com o mundo rural e o conservadorismo.
O Manifesto Republicano divulgado em 3 de dezembro de 1870 abriu a fenda inicial, com um conjunto de promessas e compromissos voltados para a crítica da Monarquia e o início de uma nova fase ético-política no Brasil, na qual prevalecessem os valores da liberdade, da democracia e da descentralização. Seu foco era a denúncia dos estragos causados ao País pela “irresponsabilidade” do Imperador, que atrofiava as províncias, impedia a democracia e produzia grave “prostração moral” da Nação.
O Manifesto passava ao largo da questão social: da escravidão. Concentrava-se na questão do regime político, deixando assim de se preocupar com seus fundamentos materiais. Seu texto era vibrante, mas tinha um único alvo: “a influência perniciosa do poder pessoal”, o “absolutismo prático sob as vestes do liberalismo aparente”.
Escreveram os signatários: “A centralização, tal qual existe, representa o despotismo, dá força ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites obrigados do grande astro da Corte — centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si — na ordem moral e política, como na ordem econômica e administrativa.”
Na verdade, o Manifesto subordinava a luta pela abolição ao tema da liberdade em geral, abstrata. Não era uma impropriedade, mas a insistência no regime dificultou a difusão popular da ideia republicana.
Foi preciso que a efervescência chegasse às senzalas e mobilizasse os elementos urbanos abolicionistas durante a década de 1880 para que a Monarquia perdesse capacidade de se reproduzir. O golpe de 15 de novembro de 1889 estabeleceu em cima o que estava sendo imposto por baixo. O regime político mudou, depois de que também se alterou, pouco mais de um ano antes, o regime de trabalho.
A mudança se fez com suavidade, com algum barulho mas quase nenhuma violência. Viu-a bem o Conselheiro Aires do grande Machado de Assis: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.
O republicanismo, ontem e hoje
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.
No caso da educação pública, em particular, a imperfeição foi completa: instituiu-se um sistema educacional, mas ele não chegou ao conjunto da sociedade e nem ganhou estabilidade. Adquiriu legitimidade nas décadas de 1940 e 1950, mas aos poucos foi sendo corroído e confrontado pelo avanço do sistema particular de ensino. Chegamos ao século XXI em situação lamentável: ao lado da desigualdade social profunda, o fracasso da educação pública representa o mais retumbante descumprimento das promessas republicanas.
O Manifesto Republicano foi um marco, mas paradoxalmente perdeu-se nos meandros do regime republicano que então se constituiu. O que deveria ter sido sua realização maior permaneceu um dever ser. O programa e os princípios que o inspiraram eram nobres, mas não dialogavam de fato com os fundamentos e os personagens da sociedade imperial. Pairavam sobre ela. Mesmo a marcha da modernização, a industrialização e a urbanização, não sacudiu por inteiro os andrajos da sociedade tradicional enraizada no Segundo Império.
Mas houve progresso, a materialidade social mudou, criou-se uma nova sociedade e um novo Estado foi-se afirmando com base num pacto social que evitou a guerra civil e o choque violento das classes. Compromissos e conciliações deram o tom do processo, suavizando as transições e o arbítrio do sistema, dos governos e regimes que se sucederam no tempo. O Brasil não se tornou um caso perdido, muito menos um zumbi entre as democracias contemporâneas.
Um novo Manifesto Republicano seria uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República. Em termos de valores a serem fixados, a liberdade precisa ser mais uma vez reiterada, “abrir as asas sobre nós”, em todos os planos. A igualdade deve ocupar lugar de destaque, em termos substantivos. A democracia requer defesa e valorização. Uma pedagogia democrática consistente precisa ser posta em circulação, para promover civicamente a população e prepará-la para a complexidade inerente à era em que estamos.
Numa época como a nossa, de “excessos”, redes e informações, será imprescindível enfatizar a educação pública, a liberdade de pensamento, a autonomia dos cidadãos, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção. Deve-se, também, modular com clareza a questão da propriedade privada e fazer com que a liberdade do mercado se componha com distribuição de renda. Temos de voltar a discutir a questão da regulação pública da economia. O mercado hoje é tudo e não há como seguir em frente em termos republicanos e democráticos sem que a dinâmica mercantil abrace a justiça e a inclusão social.
O Estado de S. Paulo/15 de novembro de 2019

A polarização discursiva e a falta de um projeto de crescimento econômico e de inclusão social para o Brasil. “ (Luiz Werneck Vianna e ...)

A decisão do Supremo Tribunal Federal – STF pelo fim da prisão após a condenação em segunda instância na última quinta-feira, 07-11-2019, tem um significado jurídico e outro político, diz Roberto Dutra Torres Junior à IHU On-Line. Juridicamente, afirma, “foi cumprida a Constituição, garantindo-se o direito de não prisão até o trânsito em julgado”. Politicamente, a “interpretação está num cenário de disputa política entre Lula, o PT e o governo, pela liderança que o Lula significa e pelas possibilidades que a volta dele à liberdade trazem”, pontua. O ex-presidente Lula estava preso desde o dia sete de abril de 2018, após ter sido condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pela Operação Lava Jato.
Para analisar como a liberdade do ex-presidente pode reconfigurar o cenário político, a IHU On-Line conversou com os sociólogos Luiz Werneck Vianna e Roberto Dutra por telefone, e com Rudá Ricci pelo WhatsApp.
Para Werneck Vianna, a presença do ex-presidente Lula na cena política representa uma “oposição eloquente” ao “projeto Bolsonaro de mudança radical do país” e “certamente vai elevar a temperatura política”. Na avaliação dele, o embate entre petistas e bolsonaristas abre uma “oportunidade nova” para o centro político.
“Não interessa ao país uma conflagração, especialmente uma conflagração que não tem maiores propósitos. A meu ver, nós temos que fugir da polarização, voltar às nossas tradições, defender a nossa Carta, defender os princípios fundantes do nosso país”, propõe.
Crítico aos projetos petista e bolsonarista, Werneck frisa que “precisamos de uma alternativa diversa”. “Estamos diante de um quadro em que se torna necessário a intervenção de um personagem capaz de dialogar com as forças novas que surgiram no país e com a história do Brasil, que seja capaz de criar um projeto de crescimento econômico e de inclusão social”, argumenta.
Na opinião de Rudá Ricci, há apenas “dois cenários possíveis para o Brasil: o de retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico ou o de radicalização”. Segundo ele, ainda é difícil prever o que o PT fará daqui para frente, dado que “as últimas duas direções perderam completamente a capacidade de elaborar estratégias que alinhem o curto com o longo prazo”. O fato de o partido ter ficado dependente da figura do ex-presidente Lula, menciona, na prática, levou “à idolatria e à incapacidade de gerar novos quadros formuladores e com capacidade de direção política”. Apesar de o ex-presidente dar uma guinada à esquerda em seus primeiros discursos após deixar a prisão, Ricci aposta que “Lula procurará, pelas movimentações desses dias, retomar um campo de centro-esquerda, cujo limite, até agora, é Luciano Huck, com quem se encontrou há dois ou três dias. Na outra ponta, o PCO e PSOL”. Já à direita, pontua, as articulações são mais complicadas “porque o bolsonarismo é dado ao extremismo retórico, ao conflito permanente até mesmo com seus apoios táticos e à histeria. Portanto, dificilmente agregará o campo político comandado pelo Centrão”. Se esse cenário se consolidar, ressalta, “teremos um país dividido em três partes: esquerda/centro-esquerda, centro-direita e extrema-direita”.
A polarização que observamos nas manifestações do último final de semana em atos contra e pró o ex-presidente Lula e à decisão do STF não é negativa, segundo Roberto Dutra. “Na minha visão, o maior problema da democracia brasileira é a ausência de uma polarização real e efetiva entre programas, partidos, lideranças e organizações partidárias capazes de representar no debate político essas posições programáticas”. Defensor da polarização como um ingrediente saudável para as democracias, Dutra avalia que a liberdade do ex-presidente Lula poderá favorecer tanto a esquerda quanto a direita, que irão se unir em torno dos polos mais potentes. Entretanto, adverte, a “polarização que está agora na figura do Lula e do Bolsonaro pode virar uma polarização puramente discursiva entre dois líderes carismáticos destituídos de programas reais sobre como mudar o país”. E acrescenta:
“Bolsonaro de fato não tem esse programa, não representa nada, e o Guedes é como um projeto paralelo, mas o Lula também não representa nada de concreto. Lula representa uma ideia vaga de inclusão social. Mas é uma ideia que nunca deixa de ser vaga, enquanto ela não tiver um programa real de como o Brasil vai ficar mais rico e inclusivo ao mesmo tempo”. Ele diz ainda que maior desafio dos líderes da esquerda e da direita é conquistar a classe média.
“Bolsonaro consegui ganhar a classe média nas eleições, ainda tem o apoio significativo de parte dela, mas a classe média não é coesa politicamente”, conclui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como interpreta a nova decisão do STF de voltar atrás na decisão anterior sobre o fim de prisão após condenação em segunda instância? O que essa mudança significa?
Roberto Dutra Torres Junior – São duas coisas: uma interpretação jurídica e uma política. Na interpretação jurídica, qualquer pessoa intelectualmente decente sabe que foi cumprida a Constituição, garantindo-se o direito de não prisão até o trânsito em julgado. Só que essa interpretação está num cenário de disputa política entre Lula, o PT e o governo, pela liderança que o Lula significa e pelas possibilidades que a volta dele à liberdade trazem.
A cláusula que foi decisiva para a decisão do STF é uma cláusula pétrea e não existe emenda constitucional para cláusula pétrea. Mais uma erosão derradeira da Constituição de 88 seria necessária para mudar o significado jurídico dessa decisão.
Rudá Ricci – Em primeiro lugar, que a vertente garantista (a que defende o amplo direito de defesa do acusado e a presunção de inocência antes de transitado em julgado) voltou a ser maioria no STF, isolando o que alguns denominam de ala “ativista” (aquela que sugere que o judiciário avance na normatização da ordem legal, superando supostas lacunas ou reinterpretando o corpo da lei, muitas vezes assumindo o papel que seria de outros poderes). Em segundo lugar, como o STF é muito sensível à estabilidade social e vota em virtude das ondas de tensão social, parece sinalizar que retornamos à certa normalidade nas regras de convívio, superando a histeria punitivista que assolou a sociedade brasileira a partir de 2015. Democracia tem regras, não é pautada pela irracionalidade ou pressão de grupos de interesse. E a regra maior é a Constituição Federal.
Luiz Werneck Vianna – Cumpriu-se a Constituição; vale o que está escrito. As hermenêuticas não podem alterar um texto constitucional e foi assim que o Supremo decidiu.
IHU On-Line – A PEC da prisão em segunda instância é inviável na sua avaliação?
Roberto Dutra Torres Junior – Constituições são arranjos que dependem do Direito e da política e a política depende das Forças Armadas. Não é impossível que haja uma alteração na Constituição, mas isso, do ponto de vista constitucional e do ponto de vista de uma teoria jurídica e de uma visão de como distinguir entre o regime jurídico de um país e de outro, é claramente o fim de uma cláusula pétrea da Constituição de 88. No processo de erosão da Constituição que vivemos desde 2016, isso ainda não aconteceu. A mudança é possível politicamente, mas tem um custo alto, porque significa desafiar uma cláusula pétrea.
IHU On-Line – Alguns afirmam que Lula livre será diferente do Lula preso. Concorda? O que os discursos do ex-presidente na sexta-feira e no final de semana sinalizam nesse sentido?
Rudá Ricci – Não sei se dizem algo muito significativo. Lula tem que polarizar com Bolsonaro. Aliás, o mesmo fará Bolsonaro. Explico. Para Lula retornar a ser o líder supremo do centro-esquerda, dando-lhe cacife para negociar com a esquerda e o centro (maioria para ganhar eleições nacionais), precisa se apostar como articular da ofensiva contra o governo de extrema-direita de Bolsonaro. Já para Bolsonaro, como é nítido a perda de apoios políticos e apoio popular, a polarização com Lula agregaria os setores anti-petistas da sociedade. Ocorre que Bolsonaro se indispôs com muitas forças sociais e políticas que naturalmente o apoiariam. A situação de Bolsonaro é, portanto, mais delicada que a de Lula. Restará ao governo federal modular a ação de Lula, fazendo ameaças e, no limite, procurando enquadrá-lo em algum cenário de tentativa de ruptura da ordem política. É a partir deste cenário de tentativa de controle pelo governo Bolsonaro que emerge o golpe de Estado na Bolívia: ele acena para uma ofensiva antidemocrática para impor a lógica extremista de direita. Em suma: este bloco percebe o recuo de sua liderança no continente e aposta em ações mais violentas, caso a via democrática não lhes garanta mais legitimidade. A liberdade de Lula se insere neste quadro.
Luiz Werneck Vianna – Igual, ele não poderá ser, porque passou por uma experiência traumática com a solidão da prisão. Embora tenha sido muito visitado, era uma situação de limitação de liberdade severa. Isso deve ter feito ele refletir.
Primeiro de tudo, ele sai em busca do ativo dele: as primeiras manifestações dele foram todas no sentido de recuperar a militância para uma ação política. A militância está muito dispersa, mas parece que nisso ele teve algum êxito. O que não creio é que, embora ele tenha feito uma deriva à esquerda forte nos pronunciamentos, especialmente no segundo em São Bernardo, ele vá por essa linha. Penso que no momento ele está à procura de preservar o seu ativo que está no PT e nos aliados à esquerda que o PT fez ao longo dos anos: PCdoB, PSOL, e a novidade do Partido Comunista Operário – PCO, que é uma novidade mais anedótica do que qualquer outra coisa, porque o partido não representa nem os operários nem os comunistas. Mas não creio que ele vá persistir nesta linha de radicalização à esquerda.
Agora, a polarização do país não vem dele. Ela nasce com o governo Bolsonaro, que é um governo que nasce com a intensão de mudar o país de “cabo a rabo”, as suas histórias e suas tradições. Neste sentido, ele polarizou com o país tal como o conhecemos e com a pretensão de erradicar pela raiz os fundamentos que até então inspiraram a nossa formação.
IHU On-Line - No último final de semana, ocorreram manifestações nas ruas contra e pró Lula. A polarização e a radicalização do último pleito eleitoral tendem a aumentar a partir de agora ou o cenário tende a ser diferente?
Roberto Dutra Torres Junior – Eu dou um sentido diferente ao que tem sido atribuído aos conceitos de polarização e fragmentação. Na minha visão, o maior problema da democracia brasileira é a ausência de uma polarização real e efetiva entre programas, partidos, lideranças e organizações partidárias capazes de representar no debate político essas posições programáticas, essa polarização. Para mim, a polarização é uma coisa necessária e boa para a democracia, dentro de certos limites, obviamente, quando ela não impede a conciliação de atores e partidos. Mas o maior problema da nossa democracia é a ausência de polarização.
O que temos é um cenário maior de fragmentação. Até agora a oposição ao Bolsonaro não tinha uma liderança forte, não tinha uma voz potente e, inegavelmente, o Lula - independentemente de eu concordar ou não com o que ele diz – tem uma voz potente como nenhuma outra da oposição. Então, de fato, o Lula cria um cenário de maior polarização com o Bolsonaro. Isso fortalece o Bolsonaro, porque a polarização fortalece os dois polos. Bolsonaro estava até agora sofrendo num ambiente de fragmentação e não de polarização.
O que é típico de um ambiente de fragmentação é a direita e a esquerda fragmentadas. Bolsonaro conseguiu polarizar com o PT nas eleições, mas acabada a eleição, nesse quase um ano de governo, a coalizão política dele criou problemas externos justamente por conta da ausência de um polo forte do outro lado. Então, do outro lado havia uma oposição fragmentada, que ainda está fragmentada, porque o Lula não resolveu nada e nem acho que pode resolver tudo, mas a presença dele cria uma perspectiva de desfragmentação da oposição e isso obriga, automaticamente, a direita a se unir em torno do polo mais potente, que ainda é o Bolsonaro. Então, de fato, o Lula cria um ambiente de polarização, com uma radicalização discursiva, programática, ideológica de ruptura com a democracia. Mas é bom deixar claro que o Lula é alguém com muitos limites, mas nunca desafiou o estado democrático no poder; quem faz isso é o Bolsonaro. Portanto, essa estratégia de dizer que o Lula é o radical de esquerda e o outro de direita, é uma falácia.
Rudá Ricci – Dependerá mais da habilidade de Lula e das lideranças das grandes organizações populares e movimentos sociais. Bolsonaro apostará na polarização para sua própria sobrevivência. Lula, momentaneamente, também ganha com a polarização porque aglutinará toda oposição a Bolsonaro, oposição que ganha adeptos desde o início do ano. Contudo, em determinado momento, se o bloco oposicionista ganhar musculatura, talvez a tática seja outra, não a da polarização, mas a de desconstrução do bolsonarismo.
Luiz Werneck Vianna – O que já ocorreu é que o projeto Bolsonaro de mudança radical do país encontrou uma oposição eloquente, a do Lula. Isso certamente vai elevar a temperatura política do país; já está elevando.
IHU On-Line – De outro lado, diante da falta de programas, a polarização pode impactar na análise política da realidade brasileira e na busca de prioridades para o país neste momento, como o crescimento econômico e inclusão social?
Roberto Dutra Torres Junior – O problema não é a polarização, mas a ausência de diferença programática e de clareza programática. Esta é a principal questão do que vai ser o Lula livre. Infelizmente, o Lula e os governos do PT não tiveram nenhuma ousadia programática, nem um programa de transformação econômica e social do Brasil e agora ficamos pensando se o Lula vai falar para o passado ou para o futuro. Se falar para o passado, é para idealizar um período que teve muitos méritos, mas não foi capaz de promover um salto estrutural na economia e na sociedade brasileira como um todo. Essa polarização que está agora na figura do Lula e do Bolsonaro pode virar uma polarização puramente discursiva entre dois líderes carismáticos destituídos de programas reais sobre como mudar o país. O Bolsonaro de fato não tem esse programa, não representa nada, e o Guedes é como um projeto paralelo, mas o Lula também não representa nada de concreto. Lula representa uma ideia vaga de inclusão social. Mas é uma ideia que nunca deixa de ser vaga, enquanto ela não tiver um programa real de como o Brasil vai ficar mais rico e inclusivo ao mesmo tempo. Os governos do PT não foram capazes de superar o subdesenvolvimento econômico e essa é uma questão programática. O Lula diz que tem uma reação nacionalista ao projeto entreguista de Bolsonaro, mas essa reação nunca deixou de ser uma retórica durante os governos dele.
A minha expectativa é que isso, de repente, possa deixar de ser apenas uma retórica. A questão é que o Lula e o PT não dispõem de programas e de uma visão de Brasil suficientes para isso e aí precisariam ampliar não só para fora do PT, mas da esquerda, quais são os caminhos econômicos, porque a principal questão no Brasil hoje é como superar a estagnação econômica. O PT pode muito bem criticar o governo Bolsonaro e dizer que é um desastre, mas o PT não tem um programa econômico alternativo viável. Ele teve a chance de implementar esse programa, não o fez e até agora não demonstrou nenhuma reação intelectual no sentido de criar algo novo.
Rudá Ricci - Há dois cenários possíveis para o Brasil: o de retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico ou o de radicalização. A radicalização é a aposta dos governos brasileiro e norte-americano. Para tanto, para ações exageradas e de ruptura com a ordem política terem algum apoio social, precisam insuflar os ânimos. Já a construção de um projeto de desenvolvimento inclusivo caminha em outra direção, na da construção de consensos. A questão é que ambos se encontram em algum lugar da política. A pergunta incômoda é: seria possível construir um projeto de desenvolvimento inclusivo e autônomo sem confrontar o projeto belicista da extrema-direita? É possível desfazer o pacto entre forças policiais e de repressão com lideranças pouco preparadas e histéricas da política nacional?
IHU On-Line - Após a soltura do ex-presidente Lula, o presidente Bolsonaro determinou que seus ministros não se pronunciassem sobre a decisão do STF e ele próprio declarou que não vai rebater as declarações do ex-presidente Lula, mas já fez vários comentários em resposta às declarações do ex-presidente. Como o presidente e a ala bolsonarista tendem a lidar com a presença de Lula no cenário político?
Roberto Dutra Torres Junior – Ele tem vários problemas. A única vantagem é que a presença do Lula no cenário político facilita uma reaglutinação da direita em torno do Bolsonaro. Esse é o único ponto positivo. O primeiro ponto negativo é que a popularidade pessoal de Lula é muito alta e isso pode ser um recurso político para desafiar o Bolsonaro no embate direto. Além disso, Lula tem a vantagem de saber fazer o embate na rua. Obviamente, Lula tem capacidades políticas muito mais elevadas do que Bolsonaro, mas Bolsonaro não é idiotia na política, ao contrário do que muitos dizem. Ele é intelectualmente míope, mas sabe fazer política. Mas o Lula sabe muito mais, inclusive, na arena das ruas e na política afetiva com a maioria. Lula sabe agregar e o grande desafio nesta luta entre Lula e Bolsonaro é quem vai conseguir ganhar a classe média. Bolsonaro consegui ganhar a classe média nas eleições, ainda tem o apoio significativo de parte dela, mas a classe média não é coesa politicamente. As questões materiais contam muito.
Paulo Guedes não tem uma política econômica que privilegia a classe média, então, Lula tem uma possibilidade grande de avançar nesse terreno. A polarização pode favorecer Lula. Bolsonaro tentar ignorar Lula, como pareceu ser no primeiro momento, não funcionou. Logo em seguida, dois dias depois da libertação do Lula, ele começou a atacar, e Moro também, demonstrando que a liberdade do Lula incomoda muito, porque Lula sabe ampliar, articular. Bolsonaro é um político para um gueto e Lula sabe sair do gueto. Lula não tem um programa, não tem um discurso capaz de visualizar o que deve ser feito em termos de políticas públicas, mas sabe o que deve ser feito em termos de convencer pessoas e agregar politicamente.
Rudá Ricci - Polarizando. É sua única saída. Bolsonaro não tem a experiência, a competência política, a capacidade de negociação que Lula tem. É um aprendiz de feiticeiro não muito atento. Gosta de escatologia, o que ofende o imaginário místico nacional. Por este motivo, vem se fechando em sua bolha de extrema-direita. O núcleo duro desta bolha gira ao redor de 12% do eleitorado, o que não elege presidente. Mas ele tem a caneta e pode oferecer vantagens a alguns apoiadores. O que nos leva a pensar que pode variar entre 12% e 20% do eleitorado. Talvez, um pouco mais. A polarização o colocaria o tempo todo na pauta do dia. Reduziria a projeção de forças de centro-direito ou da direita civilizada, que aceita a democracia e a disputa ideológica. Estamos falando da extrema-direita bolsonarista, aquela que se alimenta da mobilização frenética da sociedade permanentemente. Este é o sonho de Bolsonaro.
Luiz Werneck Vianna – Tem coisas que são enigmáticas. Qual é o comportamento das Forças Armadas em relação a tudo isso? Como eles estão observando esse quadro? Porque no limite está posta a volta de um regime militar do tipo AI-5, como já foi preconizado por fontes palacianas e pelo filho do presidente da República. Se isso tem passagem ou não, seria uma aventura dos infernos, porque o Brasil não é mais o país de 64. O país mudou muito para o bem e para o mal. Esse enigma vamos ter que resolver nos processos. Agora, não convém provocar a resolução de uma maneira que seja desastrosa para o país. O que penso é que apareceu uma oportunidade nova para o centro político.
IHU On-Line – Em que sentido?
Luiz Werneck Vianna – Um centro liberal e progressista, conforme está se dizendo aí. Apareceu uma oportunidade para este lugar que estava vazio e passa por políticos, personalidades e movimentos sociais que o suportem, que o levem à frente.
IHU On-Line – Quem pode assumir este lugar?
Luiz Werneck Vianna – A personificação disso está complicada, mas o lugar apareceu; alguém vai ocupá-lo. As oportunidades estão aí e é evidente que não sou eu quem está dizendo isso de um lugar obscuro da academia brasileira; isso está presente inclusive nos editoriais dos grandes jornais do dia de hoje [12-11-2019]. Não interessa ao país uma conflagração, especialmente uma conflagração que não tem maiores propósitos. Vamos alinhar o país à política externa americana do Donald Trump? Será que ele ganha as eleições? Será que ele não será objeto de um impeachment?
E mais: o caso do Chile deveria ser exemplar de como a política do ministro Guedes levou a um levante popular no Chile pelo aumento da passagem do metrô, de tal forma que a as tensões e os conflitos se tornaram insuportáveis. O presidente [Sebastián] Piñera, apesar de todos os recursos que tem promovido, inclusive a admissão de uma nova Constituição, vai conseguir estar à frente do governo até o final do seu mandato? Esse caminho ensina que a política à la Chicago Boys, que foi levada a cabo no Chile, apresenta frutos muito venenosos a médio e longo prazo. Essa leitura está sendo feita.
Há outras possibilidades de cuidar do desenvolvimento capitalista do país com as instituições políticas funcionando, com a valorização da democracia política, e com políticas sociais inclusivas. Não há incompatibilidade entre políticas sociais inclusivas e o regime capitalista. Depende de que regime capitalista estamos falando. Se for dominação autocrática, é uma coisa, tal como ocorreu no Chile de [Augusto] Pinochet. A partir de uma convivência democrática, é outra coisa, são outras possibilidades de convivência, de educação dos conflitos e de solução e de admissão dos conflitos, da legitimidade deles.
IHU On-Line – Como o senhor está analisando a crise na Bolívia, as denúncias de fraude no processo eleitoral pela Organização dos Estados Americanos - OEA e a própria renúncia do ex-presidente Evo Morales e várias autoridades do país?
Roberto Dutra Torres Junior – O Chile é claramente um exemplo de falência de uma democracia sem constitucionalismo.
O processo de democratização do Chile referendou a Constituição de Pinochet, neoliberal, que bloqueia a garantia de direitos sociais pelo Estado. O que o povo chileno conseguiu foi aglutinar as diversas demandas num processo que é o mais promissor de todos, que é o constituinte. É claro que é um processo indefinido, mas o processo constituinte é sempre um processo revolucionário do ponto de vista político, porque ele propõe refundar a República, o Estado, direitos e deveres, e a expectativa do Chile é uma oportunidade única de romper com o Estado constituído na ditadura e que não foi desconstruído pelas democracias. Tenho um leve otimismo em relação ao Chile e isso vai depender das forças políticas organizadas porque quem faz a Constituição não é o povo na rua, mas seus representantes.
No caso da Bolívia, tudo ainda é muito confuso e não tenho condição de analisar. Aparentemente, parece que há uma tentativa de golpe militar e houve um processo de mudança da Constituição que é difícil de avaliar se é ou não uma tentativa de golpe, a questão da fraude e quais são os procedimentos jurídicos que deveriam ser adotados. Aparentemente, é um golpe porque haveria mecanismos jurídicos para realizar uma nova eleição sem a precipitação militar que acabou acontecendo. Mas a história ainda não teve um desfecho e os movimentos sociais continuam organizados.
Luiz Werneck Vianna – Isso incendeia a América Latina; não de maneira catastrófica, mas são focos de incêndios que mostram caminhos a não seguir, caminhos perigosos. Evo Morales, apesar de ter feito um governo interessante sobre vários aspectos, econômico e social, se perdeu na política. É um erro a insistência de permanecer no poder. Ele não pensou e não trabalhou uma possibilidade de transferir seu legado para um sucessor. O sucessor dele era ele mesmo. Até quando? Isso enfureceu a oposição e deu recursos políticos à oposição.
E como a insatisfação sempre está presente em qualquer sociedade, deu esse resultado negativo na Bolívia, o qual não sabemos onde vai parar. Imagino que os conflitos na Bolívia vão se intensificar e teremos lá um governo militar, como manda a tradição boliviana.
É este o caminho? O da intervenção militar por toda parte? Aqui temos uma semente disso, com esses acenos à volta do regime do AI-5.
A sociedade não quer, mas o filho do presidente acenou com essa possibilidade de maneira clara. Este governo que aí está nasce vocacionado para a polarização com a história do país; ele recusa a história do país, a tradição da política externa do país, recusa as formas de negociação que fizeram este país ser o que é. É um governo que só admite a sua vontade como legitima. Não tem um ano de governo e é evidente que a reação a isso é forte. Nem mesmo um Congresso como este, eleito da maneira como foi, resiste. Rodrigo Maia não tem nada que diga que é um parlamentar da cepa de um Ulysses Guimarães, mas está sendo obrigado a, pelas circunstâncias, robustecer as suas convicções democráticas. Não conheço as convicções mais profundas do presidente da Câmara dos Deputados, mas o fato é que ele vem respondendo de maneira democrática, assim como o presidente do Senado, a essas insinuações malévolas de uma volta ao regime autocrático. Eles estão defendendo a política.
Aliás, o que nos cabe defender nesta hora é a política, o processo eleitoral, os partidos, mesmos os “partidecos” que estão aí, porque eles têm uma função, um papel; pode ser que alguns deles se convertam em partidos verdadeiros.
É preciso provocar a ressurreição da política entre nós; o governo Bolsonaro tem se aplicado em eliminar a política e criar um governo autocrático e tecnocrático, com soluções tecnocráticas para todos os problemas. O projeto dele implica em que? Remoção das populações indígenas, erradicação da questão indígena do Brasil, mineração da Amazônia, destruição do meio ambiente em nome de avanços capitalistas irrisórios, de outro tempo, de outra fase do processo capitalista, de uma fase já superada. Estamos aplicados no petróleo na era da energia solar, de aproveitamento das marés, dos ventos, aplicados na mineração, na atividade extrativa que não vai gerar riqueza para a sociedade, mas apenas para grupos.
Polarizar, de verdade, é o governo Bolsonaro quem faz, primeiro com a Constituição, que ele não aceita; aceita contingencialmente, obrigado pelas contingências. Ele jurou a Constituição sem acreditar nela. O mesmo acontece com o ministro Guedes: o que ele tem na cabeça é converter o Brasil, em grande parte, livre para a predação capitalista do país. A sociedade não vai suportar isso. Ela não está suportando.
A meu ver, nós temos que fugir da polarização, voltar às nossas tradições, defender a nossa Carta, defender os princípios fundantes do nosso país, e não entrar na aventura da estigmatização da história do país. Converter o país numa América, agora, depois de 500 anos de outra história, numa América fordista, é um projeto que não tem como dar certo. De outro lado, a polarização política e eleitoral deve ser incrementada com a volta do Lula à cena política, que também tem um projeto que não passou, que foi derrotado com Dilma. Precisamos de uma alternativa diversa. Onde ela se encontra? Por ora, ela só existe no mundo quântico, mas é pegar ou largar, porque se os setores responsáveis não pegarem isso, vamos ladeira abaixo.
IHU On-Line – Então, nem Lula nem Bolsonaro. Temos que buscar uma alternativa?
Luiz Werneck Vianna – Isso. Mas vai levar tempo. Estamos diante de um quadro em que se torna necessário a intervenção de um personagem capaz de dialogar com as forças novas que surgiram no país e com a história do Brasil, que seja capaz de criar um projeto de crescimento econômico e de inclusão social. A inclusão social é o tema dominante no mundo hoje e será cada vez mais.
IHU On-Line – O senhor disse recentemente em um post que o PT precisa se libertar do século XX e da proposta de ampla conciliação de classes que desarmou a militância social do país. Com Lula livre, quais as principais estratégias do partido daqui para frente?
Rudá Ricci – É difícil sugerir o que o PT fará. As últimas duas direções perderam completamente a capacidade de elaborar estratégias que alinhem o curto com o longo prazo. Pensam olhando para o chão e ficaram absolutamente dependentes de Lula. Ora, na prática, esta situação leva à idolatria e à incapacidade de gerar novos quadros formuladores e com capacidade de direção política.
Há um dilema fundamental para o PT de hoje: o lulismo não tem, nos moldes em que foi implantado nos governos Lula e Dilma, qualquer possibilidade de ser reeditado. Isto porque tratou-se de uma atualização do modelo rooseveltiano, onde o empresariado fazia parte do tripé de sustentação do pacto desenvolvimentista (os outros vértices eram a ampliação do mercado consumidor e a concentração de recursos públicos na União). Ora, o empresariado se aliou à extrema-direita para impor uma agenda ultraliberal, que vem gerando protestos e convulsões sociais em quase todo planeta.
A Fundação Perseu Abramo, sob liderança de Márcio Pochmann, vem procurando repensar as possibilidades de desenvolvimento autônomo brasileiro (sem tutela das grandes hegemonias mundiais). O lulismo tem que ser reinventado. Lula diz que sai da cadeia mais à esquerda. Se for real, deverá ser objeto de estudo da psicologia. Lula foi sempre um conciliador. É marca de sua personalidade.
IHU On-Line – O que muda no cenário político com a soltura do ex-presidente Lula? Que articulações políticas devem ocorrer agora, tanto à esquerda, à direita, quanto no centro?
Roberto Dutra Torres Junior – O Lula tem a característica dele de, na defensiva, adotar um discurso mais radical, como ele adotou logo que saiu da prisão e também no sábado em São Bernardo. Mas todos que conhecem um pouco de política e o padrão do Lula, sabem que quando ele assume essa posição, ele também ativa suas habilidades de conciliador. Ele tem uma capacidade que ninguém mais tem, que é a de manter a militância mais à esquerda do PT e fora do PT mobilizada em torno de um projeto radical e, na prática real, conciliar com o centro e até mesmo com setores da centro-direita. Como o Lula tem essa amplitude de ação, o cenário é muito aberto e ele pode adotar uma postura mais radical se o centro se fechar em relação a ele e ao PT ou pode adotar uma postura mais conciliadora se existirem essas possibilidades.
Rudá Ricci – O Brasil vive uma situação paradoxal. Quem tem capacidade de colocar gente nas ruas – o lulismo ou a extrema-direita – não controla as instituições públicas. Mesmo o Executivo Federal parece sofrer grandes recuos, não consegue se articular no Congresso Nacional, perde popularidade (ao redor de 1% a 2% ao mês) e sofre defecções. Quem controla o Congresso Nacional é o Centrão, cujo nome é um subterfúgio para não nomear o centro-direita brasileiro, liderado por Rodrigo Maia. Ocorre que este segmento, o Centrão, não mobiliza as ruas e tem pouca liderança nacional. Assim, o campo institucional parece fortemente divorciado das ruas, do cotidiano brasileiro.
Lula procurará, pelas movimentações desses dias, retomar um campo de centro-esquerda, cujo limite, até agora, é Luciano Huck, com quem se encontrou há dois ou três dias. Na outra ponta,
o PCO e PSOL. Havia lançado uma ponte para Ciro Gomes, mas este recusou com mais uma grosseria que lhe é comum. À direita está mais complicado porque o bolsonarismo é dado ao extremismo retórico, ao conflito permanente até mesmo com seus apoios táticos e à histeria. Portanto, dificilmente agregará o campo político comandado pelo Centrão. Se isso ocorrer, teremos um país dividido em três partes: esquerda/centro-esquerda, centro-direita e extrema-direita. Como se vê, o centro e centro-direita tende a ser esmagados pela polarização. Neste cenário, partidos como PPS ou PSDB parecem sofrer mais intensamente, dado que se movimentaram nos últimos anos para a direita e acabaram cedendo seu capital político para o bolsonarismo.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum ponto?
Luiz Werneck Vianna – Diria que precisamos olhar para o mundo, para o exterior, para o que acontece na Europa, na Ásia, na África e ver para onde a balança está pendendo, quais são os lados que estão se impondo na circunstância atual; são lados democratizantes e democratizadores.
O tema da inclusão social é incontornável no mundo de hoje. O capitalismo, da maneira como é pensado, por essa modelagem dos Chicago Boys, não dá conta disso. Dá conta da acumulação de riqueza capitalista. O capitalismo precisa de uma sociedade para existir e na sua concepção vitoriana, a sociedade é destruída e com isso o capitalismo vai junto. O que vai surgir no Chile agora é a grande questão para a qual temos que atentar. Que Constituição vai ser aquela que surgirá daqueles conflitos que agora se manifestam? Eu imagino que uma Constituição diversa. Vai surgir uma Constituição inclusiva, que privilegie a saúde, a educação, a participação, vai surgir uma institucionalidade abrangente. Nós temos uma institucionalidade abrangente, que é a da Carta de 88. Ela é perfeita? Não, não é, mas vem sendo aperfeiçoada e garimpada no bom sentido, eliminando estorvos, penduricalhos corporativos e isso deve continuar a ser feito, mas a estrutura dela responde à natureza do nosso tempo, num mundo e numa sociedade.
Eu diria que nós temos que favorecer a aparição desse centro político capaz de conversar com o país, de traduzir as aspirações, preservando as suas tradições e feitos. O Brasil fez grandes feitos em sua história. Nós não somos um país de qualquer. Nós somos um país desigual, profundamente desigual, com uma indústria que não defendemos agora, temos um sistema educacional compreensivo, um sistema de saúde compreensivo, todos com defeitos, mas eles não são restritivos. Tem que defender isso. Se isso não se der, se o caminho for o da polarização política cega, podemos marchar para uma grande confrontação social. Isso interessa a quem?
Temos corporação militar capaz de bancar um novo AI-5, com todas as questões aí envolvidas: direção da economia, intervenção na questão social? Não há como. A mortalidade e a violência podem servir como um momento particular, agônico, mas cessam logo e depois tem que governar, mas governar com quem e para quem? O caminho desse centro não é fácil, nem a sua construção, nem de um eventual governo de centro, caso isso se torne uma possibilidade. Inclusive, porque há uma central no mundo hoje que conspira contra o avanço democrático das sociedades contemporâneas. Essa central tem sede, lugar e nome: é o governo Donald Trump. Enquanto ele estiver lá, eles vão continuar com essa ação interventora sobre o mundo, mas isso tem limites. Está aí a China, a Rússia, a Europa. Como se tira a China do caminho? Não tira. O que vai ser a China daqui a 30 ou 40 anos, se já é o que é agora? Temos que olhar para o mundo a partir deste ângulo, porque as coisas estão mudando na direção do favorecimento da democracia, da emergência das grandes multidões.
Por: Patricia Fachin,14 Novembro 2019 | IHU On-Line