Os jogos preservam o aspecto mais sutil da cultura. Com as artes, técnicas, ciências, religiões, eles indicam o refinamento ou o atraso de uma sociedade, com frutos políticos imediatos. É impensável a democracia ateniense sem as maneiras de exercitar o corpo e a mente praticadas pelos jovens guerreiros, depois cidadãos soberanos. A ética, disciplina hoje confundida com um sistema abstrato de valores, na Grécia começava no aprimoramento corporal. Para enfrentar os inimigos, ou deles fugir com honra, era necessário bem usar o corpo. A postura correta na batalha decidia a vitória.
Tal postura (hexis) se aprendia na tenra idade. Com o tempo, o que era somático foi traduzido (por metáfora) à mente. Aos jovens é ensinada a postura correta no pensamento. Nós sabemos: quem não aprendeu aritmética sofre quando precisa calcular. Os que, pelo contrário, bem manipulam números, adquirem automatismos preciosos naquele mister.
Professores de educação física e ortopedistas, em nossos dias, sabem a importância da postura correta. O automatismo mostra ao mesmo tempo o lado sombrio e o mais radioso da ética. Quando se aprende, de maneira errada ou certa, uma postura física ou anímica, ela tende a se repetir sem consciência. Jogador não treinado desde cedo a fazer passes e demais movimentos, mesmo talentoso, atrapalha a equipe. O fominha age de maneira automática, prejudica toda a partida.
A pessoa que aprendeu a bem jogar com o corpo e a alma tem condições éticas de exercer a cidadania com maior vigor. Ela não aceita egoísmo na equipe, mas valoriza os talentos individuais. Os jogos servem, desde longa data, para pensar fenômenos complexos como a guerra (*), a economia, a política.
Eles permitem entender os golpes de Estado e as armadilhas que os poderes imaginam em prejuízo da sociedade. A razão de Estado, sempre invocada quando se trata de enganar a cidadania, se assemelha, segundo um analista de hoje, ao jogo viciado. O governante que a usa age como o mau perdedor: se as regras do jogo não lhe são favoráveis, trapaceia em segredo e quebra a sequência da partida. Ele arranca dos cidadãos o que resta da fé pública, a base do Estado (**).
No exato século 17, em que a razão de Estado se firmou, Blaise Pascal reconstruiu, a partir do jogo, a moralidade, a política, a teologia. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Tal antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. Nela, importa a ideia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras normais na diplomacia ou de política interna, como nas escolhas para os dirigentes públicos.
Não por acaso Raymond Aron, no clássico Paz e Guerra entre as Nações (***), compara o trato internacional à estrutura do football association. Em primeiro plano, é preciso ver quantos jogadores são necessários, quais meios lícitos são facultados (podem eles tocar a bola com a mão, ou é proibido?).
Depois vem o modo pelo qual eles se distribuem no campo, como unem esforços e desarticulam o adversário. Tais pontos são primários. Ademais, temos o virtuosismo técnico e a qualidade moral dos jogadores, que não raro decidem campeonatos. Finalmente, o árbitro interpreta as regras e aplica as penalidades.
À diferença do futebol, diz Aron, as relações internacionais, movidas pelas armas e pela diplomacia, não são determinadas com precisão. Sua complexidade aumenta no acúmulo de interesses e na vontade de predomínio que nenhum Estado pode abandonar, pois ali residem a segurança e a sobrevivência para seu povo. É nesse ponto que, julgo, o grande pensador deixa de lado um elemento vital do futebol e do jogo político. Penso na torcida e nos sócios dos clubes. E nos militantes que asseguram a força das agremiações políticas. Sem torcedores não existe futebol. Sem militância, somem os coletivos dedicados à ordem pública. É por tal motivo que o ex-presidente Luiz Inácio da Silva desprezou o povo iraniano, reprimido duramente por uma ditadura policialesca, ao dizer que nas eleições ali ocorridas existiu apenas reclamação de "torcida que perdeu". Para ele, o "time vencedor" (a ditadura) se resumia aos cartolas ou aiatolás. Hoje, vista a revolta geral na região, ele não diria o mesmo.
No Brasil, em prejuízo do Estado e da sociedade, os partidos se assemelham aos clubes de futebol: cartolas açambarcam iniciativas, operam acima dos jogadores e dos que apoiam o clube. A torcida futebolística nada significa para os burocratas que mandam nos recursos financeiros, nos contratos, no elo com as federações, etc. O nome correto para a cartolagem é oligarquia senil.
Também nos partidos temos semelhante oligarquização, prevista desde o século 20 por Robert Michels e teorizada em Max Weber. Se não surgir, na suposta reforma política em debate no Congresso, uma via para democratizar a estrutura partidária (não existe aqui nem sombra das primárias que marcam os partidos democráticos do Ocidente), teremos o reforço dos defeitos éticos, entre eles a corrupção dos intocáveis cartolas políticos, que arrancam toda a beleza de nossos campeonatos e qualquer justiça das nossas eleições.
(*) Cf. Enrico Pozzi, Giochi di guerra e tempi di pace in La critica sociologica (outono/1983) p. 42 ss.
(**) Cf. Christian Lazzeri e Dominique Reynié: La raison d" Etat: politique et rationalité. (Paris, PUF, 1992) página 9 e ss.
(***) Paris, Calmann-Lévy, 2004.
Filósofo, professor de ética e filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de "O caldeirão de medeia" (Perspectiva)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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