sexta-feira, 31 de maio de 2013

Leilão da Petrobrás - entrevista Marcelo Calazans


“O governo tem uma agenda econômica inflexível e, outra social, frágil e compensatória”. Entrevista  com Marcelo Calazans

“Aprofundar o país numa agenda petroleira retira as próprias possibilidades históricas de transição. Por isso, no Fórum dos Afetados por Petróleo e Gás do Espírito Santo, estamos construindo a campanha por 'áreas livres de petróleo', onde a sociedade possa ter o direito de dizer 'não' à exploração desenfreada”, o sociólogo.
Foto: www.inacio.com.br
11ª Rodada de licitações para exploração de petróleo em blocos de terra e mar, que ocorreu no dia 14-05-2013, “reabre de forma voraz, sob ritmo acelerado e sem limite, o ciclo de injustiça ambiental implicado na expansão do modelo energético e societário estimulado pelo governo, em pacto com as gigantescas corporações petroleiras e seus complexos associados, interessados na exploração de um valiosíssimo bem comum, que é o petróleo”,....a exploração de petróleo no Brasil está cada vez mais “primarizada, focada na exploração de recursos in natura ou, no máximo, na produção de semielaborados”, reiterando a “agenda econômica inflexível, e uma agenda social frágil e compensatória”. 

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Que avaliação faz da 11ª Rodada de Licitação da Agência Nacional do Petróleo – ANP?
Foto: www.portalcostanorte.meionorte.com
Marcelo Calazans – A 11ª Rodada da ANP reabre de forma voraz, sob ritmo acelerado e sem limite, o ciclo de injustiça ambiental implicado na expansão do modelo energético e societário estimulado pelo governo, em pacto com as gigantescas corporações petroleiras e seus complexos associados, interessados na exploração de um valiosíssimo bem comum, que é o petróleo.
O alcance da 11ª Rodada é vasto, articulando-se conjunturalmente com a desconstrução dos códigos Mineral e Florestal, com a gestão portuária, rodoviária e ferroviária, com a expansão da sociedade do automóvel, dos ansiolíticos e dos agrotóxicos. Burocracia estatal e políticos corruptos, petroleiras nacionais e estrangeiras, siderúrgicas, mineradoras são os mais interessados na exploração rápida e a todo risco do petróleo do subsolo. Por outro lado, a 11ª Rodada já expõe suas zonas de sacrifício: assentamentos de reforma agrária, territórios tradicionais indígenas e quilombolas, camponeses e de pescadores artesanais, bem como áreas de preservação na terra e no mar, a mobilidade urbana e a segurança alimentar.
.......................................................................
IHU On-Line – Os ambientalistas criticaram a 11ª Rodada de Licitações porque dos 289 blocos que serão ofertados 170 estarão em bacias situadas na margem equatorial, desde Rio Grande do Norte ao Amapá, e pouco se conhece dessa região. O que se conhece dessas regiões? Quais os impactos prováveis com os blocos leiloados no Espírito Santo?
Marcelo Calazans – No Espírito Santo, a exploração dos blocos comprados pela gigante norueguesa Stat Oil vai acelerar a redução dos territórios da pesca artesanal, impedindo o acesso de pescadores às rotas do pescado, afetando diretamente o trabalho e a segurança alimentar de dezenas de milhares de homens e mulheres que vivem da pesca e dos mariscos, além de ameaçar diretamente uma área de excepcional valor na costa capixaba, o recife de Abrolhos, área da Baleia Jubarte. Em solo, uma gigantesca infraestrutura está sendo construída, ao longo da costa capixaba, com recursos públicos do PAC, do BNDES, atraindo grande mão de obra, volátil, temporária, precarizada, afetando pequenas e médias comunidades com problemas como prostituição e violência. São vários terminais de gás e óleo, além de dutos cruzando todo o Estado, o estaleiro Jurong; em Aracruz-ES, as siderúrgicas como aSamarco e o porto em Anchieta, os terminais de logística e administrativos na região metropolitana de Vitória, a fábrica de fertilizante em Linhares.
O petróleo aciona as demais corporações de uma economia cada vez mais primarizada, focada na exploração de recursos in natura ou, no máximo, na produção de semielaborados. No Espírito Santo, o boom petroleiro aciona uma lógica perversa: mais petróleo, mais ferro, mais aço, mais fertilizante químico para o eucalipto e a cana-de-açúcar, mais greenwashing (lavagem verde) de um ambientalismo empresarial e compensatório, como do Projeto Tamar, um claro marketing verde da Petrobras. A corrupção é outro elemento intrínseco ao setor petroleiro, haja vista a quantidade de políticos, prefeitos, vereadores, gestores públicos processados pelo Ministério Público e literalmente encarcerados pela Polícia Federal por desvio de royalties e cobrança de propinas.
IHU On-Line – Caso ocorra um vazamento de óleo durante a extração de petróleo nessa região, quais os riscos de serem atingidas as unidades de conservação?
Marcelo Calazans – Nos casos de vazamento, sequer existe um Plano Nacional ou Estadual de Contingência! Incrível que já estamos na 11ª Rodada da ANP e até hoje sequer está em pauta a construção de um Plano de Contingência. Estamos falando de produtos altamente inflamáveis e poluentes, de enorme risco de uso, exploração, com setores produtivos cada vez mais terceirizados, onde a responsabilidade deveria ser de extrema cautela. Os trabalhadores que operam as plataformas obsoletas que estão offshore correm enorme risco, bem como todas as comunidades que se localizam próximas da costa e ao longo dos dutos e instalações.
Uma fábrica de fertilizante, por exemplo, como a de Palhal, em Linhares, é uma bomba em potencial, tal como vimos explodir na Índia e nos EUA.
Uma exploração de alto risco, no mar, pode gerar acidentes como o da Chevron na Bacia de Santos, da BP no Golfo do México e Sul dos EUA, ou o vazamento da Petrobrás na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Onde há exploração de petróleo e gás, sempre haverá vazamento. A tecnologia jamais consegue prever in situ o que manipula artificialmente em laboratório. É uma enorme irresponsabilidade do Estado e das corporações acelerar o ritmo de exploração sem nenhum debate acumulado com a sociedade sobre o Plano de Contingência. Depois que ocorre o vazamento, no site da ANP, do Ibama, dos IEMAS e das empresas, não há nenhuma descrição mais detalhada do que houve de fato e, principalmente, não há nenhuma garantia de “não repetição”. A multa, quando aplicada, em geral, não é paga, e quando paga, não compensa quem realmente foi afetado. É um processo injusto.
IHU On-Line – Uma fonte do governo federal destacou que os blocos estão a mais de 50 quilômetros da costa e a profundidades superiores a 50 metros do solo marinho. Por isso, acredita que não haverá problemas com as licenças. Como vê essa declaração?
Marcelo Calazans – A declaração do governo federal é feita sob curiosa e simbólica condição de réu-confesso. Liberam as licenças de exploração, flexibilizam as leis ambientais, violam direitos de trabalhadores e acordos internacionais de proteção de comunidades afetadas, desmontam códigos. E tudo isso sequer é julgado. O “desenvolvimentismo a ferro e fogo” não encontra obstáculos para se instalar e expandir. É o que o Estado e as empresas chamam de “segurança jurídica”. Na verdade, trata-se de uma justiça dúbia, pois, do outro lado, pescador que acessa áreas pesqueiras invadidas pela exploração tem seu barco retido e sua documentação interditada. Camponeses que criam galinha, porco ou plantam próximos dos dutos são multados. Toda e qualquer resistência é criminalizada ou ameaçada, como o que se passa com os pescadores da Bahia de Guanabara, alguns já mortos por conflitos com empreiteiras e empresas de vigilância da Petrobrás. Para os interesses empresariais tudo é permitido.
IHU On-Line – O que isso demonstra sobre a agenda ambiental do governo brasileiro?
Marcelo Calazans – Agenda Ambiental? O governo tem uma agenda econômica inflexível, e uma agenda social frágil e compensatória. O PAC é o símbolo mor dessa agenda. Torna imperativo o crescimento acelerado da economia, como se o fator redistributivo fosse dependente deste crescimento unilateral e insustentável. O que o país já produz poderia ser muito melhor distribuído, de forma transparente e radicalizando a democracia participativa. Talvez não seja necessário expandir desenfreadamente a exploração do petróleo para melhorar a educação, a saúde, a política de segurança alimentar, para realizarmos as reformas agrária e urbana. E, uma vez explorado nesse atual temeroso ritmo, o que garante que a renda gerada seria de fato utilizada para a construção da seguridade social?
Os exemplos já instalados em Campos e Macaé, no norte do Rio de Janeiro, bem como na Baixada Fluminense ou Recôncavo Baiano, demonstram que territórios petroleiros são áreas de alta concentração de renda e poder, em detrimento do bem-estar da população residente. A agenda do governo passa ao largo da Justiça Ambiental, e aposta, por exemplo, na universalização do automóvel, quando as cidades já estão com trânsitos totalmente congestionados. Carros superpotentes circulam em velocidade de bicicletas e cavalos! Uma política totalmente anacrônica, mas articulada aos lucros das grandes empresas automobilísticas e da construção urbana de elevados, viadutos, megarrodovias e túneis.
IHU On-Line – É possível explorar o petróleo e preservar o meio ambiente?
Marcelo Calazans – Não creio que seja possível, em sentido restrito, explorar petróleo e preservar o meio ambiente. A exploração será cada vez mais algo de alto risco, porque as reservas estão cada vez mais distantes, nos polos, na Amazônia, em grandes profundidades marítimas. Por isso o petróleo deve ser usado de forma muito, mas muito seletiva, pois é um bem comum extremamente valioso para estar sendo queimado em engarrafamentos urbanos ou na fabricação de agrotóxicos, por exemplo.

Não se trata de acabar de vez com o uso do petróleo, mas de perguntar para que estamos fazendo uso dele. Por exemplo, todo o petróleo de um desses blocos não é suficiente para abastecer uma semana de guerra no Afeganistão! Para cada barril produzido, segundo Oilwatch, são oito barris de água! Devemos perguntar então: Para que e para quem vão se expandir a exploração e a produção de petróleo e gás? O petróleo será sempre mais valioso (e nosso!) quando no subsolo e, talvez, seja esta uma decisão e um bem comum que devemos deixar para as gerações futuras. 

Espero que tenham mais responsabilidade e cuidado com o planeta e a sociedade. A crise climática, provocada justamente pela queima de combustíveis fósseis, aponta um necessário cenário de transição energética. Vamos esperar a última gota de óleo, do último poço, para pensarmos a transição? Aprofundar o país numa agenda petroleira retira as próprias possibilidades históricas de transição. Por isso, no Fórum dos Afetados por Petróleo e Gás do Espírito Santo, estamos construindo a campanha por “áreas livres de petróleo”, onde a sociedade possa ter o direito de dizer “não” à exploração desenfreada: áreas pesqueiras, comunidades litorâneas, quilombolas, camponesas, áreas de assentamento de reforma agrária, áreas de grande sociobiodiversidade. 

Não queremos exploração nos territórios da utopia! O que está em debate é o próprio horizonte da transição energética. Até quando vai a expansão petroleira? Em que ritmo? Para que usos? Quando se iniciarão a redução gradativa da exploração e o uso? E quando se iniciará sua concomitante redistribuição na sociedade brasileira? Quais as fontes mais apropriadas para cada território e uso? Não deixar que a expansão se realize por inteiro, em ritmo acelerado, pode ser um primeiro passo para uma estratégia consequente e responsável de Justiça Social e Ambiental.
Marcelo Calazans é sociólogo, coordenador do Programa Regional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE no Espírito Santo, membro da Rede Deserto Verde e da Rede Latino-Americana contra Monocultivo de Árvores.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

As aparências e a política (Luiz Werneck Vianna)






Dá para sentir que há algo de estranho no ar, embora cada eixo aparentemente gire nos seus gonzos e a marcha das coisas siga caminho previsível, caso da candidatura à próxima sucessão presidencial da presidente Dilma Rousseff, detentora de altos índices de aprovação popular e pretendente legítima à reeleição. A inédita antecedência com que foi anunciada, longe de contrariar esse diagnóstico feliz, deveria ser vista, insistem alguns, como a sua confirmação. Contudo, se aparência e essência coincidissem, um grande pensador costumava dizer, não haveria lugar para a ciência - o sentido das coisas estaria sempre à mão, expondo-se de modo transparente ao observador.

Não são poucos os sinais que, no mundo desencantado da política brasileira, têm escapado à nossa vã filosofia, como as motivações que levariam a uma candidatura presidencial o governador de Pernambuco, Eduardo Campos -fora pretensões dinásticas de herdeiro de um cabedal político regional -, parceiro seguro do PT em três sucessões presidenciais e que, ainda hoje, integra com quadros do seu partido, o PSB, posições relevantes na coalizão governamental.

Se, na superfície lisa dos fatos, Dilma e Lula mantêm entre si relações fraternas e solidárias, a cogitada candidatura do governador Eduardo Campos já deixa um rastro de sombras na sua esteira, uma vez que inequivocamente a desconstrução que empreende da imagem de Dilma e do seu governo - por motivos que permanecem difusos - não se faz acompanhar de uma rejeição do seu histórico de firme aliado do seu antecessor.

De outra parte, a situação de altos dirigentes do partido hegemônico, condenados a pesadas penas pela Justiça, ora na iminência de serem recolhidos à prisão, amarga uma parte da militância partidária, cujas reações fogem à previsão, especialmente diante da neutralidade da postura presidencial quanto à sua sorte.

Noutra ponta, da base congressual do governo, provêm sinais de mudança, como no caso dos emitidos ao longo da tramitação dalegislação dos portos, a qual se arrisca em movimentos de autonomia, sem que se saiba ao certo se movida pela pressão de grandes interesses ou pelo legítimo objetivo de ganhar luz própria. De qualquer forma, a aprovação pelo Congresso Nacional dessa regulação reforça a posição da presidente e do seu principal aliado, o PMDB.

Para ressaltar ainda mais a ideia de mistério que ronda a política brasileira, inteiramente distante do prosaísmo da sua sociedade, boa parte dela entretida no consumo e nos apetites desencadeados pelo empreendedorismo, um espectro vagueia pelos palácios do poder nos lugares que já foram seus em tempos idos, assombrando todos com suas aparições.

Na economia e na política, dois temas de complexa administração prometem fazer-se dominantes, ambos tendentes a dramatizar as circunstâncias em quejáse desencadeia, precocemente, a sucessão presidencial: a inflação, em meio a uma situação de baixo crescimento do produto interno bruto (PIB), e as relações entre os Poderes da República. A pilotagem da primeira no sentido de evitar uma escalada inflacionária depende de uma feliz e oportuna intervenção da equipe econômica, da qual depende o destino da campanha pela reeleição. A outra, por sua vez, está entregue aos azares da fortuna, inclusive porque se encontra contaminada pelos resultados da Ação Penal470. No caso, basta lembrar que dois dos condenados por ela ocupam posições na estratégica Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Para além das repercussões desse episódio circunstancial, a questão da separação entre os Poderes, em particular na forma concebida pela Carta de 1988, que reservou papel destacado ao Poder Judiciário, tem sido objeto de controvérsias na esfera pública, no campo acadêmico e no interior do Parlamento, de que é exemplo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.° 33, de autoria do deputado do PT do Piauí Nazareno Fonteles, que visa, entre outros objetivos, a submeter as emendas vinculantes instituídas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à aprovação do Parlamento, ora paralisada por decisão do presidente da Câmara, deputado Henrique Alves.

Tal tema, com sua carga negativa para a vida institucional, tem data certa para reaparecer, logo que a Suprema Corte venha a confirmar as sentenças condenatórias aos réus daAção Penal 470, o que deve ocorrer nos inícios da alta estação do processo sucessório, quando o Parlamento tiver de decidir sobre a cassação dos mandatos dos parlamentares apenados, cumprindoadecisãojudicial ou reabrindo a questão em seu plenário. Nessa hora, é de esperar que o caso mude de escala, com a discussão sobre a sorte dos mandatos dos envolvidos embaralhada com a denúncia de um governo de juízes e da judicialização da política, em nome de uma alegada defesa do princípio da soberania popular, que a ação dos tribunais estaria pondo sob ameaça.

Se os pequenos abalos e sinais podem apenas significar variações momentâneas, eles merecem ser registrados, ao menos se um autor atilado como Tocqueville deva ser levado na devida consideração. Na entrevista concedida pelo ex-presidente Lula ao sociólogo Emir Sader na coletânea de artigos coligidos em 10 anos de Governos Pós-Liberais no Brasil (Ed. Boitempo, São Paulo, 2013), fica a sugestão da necessidade de um retorno aos valorespartidários originários, que teriam sido banalizados por causa das disputas eleitorais. Tarefa difícil para a presidente Dilma, às voltas com a montagem de um largo sistema de alianças a fim de disputar a reeleição, logo ela que não se encontra na galeria dos heróis fundadores. Decerto são apenas palavras, e tanto elas como os sinais podem ser de sentido aleatório, desses a que somente se deve conceder atenção com reservas. Mas, sabe-se lá, pode haver método nessa loucura.

Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio

Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Que porto é esse, senhora dos navegantes? (Fernando Gabeira)



Desembarco mareado nesta nova estação do progresso. Sou pela abertura dos portos e não vejo argumento mais forte do que centenas de caminhões engarrafados esperando o momento de exportar sua carga.

Chego mareado não pelo balanço das ondas, mas pelo espetáculo agitado em terra firme. Um longo psicodrama que não pude acompanhar em todos os detalhes por causa das tarefas cotidianas. Mas já o pressentia. Para articular seu governo na nave do Congresso, a senhora escolheu Ideli Salvatti. Com as características da nova ministra, a escolha a transformaria rapidamente de Salvatti em Afundatti: independentemente de suas qualidades, simplesmente não é a pessoa para o cargo. Pode ser amiga, fiel, apaixonada pela causa, mas, que diabo, isto é uma República! Em vez de elevar o nível da política, como se pede a uma presidenta, ela a joga no chão e a pisoteia com o salto alto.

O mais impressionante, à distância, é o reality show no Congresso. Conheço alguns personagens, da política fluminense, e não acreditava no que lia: Eduardo Cunha, guerrilheiro que obriga o governo a recuar. Como assim? Eduardo Cunha fazendo emboscadas, dispersando quando o inimigo se concentra, concentrando-se quando o inimigo se dispersa?

Eduardo Cunha, o líder do retrocesso, diziam algumas outras notas. Será? Cunha não se bate pelo progresso nem pelo retrocesso. Seus parâmetros são outros. Lembro-me de uma sessão que ele presidia. Discutimos e tive a sensação de que não estava me olhando. Disse: "Por favor, olhe para mim". E ele: "Estou olhando". Percebi, subitamente, que olhava sem olhar. Ele falava de dentro de uma caverna.

Garotinho, pensando em Cunha, chamou a emenda dos portos de emenda dos porcos. Foi sua contribuição. Saiu quase ileso no outro dia, quando Ronaldo Caiado afirmou que ele, Garotinho, tinha cheiro de porcos.

Nada como o tempo para serenar os ânimos. Cheirar não é ser. Abre espaço para um acidente, ter passado por um chiqueiro, posado para uma foto com porquinhos no colo.

Imaginem essa confusão numa atmosfera fechada, uma espécie de abrigo antiaéreo onde se entra e sai sem ver a passagem do dia para a noite, o próprio amanhecer. Pizzas, frangos, um batalhão de alimentos entra pelos corredores e deságua na cantina abarrotada. Cochilos, intervalos para o futebol, é verdade isso que a imprensa mostrou. E, naturalmente, os gases: 500 pessoas reais concentradas no mesmo espaço, disputando os mesmos sofás. O que importam esses detalhes para a história da modernização dos portos? Se o preço de distribuir renda é degradar a política, por que não usar o mesmo raciocínio para desatar o nó no comércio exterior?

Pelo rádio ouço uma comentarista lembrar que a emenda dos portos seria aprovada mais rapidamente no Senado, pois os senadores, mais velhos, não aguentariam a maratona. Como apenas seis horas bastaram para rever algo que os deputados levaram dias para concluir, supõe-se que têm uma invejável juventude intelectual. Falsa suposição. Os senadores fazem o que quer o governo. Garantidos suas verbas e seus cargos, nada têm a temer, exceto um colapso do serviço de chá.

O episódio da emenda dos portos mostrou mais uma vez o descompasso entre o crescimento econômico e a qualidade política. Acho esse caminho insustentável. Mas posso estar equivocado, aplicando uma visão dinâmica a algo que tende a sobreviver, se essa for mesmo a escolha nacional, por comodismo ou indiferença.

Confrontado com as expectativas da redemocratização, o processo político brasileiro degradou-se. Se as previsões falharam no passado, de que adianta renová-las? Pensar o futuro, só recorrendo à ficção científica. Que bichos ocuparão as denúncias na tribuna? Antes havia o dinossauro, que se tomou simpático, o veado, que perdeu sua conotação negativa. O porco é o bicho do momento, mas o próximo pode ser a iguana, a barata ou o dromedário? Tudo é possível na enorme fazenda petista, onde os bichos se acalmam só quando sentem o cheiro do dinheiro no ar.

O drama dos portos ocorre num momento de comemoração do partido dominante, que se orgulha publicamente de elevar milhões de pessoas à classe média. Na festa, a filósofa Marilena Chaui disse que odeia a classe média por suas posições fascistas e conservadoras. Então, elevam a vida das pessoas para melhor conseguirem odiá-las?

Se a classe média é reacionária e fascista, resta procurar uma classe social democrata e progressista, salvadora. Seriam os operários os portadores da nova moral? Lula, por exemplo, beijando a mão de Jader Barbalho e dizendo que Newton Cardoso é o Pelé da política?

Com seu talento filosófico, Chaui poderia até nos convencer da tese de Lula de que não existiria poluição se a Terra não fosse redonda. Como a Terra gira e a Lusitana roda, slogan que sempre marcou o negócio das mudanças no Rio, o poluído planeta, pelo menos, está em movimento. Cedo ou tarde essa mistificação que vê o fascismo só nos outros e veste de pureza um partido corrompido até a medula pode ser desmascarada.

O discurso de Chaui, no entanto, é sintomático. Depois de impor a ideia de que a degradação política é essencial para mover o País, está tudo pronto para tratar as pessoas como se tratam os deputados no plenário. O sadomasoquismo nacional entra em nova fase. Os brasileiros da classe média são roubados de dia e insultados à noite nas tertúlias literárias do PT. Se gostam ou não, é problema deles.

Desde o início da democratização me bati pela liberdade de escolha em questões delicadas, incluída essa de gostar de apanhar. Se os eleitores preferem um Parlamento cheio de Cunhas e os empresários adoram tratar suas questões com eles, temos somente de nos resignar e esperar que combatam entre si e sejam devorados pela própria cobiça.
Aos poucos, vamos compondo um novo e inquietante dístico para a Bandeira Nacional: "Barbárie e Progresso". Salve, salve.

Em vez de elevar o nível da política, como se pede a uma presidenta, ela a joga no chão e a pisoteia.

Fonte: O Estado de S. PauloQue porto é esse, senhora dos navegantes? - Fernando Gabeira
Desembarco mareado nesta nova estação do progresso. Sou pela abertura dos portos e não vejo argumento mais forte do que centenas de caminhões engarrafados esperando o momento de exportar sua carga.

Chego mareado não pelo balanço das ondas, mas pelo espetáculo agitado em terra firme. Um longo psicodrama que não pude acompanhar em todos os detalhes por causa das tarefas cotidianas. Mas já o pressentia. Para articular seu governo na nave do Congresso, a senhora escolheu Ideli Salvatti. Com as características da nova ministra, a escolha a transformaria rapidamente de Salvatti em Afundatti: independentemente de suas qualidades, simplesmente não é a pessoa para o cargo. Pode ser amiga, fiel, apaixonada pela causa, mas, que diabo, isto é uma República! Em vez de elevar o nível da política, como se pede a uma presidenta, ela a joga no chão e a pisoteia com o salto alto.

O mais impressionante, à distância, é o reality show no Congresso. Conheço alguns personagens, da política fluminense, e não acreditava no que lia: Eduardo Cunha, guerrilheiro que obriga o governo a recuar. Como assim? Eduardo Cunha fazendo emboscadas, dispersando quando o inimigo se concentra, concentrando-se quando o inimigo se dispersa?

Eduardo Cunha, o líder do retrocesso, diziam algumas outras notas. Será? Cunha não se bate pelo progresso nem pelo retrocesso. Seus parâmetros são outros. Lembro-me de uma sessão que ele presidia. Discutimos e tive a sensação de que não estava me olhando. Disse: "Por favor, olhe para mim". E ele: "Estou olhando". Percebi, subitamente, que olhava sem olhar. Ele falava de dentro de uma caverna.

Garotinho, pensando em Cunha, chamou a emenda dos portos de emenda dos porcos. Foi sua contribuição. Saiu quase ileso no outro dia, quando Ronaldo Caiado afirmou que ele, Garotinho, tinha cheiro de porcos.

Nada como o tempo para serenar os ânimos. Cheirar não é ser. Abre espaço para um acidente, ter passado por um chiqueiro, posado para uma foto com porquinhos no colo.

Imaginem essa confusão numa atmosfera fechada, uma espécie de abrigo antiaéreo onde se entra e sai sem ver a passagem do dia para a noite, o próprio amanhecer. Pizzas, frangos, um batalhão de alimentos entra pelos corredores e deságua na cantina abarrotada. Cochilos, intervalos para o futebol, é verdade isso que a imprensa mostrou. E, naturalmente, os gases: 500 pessoas reais concentradas no mesmo espaço, disputando os mesmos sofás. O que importam esses detalhes para a história da modernização dos portos? Se o preço de distribuir renda é degradar a política, por que não usar o mesmo raciocínio para desatar o nó no comércio exterior?

Pelo rádio ouço uma comentarista lembrar que a emenda dos portos seria aprovada mais rapidamente no Senado, pois os senadores, mais velhos, não aguentariam a maratona. Como apenas seis horas bastaram para rever algo que os deputados levaram dias para concluir, supõe-se que têm uma invejável juventude intelectual. Falsa suposição. Os senadores fazem o que quer o governo. Garantidos suas verbas e seus cargos, nada têm a temer, exceto um colapso do serviço de chá.

O episódio da emenda dos portos mostrou mais uma vez o descompasso entre o crescimento econômico e a qualidade política. Acho esse caminho insustentável. Mas posso estar equivocado, aplicando uma visão dinâmica a algo que tende a sobreviver, se essa for mesmo a escolha nacional, por comodismo ou indiferença.

Confrontado com as expectativas da redemocratização, o processo político brasileiro degradou-se. Se as previsões falharam no passado, de que adianta renová-las? Pensar o futuro, só recorrendo à ficção científica. Que bichos ocuparão as denúncias na tribuna? Antes havia o dinossauro, que se tomou simpático, o veado, que perdeu sua conotação negativa. O porco é o bicho do momento, mas o próximo pode ser a iguana, a barata ou o dromedário? Tudo é possível na enorme fazenda petista, onde os bichos se acalmam só quando sentem o cheiro do dinheiro no ar.

O drama dos portos ocorre num momento de comemoração do partido dominante, que se orgulha publicamente de elevar milhões de pessoas à classe média. Na festa, a filósofa Marilena Chaui disse que odeia a classe média por suas posições fascistas e conservadoras. Então, elevam a vida das pessoas para melhor conseguirem odiá-las?

Se a classe média é reacionária e fascista, resta procurar uma classe social democrata e progressista, salvadora. Seriam os operários os portadores da nova moral? Lula, por exemplo, beijando a mão de Jader Barbalho e dizendo que Newton Cardoso é o Pelé da política?

Com seu talento filosófico, Chaui poderia até nos convencer da tese de Lula de que não existiria poluição se a Terra não fosse redonda. Como a Terra gira e a Lusitana roda, slogan que sempre marcou o negócio das mudanças no Rio, o poluído planeta, pelo menos, está em movimento. Cedo ou tarde essa mistificação que vê o fascismo só nos outros e veste de pureza um partido corrompido até a medula pode ser desmascarada.

O discurso de Chaui, no entanto, é sintomático. Depois de impor a ideia de que a degradação política é essencial para mover o País, está tudo pronto para tratar as pessoas como se tratam os deputados no plenário. O sadomasoquismo nacional entra em nova fase. Os brasileiros da classe média são roubados de dia e insultados à noite nas tertúlias literárias do PT. Se gostam ou não, é problema deles.

Desde o início da democratização me bati pela liberdade de escolha em questões delicadas, incluída essa de gostar de apanhar. Se os eleitores preferem um Parlamento cheio de Cunhas e os empresários adoram tratar suas questões com eles, temos somente de nos resignar e esperar que combatam entre si e sejam devorados pela própria cobiça.
Aos poucos, vamos compondo um novo e inquietante dístico para a Bandeira Nacional: "Barbárie e Progresso". Salve, salve.

Em vez de elevar o nível da política, como se pede a uma presidenta, ela a joga no chão e a pisoteia.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Mensalet (Marina Silva)




Nos anos da ditadura militar, vivíamos sob censura. Liberdade de imprensa era um sonho, às vezes regado com lágrimas e sangue. Conquistada ao menos uma parte da  liberdade, passamos a lutar contra o monopólio das mídias, o controle de poucas pessoas e empresas, a filtragem política e econômica das notícias e o resultado perverso: manipulação da opinião pública.

O caso clássico, que muitos lembram com certa nostalgia, é a edição do debate entre Lula e Collor nas eleições de 89. A seleção dos trechos que prejudicavam Lula ficou, na indignação de seus partidários e da opinião pública, como exemplo de uso criminoso da mídia a ser sempre repudiado.

Agora temos a internet, com liberdade e velocidade antes inimagináveis. A militância dirigida, de partidos e outras organizações, é confrontada pela nova militância autoral de indivíduos livres para defender as causas que escolhem. Também a imprensa tradicional tem que disputar opinião pública com um jornalismo autoral, avulso e diversificado.

No universo das mídias, as virtudes da credibilidade e a opinião informada convivem com os vícios dos preconceitos, mentiras e desinformação.

Dois mundos, real e virtual, se interpenetram, com invasões súbitas. Nesta semana, uma onda de pânico levou os beneficiários do Bolsa Família aos bancos, com o boato de sua extinção se espalhando sem origem nem autoria. Segue-se a troca de acusações e os donos das pranchas políticas tentam "surfar" na onda.

Acontece que o atraso também buscou o novo ambiente. Nesta semana, quando a edição maldosa do "Diário de Pernambuco" me acusando de defender o deputado Feliciano e suas ideias equivocadas ainda nublava algumas mentes e corações bem-intencionados, surgiu outra difamação tentando me associar a um criminoso do Paraná. Ao respondê-la, localizei um perfil falso que disseminava a mentira para vários sites. Depois encontrei outros perfis falsos, agindo coordenados.

Na eleição de 2010 já era visível essa militância dirigida, que depois se profissionalizou. Várias organizações mantêm suas brigadas digitais, com "editores" dos debates e notícias cujos critérios são os interesses de seus patrões. Uma investigação detalhada poderia mostrar essa espécie de "mensalão da internet", uma indústria subterrânea da calúnia.

Pessoas mais bem informadas não se enganam, especialmente quem viveu o tempo da censura e viu os casos de manipulação da mídia. Mas ainda há muita gente que não verifica as fontes e se assusta com boatos.

Enquanto esses esquemas não se tornam mais visíveis, vamos navegando e cultivando a democracia como um ambiente de aprendizado, de persistência em busca da verdade. Só ela pode honrar a liberdade que lutamos para conquistar.

Marina Silva, ex-senadora

Fonte: Folha de S. Paulo

terça-feira, 21 de maio de 2013

O paradigma estrutural do Estado hegemônico (Francisco Ferraz)






Quem se afastar do fluxo diário dos fatos políticos da conjuntura, em busca de elementos de maior permanência e maior presença ao longo da nossa História, vai descobrir os componentes estruturais da sociedade brasileira.

Hoje em dia, o que se encontra subjacente à práxis política e governamental é a dinâmica centrípeta em torno do Estado, que os governos do PT instituíram no País. Outra não era a lógica e a dinâmica do governo Sarney, dos governos militares, do governo Jango, dos governos de Vargas, dos governos da Velha República (à exceção de São Paulo), dos governos do Segundo e do Primeiro Impérios, do governo português de 1808, do governo português do período colonial e do Portugal que desembarcou das caravelas em 1500.

Quem chega ao Brasil no início do século 16 não é Portugal, é o Estado português. Não é qualquer Estado. É talvez o mais moderno de sua época. O Portugal que ocupou o Brasil, antes de aqui existir uma sociedade, era representado pelo Estado patrimonialista. Essa definição vincula o fato conjuntural da descoberta a um componente estrutural decisivo (*).

Não deve, pois, surpreender que hoje, já no século 21, questões do nosso dia a dia político como a interferência dos governos na economia, o exacerbado fiscalismo, o arraigado empreguismo, o exagero dos gastos públicos, a corrupção, a tara do adesismo político, a centralização administrativa sejam a reiteração de um padrão que esteve presente em todos os momentos da nossa História.

Do Estado patrimonialista português implantado no Brasil se originou o paradigma do Estado hegemônico, que implicava:

O poder para penetrar os demais setores da vida social e organizá-los de acordo com a lógica de seus princípios, sem ser por eles penetrado em igual medida; o poder para "metabolizar" as mudanças inevitáveis, adotando-as como a nova forma dos velhos padrões e subvertendo seu impacto transformador, pelo preenchimento do seu conteúdo com as mesmas pautas até então vigentes; garantindo, por este processo, a sua reprodução nos novos tempos.

Os sinais da hegemonia do Estado em relação às demais dimensões da vida social eram:

No sistema econômico - o poder para a determinação de objetivos não econômicos à atividade econômica e decidir sem constrangimentos "em que e como" aplicar os recursos.

No sistema social - ao manter a tutela da sociedade pela cooptação da cooptação das lideranças sociais.

No sistema político - pela centralização do poder e confusão do patrimônio público com o do governante.

No sistema cultural - mediante a identificação com valores e crenças compatíveis com o paradigma, ainda que dissociados - quando não antagônicos - das exigências de uma sociedade moderna.

Paradigma, para os propósitos dessa análise, é, então, uma configuração estrutural duradoura da sociedade, que se exterioriza em modelos com ele compatíveis e histórica e conjunturalmente determinados.

A mudança de modelos, pois, não produz mudanças de paradigmas estruturais. É nesse sentido que se pode dizer que a nossa História tem sido a história de diferentes modelos de organização política e econômica, gerados por um mesmo paradigma.

A permanência no tempo, por meio de sucessivas reencarnações do paradigma em diferentes modelos políticos, foi coadjuvada poderosamente pelo fato de que movimentos políticos e ideológicos, tanto de direita como de esquerda, conservadores ou revolucionários, compartilharam sempre os princípios básicos do paradigma: o estatismo, a desconfiança com o mercado, o autoritarismo e a inabalável convicção de que somente o Estado pode realizar o bem comum.

Já as mudanças paradigmáticas são precedidas de cataclismos sociais (guerras, revoluções, crises econômicas), que desestabilizam ou destroem as bases da configuração estrutural, vigentes na sociedade e no sistema de valores das pessoas, predispondo-as à mudança não mais de modelo, e, sim, de paradigma.

Nenhuma dessas condições até hoje se fez presente na história política brasileira. Se há uma linha de continuidade histórica identificável no Brasil, é a que registra o aumento do poder do Estado em relação à sociedade.

A contrapartida dessa crescente intervenção do Estado se tem revelado tanto mais insatisfatória em seus resultados quanto maior for o grau da intervenção.

Na realidade, é o paradigma do Estado hegemônico que está enfrentando sua exaustão. A lógica da centralização extremada está conduzindo ao que Tocqueville criticava na centralização política do Ancien Régime: a obstrução das artérias nas extremidades e o enfartamento do centro.

Ressalvadas, então, as óbvias variações conjunturais, há mais semelhanças estruturais entre os modelos políticos da colônia, do Império, da República, do Estado Novo, do regime de 1964 e do governo do PT que diferenças.

O paradigma do Estado hegemônico, que no período Collor, Itamar e Fernando Henrique começou a perder substância e poder - apesar de marcado por inconsistência, transigência e culpa -, recebeu dos governos Lula e Dilma o sopro renovador que o reinstalou mais uma vez na sua histórica posição hegemônica em face da sociedade.

Esse é o verdadeiro conteúdo da política brasileira no seu nível estrutural. No nível conjuntural, no dia a dia da política, outras são as questões que alimentam as controvérsias. O futuro do País depende, entretanto, deste sempre adiado desfecho do conflito estrutural.

(*) Simon Schwartzman, no seu artigo seminal Representação e cooptação política no Brasil, recuperando o insight de Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), aplicou o conceito weberiano de patrimonialismo como variável estratégica na compreensão da organização social brasileira.

* Professor de Ciência Política na UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton,

Fonte: O Estado de S. Paulo

Pensamento mediano (Jessé de Souza)






A professora Marilena Chauí propõe uma discussão interessante e oportuna acerca da classe média brasileira. Seu julgamento indignado é certeiro, ainda que abstrato e indiferenciado. Mais interessante que o burburinho causado é perceber a "justificação" do privilégio dessa classe para que possamos compreendê-la. Antes de tudo, o que é "privilégio"? E como ele se reproduz? Em todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, por exemplo, são explicados a partir da apropriação diferencial de certos "capitais" - que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do dia. Esses "capitais impessoais", antes de tudo o capital econômico e o capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominação social injusta.

A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o "capital econômico", mas nunca percebemos o "capital cultural". É que o capital cultural não são apenas os títulos escolares de prestígio que garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível, tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o pensamento abstrato, o estímulo à concentração - que falta às classes populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais importante que o presente, etc. Isso tudo somado constrói o indivíduo das classes alta e média como "vencedor" na escola e depois no mercado de trabalho, não por seu "mérito individual", como os indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma "vantagem de sangue", familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado.

Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência cotidiana, a falácia do "milagre" do mérito individual pode campear á vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à humilhação, como se alguém pudesse "escolher" ser pobre e desprezado. A dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Mas isso acontece exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos como França, Alemanha ou Estados Unidos.

Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio esforço, mas também "tiram onda" de que são generosas e críticas. Essa é uma fraude que um republicano americano típico jamais faria. Como isso se tornou possível? Ainda que poucos percebam, o mundo social não é apenas dinheiro e o que o dinheiro compra. O mundo social é também construído por ideias que lhe dão compreensibilidade e orientam o comportamento prático das pessoas. O Brasil moderno tem como seu "mito fundador" - mito esse que coloniza todos os partidos políticos indistintamente - uma reformulação peculiar operada por Sérgio Buarque no "mito nacional" sintetizado por Gilberto Freyre. São de Sérgio Buarque as bases ideais do Brasil que se compreende como oposição entre um Estado ineficiente e corrupto e um mercado virtuoso, santo e eficiente.

Essa ideia absurda - afinal não existe corrupção no Estado que não seja estimulada por interesses do mercado - é hoje uma espécie de segunda pele dos brasileiros, muito especialmente nas classes médias. Por quê? Porque ela confere algo indispensável ao privilegiado que é a necessária "boa consciência" que essas classes precisam ao localizar em um "outro", que ninguém define, uma "elite abstrata" que pode ser todos e ninguém, a fonte de todo mal nacional e se eximir de toda a responsabilidade. Afinal, se todo o mal está no Estado corrupto então se pode continuar, com boa consciência e se achando uma pessoa muito legal, a explorar cotidianamente o trabalho mal pago das classes baixas, que poupa o tempo da classe média para que essa possa se dedicar a incorporar ainda mais capital cultural para reproduzir, em escala ampliada, seus próprios privilégios de classe. O fundamento do privilégio da classe média é, antes de tudo, o "conhecimento" valorizado - que exige tempo para ser apropriado - indispensável à reprodução de mercado e Estado. Essa "luta de classes", invisível e cotidiana, tipicamente brasileira, ninguém vê porque nesse mundo absurdo da irresponsabilidade social também a desigualdade é culpa da corrupção e do patrimonialismo do Estado.

A ideologia do patrimonialismo - leitura, aliás, superficial e distorcida de Max Weber compartilhada por Buarque e pela maioria dos intelectuais brasileiros de hoje - domina, com sua institucionalização partidária, escolar e midiática, toda a vida política do Brasil moderno, abrangendo, por exemplo, em igual medida, tanto o PSDB quanto o PT. Essa é a ideologia da "irresponsabilidade social praticada com boa consciência", que permite encobrir todos os conflitos verdadeiros ao criar falsas oposições e, assim, silenciar as dores e sofrimentos cotidianos de uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta. A nossa classe média é singularmente perversa e infantilizada, apenas por ser o suporte social mais típico de uma visão de mundo narcísica que transforma exploração em generosidade impedindo todo aprendizado possível e toda crítica. Mas a cegueira e o atraso da consciência moral comprometem a sociedade como um todo.

* Jessé de Souza, doutor em sociologia pela Universidade Heidelberg, na Alemanha, é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Os batalhadores brasileiros - nova classe média ou nova classe trabalhadora? (Editora UFMG)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
19 de maio de 2013

sábado, 18 de maio de 2013

Estranho nacionalismo (André Singer)



Folhapress
A MP dos Portos, aprovada depois de impressionante guerra político-empresarial no Congresso, deverá marcar o governo Dilma, talvez comprometendo de maneira indelével o caráter nacional-desenvolvimentista que a presidente procurou imprimir aos anos iniciais de seu mandato.
Em primeiro lugar, porque a orientação do projeto é privatista, embora o Executivo não goste que se fale em privatização. É verdade que os portos já estavam parcialmente em mãos privadas desde a reforma de 1993. No entanto, em lugar de restabelecer o primado do Estado numa área vital, a 595 abriu o espaço dos negócios portuários para outras empresas (as quais também já operavam no setor, porém em caráter, digamos, provisório).
Daí a disputa que se estabeleceu na Câmara dos Deputados nesta semana. Os que já estavam não queriam sair. Os "de fora" queriam substituir os antigos donos do pedaço.
Como se trata de interesses que envolvem bilhões de reais, vastos recursos foram usados para mobilizar parlamentares de um lado e de outro. Empresários como Daniel Dantas e Eike Batista e conglomerados como Odebrecht e Oetker (que detém a companhia de navegação Hamburg Süd) foram alguns dos nomes famosos que circularam nas notícias da semana. Ou seja, além de aumentar a privatização dos portos, a MP acelerou a galopante privatização do Legislativo brasileiro.
Em segundo lugar, a pretexto de aumentar a concorrência, o novo marco regulatório parece ter dado a alguns gigantes econômicos benefícios de tal ordem que, no médio prazo, os portos estatais irão quebrar. É o que afirmaram o senador Roberto Requião (PMDB-PR) e, por incrível que pareça, a nota técnica da liderança do PT. Isso explica por que o partido votou em bloco a favor da medida, mas com defesas tímidas do conteúdo, apelando para uma vaga ideia de modernização, tão a gosto dos liberais.
Ao aceitar o argumento neoliberal de que só o mercado é capaz de controlar o mercado, deixou-se de lado a alternativa de reconstruir a capacidade pública para ordenar um setor-chave da economia brasileira. Em outras palavras, aprofundando o viés liberalizante da política iniciada na década de 1990, Dilma pode ter enterrado o sonho de recuperar a soberania nacional em terreno estratégico.
Ainda que possa estar satisfeita com a vitória de última hora, não creio que o instinto desenvolvimentista da presidente a deixe dormir em paz com a perspectiva acima, que o grande capital evidentemente comemora. Resta ver se, pelo menos, tantas concessões irão trazer os frutos esperados em matéria de crescimento do PIB. A conferir. 
André Singer é cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
Folha de São Paulo

domingo, 12 de maio de 2013

Presidencialismo de amarração (Carlos Melo)





‘Jabuticaba’ Afif Domingos é produto do esgotamento da política de composição de extensas maiorias no Congresso, diz professor

Ivan Marsiglia

A nova jabuticaba política nacional, Guilherme Afif Domingos, só pode ser transgênica. É um híbrido de duas espécies até então incompatíveis: uma dá no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, outra no Palácio do Planalto, em Brasília. A posse, na quinta-feira, do vice-governador da administração tucana de Geraldo Alckmin como ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa pela presidente petista Dilma Rousseff superou as mais surreais expectativas sobre o vale-tudo da política brasileira.

Desde então, o professor de sociologia e política do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Carlos Melo, tem tentado entender o estranho fruto. “Afif está inaugurando a onipresença política, pretendendo servir a dois senhores ao mesmo tempo”, diz o autor de Collor, o Ator e suas Circunstâncias (Editora Novo Conceito, 2007). Para Melo, o vice da oposição que é ministro da situação demonstra quanto os governos brasileiros se tornaram dependentes de aliados como o PMDB de Renan e Henrique Alves e o PSD de Afif e Gilberto Kassab, cujo único projeto é estar no poder. E evoca a sintomática atualidade da frase de Tancredo Neves sobre o antigo (e de sigla homônima) Partido Social Democrático: “Entre a Bíblia e O Capital, o PSD fica com o Diário Oficial”.

O professor identifica a exaustão do até agora relativamente funcional “presidencialismo de coalizão” brasileiro – cujos custos aumentam a cada reeleição do grupo político que está no poder – nas dificuldades crescentes do governo Dilma no Congresso. “Não se aprova a reforma do ICMS nem a legislação dos portos, e até os vetos da presidente são derrubados.”

Que tal a nova jabuticaba brasileira?

É uma jabuticaba criativa, de duas cores: azul e vermelha ao mesmo tempo. Ela engendra uma relação entre dois partidos que estão em campos opostos há anos. A questão não é apenas ocupar dois cargos públicos ao mesmo tempo. Mas ocupar espaços e pressupostos absolutamente diferentes. Se o Brasil estivesse em um governo de união nacional, em uma situação em que todas as forças políticas tivessem que estar presentes, faria algum sentido. Obviamente não é o caso.

Afif pertence ao PSD do ex-prefeito Kassab, partido novo que agremiou, em tempo recorde, uma das maiores bancadas do País. Como entender isso?

Um tempo atrás, o STF tomou a decisão de defender a fidelidade partidária: que um parlamentar eleito pelo partido A teria que continuar nele até o final de seu mandato. Do contrário, o perderia. Aí a “criatividade” da política brasileira produziu uma outra jabuticaba: se ele não podia mudar de partido no meio do mandato, podia ir para um novo. Então, começou a ser um grande negócio criar partidos ou fundir legendas debaixo de um novo nome. Isso aconteceu com o velho DEM, que antes era PFL, aliado histórico do PSDB desde 1994. Afif se elege vice-governador na lógica do velho DEM, que era de oposição renhida ao governo do PT. No entanto, a brecha para se fundar um novo partido, com uma nova cara, outro posicionamento, resultou no PSD – que diz, com todas as letras, pela boca de seu presidente, que “não será de direita, não será de esquerda, nem de centro”! Nesse sentido, Afif é coerente com a incoerência de seu partido, essa coisa sem forma nem cor.

O PSD é uma novidade no quadro partidário historicamente confuso do País?

Se me permite uma digressão, há uma coincidência interessante. O PSD é uma sigla que já existiu no passado, entre 1946 e 1964, o “partido das raposas”, criado pela mão de Getúlio Vargas. Uma das muitas raposas do PSD foi o ex-presidente Tancredo Neves, que tinha uma frase ótima naquele contexto da Guerra Fria e serve como uma luva ao partido atual: “Entre a Bíblia e O Capital, o PSD fica com o Diário Oficial”. Afif foi além, ficou com dois diários oficiais.

A lei determina que ele abra mão de um dos ordenados dos cargos: R$ 19,6 mil como vice-governador ou R$ 26,7 mil como ministro...

O que nem é importante para ele, um empresário de sucesso, que não está na política por causa do salário. Pode ser até que Afif opte pelo salário menor. Mas se fizer isso tampouco será por consciência, mas para vender a ideia de que faz isso “contra meus próprios interesses” (Afif acabou optando pelo salário maior). O que tem importância é o espaço político que ele imagina preservar lá e cá. Está inaugurando a onipresença política, pretendendo servir a dois senhores.

Será possível servir bem a ambos?

Ou bem ele é isolado em um dos dois grupos ou não terá a confiança de nenhum dos dois. Se Afif exercer plenamente, de maneira integrada, o cargo em São Paulo e o ministério em Brasília, tem que virar presidente da República, porque vai conseguir o prodígio de juntar PT e PSDB – coisa que nem Lula, nem Fernando Henrique, Tasso Jereissati ou Mário Covas conseguiram. Não houve santo nesta terra que tenha feito esse milagre.

O filósofo Marcos Nobre, da Unicamp, cunhou a expressão ‘peemedebização’, a composição de um centro tão heterogêneo no Congresso que este se torna incapaz de aprovar qualquer inovação política. O PSD quer esse mesmo papel de fiel da balança?

Gosto dessa tese do Marcos Nobre. Mas a “peemedebização” já vem da “pessedização” original dos anos 1940 para os 60. O PSD à época já servia como fiel da balança nos conflitos entre UDN e PTB. O PMDB descobriu isso: para ele não é interessante ter candidato a presidente da República, pois seja lá quem ganhe, sempre sai vitorioso. De modo que o PMDB já tinha no PSD antigo uma referência histórica, assim como o atual PSD. O partido de Kassab e Afif sabe que essa é a fórmula mais adequada ao fisiologismo brasileiro: estar bem com todo mundo, fincar pé em todas as canoas e trabalhar com essa ambiguidade.

Quais é a consequência dessa eterna reprodução do fisiologismo nacional?

A consequência é que não há projetos voltados a algum tipo de transformação social lá no fim. O que há são projetos de poder, de ocupação de espaço. Tem uma frase no Alice no País das Maravilhas que acho fantástica. Alice pergunta ao gato: “Para onde vai essa estrada?” O gato devolve: “Mas para onde você quer ir?” Alice diz: “Não sei”. E o gato fala: “Para quem não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve”. No caso do Brasil não é nem que não saibam para onde ir, eles querem ir para todos os lados. Para onde quer que haja uma migalha de poder a ser recolhida.

A disputa pelo tempo de TV é um dos responsáveis por isso?

O tempo de TV se transformou, ao longo da história e das mudanças da legislação no País, na principal moeda de troca. E, depois, a garantia de segurança no Parlamento: compor maiorias para não ter investidas que desestabilizem o governo, como CPIs. Nessa lógica competitiva, preciso trazer o maior número de partidos e mais tempo de TV para minha coligação, deixando o mínimo para meu adversário.

Alguns cientistas políticos brasileiros afirmam que, apesar de suas distorções, o presidencialismo de coalizão é uma fórmula vitoriosa, que conferiu estabilidade à democracia do País. O sr. discorda?

É algo que tenho formulado há algum tempo. Concordo com a forma com que meus colegas vinham analisando o presidencialismo de coalizão. Ele de fato forma maiorias. Tem um custo, na distribuição do espaço no governo, mas os partidos votam de acordo com os objetivos do Executivo. Implementa-se uma agenda. Isso é uma maravilha, mas só quando se tem alternância no poder. Por quê? No primeiro mandato, o presidente tem 25 mil cargos para distribuir e formar essa maioria. Os partidos o procuram, cortejam, o presidente vira uma grande noiva. É o período de lua de mel. Maioria formada, dois anos depois é preciso pensar na reeleição. Aí os partidos dizem: “Olha, aquele acordo tem de ser revisto, porque não estou mais satisfeito. Quero mais”. E o presidente, que já tinha distribuído os cargos, começa a entrar nas joias da coroa: postos importantes nas estatais. Você deve se lembrar do Severino Cavalcanti: “Não quero uma diretoria qualquer da Petrobrás. Quero aquela que faz buraco e acha petróleo”. Hoje, vivemos uma situação em que tivemos eleição, reeleição e sucessão. E quando se chega ao terceiro mandato, já se distribuiu tudo que era possível, compôs-se uma base de 400 deputados, só que ela não vota mais de acordo com o que o governo quer. Há um efeito voracidade, que leva o presidencialismo de coalizão a um ponto de exaustão.

É essa exaustão que estamos vendo agora?

A tal ponto que se precisou dar um cargo na Comissão de Direitos Humanos ao pastor Feliciano. O problema já era perceptível no início do governo Dilma. Mas a fase em que entramos é ainda pior: a reeleição na sucessão. Os acordos não são duráveis, a cada novo projeto o Legislativo quer rediscutir mais espaço. E não se consegue mais tocar uma agenda – tudo precisa ser negociado ponto por ponto. A voracidade chegou a tal nível que o governo Dilma não consegue mais aprovar nada. Não aprova a reforma do ICMS, nem a legislação dos portos e até os vetos da presidente são derrubados.

O fim da reeleição, que chegou a ser aventado por Aécio Neves, seria uma solução?

Vou usar aqui um clichê, me perdoe. O marido chega em casa e encontra a mulher traindo-o com outro no sofá. Então, pega e joga fora o sofá. O problema não é a reeleição, é a mentalidade, a prática política, que se utiliza da reeleição para se expandir. Precisamos não de uma reforma política, mas de uma reforma da política, da concepção que temos dessa atividade. Chegamos à total exaustão quando um determinado personagem se vê no direito de ser ministro do governo de um partido e vice de um governo de outro partido.

A velha oposição entre principismo e pragmatismo ganhou outra dimensão no Brasil?

Quem viu o filme Lincoln sabe da polêmica que ele levanta, sobre como o presidente americano comprou deputados para aprovar a abolição da escravatura. “Está vendo, até o Lincoln teve que fazer isso”, dizem uns. Só que ali é pragmatismo em nome de um princípio muito claro, a abolição. Aqui é pragmatismo em nome do quê? Você precisa ter princípios norteadores que não sejam camisas de força. Tem que saber ceder, aqui e acolá, sem perder a essência. Mas o pragmatismo sem princípios está se revelando tão ineficaz quanto o principismo sem pragmatismo. O pragmatismo sem princípios dá em Danton; princípios sem pragmatismo dão em Robespierre. Tanto um quanto outro terminaram na guilhotina.

Qual o primeiro passo para a mudança de mentalidade de que precisamos?

Retomo a pergunta: qual é o projeto? O PSDB ainda pode dizer “queremos criar instituições democráticas e impessoais”. O PT, “estamos trabalhando para distribuir renda”. Tanto um quanto outro douram a própria pílula, mas tudo bem. Mas e quanto ao PSD? O PMDB? Você já viu Kassab, Renan, Henrique Alves ou Eduardo Cunha externando qualquer coisa nesse sentido? Vivemos um processo de seleção adversa na política: não são mais os melhores que a fazem. É preciso recuperar a ideia da política como atividade nobre. O primeiro passo é deixar a crise mostrar que não estamos bem, há um impasse, e explicitar esse desconforto. O segundo é compreender que temos patinado num processo que poderia ser mais ágil. Temos condição de fazer mais, como aliás todos os candidatos estão dizendo – inclusive a própria presidente Dilma. Está na hora de perceber que, por mais que tenhamos dado um salto de 1994 para cá, está na hora de dar outro. E estamos com as pernas amarradas.

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Reforma Política: O quê ela NÃO é e como isto tem a ver com os Partidos e a Sociedade? (José Roberto Bonifácio))

Na semana passada, dentre uma série de manchetes em que despontam disputas  -  entre evangélicos e ruralistas de um lado, e simpatizantes da causa de gênero, indigenas ocupando as galerias do Congresso Nacional, do outro  - voltou aos holofotes do debate público o tema da reforma politica. Um retorno esperado, por certo, mas ainda assim abrupto e perturbador.

A medida (PL 4470/12) chega também num momento em que o sistema partidário brasileiro se aproxima do numero assombroso de 50 partidos formalmente organizados ou em processo de organização, em que algumas legendas concretizam a fusão (caso do PPS e do PMN que originaram a Mobilização Democrática – MD), ou dela cogitam (caso do PSDB com o DEM), em que algumas legendas buscam inovar construindo-se a partir da sociedade (caso do REDE, capitaneado pela ex-ministra e candidata presidencial Marina Silva, principal alvo da nova legislação segundo a avaliação predominante na cena política).
Em termos de orientação em plenário praticamente todos os partidos representados votaram majoritariamente contra a medida contra migrações partidárias rumo aos novos partidos. Favoráveis à proposta, que veta o acesso ao Horário Político Eleitoral e ao Fundo `Partidário aos parlamentares que se transferem aos novos partidos, contabilizam-se 70 votos do PT, 51 do PMDB, 14 do DEM, 27 do PSD, 24 do PR, 16 do PP, 11 do PDT, 06 do PCdoB, 8 do PSC, 7 do PTB, 2 do PTdoB, 1 do PHS, 1 do PV, 1 do PRB, 1 do PRP e 1 do PHS. Contrários à medida foram 3 do PR, 2 deputados do DEM, 2 do PMDB, 3 do PDT, 01 do PT, 01 do PP, 01, do PTB, 01 do PSC, 01 do PV, 01 do PTdoB, 01 do PSL. Atestando que a clivagem situação e oposição não se verificou neste episódio (como em uma série de outros igualmente cruciais) votaram pela obstrução da medida 14 do PSDB, 12 do PSB, 04 do PV, 2 do PMDB, 2 do PPS , 2 do PSOL, 2 do PRB, 02 do PSC, 1 do PDT, 1 do PMN, 1 do PP. Abstenções foram 1 do PDT e 1 do PPS. (Fonte: CENIN - Coordenação do Sistema Eletrônico de Votação da Câmara dos Deputados)
Aqui gostaríamos de desmistificar alguns chavões e lugares comuns, muito corriqueiros entre comentaristas e analistas políticos. O principal destes clichês vem a ser o de que os partidos seriam meramente a expressão de conveniências ou personalismo das lideranças políticas. Como corolário desta visão teríamos que as legendas jamais poderiam encarnar aspirações coletivas e tampouco veicular o interesse público. Se o próprio resultado da votação não foi suficiente para desmentir esta assertiva, então apresentaremos mais abaixo resultados suplementares.
Igualmente pretendemos conectar a batalha em torno do tema da reforma política com os conflitos em andamento no seio da sociedade brasileira e aquilatar o impacto destas clivagens sobre a consistência e a qualidade da representação. É muito freqüente encontrar analises e comentários sobre estas duas ordens de eventos contextuais de uma maneira segregada (como fizemos nos dois primeiros parágrafos deste texto), como se ambos não se implicassem mutuamente.
Em termos gerais as analises existentes confundem a Lei Falcão, editada na esteira da vitoria do MDB nas eleições de 74 e sua expectativa de vencer subsequentemente, com a Reforma Partidária de dezembro de 1979 – uma das raras ocasiões em que se observou no Brasil um sistema partidário in status nascendi  - que dividiu as oposições ao regime autoritário e efetivamente marcou a origem do sistema partidário atualmente em vigor. Esta última, inadvertidamente, ao rachar o MDB, veio a dar margem ao nascimento do PT dentre uma série de outros partidos de esquerda como efeito inesperado. Quanto à primeira ela teve por efeito gerar imensa apatia entre o eleitorado e esfriar o debate político.
Por trás deste tipo de analise se acha o mito de que toda reforma política implica necessariamente numa engenharia social, num esforço e num planejamento deliberado, articulado e potencialmente bem sucedido para reestruturar diversos âmbitos da vida social do país. Tanto a esquerda quanto à direita parecem compartilhar, em maior ou menor profundidade, esta visão.
É sabido na Ciência Política brasileira que, dos 513 deputados, em media apenas 5% se elegem com seus próprios votos. O restante é tudo "rateado" através do pool de candidatos e partidos coligados, o que atesta contra a autenticidade e a qualidade da representação política. Ao mesmo tempo em que tem que cooperar, dado que se situam "no mesmo barco" eleitoral os candidatos devem matar-se mutuamente para serem os mais votados dentro de uma mesma coligação. E este efeito de pulverização incrementa-se mais e mais na medida em que cada coligação por lançar ate o dobro do numero de vagas que esteja em disputa dentro de cada distrito; dai o expediente de incentivar candidaturas em variados nichos geográficos, sociais, setoriais, organizacionais etc... com fito de subtrair votos dos mais competitivos e aumentar suas próprias chances. Com respeito à personalização do voto isto é problema mundial e mesmo democracias avançadas (EUA à frente) a veem crescer como tendência em substituição ao voto partidário, ao mesmo tempo em que a própria democracia de partidos cede espaços à emergente “democracia de público”.
Ainda que corresponda a um esforço de evitar a pulverização de recursos escassos comuns (tempo de horário eleitoral e financiamentos de campanha) a legislação aprovada é sim casuística e nenhuma novidade há nisso, nem no Brasil nem em qualquer outra democracia ou regime autoritário (hegemônico ou não) conhecido. Entretanto, a implementação da clausula de barreira, instituída pela Lei n° 9096/95, foi vetada pelo STF (em ADIN n° 1.354-8, impetrada por alguns dos partidos que agora buscaram obstruir o projeto de lei: PCdoB com o apoio do PDT, PSB, PV, PSC, PSOL, PRB e PPS) que a interpretou como medida inconstitucional que afronta o direito das minorias à representação. Nesta mesma época a ventilou-se a proposta de uma "federação de partidos" i.e. um prolongamento da coligação eleitoral das microlegendas dentro do parlamento, com vistas a (potencialmente) tornar-se uma legenda unificada. Como esta não vingou e boa parte das legendas não logra ultrapassar a clausula de barreira, o impasse da fragmentação estava criado, e com ele a “tragédia dos comuns” se avizinhava.
Sobre a "não existência de partidos" isto é controvertido e no mais das vezes uma meia verdade: os partidos inexistem na arena eleitoral, mas são efetivos (em boa parte das vezes) na arena parlamentar. As votações nominais do Congresso via de regra demonstram que as bancadas seguem as indicações das lideranças, salvo em casos isolados onde nem as preferências destas nem as do Chefe do Executivo são absolutamente claras. A votação do Projeto de Lei n° 4477/12 em causa obedeceu à primeira destas lógicas, à sua regra não à sua exceção. Más Como o STF – previsivelmente e por provocação de um legislador do PSB, legenda com conhecidas ambições presidenciais - suspendeu sua tramitação não há indícios de que a fragmentação partidária se atenuará.
Doutro modo, tendo em vista tais ameaças reais a sua sobrevivência, os partidos de esquerda mencionados (PPS, PSB, PCdoB, PDT) são históricos e representam organizações partidárias previamente existentes no sistema partidário do regime 46-64, inclusive herdando seus nomes - exceto do PDT que fora anteriormente o PTB janguista, açambarcado por Ivete Vargas com incentivo dos militares, e o PPS sucessor do antigo "Partidão" que estivera na ilegalidade de 46 a 85. A sorte eleitoral entretanto não foi das melhores e estas legendas perderam espaços para as que hoje hegemonizam a política nacional.
Estas são, a saber, o PMDB (sucessor do antigo PSD de 1946/64 tanto pela amplitude geográfica, pela composição social quanto pelo comportamento político centrista); o PT (o qual subtraiu espaços aos comunistas e trabalhistas alem de abrir os seus próprios); o PFL (sucessor da antiga UDN, depois ARENA e PDS, hoje DEM, más também o jovem PSD kassabista); e o PSDB (fracionamento do PMDB pós Constituinte, composto pela inteligentzia não cooptada pelo comunismo nem pelo petismo, e extremamente hostil aos trabalhistas).
O protagonismo destes atores na aprovação da medida, como visto na contagem de votos acima, é sintomático de que agem feito organizações e não como coleções amorfas de indivíduos (o “saco de batatas” sobre o qual Marx falava). A investigação da origem dos partidos deve transcender a mera analise biográfica da trajetória e do comportamento de suas lideranças políticas, e alcançar o exame da trajetória e do comportamento dos liderados, a agenda e o programa por eles perseguido, as políticas levadas a efeito. Deve passar, para usar o jargão sociológico, da ontogênese à filogênese.
E com respeito ao imperativo de sobrevivência os partidos consolidados e representados legislativamente agem em uníssono como verdadeiras organizações, conscientes de suas necessidades e interesses: assim explica-se por que o DEM foi aparentemente salvo da extinção pelo PR  e pelo arquiinimigo PT. Desta conclusão decorrem duas ironias. A primeira: o PT anteriormente fora o PL, fração do antigo PFL dele desligada, a qual incorporou os “nanicos” PST e PGT, e depois fez a fusão com o PRONA para sobreviver à clausula de barreira, transformando-se numa legenda de médio porte.  A segunda: o Petismo (sob Dirceu) mantivera uma aliança explicita com o antigo PFL (sob Bornhausen) em torno do tema da reforma política até uma década atrás.
Tais constelações partidárias expressam não somente conveniências mas também em substancial medida tendências reais e abrangentes em processo na sociedade, alinhamentos e contraposições de interesses e aspirações mais ou menos profundos e duradouras. Mais do que aglomerados de interesses privados, personalismos, os partidos são e podem vir a ser veículos do interesse público e de aspirações coletivas mais ou menos abrangentes.
Foram conveniências alguns dos principais vetores formativos do sistema partidário mas não apenas isto, dado que ha movimentos sociais, tendências de opinião e grupos de interesses (organizados ou não) demandando representação e a obtendo, de modo mais ou menos imperfeito, regular ou formalizado. Os partidos brasileiros representam mal o eleitorado, não espelham corretamente as distribuições de preferências existentes na sociedade, más ainda assim, aos trancos e barrancos, as refletem.
Dentro da cena política atual vemos medidas substanciais sendo formuladas e aprovadas em referencia (pró ou contra) aos interesses de segmentos tão dispares e amplos como evangélicos, ruralistas, industriais nacionais e exportadores, banqueiros, indígenas, homossexuais, mulheres, empregadas domésticas, juventude, aposentados etc.
Pelo prisma da oferta, notamos claramente que alguns partidos se colocam de modo mais ou menos aberto como "porta vozes" das aspirações e motivações de determinados destes segmentos e em oposição aos de outros. Ainda que as alianças eleitorais, parlamentares e de governo pareçam caóticas e incoerentes, a cada momento em que são celebradas, ao fim e ao cabo as divergências se explicitam e o choque se torna inevitável. Assim está sendo p.ex. no tocante à aliança que o PT e a esquerda efetuaram com a centro-direita em 2010 e que hoje se transforma em batalhas amargas com os evangélicos e os ruralistas, no momento em que os primeiros intensificam sua militância em prol da agenda das minorias (negros, mulheres, gays, indígenas) na Comissão de Direitos Humanos. O mesmo se verifica na PEC das Domésticas que opõe o partido do governo às classes médias tradicional e emergente, simultaneamente, assim como quanto ao projeto de redução da maioridade penal.
Por certo, os grupos sociais não agenciam os partidos de modo perfeitamente coerente e regular. Tampouco a coisa se dá de modo individualizado, atomizado, como prescrevem as teorias liberais da representação política. Há quebras de contrato e decepções frequentes e a longo prazo nenhum grupo logra impor seu próprio planejamento estratégico, sua agenda ou sua própria “engenharia social” à coletividade brasileira.
Más o que tudo isto nos ensina de fato?
É muito possível, em primeiro lugar, que fracassemos se pensarmos na reforma política como algo que vai aumentar esta coerência ou regularidade no vinculo entre partidos e setores ou tendências da sociedade, diminuindo o fosso entre estes, agregando valor à representação. Reforma política não é reengenharia social.
Em segundo lugar, reforma política não é panacéia. Em outras palavras, mesmo que, num cenário absolutamente otimista, seja projetado todo um conjunto de instituições políticas, que se obtenha o consenso necessário a sua ratificação e a aderência generalizada a seus dispositivos, rotinas e práticas, ainda assim não se resolverão todos os problemas da sociedade. Estes continuarão existindo e podem se tornar mais ou menos agudos com o projeto de reforma a ser aprovado, ou ainda assim, permanecerem infensas a ele.
Por outro lado, em hipótese alguma a reforma política acarretará que um conjunto de partidos ou grupos sociais torne-se vitorioso sistemático do conflito político e das eleições (majoritárias ou proporcionais) vis à vis outros partidos e grupos. Sempre haverá, como no caso da Reforma Partidária de 1979-80, uma ou mais virtualidades que nenhum ator antecipa, ou mesmo potencialidades da situação que ninguém diagnostica a médio ou longo prazos. Este é o aprendizado ou maturidade que falta àqueles diagnósticos e analises políticas que se cingem ao prisma do mero “casuísmo” ou da antecipação das eleições presidenciais de 2014, e da maneira como estes fatos impactam as chances dos presidenciáveis.
Por fim, reforma política não é substituto de políticas econômicas e sociais estruturantes que visam uma distribuição mais equilibrada de recursos entre cidadãos. Como nos casos do Fundo Partidário e do projetado financiamento público de campanhas eleitorais – cujo mero anuncio ou cogitação, assim como a edição pelo TSE daResolução n° 23.282 de 22 de junho de 2010, fomentou a multiplicação de micropartidos potencialmente rent-seekers, “legendas de aluguel”, e encorajou a reação dos partidos já representados no Congresso no sentido de defender os recursos escassos comuns – temos que a tese da “equalização” do campo de jogo entre forças não pode ser comprada pelo seu valor de face. Não somente pela presença do famoso “Caixa Dois” (ou “dinheiro não contabilizado” no vocabulário dos que foram recentemente julgados e condenados no Supremo...).
Más também há outras assimetrias de recursos no sistema político brasileiro que não se resumem aos de natureza material. Há também assimetrias de organização que são gritantes, como também assimetrias de informação igualmente deletérias. Neste quesito o mesmo PT que se queixa da suposta “hegemonia midiática” dos conservadores e dos detentores dos meios de comunicação – fator crucial da discussão do “marco regulatório da mídia”, que assim pode ser considerada uma espécie de reforma política “extraoficial”  – também a eles se equivalem ao manejar em seu favor os detentores dos meios de mobilização e organização da sociedade civil brasileira (CUT, UNE, CNBB etc).
E estas são, como dantes dito, muito mais difíceis senão impossíveis de serem corrigidas.
Não definimos o que entendemos por reforma política senão negativamente. Uma abordagem positiva da temática da reforma política, sobre o que ela efetivamente é e dos problemas que nos permitirá (ou deverá nos permitir) resolver, se não ficou implícita no que se escreveu acima, faremos em artigo posterior.