sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Durma-se com um barulho desses? (Carlos Pereira)

A ciência política brasileira fez avanços consideráveis, tanto do ponto de vista teórico como metodológico. A busca por rigor no tratamento dos dados e sofisticação analítica permitiu, por exemplo, que identificássemos os pré-requisitos para o funcionamento virtuoso do presidencialismo multipartidário.
Entretanto, a deterioração abrupta da governança política e econômica tem gerado novos desafios interpretativos. Na realidade, o Brasil vive hoje um acúmulo de crises: econômica, política, de representação, ética e moral, do sistema partidário, do seu estado de proteção social, etc. É extremamente difícil estabelecer onde uma dessas crises começa e quando outra termina. A sensação de descarrilamento e de mal estar é generalizada: inflação alta, desemprego crescente, recessão econômica, corrupção, baixa popularidade da presidente, quebra de sua coalizão, risco de impeachment e de cassação de sua candidatura, etc.
Como chegamos até aqui? Por que os equilíbrios virtuosos alcançados ao longo das duas últimas décadas não conseguiram se sustentar ao longo do tempo? Até que ponto essas crises decorrem de problemas estruturais do sistema político? Seriam consequência de problemas de governo, especialmente no que diz respeito a más escolhas de gerência de coalizões?
Por que nós, cientistas políticos, não fomos capazes de prever tais crises?
É possível identificar pelo menos três interpretações concorrentes, mas não necessariamente excludentes, para a crise política brasileira.
A primeira visão argumenta que não houve descontinuidades ou mesmo deterioração na forma de gestão dos presidentes brasileiros pós-redemocratização.
Ou seja, Lula e Dilma geriram o nosso presidencialismo multipartidário de forma similar a Fernando Henrique ou Itamar. Os problemas seriam decorrentes de fatores exógenos à gestão tais como: a eleição de um polêmico "cavaleiro das trevas" à presidência da Câmara dos Deputados; o fortalecimento extemporâneo de um partido político ideologicamente amorfo, como o PMDB, e a decorrente vulnerabilidade política do governo diante deste parceiro; ou ainda, a transferência de responsabilidade à crise econômica internacional e/ou seguidos equívocos na formulação da política econômica.
A segunda interpretação acredita que o desenho do nosso sistema, ancorado em uma fragmentação partidária excessiva, galopante e independente das escolhas da própria gestão política, levaria a custos proibitivos de governabilidade de forma inexorável, sempre seguido de cooptação financeira e corrupção. A deterioração, portanto, seria o caminho quase natural de um desenho institucional claramente disfuncional. Pelo desenho da nossa constituição, presidentes não teriam condições de governar, senão cooptando cada vez mais partidos. Cairíamos assim em um ciclo vicioso: participação de partidos em governos passando a "valer dinheiro" (sujo ou não), seja integrando a coalizão ou "vendendo tempo de TV". Esse quadro estimularia a criação de mais partidos, gerando maior necessidade de cargos, maiores custos para gerenciar coalizões e mais corrupção. Em outras palavras, não foi uma questão de "azar" a estratégia monopolista e hegemônica do PT de governar e gerenciar o presidencialismo. Isso aconteceria cedo ou tarde, pois tais problemas seriam decorrentes da forma como o sistema foi concebido e das implicações desta concepção sobre a dinâmica evolutiva do sistema.
A terceira interpretação identifica a crise política como, fundamentalmente, uma crise de governo. Argumenta que o presidencialismo de coalizão foi transformado em presidencialismo de cooptação nos governos do PT. Os problemas políticos decorrem menos de um desenho institucional inadequado e mais das escolhas de um partido e de suas pretensões hegemônicas, ao se defrontar com o elevado grau de consenso requerido pelas instituições políticas para governar. O governo tucano geriu nosso presidencialismo de coalizão compartilhando poder entre os partidos da base aliada: coalizões ideologicamente homogêneas próximas do legislador mediano do Legislativo, menos partidos na coalizão e gestão compartilhada do poder Executivo. Os governos petistas, por sua vez, construíram coalizões ideologicamente mais heterogêneas, na média mais à esquerda do parlamentar mediano do Legislativo, e pouco compartilharam o governo com aliados, refletindo a sua pouca confiança nos partidos de sua coalizão e oportunismo das eventuais alianças. Os governos do PT preferiram buscar atalhos e o resultado foi a crise política e a grave recessão.
Independentemente do grau de acerto e erro de cada visão, há barulho lá fora e a ciência política brasileira precisa enfrentá-lo. A saída, ainda que desconfortável, é a de buscarmos lições da crise, que aqui resumo em três. A primeira é que superestimamos os poderes constitucionais e de agenda do presidente enquanto mecanismos capazes de superar desafios de gestão de coalizões. Essa dificuldade se tornou evidente com a eleição de um presidente da Câmara dos Deputados com preferências políticas distintas do Executivo, levando o Legislativo à posição de protagonista. A segunda lição é que o compartilhamento proporcional de poderes com aliados só gera efeitos virtuosos quando o presidente é politicamente forte. Quando o presidente se enfraquece, como ocorrido com a presidente Dilma, a proporcionalidade se traduz em cooptação e maior vulnerabilidade do Executivo.
Finalmente, a terceira lição que se pode apreender é que o funcionamento virtuoso do presidencialismo de coalizão requer um presidente/líder/coordenador hábil e disposto a um jogo de caráter consociativo. Caso contrário, os custos e problemas de coordenação política adquirem um potencial predatório.
Naturalmente sempre pode haver quem prefira, mesmo reclamando, dormir com um barulho desses. Mas ainda penso que há barulho que pode virar música.
(*) Carlos Pereira é professor titular na Ebape da Fundação Getulio Vargas (FGV), coautor do livro "Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System"

Fonte: Valor Econômico (28/01/16)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Por novas autópsias de Dilma I (Marcos Nobre)

A recente decisão do Banco Central de manter inalterada a taxa básica de juros revela simples impotência diante dos movimentos tectônicos da economia mundial. Pouco ou nada tem que ver com uma pretensa conspiração da sociedade dos keynesianos mortos. Foi apenas a escolha de ficar e ser comido pelo bicho. Na avaliação do BC, parece menos pior do que correr e o bicho pegar.
Depois da dominância fiscal e da dominância política, a dominância global voltou ao primeiro plano. A etapa China-petróleo da Grande Recessão traz incerteza de novo tipo. Para piorar, ao contrário da primeira etapa da crise, iniciada em 2008, o Brasil não está mais em boas condições fiscais para se defender ativamente.
Não que seja uma situação excepcional. A regra é o Brasil estar à mercê de movimentos internacionais de capital sobre os quais não tem qualquer influência. A diferença foi sempre de grau. Em 1994, o Plano Real conseguiu colocar a inflação sob controle, afastando o entrave mais aparente ao desenvolvimento do país. Mas o fez ao custo de alta vulnerabilidade externa, taxa de câmbio apreciada e taxas de juros estratosféricas. Coube ao governo Lula afastar o primeiro problema, construindo um colchão de reservas internacionais de respeito. Mas a apreciação cambial foi mantida e as taxas de juros continuaram exorbitantes. Como a nova dominância global se encarregou de desvalorizar o câmbio, a hipertaxa de juros tomou o lugar antes ocupado pela hiperinflação como último grande nó por desatar desde a redemocratização.
A devastação atual tem que ver com um breve momento de euforia em que parecia que a situação tinha mudado estruturalmente. Foi o que impulsionou o experimento tecnocrático do primeiro mandato de Dilma, que pensou ser possível reorganizar de cima a baixo o capitalismo brasileiro a partir de um gabinete no Palácio do Planalto. A começar pela taxa de juros.
A ruína da tentativa é sabida. Mas não foi ainda objeto de exame equilibrado. Para que as autópsias possam ter algum interesse para além da luta política imediata, o experimento precisa passar a ser visto daquele ângulo com que se tentou, depois do Plano Cruzado, buscar as razões do fracasso dos sucessivos planos econômicos de controle da inflação entre 1986 e 1991. (Independentemente da plausibilidade da explicação que propõe, é mérito de André Singer ter introduzido esse ângulo de análise no artigo "Cutucando onças com vara curta. O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)", publicado no número de julho de 2015 da revista Novos Estudos Cebrap).
Porque o projeto tecnocrático-voluntarista do primeiro mandato de Dilma foi uma espécie de Plano Cruzado da taxa de juros, com toques de Plano Collor. Como se a taxa de juros não tivesse outra razão para ser alta a não ser o fato de ser alta. O que estamos sofrendo desde o final de 2014 é análogo às tentativas de correção dos Planos Cruzado II, Bresser e Verão, de escasso sucesso, já que feitas em meio a uma tempestade inflacionária que não amainava. De resto, em relação à taxa de juros, a situação não é muito diferente daquela do século 19 tal como descrito por Thomas Piketty: o rendimento do capital supera o crescimento econômico e o que se acumula são desigualdades.
O fato de o país se encontrar em dominância global parece à primeira vista apenas introduzir instabilidade ainda maior. Mas, paradoxalmente, do ponto de vista da política interna, a nova situação tende a favorecer alguma estabilidade. Em uma situação de alta fragilidade e pouca capacidade de reação, a tendência é ficar com a estabilidade precária que se tem. Tentar trocá-la por uma promessa de estabilidade é apostar um tudo ou nada contra o colapso.
Além de a situação jogar a favor da continuidade de Dilma Rousseff, cada vez mais seu segundo mandato se parece com o governo de Itamar Franco. Até mesmo as imagens públicas de Dilma e de Itamar começam mais e mais a se assemelhar: não são vistas pessoalmente como figuras corruptas, mas simplesmente como figuras folclóricas, capazes de atitudes excêntricas ou mesmo abertamente abiloladas. Teme-se as manias e os arroubos de Dilma tanto quanto se temia a impulsividade de Itamar. E, no entanto, o fato é que tanto uma quanto o outro tiveram seu espaço de ação extremamente limitado pelas forças políticas de situação e de oposição. E, ainda que a memória coletiva apague o trauma, o governo Itamar foi uma confusão para ninguém botar defeito, ainda maior que a deste segundo mandato de Dilma. Só de ministros da Fazenda foram três nos primeiros sete meses de mandato.
Em algum momento deste ano a Lava-Jato vai mostrar quais cartas estão fora do baralho. Quem sobrar participará do rearranjo das forças políticas que vai se seguir. Deverá ser um período de total itamarização de Dilma. E, se há algum ponto positivo na analogia com o período Itamar, é o horizonte de surgimento de novas coalizões capazes de produzir soluções para a última etapa da estabilização político-econômica sob a democracia.
O Real não foi um plano técnico-econômico, simplesmente. Existiam muitas explicações para a inflação, como existem muitas para o padrão persistentemente alto das taxas de juros no Brasil. A ideia da "inflação inercial" se impôs não apenas em razão de suas inegáveis virtudes explicativas, mas, principalmente, por sua adequação e flexibilidade em vista do pacto político-social que estava sendo construído.
O conhecimento especializado tem papel decisivo a desempenhar nos próximos anos, em que as disputas tendem a se encaminhar para propostas de mudança de grandeza semelhante àquelas introduzidas a partir de 1994. Mas, para que seja efetivo, precisa abandonar a pretensão de ter à mão a solução "técnica" ideal. A formação de coalizões políticas com propostas divergentes não tem nada que ver com uma gincana tecnocrática. Como também não se confunde com demonização de experimentos fracassados. Já é mais do que hora de produzir autópsias realmente esclarecedoras do que foi o primeiro mandato de Dilma.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (25/01/16)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O Brasil rural, do agrário ao agrícola (Zander Navarro e Eliseu Alves)

O IBGE promete realizar neste ano a apuração do novo Censo Agropecuário. Se for mantido, as estatísticas a serem levantadas sobre o vasto mundo rural reafirmarão, com maior intensidade e nitidez, as tendências principais e o aprendizado extraídos no censo anterior.
A mais reveladora dessas evidências foi iluminar um setor perpassado por preocupante dualidade: de um lado, produção e produtividade espetaculares, o Brasil emergindo como potência agrícola; de outro, a persistência da pobreza e as revelações sobre mudanças sociais dramáticas e inéditas. Sobretudo o seu esvaziamento populacional, em parte decorrente da impressionante concentração da riqueza, que limita fortemente as oportunidades sociais. É por isso que o desempenho da agricultura recebe aplausos entusiásticos quando examinado pelo primeiro ângulo, mas também críticas, se avaliado por seus impactos sociais.
Em decorrência dessa dualidade, estamos observando o nascimento de uma agricultura sem agricultores. Um setor de alto rendimento econômico, mas sem burburinho social em suas regiões rurais, onde cada vez mais reina o silêncio. Morre o agrário, que deixou tantas marcas em nossa história política e, com ele, os latifúndios, a reforma agrária, o MST e as “lutas sociais”. Agonizam o sindicalismo rural e os personagens rurais da literatura. Nasce o essencialmente agrícola, fruto de uma economia de alta produtividade.
Examinado em perspectiva o último meio século, três grandes transformações se destacam. Primeiramente, os preços reais dos alimentos caíram pela metade, permitindo a milhões de brasileiros de renda mais baixa o acesso a dietas mais saudáveis e fartas. Foi o que permitiu erradicar a entranhada fome do passado, que a todos envergonhava. Esse é, sem dúvida, o maior ganho social da modernização agrícola.
Em segundo lugar, e graças sobretudo à capacidade dos produtores, verificou-se um extraordinário movimento de intensificação tecnológica, elevando a produção e, especialmente, a produtividade. Pulamos de um patamar então estancado em 50 milhões de toneladas de grãos, em 1980, quando ainda importávamos feijão, para os quase 200 milhões atuais, alçando o Brasil à posição de segundo maior produtor global de alimentos. O ganho mais expressivo foi a constituição de um setor movido pela ciência, o que torna infantis as usuais condenações de “primarização da economia”, pois se formou um sólido setor agroindustrial em torno da produção. Se não fosse assim, a agricultura não ostentaria seus altíssimos índices de produtividade.
Por fim, há outro aspecto decisivo. A agropecuária brasileira, desde a grande crise do início da década de 1980, vem salvando os saldos comerciais do País, cobrindo a contínua perda de importância relativa das exportações industriais, em especial a partir da década de 1990. Em um quarto de século (1990-2014) o total das exportações agrícolas foi de pouco mais de US$ 1 trilhão. Daí a pergunta: sem esse desenvolvimento da agricultura, onde estariam hoje a economia e a nossa sociedade? Certamente, com o crescimento populacional, experimentaríamos uma sucessão de crises intermináveis.
Fôssemos um povo com memória, deveríamos estar homenageando diuturnamente os produtores rurais (grandes e pequenos), que nos vêm salvando há tantos anos, modernizando o setor. Um país com mais consciência sobre a sua própria História deveria reconhecer fatos de tamanha relevância econômica e social.
O Censo deste ano registrará, sem dúvida, a persistência daquela dualidade. No anterior, foi verificado que somente 11,4% dos estabelecimentos rurais respondiam por 87% da produção agropecuária. O que revelarão as novas estatísticas? Há inúmeros desafios em curso que precisam ser enfrentados com sabedoria científica e sensatez pública. As tendências demográficas são alarmantes, pois em um quinto dos estabelecimentos rurais os casais não têm filhos, o que sugere que logo deixarão o campo. As taxas de natalidade rurais são praticamente iguais às urbanas, as famílias reduziram-se e vai desaparecendo a oferta de trabalho em todas as regiões.
A épica aventura das migrações rurais retratada no passado hoje inexiste e qualquer jovem se aventura a deixar o campo sem nenhum temor. As moças saem antes e, assim, o mundo rural se masculiniza, tornando-se gradualmente inabitável.
No plano econômico e financeiro, a atividade chegou à sua culminância schumpeteriana e vigoram formas de acirramento concorrencial que estão encurralando os pequenos estabelecimentos rurais, uma vez que são remotas suas chances de competir com os que detêm maior integração com os mercados e acesso ao crédito e à tecnologia. Mesmo assim, parcelas significativas de imóveis com menos de cem hectares vêm obtendo rendas mais altas do que as grandes propriedades, especialmente se tiverem acesso à água e produzirem frutas, hortaliças e pequenos animais.
Infelizmente, o Estado e a ação governamental, incluindo as instituições de pesquisa agrícola, no geral vêm ignorando essas mudanças aqui apontadas. Por isso as tendências mais problemáticas ainda não foram contrarrestadas por iniciativas públicas. Urge trazer à frente o conhecimento sobre os processos econômicos e financeiros, pois são eles que atualmente comandam ferreamente o setor agropecuário. Há muito os focos agronômico e tecnológico se renderam aos imperativos da rentabilidade, mantidas as exigências crescentes de sustentabilidade ambiental. Sem renda, nenhuma família rural ativará seus recursos para pôr em marcha essa fabulosa máquina de produzir riqueza. Temos a combinação ideal de recursos naturais e um conjunto de produtores capazes, além de mercados, o interno e o externo, que precisam ser saciados. Não podemos desperdiçar esta oportunidade.
(*) Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais.
(*) Eliseu Alves é doutor em economia rural, foi presidente da Embrapa.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/01/16)

A guerra acabou (Fernando Gabeira)

Um soldado japonês, chamado Hiroo Onoda, lutou por 30 anos, depois que a II Guerra acabou. Ele foi mandado para as Filipinas com a missão de resistir e ficou por lá, sem saber do término do conflito. É quase impossível reproduzir, hoje, a saga de Hiroo Onoda.
Mas se olhamos para o Brasil, num período de derrocada da Petrobras e dos próprios preços do petróleo, veremos que o país tem um pouco da persistência do soldado japonês. Fomos educados a pensar que o petróleo é nossa grande riqueza, constantemente ameaçada pelos estrangeiros. Saímos às ruas, os mais velhos, para defender esse tese e gritávamos orgulhosamente: o petróleo é nosso. Com a descoberta do pré-sal, no governo do PT, reacendeu-se a chama: o petróleo é nossa redenção e dele brotam as fontes dos nossos recursos. No primeiro mandato de Lula, ele flertou com o álcool, planejou usinas de álcool em todo lugar, inclusive em parceria com os americanos. Mas o petróleo era muito forte. O pré-sal fez com que Lula jogasse todos os projetos de álcool para o espaço, lambuzasse as mãos com óleo negro e acariciasse as costas de Dilma, numa célebre foto em que parecia dizer: você é a herdeira e vai nos levar ao paraíso.
Alguns sabiam que não era bem assim. Conheciam a história da doença holandesa, como os países dependentes da produção do petróleo correm o risco de se atrasar. E viam também que recursos não bastam. Os royalties saíam pelo ralo em grandes festas municipais, obras caras e quase inúteis. Os patrióticos soldados do petróleo atacaram na regulação do pré-sal. É preciso não só defender o papel da Petrobras, como afirmar nossa vocação nacionalista: a empresa era obrigada a participar de todos os projetos na área do pré-sal.
A alternativa era dar à Petrobras a preferência. Onde quisesse, participaria; onde não quisesse, descartaria. A preferência era inclusive evitar as canoas furadas. Mas não soava tão nacionalista, tão apaixonada. O populismo de esquerda queria se apresentar como o grande defensor da Petrobras. Seus adversários do PSDB não tinham como contestá-lo, na verdade entraram na onda, com medo de perder votos. Enquanto o petróleo seguia seu destino de commodity, subindo e descendo no mercado, acossado pelos perigos do aquecimento global, nossos soldados continuavam a luta para protegê-lo da ambição estrangeira, imperialista, alienígena, enfim, o adjetivo dependia do estilo pessoal do orador.
O soldado japonês ficou 30 anos lutando numa guerra por disciplina e amor ao seu país. Quem o mandou para as Filipinas disse: fique lá até que determinemos sua volta. Os soldados brasileiros do petróleo amam o Brasil de uma forma diferente do japonês. Eles se identificam tanto com o país que, ao afirmarem que o petróleo é nosso, querem dizer que o petróleo é deles. Esta confusão entre soldado e pátria, partido e país, acabou inspirando a maior roubalheira da história do Brasil: o petrolão. O governo japonês garantiu um salário digno para o soldado Hiroo Onoda até o fim de sua vida. O brasileiro terá de garantir uma longa prisão para seus retardatários guerreiros. A última grande batalha aconteceu nas ruas do Rio, quando já se sabia do escândalo da Petrobras. Comandado por Lula, um pequeno pelotão desfilou pelas ruas defendendo a grande empresa dos seus inimigos internos e externos.
Assim como Lula, usavam macacões da cor laranja. Se fosse nos Estados Unidos, pareceriam candidatos à prisão, pois já estavam vestidos com a cor certa. O laranja é a cor do uniforme dos presidiários lá e inspirou o título de uma série sobre a cadeia: “Orange is the new black”. Mas se prendêssemos todos ali, poderíamos cometer injustiças. Nem todos saquearam a Petrobras. Alguns, talvez a minoria, simplesmente, não sabem que a guerra acabou e continuam acreditando que os americanos querem nosso petróleo e que o mundo inteiro se tensiona para nos explorar. Não sabem como os americanos avançaram na exploração do xisto, ignoram os investimentos alemães e chineses na energia solar, não dimensionam um conflito muito mais importante para o petróleo: o da Arábia Saudita e Irã, sunitas versus xiitas.
Assim como o japonês que não sabia do fim da guerra, nossos soldados talvez tenham ignorado um outro marco da história contemporânea: a queda do Muro de Berlim. Seguem de cabeça erguida rumo ao socialismo do século XXI, simplesmente como se o século anterior não tivesse existido. Em vez de fazer uma luta armada para implantar seu modelo, optaram por uma sinistra marcha pelas instituições, dominando-as progressivamente, até que sejam apenas um brinquedo na mão do partido e seu líder. Essa novidade também foi para o museu, com a crise na Venezuela, a derrota na Argentina. O Brasil não é um país muito rápido para apreender as mudanças, a ponto de prender os líderes saqueadores e mandar os iludidos soldados cuidarem de sua vida.
Pelo menos já compreendeu o ridículo de expor as mãos tintas pelo petróleo, de acreditar que nosso futuro depende apenas dele, de se divertir gastando royalties em incontáveis shows musicais nas cidades do interior. A guerra acabou. Hoje a ação da Petrobras vale menos que um coco na praia. E as reservas do pré-sal que nos trariam fortunas mirabolantes tornam-se econômicamente inviáveis com o petróleo a US$ 30 o barril. O exército laranja e seu general com mãos sujas de óleo deveriam sair das trincheiras. Perderam. O pior é que fizeram o Brasil perder muito mais, com suas ilusões, erros e crimes.

Fonte: O Globo (24/01/16)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Deslegitimar a Lava Jato é soltar as rédeas da corrupção ( Marco Aurélio Nogueira)

Há uma tentativa de deslegitimização da Lava Jato solta na praça. A chiadeira é forte, impulsionada por advogados dos acusados e por parte da esquerda petista. O tom é um só: estariam a ser desrespeitados o direito de defesa e a presunção de inocência, a mídia se converteu em tribunal, o juiz Sergio Moro extrapola e busca exibicionismo incompatível com suas funções, há vazamentos seletivos em demasia, delatores estão sendo “torturados” para soltarem a língua. Ao passo que alguns dizem, sem cerimônia e pudor, que o quadro é pior que o da ditadura, outros falam que tudo não passa de um esforço para criminalizar o PT e judicializar a política, ceifando-a da liberdade de ação e oprimindo-a com o chicote e o arbítrio da lei.
Deveriam todos parar para pensar.
A corrupção é ou não é um problema? Ameaça ou não a democracia, produz ou não uma situação real de injustiça e privilégio que agrava e potencializa a desigualdade e a exploração que tipificam a sociedade brasileira? Sua continuidade é nefasta e injustificável. Ou não?
A desonestidade dos que buscam comparar a Lava Jato com a ditadura é ostensiva. Eles jogam para a plateia, tentando dramatizar uma acusação leviana, que não tem coerência, nem se reporta com seriedade à história. Passam por cima de tudo o que é fundamental num Estado democrático de direito, como o que vigora hoje, e brincam com as palavras. Não podem ser sérios os que dizem que suspeitos e acusados estariam a ser “torturados” perversamente para denunciar os crimes que cometeram e revelar os demais envolvidos, e que isso é pior do que a tortura dos porões ditatoriais. Trata-se de argumento desprezível, mobilizado tão-somente para agitar e para criar, na opinião pública, a sensação de que estaria em curso a implantação de um “embrião de Estado de exceção” dentro do Estado democrático. Posição que, de resto, somente ajuda a que se defenda o status quo.
Os que falam em ações dedicadas a “criminalizar” o PT e a favorecer a tese do impeachment de Dilma seguem outro caminho, mas também não primam pelo rigor. São muitos os acusados, e eles se distribuem por vários partidos. Dizem que houve compra de votos no governo FHC, que o Cerveró lembrou que mais de R$ 1 milhão foram distribuídos naqueles anos, e que nada disso ganha o destaque que merece. A verdade, porém, é que tudo isso tem vindo à tona, em doses homeopáticas mas seguras. A bomba cai com mais força no colo do PT por um motivo simples: é este partido que manda no País há 13 anos, nada foi feito durante este período que não tenha passado pelo crivo dos petistas superiores, os chefes partidários, à revelia dos militantes. O PT pôs em prática uma estratégia política que incluiu a corrupção de classe como critério: pode ser que isso não tenha beneficiado pessoalmente os dirigentes (há dúvidas a respeito), pode ser que as intenções tenham sido nobres (há dúvidas) e que tudo tenha sido feito para promover os mais pobres com programas de distribuição de renda que só poderiam ser executados com um apoio congressual de que o partido não dispunha e que precisaria obter, custasse o preço que fosse. Se as ideias e as boas intenções não foram suficientes para convencer os aliados, foi preciso empregar remédios mais fortes. A quem não interessa persuadir e dirigir, a única opção é pressionar e mandar.
O “presidencialismo de coalizão” precedeu à chegada do PT ao governo e foi administrado pelo PT sem qualquer tipo de crítica ou contestação. O partido se adaptou a ele, gostou dele, beneficiou-se com ele, aprendendo a crescer como organização, a fazer finanças próprias, a ganhar eleições, ao menos até 2014. Armou uma rede que agora passou a aprisioná-lo. Seus aliados preferenciais agarraram-se a ele e não querem largá-lo. Seus operadores estão a ser revelados um a um, vários estão presos, outros ainda o serão. O temor é geral, faz Brasília tremer.
Certa está a Rede Sustentabilidade de Marina Silva, que fechou questão em torno da continuidade do processo que apura corrupção nas eleições de 2014, em curso no TSE. Se o impeachment de Dilma não entusiasma porque joga o País numa situação incerta, que pode até mesmo incluir uma tentativa dissimulada de travar as operações anticorrupção, a melhor opção é fortalecer o esforço de apuração e penalização dos crimes que vêm sendo cometidos contra a república e a democracia. Doa a quem doer.

Fonte: O Estado de São Paulo (20/01/16)

Laboratório Espanha (Marcos Nobre)

No século 20, a democracia de massas deu as caras em poucos momentos e em bem poucos lugares do planeta. Sua forma habitual foi a da representação por meio de partidos políticos organizados de maneira hierárquica e burocratizada. Progressivamente, esses partidos foram se tornando verdadeiras entidades paraestatais, com laços cada vez mais frouxos com a base da sociedade. Na passagem para o século 21, é a própria forma partido, típica do século passado que está em questão, duvidando-se de sua capacidade de representar sociedades que experimentaram novas formas de vida democráticas.
Um dos mais importantes laboratórios da nova experimentação se encontra na Espanha. Acontece ali um embate aberto entre as velhas formas partidárias do século 20 e as novas plataformas políticas do século 21. Do lado da "velha política" estão o Partido Popular (PP, direita) e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, esquerda). Do lado da "nova política", Podemos e Cidadãos. Na mais recente eleição, ocorrida em 20 de dezembro, deu impasse. Nenhuma formação consegue construir alianças de modo a obter maioria para governar. Visto da maneira tradicional, nenhum problema. Como se trata de uma monarquia parlamentarista, basta realizar novas eleições. Só que o impasse já não se dá mais em termos tradicionais.
De todas as revoltas democráticas que se espalharam pelo planeta a partir de janeiro de 2011, a Espanha conta entre os poucos lugares em que as energias de contestação tomaram forma capaz de mudar a institucionalidade. Os países da primavera árabe tiveram suas revoltas sufocadas por novas ditaduras e por guerras civis. Ou, como na Tunísia, estão com sua jovem democracia na UTI. A experiência grega foi sufocada pela austeridade. No Brasil, a adesão das principais forças políticas ao "centrão pemedebista" formado a partir do Plano Real travou temporariamente a mudança.
No vocabulário da "velha política", formações como Podemos seriam caracterizadas como frentes. Mas uma caracterização como essa não permite entender a novidade desse tipo de configuração. Não se trata de uma coalizão de partidos e organizações hierárquicas que abrem mão da totalidade de seus programas para encontrar um programa mínimo comum. Trata-se de uma plataforma de coletivos e de formações políticas as mais diversas que têm em comum a rejeição de maneiras tradicionais de vivência e de exercício da democracia. Não se trata de edulcorar as coisas, mas simplesmente de constatar que uma formação como o Podemos não é um partido de tipo tradicional.
Na Espanha, ocorreram os dois momentos que parecem caracterizar a nova vaga democrática do século 21: alta proliferação de coletivos e de formações políticas e esforços de convergência em plataformas compartilhadas. A revolta democrática que eclodiu no 15 de maio de 2011 permitiu a emergência pública de um sem número de temas, reivindicações e agrupamentos de discussão e de intervenção. Entre eles, movimentos por autonomia de algumas regiões da Espanha, por exemplo, que ganharam novo impulso e novo sentido.
Uma das maiores dificuldades atuais do Podemos é conseguir encontrar uma forma institucional democrática capaz de permitir que agrupamentos organizados em torno de reivindicações como essas continuem compartilhando a mesma plataforma política. Das 69 cadeiras (de um total de 350) conquistadas na eleição pela plataforma Podemos, nada menos do que 27 delas foram obtidas por diferentes organizações que se reuniram em torno de movimentos por autonomia na Catalunha, na Comunidade Valenciana e na Galícia. E cada um desses nós organizativos aspira ter uma bancada própria no parlamento. Processos semelhantes se dão em relação aos demais coletivos reunidos no Podemos.
O atual esforço é para manter essa multiplicidade de grupos dentro da mesma plataforma política. Só assim o Podemos terá força suficiente para confrontar a política tradicional no campo institucional. E só assim poderá ter êxito sua tática de forçar novas eleições e de ampliar sua força congressual. Do outro lado, o PP, partido no poder, tenta de todas as maneiras formar alianças que permitam governar, jogando pesado para trazer PSOE e Ciudadanos para um governo de "grande coalizão". O principal objetivo dessa tática é isolar o Podemos e manter a hegemonia da "velha política".
Como em outros países de democratização recente, também na Espanha a referência da disputa e do debate político é a Constituição, que serve de elo entre a "velha" e a "nova política". Não que a Constituição ela mesma deixe de estar em questão. Está na pauta mais do que nunca a discussão sobre autonomia e independência de várias regiões, por exemplo. Assim como está em debate a própria continuidade da monarquia espanhola, que tem agora a irmã do rei Felipe VI no banco dos réus em um caso de corrupção envolvendo seu marido, episódio que acabou por exigir a abdicação do rei Juan Carlos em favor de seu filho. Mas o quadro constitucional ele mesmo ainda serve de guia nesse momento de transição.
Momento que está longe de se restringir à Espanha ou à esquerda do espectro político, aliás. A corrida pela indicação do candidato republicano nos EUA é um dos exemplos de que o bipartidarismo na sua forma atual não está sendo mais capaz de representar o conjunto das forças sociais naquele país. O desespero da máquina partidária republicana diante da liderança pela indicação de Donald Trump e de Ted Cruz mostra que, desta vez, a ameaça de que o dique da burocracia se rompa é real e iminente.
Não vai faltar quem diga que basta esperar para que um novo processo de burocratização e de "fusões e aquisições" leve plataformas como o Podemos de volta à velha forma que teve o sistema partidário do século 20. Também não é nada óbvio que o Podemos consiga evitar a desintegração e a fragmentação. Como também é possível que regressões antidemocráticas venham a sufocar experimentos como esse. Mas, pelo menos por enquanto, o laboratório continua aberto e funcionando. E os resultados não são previsíveis.

(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Fonte: Valor Econômico (18/01/16)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

‘Há muita resistência em apoiar a educação básica’, (Renato Janine Ribeiro/entrevista)

- Ex-ministro afirma que grupos ‘que se dizem de esquerda’ tentam concentrar os gastos do governo no ensino superior -
Renato Janine Ribeiro, de 66 anos, foi ministro da Educação por seis meses em 2015. Ao ser anunciado em março daquele ano pela presidente Dilma Rousseff, especialistas da área celebraram o fato de o governo ter escolhido alguém de perfil técnico e próximo das questões do ensino.
A passagem de Janine pelo cargo durou pouco a fim de que Dilma, em meio a uma crise política, reacomodasse os aliados na Esplanada dos Ministérios. Dessa forma, Aloizio Mercadante voltou à cadeira da Educação, que já havia ocupado anteriormente.
Nesse curto espaço de tempo, Janine colocou como sua pauta central o fortalecimento da educação básica (que inclui os ensinos infantil, fundamental e médio), algo que vem sendo apontado como prioritário no Brasil desde os anos 1990, apesar de demorar a avançar.
Relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), publicado em 2014 mas com dados de 2011, mostra que, no Brasil, um aluno de ensino superior recebia quatro vezes mais investimento do que um de ensino fundamental.
Nesta entrevista ao Nexo, concedida em 17 de dezembro, na Casa do Saber (em São Paulo), ele afirma que levar essa pauta adiante causou uma situação que, nas suas palavras, é “paradoxal”: “Há muita resistência em apoiar a educação básica no Brasil - e não é pouca coisa. Essa resistência vem justamente de grupos que se dizem de esquerda.”
O ex-ministro também comentou a Base Curricular Nacional Comum, uma proposta de unificar o currículo educacional no Brasil. Segundo críticos, entre eles Janine, o documento tem falhas "ideológicas" no ensino de História.
Professor aposentado da Universidade de São Paulo com doutorado em filosofia, Janine deu aulas na instituição por mais de 20 anos. Ensinou ética e filosofia política. Também foi diretor de avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Quando você comandava o Ministério da Educação, falava muito em reforma na educação básica e dizia que ela era prioritária. O que deu para fazer em relação ao tema e qual a perspectiva daqui para frente?
RENATO JANINE RIBEIRO
Deu para sinalizar e insistir na importância do tema. Na verdade é algo que desde 1992 se trata como prioritário. Percebi quanta resistência existe em relação ao desenvolvimento da educação básica, principalmente dentro do sindicato dos professores universitários. Na pauta da greve [ocorrida durante sua gestão] eles pediam para que quase toda a verba federal fosse para o ensino superior, cortando a educação básica. Há muita resistência em apoiar a educação básica no Brasil - e não é pouca coisa.
Essa resistência vem justamente de grupos que se dizem de esquerda, o que é ainda mais paradoxal. A educação básica é a que mais traz benefícios sociais. O problema do ensino superior é que ele é muito fácil de privatizar. As pessoas consideram o diploma universitário como um bem privado para fazer uso como quiserem sem sentirem dívida com o país.
Ao mesmo tempo, no ensino básico você resgata pessoas da ignorância e da miséria. Abre uma perspectiva muito grande para elas desde que seja capaz de superar uma coisa terrível que é o analfabetismo. 57% dos alunos da rede pública terminam o terceiro ano de escolaridade, aos oito anos de idade, sem fazer as quatro operações matemáticas. Isso é assustador. Há um número significativo de pessoas que vão levar uma deficiência muito séria no seu futuro. Ficarão para sempre atrasadas.
De forma prática, como você pretendia mudar esse cenário?
RENATO JANINE RIBEIRO
Em um momento de crise econômica você tem que fazer o melhor rendimento possível do dinheiro que tem. É necessário economizar nos mais variados itens e motivar os mais diferentes parques de universidades e institutos federais para a educação.
A prioridade imediata é alfabetizar as pessoas entre seis e oito anos. A segunda é pegar a educação infantil, desde a creche, e formar professores para que eles sejam capazes de ensinar brincando - isso significa, por exemplo, valorizar jogos que socializem, que valorizem a cooperação e não o conflito. É uma especialidade muito difícil, você precisa conhecer muito mais do que o conteúdo, é necessário saber psicologia, pedagogia no melhor sentido do termo etc.
É preciso pegar esses que não estão sendo alfabetizados e garantir que esse número de analfabetos caia muito. Quando resolvermos isso, aí puxamos a prioridade para as crianças entre zero e três anos, que é quando se forma a maior parte das sinapses. A criança que até os três anos não teve incentivos bons e educacionais não irá ter o mesmo nível de desenvolvimento de quem teve essas condições de educação.
Esses dois tipos de professores - de creche e o alfabetizador - praticamente não são formados hoje. Desde a extinção do antigo curso normal, que era um curso de nível médio, essa formação ficou órfã. Isso tem mais de 20 anos. Na formação de professores você ainda tem uma educação voltada a teorias.
O governo, quando teve recursos para isso, e teve durante dez a doze anos, interveio em todas as faixas: da educação infantil ao pós-doutorado.
Como você avalia esses 12 anos de interferência. Os resultados ficaram aquém do que poderiam?
RENATO JANINE RIBEIRO
Em 12 anos houve um avanço significativo na inclusão. Praticamente todos os alunos do ensino fundamental estão na escola. É quase universal. No caso do ensino infantil a proporção de alunos é alta. Já no ensino médio é menor, mas a evasão é muito grande.O governo também investiu muito em questões que são de suporte, como alimentação e permanência. Haviam escolas até que não tinham banheiro e o governo federal interveio construindo.
O avanço na qualidade do ensino não foi na mesma direção. Os estudiosos dizem que aumentar a quantidade e qualidade ao mesmo tempo é muito difícil. A qualidade do ensino ainda deixa muito a desejar.
Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos países da OCDE que investe maior porcentagem do PIB na educação.
RENATO JANINE RIBEIRO
Proporcionalmente, colocamos uma parte do PIB maior do que vários países da OCDE, como a Alemanha, que têm índices de educação melhores que o nosso. Só que o PIB per capita deles é mais alto. Para melhorar a educação, estamos condenados a crescer economicamente. E batemos em um problema sério. Como a economia começou a recuar, o investimento na educação também diminuiu.
Como tivemos doze anos de recursos abundantes, agora temos pessoas que não estão dispostas a fazer mais por menos. Toda vez que há uma proposta de economia há uma revolta.
Há problema de gestão nas universidades. Você tem instituições federais que têm gestão muito ruins. A Universidade Federal do Rio de Janeiro é famosa por isso. Ela gasta muito sem critério. Há toda uma série de vícios do sistema que devem ser reduzidos.
Como você analisa o desenvolvimento da Base Curricular Nacional Comum?
RENATO JANINE RIBEIRO
Ela foi conduzida quando eu era ministro. Vi problemas muito sérios na base de História. Alertei o secretário de educação básica. Era totalmente ideológica. Apesar de termos adiado a entrega, a comissão não quis refazer. Ela entregou praticamento o mesmo trabalho e agora tem sido bombardeada. As críticas são bem vindas e devem ocorrer.
Há outros problemas. O ministro Mercadante atentou que no currículo de português não há gramática. Meu receio é que, tornando mais fácil o aprendizado, ou adequando-o muito às modas do momento, acaba deixando as pessoas muito limitadas.
No entanto, o documento da base, não era um documento ou proposta oficial do MEC. Deixei isso claro quando divulguei. O MEC não tinha obrigação nenhuma de defendê-lo. Era apenas um documento elaborado por pessoas convidadas pelo ministério para servir de partida para uma discussão. Não tenho certeza se será possível ou desejável completar a base curricular em meados de 2016. A discussão precisa ser muito profunda. Em vários países do ano, foram anos para elaborar a base curricular.
Há alguns setores no debate público dizendo que as aulas no ensino público são ideologizadas. Você concorda?
RENATO JANINE RIBEIRO
Não sei se elas são ideologizadas. Os livros que o MEC aprova não são ideológicos. Agora, algo deve ser claro: você deve dar uma formação universal. É importante ensinar sobre os fatos e depois capacitar o aluno para que ele possa se posicionar frente aos fatos que ele aprende. Todo mundo aprende que o Brasil passou por um processo de extração do pau-brasil, depois pelo ciclo da cana de açúcar etc. Isso todos precisam saber - como você irá interpretar isso é outra história.
Você não pode negar a escravidão e seu caráter opressivo e odioso. Mas varia como o aluno irá entender tudo isso. Ele deve ser encorajado e capacitado a procurar suas interpretações. Isso não quer dizer que todas sejam iguais. Vamos pegar um caso específico da Física: Criacionismo não é ciência. Não é para ser ensinado nas escolas; lá só deve se ensinar o que é ciência.
No caso de política, é válido um professor dizer qual sua ideologia e colocar o que ele acredita na aula?
RENATO JANINE RIBEIRO
Apenas desde que ele apresente uma proposta oposta. O professor não pode impôr a ideologia apresentando apenas um lado, isso é contrário à missão dele. Veja o caso da Economia: vivemos num mundo capitalista. Há teorias que criticam a economia capitalista - uma delas é a marxista. Marx faz parte da história, conhecê-lo é lícito. No entanto, você também precisa dar abertura a todas as críticas que ocorreram a Marx. Mesmo porque há previsões dele sobre o capitalismo também não deram certo.
O professor precisa abrir espaço para o aluno ter visões de todos os lados e ter seu pensamento próprio. Não se trata de deixar cada um achar o que quer, precisa pensar. Escola é lugar de pensar. Isso é muito diferente de cada um continuar com seus preconceitos anteriores. Os alunos têm que vencer preconceitos e aprenderem lidar com a realidade.
E como isso lida com o debate em torno de discutir ou não questão de gênero nas escolas?
RENATO JANINE RIBEIRO
A igualdade absoluta entre homens e mulheres é um dos valores básicos da sociedade e deve ser respeitada. Ademais, a escola deve ser acolhedora e acolher as pessoas como elas são. Se há pessoas que não vivem o sexo biológico delas, mas têm outra identidade, não pode fazer com que elas sofram. Isso vale para tudo. Há um ponto no Plano Nacional de Educação em combater qualquer discriminação.
Esse assunto foi superestimado. É um entre muitos da escola e acabou virando “O” grande assunto. Grupos considerados de esquerda quiseram colocar a discussão de gênero no Plano Nacional de Educação e, como isso não iria passar, o presidente da comissão de educação, o deputado Chalita, propôs uma formulação que satisfaria todos, que é o combate a todos os preconceitos. Por um grande erro de todos os setores que defendiam a discussão de gênero, quiseram manter o princípio e perderam o voto. A interpretação que o Chalita deu, que o governo dá e que a lei diz é que todo e qualquer preconceito é ilícito, inclusive o de gênero. Todos são todos.
Esse assunto acabou dando uma munição muito forte para grupos conservadores e desviou a discussão de aspectos propriamente educacionais. Os planos de educação estaduais e municipais poderiam ter focado em questões como: será o caso de ter um segundo professor nos anos de alfabetização? Será o caso de estabelecer gradualmente metas de escola em tempo integral? Será o caso de aumentar os recursos para educação? Criar conselhos municipais e juntas de educação? Democratizar e profissionalizar a gestão? Essas questões deveriam ter sido discutidas e foram caladas em função da discussão de gênero. Foi uma grande perda de oportunidade para o Brasil.
Frente a tudo isso que discutimos, como você avalia o episódio das ocupações das escolas em São Paulo contra a proposta de reorganização escolar? Qual o marco que fica?
RENATO JANINE RIBEIRO
Penso que o governo do estado tinha duas medidas que podem ser corretas. Por um lado estabelecer a distinção etária em grupos escolares pode se justificar porque facilita a gestão e permite que o diretor foque em questões essenciais, como o aprendizado. Você ter escola com pessoas de seis a 17 anos é difícil. A medida não é errada. Também não é errado juntar salas e escolas.
Agora, o modo de fazer isso foi um erro gigantesco. E não é modo como se o conteúdo estivesse bom. Nesse caso, o modo é o conteúdo. Se você quer educar as pessoas primeiro precisa explicar muito bem o que está fazendo. Pelo visto houve erros na locação das escolas. Crianças foram obrigadas a estudar muito longe de escola. Tinha que discutir longamente, mostrar a importância, mostrar a lei. Não podia ter sido feito em cima da hora com um decreto.
Espero que em 2016 tenha mais aprendizado e discussões. Que corrijam erros e não deixem nenhuma criança em escola afastada. O erro gigantesco foi na aplicação. Várias escolas que iam ser fechadas não deveriam ser fechadas. A reorganização escolar podia ser uma grande oportunidade de mobilizar a juventude. Como o governo não o fez, a juventude fez por si. Resta saber se no ano seguinte o movimento deixará legado ou se será um fogo de palha. A manifestação de 2013 foi fogo de palha, não deixou nenhum líder, nada.
O que você acha que foi a melhor coisa que conseguiu fazer no ministério e o que gostaria de fazer?
RENATO JANINE RIBEIRO
A melhor coisa que consegui fazer foi porque eu designei uma pessoa só para isso, a Helena Singer, que é a educação inovadora e criativa. Há toda uma discussão de muita gente boa sobre ter uma discussão mais libertadora e formadora. Há duas coisas que faltam muito na educação: alegria e criatividade. É necessário aumentar muito os dois e, para isso, é preciso mexer muito na educação.
Como você analisa a continuidade do Mercadante?
RENATO JANINE RIBEIRO
Mercadante manteve praticamente toda a equipe e projetos. Penso que o fato de ele ter um respaldo político muito forte no Planalto favorece a área. No entanto, é importante fazer uma distinção importante entre o que aconteceu na Saúde e na Educação: na Saúde, saiu um médico de alta qualidade, o Arthur Chioro, e que foi substituído por um político. No caso da Educação, eu não tive nenhum pedido de loteamento político. E o Mercadante também não está fazendo nenhum loteamento. O MEC está sendo preservado. Nesse sentido, não tenho nenhuma crítica.

(Kaluan Bernardo 20 Jan 2016)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A autocrítica bloqueada ( Luiz Sérgio Henriques)

Muito difícil, para indivíduos e organizações de qualquer natureza, o exercício da autocrítica. Por implicar avaliação rigorosa dos próprios atos, sem cancelar os aspectos problemáticos e até negativos, costuma dar a ideia de fraqueza: é como se, no caso dos organismos políticos, se abrisse o flanco ao inimigo, mostrando os pontos frágeis que tornariam possível um contra-ataque arrasador. Coisa de ingênuos, diriam os que abraçam uma concepção cínica (“maquiavélica”) da política.
O acúmulo de erros que marcaram o petismo no poder, especialmente visíveis quando passou a bonança propiciada pela emergência do gigante chinês, suscitou, de vários comentaristas, a observação de que tem faltado ao partido dominante, para remate de males, esse tipo de avaliação de si mesmo. Evidenciou-se algo que Leandro Konder, um intelectual comunista que deixou marcas, chamou a seu tempo de “atrofia conservadora da autocrítica” (O Marxismo na Batalha das Ideias, Nova Fronteira, 1983).
Konder sabia do que falava. Para se preservarem, mesmo partidos ditos progressistas se especializaram em autocríticas rotineiras, impondo-as mecanicamente aos militantes. Comum, por exemplo, a admissão formal de culpas, como quando se confessavam sucessivos e inexplicáveis “desvios de direita” e “de esquerda”, que levavam ao afastamento da “linha justa”. Esse tipo de engano, aliás, é mais universal do que parece. Certo político conservador brasileiro, inquirido sobre erros cometidos, informou, impávido, ter tido sempre o defeito de estar à frente do seu tempo, o que lhe trazia dificuldades de comunicação com os contemporâneos...
A presidente Dilma Rousseff não parece longe desses modelos, ou antimodelos, ao se dizer vítima, em primeiro lugar, de circunstâncias externas desfavoráveis, o que em parte é verdadeiro, e em segundo, da má vontade das oposições, inconformadas com as urnas e dispostas a explorar oportunisticamente a conjuntura difícil. O ministro Jaques Wagner, na estratégica e aparentemente amaldiçoada chefia da Casa Civil, vai pelo mesmo caminho, criticando o “impeachment tapetão”, metáfora futebolística para aludir ao que seria a banalização deste remédio legal por parte das oposições depois de perdido o jogo dentro das quatro linhas.
Sem considerar a viabilidade ou a oportunidade deste lance oposicionista, é mais do que pertinente pedir contas ao PT da quase dúzia e meia de pedidos de impeachment apresentados nos governos Fernando Henrique Cardoso. Em sua grande maioria, tais pedidos não foram assinados por “qualquer do povo”, mas por dirigentes, deputados e juristas reconhecidamente ligados ao PT. Teriam sido, na época, recursos também extralegais ou “antiesportivos”? Pela sua reiteração contumaz, seriam índices de um DNA golpista do então grupo político de oposição?
A crítica, mesmo dura, ao impeachment de agora ganharia mais substância se acompanhada do reconhecimento, pelo PT, do caráter desajuizado da sua oposição em passado nem tão remoto. Ou devemo-nos acostumar a um duplo padrão de comportamento?
O ministro Wagner foi só um dos últimos dirigentes a declarar que o erro maior do seu partido residiu em não ter feito milagrosa e regeneradora “reforma política” já no primeiro mandato do presidente Lula. Tal como o político conservador lembrado por Konder, aqui o exercício hipócrita da autocrítica desliza quase automaticamente para o autoelogio. O petismo, neófito nas práticas patrimonialistas “tradicionais”, ter-se-ia deixado enredar por métodos viciados do passado. Por excesso de virtude, o partido viu-se desarmado diante do que inesperadamente viu à sua frente, uma vez chegado ao poder.
Nenhuma palavra sobre a degeneração político-partidária novíssima, protagonizada – ai da democracia, ai de cada um de nós, cidadãos! – pelo partido dominante a partir de 2003. Degeneração elevada a método de poder, em circunstâncias que uma operação destinada a fazer história, como sua congênere italiana, a Mãos Limpas, desvenda cotidianamente, para espanto geral. Um partido e um governo que, segundo testemunhos insuspeitos, como o do ex-ministro das Comunicações e decano da Câmara dos Deputados Miro Teixeira, decidiram desde o início, em suas instâncias máximas, encaminhar as relações com o “Congresso burguês” em termos “orçamentários”, não em termos de debate e negociação com os demais partidos, inclusive os da oposição mais responsável – que havia.
Partido dominante, dissemos, não propriamente dirigente. Só quem verdadeiramente dirige é capaz de levar a cabo reais reformas políticas, com o fito de reforçar a democracia dos partidos e o regime representativo. Palavras voam e escritos (e ações) permanecem: o partido cujo horizonte é a mera dominação logo se obstinaria, como se obstinou e provavelmente continuará a fazê-lo, em esvaziar um dos protagonistas do centro democrático, o PMDB, estimulando suas facções, cooptando-o subordinadamente ao sistema de poder em construção ou mesmo favorecendo franquias, como o PSD, para desarticular o jogo partidário.
A democracia brasileira necessita vitalmente de uma forte participação da esquerda política, quer como força de governo, quer como fermento das lutas sociais e motor da inovação. Pode perfeitamente acontecer que uma das suas figuras históricas – o PT de Lula – esteja rigorosamente aquém desse papel vital. Não à toa, na conjuntura de 2005 houve vozes, na verdade, inconcludentes, que falaram em “refundação” partidária. Mais recentemente circulou a tímida exigência de um “exame de consciência”. É pouco: para oxigenar e, quem sabe, renovar ares excessivamente pesados, melhor desbloquear o mecanismo impiedoso da autocrítica, resguardado, naturalmente, o exercício da crítica por parte dos demais atores, o que vem a ser a alma da esfera pública em regime de liberdades.
(*) Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

Fonte: O Estado de São Paulo (17/01/16)

Qual será o novo ciclo político na América do Sul? O momento é de desconcertos e reorganizações (Bruno Cava/entrevista)

IHU On-Line - A que atribui o fim do ciclo progressista na América do Sul? Por que ele vem dando sinais de esgotamento?
Bruno Cava - O ponto forte dos governos progressistas foi seu ponto fraco. Nasceram de mobilizações democráticas nos anos 1990 e 2000: a Revolução Bolivariana, na Venezuela, do Caracazo e das rebeliões plebeias; a Revolução Cidadã, no Equador, das revoltas urbanas de 1997, 2000, 2001 até a rebelión de los forajidos, em 2005; a Revolução Democrática e Cultural, na Bolívia, do ciclo insurgente da água (2000) e do gás (2003); nos casos de Brasil e Argentina, a crise asiática de 1997 precipitou o desmoronamento da relativa estabilidade construída pelos governos de FHC e Menem, culminando na ingovernabilidade argentina de 2001-02 — quando explodiu o tumulto dos piqueteros e cacerolazos, ao que se seguiu o kirchnerismo — e na ascensão eleitoral de Lula do PT, que havia sido derrotado nos três pleitos anteriores (1989, 94 e 98).
Ao longo da última década, as mobilizações transmitiram o impulso para a composição dos governos, determinando, em todos os casos, distribuição de renda e riqueza social. As medidas e políticas dos governos progressistas desenharam um círculo virtuoso com um processo multitudinário, “desde baixo”, que se reapropriou das condições mais propícias e desbloqueou uma energia enorme, o que conduziu a profundas e irreversíveis mudanças. Este processo se desdobrou numa dimensão institucional mais pronunciada nos países andinos (plurinacionalidade e paradigma indígena do buen vivir) e na Venezuela (conselhos, missões, círculos bolivarianos, cooperativas), com processos constituintes, mas também em inovações importantes, por exemplo, no Brasil, com o Programa Bolsa Família e a política de pontos de cultura — que hoje são referência internacional.

Três inflexões

Houve, então, três inflexões, articuladas entre si. A primeira inflexão foi a ruptura da relação entre governos e movimentos. Se, num primeiro momento, havia a convivência tensa das várias tendências, sendo pertinente imaginar uma estratégia “dentro e contra” dos governos, essa tensão se desfez nesta década. São emblemáticos da resolução de tensões os episódios da construção da autoestrada no Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Secure (TIPNIS), na Bolívia; a exploração petrolífera do parque de Yasuní, no Equador; os megaprojetos urbanistas e imobiliários relacionados com a Copa e as Olimpíadas, ou a construção de Belo Monte e outras barragens no Norte, no Brasil. Isto reuniu uma constelação de movimentos indigenistas, ambientalistas, de moradia, de direitos humanos contra os progressistas. Ao mesmo tempo, ao subordinar-se à “estratégia superior” dos governos, os movimentos, centrais sindicais e coletivos mais governistas drenaram a sua vitalidade e imaginação, o que corroeu também as novas instituições venezuelanas, numa passagem, por assim dizer, de uma matriz nacional-popular para nacional-estatal [1].
A segunda inflexão se deu com a transformação interna da composição social. Enquanto os governos se aferravam a seus projetos de desenvolvimento e cidade, numa lógica dirigista, as sociedades se tornavam mais complexas e multifacetadas, com novos protagonistas entrando em cena. Em parte, isto foi um dos resultados positivos do círculo virtuoso mencionado: com mais ferramentas, tempo e recursos, quero mais, me organizo melhor, defendo e afirmo melhor os meus interesses [2]. Contudo, essa transformação foi encarada reativamente pelos intelectuais e mídias progressistas, como uma ameaça e um déficit, o que favoreceu a impermeabilização dos governos a quaisquer sujeitos fora de sua “zona de conforto” ideológica. Segundo essa postura reativa, a nova composição social teria aderido aos valores neoliberais, ao consumismo, ao conservadorismo. Não seria um genuíno proletariado, mas um subproletariado, uma massa desorganizada e amorfa [3], e naturalmente inclinada a votar nos candidatos da oposição. Mas há mais entre a esquerda e a direita do que supõem as categorias progressistas. Como escreveu Pablo Stefanoni sobre a Venezuela, surgiu “un larguísimo etcétera de luces y sombras, es una tarea compleja que requiere, además, de información empírica” [4] . Foi esse longo etcétera de claros-escuros que, politicamente, se exprimiu nos levantes brasileiros de 2013, venezuelanos do começo de 2014, e equatorianos de junho de 2015 [5] . O continente desconhecido inclui também uma série de outras expressões geralmente achatadas nas análises, tais como o movimento anticorrupção, a emergência evangélica, os rolezinhos e fluxos de rua, além do surgimento de um consumitariado [6] . Em todos os casos, em face de uma suposta hegemonia discursiva, as mobilizações seriam capturadas pela “direita” (alcunha do que podem ser cada vez mais coisas). O discurso progressista costuma enfatizar a força reacionária da televisão na “disputa de narrativas”, mas contorna o fato de que, nos últimos 15 anos, aconteceu uma significativa inclusão digital, as redes sociais, a revolução das lan houses, a portabilidade e a “twitter revolution” no norte da África [7] .
A terceira inflexão, por último, decorreu da simples falta de renovação. Os progressismos ficaram velhos. Os discursos, as práticas, as técnicas organizativas, os ídolos. E não é questão de idade, porque se vai encontrar o envelhecimento desde o movimento estudantil. Por uma série de fatores. Por exemplo, em vez de valorizar a miscigenação com o ciclo alterglobalização de Chiapas, Seattle e Gênova, preferiu-se reportar as principais referências e simbologias aos anos 1970-80, especialmente na Argentina e no Brasil. Não há, além disso, qualquer preocupação em pesquisar outros processos sociais, políticos e econômicos, reproduzindo-se os velhos macetes da classe-média-reacionária, do golpismo-fascismo, da grande-mídia-imperialista. Aconteceu a impermeabilização em relação a novos ciclos de lutas, bem como o nivelamento sistemático das oposições, que hoje habitam caldos efervescentes de indignação social. Os sinais da velhice aparecem igualmente na adesão quase instintiva a grandes narrativas, que hipostasiam o passado neoliberal para explicar os conflitos do presente, e na crescente adoção de teorias conspiratórias para justificar os próprios problemas e limitações, remetendo a culpa a um Grande Outro. Hugo Chávez, por exemplo, chegou a contrapor-se às revoluções árabes, cerrando fileiras com ditaduras no discurso do imperialismo [8] . Na Bolívia e Equador, movimentos indigenistas são frequentemente reduzidos a instrumentos dos vende-pátrias (no caso boliviano, quem enuncia essa operação é o vice-presidente, Álvaro G. Linera), enquanto no Brasil o levante de 2013 — com ressonâncias distantes ao que se vayan todos argentino de 2001 [9] , e próximas às sublevações de Parque Gezi na Turquia [10] — teria por objetivo oculto a restauração conservadora, sob a manipulação – ou pelo menos o oportunismo — dos interesses do grande capital em desestabilizar um Estado nacional-popular.
As três inflexões, acentuando-se reciprocamente, fecharam as brechas constituintes e resolveram as polivalências iniciais, levando ao esgotamento do ciclo [11] . A exaustão começou a manifestar-se, inclusive, eleitoralmente. Os governos progressistas estão sendo derrotados em seus próprios termos, isto é, enquanto apoio dos pobres, apoio da maioria. Nesse sentido, 2015 foi um inferno astral para os progressistas: Mauricio Macri venceu o candidato da situação na Argentina e pôs fim ao kirchnerismo no poder [12] ; a oposicionista Soledad Chapetón venceu a eleição à prefeitura de El Alto, a segunda cidade da Bolívia, habitada por ameríndios e foco da guerra plebeia do gás em 2003 [13] ; a coalizão antichavista emplacou 16% de votos à frente do partido de Nicolás Maduro, obtendo maioria na assembleia venezuelana [14] ; no Equador, depois do baque da conjuntura pós-levantes [15] , Rafael Correa disse que não vai candidatar-se à reeleição no ano que vem [16] . E Dilma Rousseff enfrentou protestos na casa do milhão, com rejeição em todos os segmentos e índice de popularidade inferior à taxa de inflação, que fechou em 10,7% no ano.
Portanto, o ponto forte da composição originária com mobilizações, forças constituintes e inovações democráticas se converteu, uma década e meia depois, no ponto fraco dos governos progressistas. O ciclo pode ser lido como um palíndromo, em que se inverte apenas a posição relativa dos governos diante da mobilização. Não é por outro motivo que os governos não conseguem torcer a crise num projeto positivo de recuperação, no momento em que a demanda asiática arrefece e despencam os lucros da exportação de commodities (petróleo e derivados, minério, soja, milho, carne, açúcar, café, crustáceos etc).

IHU On-Line - Quais foram os limites dos governos progressistas na última década na América do Sul?
Bruno Cava - O principal limite foi o projeto desenvolvimentista. Ao redor do desenvolvimentismo, se organizou a governabilidade, a sua força motriz. O desenvolvimentismo é mais do que um projeto econômico, ele é uma matriz política, cultural, civilizatória. No Brasil, as recentes investigações em andamento sobre os empréstimos, subsídios, acordos e negócios do desenvolvimentismo, como ele aconteceu na prática, têm fornecido elementos para anos de estudo pela academia. A operação Lava Jato é a Glasnost do governo Dilma e do desenvolvimentismo. Já conhecíamos as dimensões mafiosas e ecocidas dos principais projetos (me reporto a Giuseppe Cocco e Idelber Avelar, num e noutro caso [17] ), mas nenhum pesquisador por mais premonitório tinha a inteira noção do funcionamento do desenvolvimentismo real.
Subsistiriam duas tendências internas ao desenvolvimentismo realmente existente. Uma focada na força do social, nas inversões em proveito da distribuição de renda e investimentos públicos como carro-chefe, que foi batizada de “social-desenvolvimentismo”. A outra está mais voltada a conferir prioridade estratégica ao setor produtivo privado, já preparado para enfrentar os desafios do progresso técnico e assumir os riscos dos grandes investimentos, como vetor de uma desejada industrialização endógena, o “novo-desenvolvimentismo” [18] . A primeira teria sido majoritária e bem sucedida no governo Lula, catalisada pelo aumento do salário mínimo, programa bolsa família e expansão do crédito popular, e que conduziu a um incremento real do salário (em sentido amplo, cota do trabalhador em relação à produção social). A segunda, por sua vez, teria atingido o clímax com o Plano Dilma de 2012, ou seja, o conjunto de incentivos, desonerações, subsídios, redução da Selic e desvalorização cambial (dólar a R$ 2) — o que o então ministro Guido Mantega batizou de “nova matriz econômica” [19] .

Críticas

Existe uma crítica intramuros contra a segunda vertente, por exemplo, pelo André Singer [20] , que merece ser retomada. Basicamente, André diz que Dilma não assistiu à Terra em transe. Como Vieira no filme de 1967, Dilma apostou num projeto político fiado na aliança entre esquerda burocrática e burguesia industrial nacional; mas, na hora da verdade, terminou abandonado/a pelos empresários e seu instinto classista — a sempiterna bomba-relógio do pacto nacional-desenvolvimentista, como Glauber Rocha já havia diagnosticado no cinema [21] . O artigo, no entanto, é condescendente às escolhas e estratégias do governo, rabiscando a imagem que a política desenvolvimentista de Dilma teria desafiado forças poderosas e terminou sitiada. Quem não conhece a história recente do país talvez pudesse solidarizar-se com o quadro, quase como Allende no La Moneda. Os metarrelatos setentistas não tardam.
Outra crítica dentro do campo desenvolvimentista, mais interessante, tenho encontrado nos textos de Laura Carvalho, também na linha que Dilma seguiu a agenda das empresas e subsidiou o lucro [22] , sem critérios adequados de contrapartida econômica e/ou social. Como se o governo tivesse ido ao restaurante e pedido um prato caro, o empresariado sai da mesa e a conta fica para — adivinhe quem — pagar. Sem simplesmente condenar a expansão de consumo e crédito, a economista contrapõe-se ao “novo-desenvolvimentismo” (Bresser-Pereira) centrado na taxa de lucro dos empresários industriais nacionais, para então realçar a prioridade do investimento social, segundo o imperativo de investir em renda, saúde, educação. Suas análises têm a vantagem de não incidir num desenvolvimentismo linha-dura, uma espécie de industrialismo back-to-basics, com avaliações geralmente ambíguas sobre o desenvolvimentismo da ditadura com Geisel e o 2º PND [23] (e as ditaduras em geral).
Laura e Fernando Rugitsky publicaram recentemente um artigo in progress [24] , em que aplicam modelagens dinâmicas referenciadas no economista polonês Michal Kalecki para explicar o êxito socioeconômico dos governos Lula, pela sinergia entre distribuição de renda, investimento público, expansão do crédito e consumo. Nesse sentido, o boom do preço das commodities se inscreve na explicação antes como um fator positivo; porém, não fundamental para o aumento da demanda efetiva e os bons resultados em praticamente todos os indicadores socioeconômicos. Mais importante do que avaliar quantitativamente o capital acumulado graças à bonança das exportações, é avaliar o que é feito e como é feito com esse capital, o aspecto qualitativo das escolhas e estratégias diante da circunstância. As canetadas dilmistas de 2012, nessa leitura, podem ter interrompido o ajuste fino do círculo virtuoso, induzido pelas políticas lulistas pró-salário, exatamente num momento em que as margens de manobra começavam a derreter.
Usar Kalecki traz uma vantagem analítica em relação ao mais clássico Keynes, já que naquele o salário não aparece como apenas mais uma variável entre as demais [25] . Quando se estudam as equações aparentemente sofisticadas da macroeconomia, se nota rapidamente como as variáveis incidem umas sobre as outras, amiúde provocando curtos-circuitos e paradoxos. Aí se pode ter a impressão de neutralidade, por exemplo, que se deveria na circunstância tal e tal promover cortes no salário real para favorecer a taxa de lucro e, com isso, digamos, trazer ganhos em competitividade ou investimento. É um disparate, porque o salário não é uma variável qualquer, e mede a luta e a participação dos trabalhadores na riqueza. As crises são momentos-chave da reorganização do capital, quando se coloca a conta na mesa. Difícil enxergar distinção entre um economicismo de crise e uma teodiceia, em que se justifica o mal no mundo hoje em nome de um futuro melhor. E qual ponto de vista se assume numa análise keynesiana que toma a economia como mecanismo e não o capitalismo como violência? [26]

Limitação do desenvolvimentismo

Não é suficiente, no entanto, aditivar a macroeconomia com ciclos kaleckianos, pois algo de fundamental continua intacto e é aqui, aliás, que reside a principal limitação do desenvolvimentismo — inclusive do social-desenvolvimentismo, professado pela “esquerda do progressismo”. O horizonte insuperável desse projeto e pensamento ainda é a oposição entre Estado e Mercado, atualizada segundo a narrativa da luta contra o neoliberalismo, que virou uma crosta discursiva, onde Estado e Mercado terminam por funcionar na mesma matriz dirigista. Realça-se a redução de desigualdades, mas não a transformação do próprio sistema econômico, a partir da relação de exploração que o constitui [27] . Realçam-se, desse modo, critérios objetivantes em vez de subjetivantes.
É uma avaliação insuficiente, que perde de vista “variáveis” importantes. O salário não é uma variável qualquer somente por seu conteúdo ético-político, como remediação da miséria e justiça social, mas porque tem em sua composição concreta uma assimetria em relação ao lucro. O salário é capaz de autovalorização, tem um grau crescente de independência [28] . Como produção de subjetividade, o desbloqueio da produtividade social durante a década de 2000 levou não apenas a um vaivém do regime de acumulação de capital, entre ciclos kaleckianos wage-led ou profit-led, mas a um ciclo de lutas, a uma nova composição de classe. As lutas têm uma imediata expressão econômica, não podendo ser escanteada em nome de positivismos metodológicos. Isto pressionou por si só, em sua força agregada, a taxa de lucros, porque o limite da exploração não deixa de ser, justamente, o poder de classe.
Recordemos que, no Brasil de 2013, além das jornadas de junho e ocupações de casas legislativas, presenciamos o denso arco de revoltas no Rio até a greve autônoma dos garis de fevereiro de 2014, passando pelo “Fora Cabral”, o piolhamento midiativista e a campanha “Cadê o Amarildo?”; a primavera gaúcha de abril, a proliferação de rolezinhos no final do ano, a ocupação do canteiro de Belo Monte e do Congresso por indígenas, e cerca de 2.050 greves no país todo [29] . E como o governo lidou com essa mobilização? Como se fosse desestabilização do Estado, enfraquecimento institucional, vindo a promover em vários casos medidas repressivas, e assim cruzando limiares estranhos para quem reivindica a memória dos anos 1970. E houve quem se apressou para sentenciar que essas mobilizações fariam parte de uma conspiração do capital financeiro internacional para sustar o Plano Dilma, que seria produtivista e nacionalista —, como se capital industrial e financeiro não fossem o mesmo processo de exploração em dois momentos entrelaçados, como já sabe muito bem quem tenta adquirir casa própria ou um veículo (voltarei a isso).
Há uma relação entre 2013 ter sido o annus mirabilis das lutas, e 2015 o ano horrível do governo brasileiro. Mudando o que precisa ser mudado, esta análise poderia ser traçada para outros governos progressistas, especialmente, nos casos do Equador e da Venezuela.

IHU On-Line - Considerando as conquistas progressistas, em que aspectos é preciso avançar mais, seja na área social, econômica e de desenvolvimento da América do Sul?

Bruno Cava - Um dos pontos mais centrais do desenvolvimentismo consiste em alargar os gargalos da “política industrial”, isto é, investimentos em projetos de longo prazo relacionados com infraestrutura, matriz energética, tecnologia. Mas o gargalo crítico do progressismo sul-americano, contudo, não foi esse, ele foi democrático. Celso Furtado dizia que não pode haver desenvolvimento sem “bases sociomateriais”, “projeto social subjacente”, “incontornável dimensão política” e “pressões da população”, e que sem esses elementos estaremos politicamente atrofiados por uma “fantasia de potência emergente”, “histeria de projetos faraônicos”, “a intensificação do crescimento econômico agrava os aspectos antissociais do subdesenvolvimento”. [30] Ele está certo. De que adianta crescer em ritmo chinês superexplorando a população, destruindo o meio ambiente e controlando a internet, como a China socialista faz, o país mais industrializado do planeta?
Se o Brasil se diferenciou do resto dos países emergentes, na década de 2000, devido à força da distribuição de renda e políticas sociais, não é caso de, na década de 2010, voltarmos à velha matriz econômica dos atalhos autoritários, tomando por referências a China ou a Rússia de Putin. Nesse sentido, vale citar a conclusão do working paper de Laura e Fernando: “This, however, was done without parallel social mobilization, in an example of Left-wing voluntarism.” [Isso, no entanto, foi feito sem mobilização social paralela, em um exemplo de voluntarismo de esquerda]. [31] Fernando, numa entrevista, foi direto: “O ensaio desenvolvimentista não foi acompanhado de mobilização social, em 2011 e 2012, consistindo em um conjunto de decisões tomadas sem amplo debate público, por dentro de um sistema político cuja principal característica é forçar o gradualismo” [32] .

Estado autorreferencial

Quando se traz em consideração TIPNIS, Yasuní ou Belo Monte, não se está apenas reafirmando uma posição movimentista intransigente de luta — de passagem, plenamente legítima —, mas escolhas, a dimensão política do processo democrático que determina o desenvolvimento. Laura Carvalho, na linha social-desenvolvimentista, cita a importância do Estado para ampliar investimentos nas infraestruturas física e social [33] . É um ponto, à primeira vista, indisputável. Mas a invocação do Estado corre o risco de ser autorreferencial. A questão é que, sem problematizar e historicizar “Estado” (mormente quando escrito com maiúscula) e mesmo “infraestruturas”, essa afirmação corre o risco de soar ideológica, mais pano para as bandeiras da grande narrativa neoliberalismo x progressismo, com o que os governos se justificam e perpetuam segundo a utopia negativa do “menos pior”. Poderíamos debater diretamente a qualidade das políticas que têm sido executadas pelo governo progressista, com fulcro no Estado protetor ou indutor. Vou novamente concentrar no Brasil para dar alguns exemplos concretos.
A autoconstrução da moradia nos últimos 30 anos foi um dos processos políticos, sociais e econômicos mais vibrantes e democráticos no Brasil, como pesquisaram tête-à-tête James Holston e Eder Sader [34] . O que o programa “Minha casa minha vida” faz? Reduz a multiplicidade de experiências e relações ambientais da moradia num projeto homogeneizador, frequentemente em regiões distantes da cidade, enquanto “induz” a atividade econômica da construção civil e seus respectivos canais de financiamento. Outra política, mais democrática, foi subsidiar os materiais de construção no governo Lula, com um efeito difuso, com a possibilidade de cada um exercer a sua liberdade produtiva e reapropriar-se, a seu modo, dessa transferência indireta de renda. Poderíamos realizar o exercício de avaliar qual é “mais Estado” entre as duas matrizes?
No primeiro governo Dilma, Ana de Hollanda assumiu o lugar de Juca Ferreira, no Ministério da Cultura, depois de uma articulação dos aparelhos de cultura do partido. Qual foi uma das primeiras inflexões anunciadas? Esboçar um novo modelo de investimento baseado nas “Praças da Cultura”, equipamento pré-moldado para oferecer infraestrutura à cultura — em vez de valorizar o bem sucedido programa dos Pontos de Cultura (PdC), que reconheciam e valorizavam a dimensão já existente de produção cultural enraizada pelos territórios produtivos. Os burocratas do partido, em contrapartida, diziam que os PdC eram amadores e transpiravam a “clima estudantil” [35] . À democracia dos diferentes em sua conflitividade própria, preferem-se apparatchiks que compartilham de disciplina orgânica e orientação superior.
No Brasil de Lula, a esquerda estatólatra contestou o Prouni e até o Programa Bolsa Família - PBF, e no Rio comunidades inteiras foram removidas com um secretário de Habitação petista invocando o interesse coletivo do Estado, contra a “privatização” (sic) realizada pelos moradores de favela. Também, foi enquanto retomada do Estado contra o “Estado paralelo” que se comandou a invasão do Alemão em 2010 (com direito a hasteamento do pavilhão nacional), a pacificação militar de comunidades e, em geral, a política dominante que trata a questão das drogas ilícitas como questão bélico-militar — e não de saúde pública. Em 2011, Pedro Abramovay foi despedido apenas por declarar-se a favor da descriminalização de pequenos traficantes.
No Rio de Janeiro, o projeto estatizante na cultura foi ainda pior, com a construção de três megamuseus, três infraestruturas de grande porte para abrigar exposições, de arquitetura duvidosa [36] , imediatamente entregues à Fundação Roberto Marinho [37] . Logo depois da eleição de Dilma em 2010, que apoiei (nos dois turnos), participei da elaboração colaborativa de um pequeno manifesto chamado “Para um Brasil banda larga”. O propósito era contrapor a “fantasia de potência emergente” do Brasil Maior, seus megaprojetos e grandes obras, a uma agenda de aprofundamento da democracia (e não do Estado), mediante um rol de políticas menores (na acepção deleuziana) que, em seu conjunto integrado e sinergético, geram efeitos de escala [38].
Para Keynes, o princípio fundamental é induzir a demanda na perseguição da situação de pleno emprego, mantendo a atividade econômica e suas expectativas aquecidas, mesmo que isto signifique construir pirâmides [39] . A qualidade do emprego induzido não é problematizada. A própria ideia de “emprego”. Enquanto contrato permanente associado a direitos sociais (fordismo ocidental), a cidadania definida pelo emprego é cada vez mais uma miragem em qualquer lugar do mundo — no Sul, sempre foi exceção.
Jorge Moruno, porta-voz do Podemos, logo depois de conquistar mais de 20% dos votos nas eleições espanholas de dezembro último, declarou que estão “pensando o mundo além do emprego”, e mencionou a proposta de uma renda de cidadania para todos [40]. Em vez de simplesmente servir de muleta para o desmantelamento do salário social próprio do welfare, segundo uma lógica neoliberal, se pensa assim uma biorrenda como núcleo de uma nova governança do comum e dos bens comuns [41]. O Programa Bolsa Família, massificado e rótula para vários programas sociais, poderia ser o embrião desse salto qualitativo, ainda que nos últimos anos tenha sido moldado pelo governo como mera “porta de saída” para a verdadeira política inclusiva de pleno emprego (de Estado). Isto é, o PBF tem sido reduzido, pelo menos na estratégia, a um caráter assistencialista, aí sim, potencialmente neoliberal.

IHU On-Line - O que tende a substituir o ciclo progressista na região? Já vislumbra mudanças de substituição desse ciclo? Em que sentido?

Bruno Cava - Em termos eleitorais, na Argentina, Macri já substituiu Cristina Kirchner. No Equador e na Bolívia, coalizões de oposição ganharam prefeituras importantes, como El Alto (Chapetón Soledad), Quito (Mauricio Rodas) e Guayaquil (Jaime Nebot), embora seja provável que os presidentes desses países ainda guardem resiliência no poder, especialmente Evo. Na Venezuela e no Brasil, serão anos difíceis adiante para Maduro e Dilma exercerem o mandato com alguma eficácia, em meio às consequências dos limites de que falei antes. Ainda que, no caso do Brasil, o esgotamento aconteceu sem que fosse necessário trocar o mandatário, por dentro do próprio governo, com a adoção das premissas da oposição e, em alguns casos, mais conservadoras [42] .
Uma resposta simplória seria dizer: será substituído pela volta da direita neoliberal. É a resposta dos próprios intelectuais progressistas. Mas isto não tem nenhuma precisão, não estamos nos anos 1990, muita água passou debaixo da ponte, e vivemos um momento complexo de desconcertos e reorganizações. Parte da oposição não se encaixa na dicotomia noventista entre elites neoliberais e progressismo popular, e boa parte da população simplesmente não se vê representada nem na situação nem na oposição. Chapetón, por exemplo, é uma aimará que esteve nas barricadas da guerra do gás, em 2003; a figura de Rodas não tem como ser achatada às velhas lideranças conservadoras do Equador; e no Brasil temos ainda a Marina Silva, que se formou nas lutas de formação do PT e na religião, foi ministra de Lula e hoje exprime, a seu modo, uma via alternativa à polarização partidária [43]. Uma maneira de eliminar a complexidade seria enquadrar todas essas figuras como “novas direitas” [44], deitando-as na cama de Procusto.
Na Venezuela, Leopoldo López, atual prefeito de Caracas, é um preso político reconhecido pela Anistia Internacional [45] (se podem listar nervosamente 200 contudos, mas ele continua sendo um preso político), que vai completar dois anos no cárcere em fevereiro. Com a provável anistia que a assembleia nacional recém-eleita pode conceder, López vai emergir da prisão como representante da coalizão — e, possivelmente, do sentimento social crescente contra o regime — com uma legitimidade maior do que o líder tradicional da oposição, Henrique Capriles.
Até agora não despontou nenhum Pablo Iglesias (36 anos) ou Ada Colau (41), nem plataformas político-partidárias de novo tipo, como Podemos ou Barcelona em Comum. Ainda persiste com eficácia o jogo de polarização entre as forças na situação e oposição [46], o que na Espanha foi definitivamente embaralhado com o 15-M. No Brasil, diante do desencanto geral com a política representativa, o espaço para um choque geracional está sendo ocupado pelo grupo de procuradores e juízes à frente da operação Lava Jato, como Deltan Dallagnol (35 anos) ou Sérgio Moro (43), que gozam de uma popularidade transversal pela sociedade. Não é uma realidade a ser comemorada.

IHU On-Line - Você faz uma crítica à esquerda dizendo que ela fez uma salada russa de marxismo e hegelianismo e, no âmbito econômico, assume um tipo de keynesianismo. Que bases teóricas políticas e econômicas a esquerda deveria seguir para atuar de fato como esquerda, na sua avaliação?

Bruno Cava - Emir Sader publicou agora no começo do ano um artigo no Página 12 [47], jornal kirchnerista de Buenos Aires, em que ele pretende acertar contas com as críticas aos governos progressistas, às análises de um esgotamento. O texto é intitulado “Esquerda do século XXI”. Com todos os problemas e perplexidades de nossa situação, Emir investe contra o zapatismo de Chiapas, os piqueteros argentinos de 2001 e as “ultraesquerdas”, presumivelmente, movimentos e militâncias que não trabalham como funcionários dos governos. Ao longo dos anos 1990, ouvimos muitas vezes a máxima thatcherista de que não há alternativa (TINA doctrine), mas agora temos de ouvir essa mesma impugnação de um intelectual que se assume como farol continental das esquerdas progressistas — e no momento de pior depressão do ciclo. No artigo, Emir se compraz de estar do lado certo, das forças históricas concretas de transformação, mas talvez tenha se esquecido de todo o arco de lutas e mobilizações para além e, em última instância, francamente contra os governos progressistas, que têm se difundido pelo subcontinente.
Posições minoritárias, tendências alternativas e emergências parciais (e precárias) não têm sequer o direito de exprimir-se, para não fazer o jogo da direita, ou tornar-se o inimigo do Estado, sob as acusações de desestabilização, golpismo, terrorismo. Isto não é sequer maoísmo, em que quem faz a luta e nela pesquisa adquire o direito de falar. É mesmo o velho estalinismo, a aplicação da dialética hegeliana em que o poder maior efetivado encarna ipso facto a razão superior. E o intelectual enuncia-a. Não é por acaso que, na filosofia francesa dos anos 60 e 70, Hegel figure como codinome para Stálin. No artigo, a razão superior chama-se Esquerda, uma divindade que distribui espíritos de autoridade. Fora disso, seremos condenados irremediavelmente à “intranscendência” (?). É isto a que me referi ao falar na incapacidade de renovação. As mesmas categorias são marteladas sem dó e, caso resistam a adaptar-se às condições presentes, pega-se um martelo maior, como ensinava o general romano Lucius Opimius.

Keynes e a não crítica a Adam Smith

J.M. Keynes, a seu passo, é frequentemente mobilizado no interior da grande narrativa que, seis anos adentro na década de 2010, ainda se contenta em opor neoliberalismo e progressismo, e que, entre os economistas, os faz trocar deblaterações entre ortodoxos e heterodoxos. Tudo gira ao redor da noção pinçada de Adam Smith da “mão invisível”, se os mercados seriam autorreguláveis ou não. Dá-se a entender que a mão invisível de Smith seria uma força misteriosa capaz de equilibrar a economia, sem ingerência extraeconômica. Não é o caso. A “mão invisível” age segundo condições de contorno (políticas, jurídicas, civilizatórias) que devem ser construídas e mantidas de tal modo que a busca pelo interesse privado possa favorecer a lógica econômica, para que um mercado com liberdade, segundo este referencial, possa funcionar em primeiro lugar. Keynes não contesta, exatamente, Adam Smith — a quem chama “do maior de nossos economistas”, no prefácio à edição francesa da Teoria geral [48] —, mas as simplificações da Lei de Say, a teoria do valor de David Ricardo e os neoclássicos de seu tempo.
Keynes sofisticou as condições de contorno ao introduzir a do intervencionismo estatal, para induzir a demanda nos momentos necessários, sem o qual não é mais possível reequilibrar a economia, mitigar o desemprego involuntário e reagir com eficácia às espirais recessivas. O pano de fundo histórico é a crise de 1929, bem como a disseminação global de contrapoderes operários, que pressionam a taxa de lucro e contestam o poder de mando dos patrões. Diante disso, Keynes teoriza sobre a necessária coordenação entre empresários e governos para enfrentar a crise, o que, desdobrado na longue durée (o “longo amanhecer” de Furtado), nutrirá o desenvolvimentismo — e a sua recorrente aliança com os ditos empresários comprometidos com o crescimento. O Estado, no keynesianismo, é esse agenciamento macroeconômico entre público e privado, para reequilibrar os ciclos da crise, uma espécie de estado-capital que funciona bem a partir das inflexões do New Deal e de Bretton-Woods.

Marx e a crítica a Adam Smith

Marx, diversamente, critica em Adam Smith diretamente a própria possibilidade de um equilíbrio. O que Keynes e Smith chamam de dinâmica equilibrada, para Marx é o próprio desequilíbrio normalizado. O capital não é um mecanismo econômico que pode ser permanentemente ajustado, como quem leva o carro a uma oficina para balancear e alinhar. O capital é uma montanha de violência e cansaço e funciona segundo relações sociais intrinsecamente desiguais. Essas relações não poderão se livrar da crise, na medida em que são assimétricas e exploratórias. Marx assume, então, o ponto de vista do polo operário (em sentido amplo, não só fabril) e, portanto, sua teoria sobre os ciclos da crise é, imediatamente, uma teoria dos ciclos de lutas [49]. O salário real (em sentido amplo, a renda do trabalho) não é neutro, como se fosse ainda outra variável, mas a pedra angular de toda dinâmica de poder no interior do sistema capitalista, relação de força, tensão entre classes.
A Teoria geral de Keynes visa a proteger o presente do futuro. O risco não é sermos comandados pelas gerações passadas, mas pelas futuras. Mesmo porque, “in the long run we are all dead” [no longo prazo estaremos todos mortos] . Existe uma verdade profunda nessa citação por vezes incompreendida de Keynes. As crises do capital vêm ao nosso encontro do futuro, porque é dele que o ciclo de valorização depende, seja para realizar o valor, seja para impulsionar o investimento. O futuro, para Keynes, é a catástrofe do capital, a grande depressão, a revolução russa. Para Marx, o desequilíbrio é constitutivo e a catástrofe abre a relação do capital para o porvir, a liberdade produtiva para além do emprego assalariado, o comunismo. O Estado keynesiano, em consequência, parece um guardião do estado-capital, sentinela à porta das crises. Com o duplo esgotamento da revolução russa, seja no o fordismo do pós-guerra, seja no estalinismo do socialismo real, não admira que por um tempo todos — Paul Krugman, Joseph Stiglitz e até Richard Nixon — tenhamos virado keynesianos. Isto não significa que não possamos ser outra coisa.

Limites do Estado

Na passagem do governo Lula para Dilma, a pressão contra a taxa do lucro levou a dois fenômenos concomitantes. De um lado, a concorrência horizontal entre empresários, cada vez mais vorazes com as margens de ganho e a ausência de critérios de que, só depois da Lava Jato, teremos a plena dimensão. Do outro lado, a dinâmica virtuosa de classe, que pressionou por ainda mais e melhor, em múltiplas dimensões (social, econômica, política), em suma, produção de subjetividade. Foi o que, desviando dos debates sociológicos ou politológicos sobre as “novas classes médias”, Hugo Albuquerque chamou da “ascensão da classe sem nome”, e que eu e Giuseppe chamamos de “lulismo selvagem” [51] — uma curva clinâmica em relação à reta progressista, desconhecida inclusive pelo teórico do lulismo [52]. A irrupção política da crise era, portanto, inevitável, em toda a sua ambivalência. O que fazer da crise é que era o caso. Nessa conjuntura, o governo não só tomou o partido da ordem contra as lutas de 2013 [53], como resolveu se impor, sem a correspondente mobilização — com mobilização contra — como dirigente dos empresários, no episódio relatado no artigo do André como “esboço desenvolvimentista”.
Acontece que o Estado, enquanto fetiche hegeliano, não é capaz de por si só conferir força, vis, à ação política em grande escala. Em razão dos limites e inflexões já discutidos, o resultado não poderia ser outro que não acelerar um esgotamento, vindo dos dois lados, a tempestade perfeita. Essa é ainda outra pista histórica que o Estado (ou o Mercado) não pode ser um passe-partout para preencher as lacunas de nossa análise.

IHU On-Line - Em que aspecto considera que a Coreia do Sul poderia ser um modelo para a América do Sul? Que aspectos do modelo político e econômico do país servem de exemplo para a América do Sul?

Bruno Cava - A Coreia do Sul é um case para ciência desenvolvimentista graças a ter conseguido, no segundo pós-guerra, dirigir estrategicamente os capitais acumulados com a exportação e combinar crescimento econômico hacia fuera e hacia dentro, com industrialização, distribuição de renda e inversões significativas na educação. O economista Ha-Joon Chang [54] costuma ser citado pelos desenvolvimentistas mais hardcore como teórico do subdesenvolvimento estrutural. Vale lembrar que, por trás do “grande salto” da Coreia, também funcionava um regime ditatorial, presidido por Park Chung-hee, um ex-colaboracionista da ocupação fascista japonesa. Evidentemente, a trajetória dos tigres asiáticos no século XX não tem como ser reproduzida na América do Sul, mas algumas analogias podem ser traçadas.
O giro geopolítico do subcontinente à Ásia não aponta apenas para a China, envolvida em megaprojetos que vão de uma base espacial na Patagônia argentina até a construção do canal transoceânico a partir da Nicarágua. Pablo Stefanoni escreveu um artigo sobre a “utopia coreana nos Andes” [55], em que explica como a chegada da Coreia nas cordilheiras não ocorre somente através de grandes marcas, como Samsung ou Hyundai. O articulista batiza de “Buen vivir made in Corea” a miscigenação entre a matriz existencial indígena e o foco em inversões das exportações de petróleo e derivados (mais de 50% do mix), em atividades de ciência e tecnologia, uma política estratégica de investimento do governo. Com Rafael Correia, o investimento no ensino superior superou 2% do PIB. É realmente uma escolha diferente do que o costumeiro apego desenvolvimentista à indústria dura de bens de capital.
O jornalista Bernardo Gutiérrez também tem acompanhado esse processo no Equador [56], tendo participado dos encontros da Flok Society, e cita os esforços do governo em desenvolver uma “economia do bem comum”. Em vez do pequeno país de economia dolarizada converter-se em paraíso fiscal, o caso é torná-lo um paraíso da tecnologia digital, do software livre, da ética hacker. A concessão de asilo a Julian Assange, ilhado desde agosto de 2012 na embaixada equatoriana em Londres, está inserida nesse contexto.
O problema é que se repetem as mesmas inflexões e limites dos governos progressistas de que falei, como o próprio Bernardo e Pablo apontam em suas análises [57]. O caso do parque de Yasuní foi apenas o mais visível, mas outras iniciativas do governo do Equador também chamam a atenção, como o fechamento da fundação Pachamama, pretensões vigilantistas da internet e a cisão em geral entre governo e movimentos indígenas, que lhe retiraram simbolicamente o bastão de mando outorgado em 2007 [58]. Como um dos antecedentes do levante de junho de 2015, em março, aconteceu uma passeata da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (Conaie) em que se lia “Fora China” em faixas e cartazes. Além da repressão, que inclui a prisão de ativistas sob a acusação de terrorismo, os manifestantes foram tachados pelo correísmo de “pelucones” e “aniñados”, as versões locais dos nossos “coxinhas” e “reaças” [59].

IHU On-Line - Como você explica e compreende a atual crise de representação que se vive hoje? O que poderia resolver a crise de representação?

Bruno Cava - Em entrevista recente ao IHU [60], Marcio Pochmann diz que estamos vivendo reflexos da crise internacional, mas momentos como este são propícios para um novo pacto social e produtivo, para dar um “salto quase que inesperado”. Concordando com a segunda parte, eu perguntaria então qual é a força política organizada que reuniria a legitimidade necessária para esse New Deal? Sintomaticamente, o entrevistado começa a falar do PT. Marcio compara o PT ao Partido Comunista Italiano - PCI, que teria sido sempre “muito claro, ético, objetivo”, e que por isso preferiu manter-se como “partido de oposição”, sem jamais chegar ao governo, diferentemente do PT, que adotou outra postura. Eu até entendi o que ele quis dizer, mas na verdade o PCI chegou ao governo nos anos 1970 mediante o compromesso storico celebrado entre Berlinguer e Moro, uma coalizão entre o partido e a Democracia Cristã que decretou um estado de exceção de fato, a fim de encerrar a multiplicidade de lutas operárias, estudantis, de minorias e culturais da Itália pós-68. Ademais, avaliar que é preciso realizar reformas, mas “sem base”, é não dizer nada. Brizola já dizia que programa, se quisesse, mandava vir pelo correio. Um novo pacto social e produtivo, certamente, não virá do wishful thinking [pensamento positivo] da guinada à esquerda, da refundação do PT, de alguma boa consciência qualquer.

O que significa falar em sociedade?

Também não basta apenas invocar a sociedade como o sujeito político para protagonizar a transição. O que significa falar “sociedade”? Isso aparece, frequentemente, nas falas de Marina Silva, cuja inserção na conjuntura ainda carece de uma dinâmica organizativa material (de novo tipo). Corre-se o risco de cair no que Gigi Roggero [61] chama de “modelo Polanyi” (com referência ao economista húngaro Karl Polanyi), uma separação categorial entre sociedade, economia e Estado: a sociedade civil precisaria mobilizar-se para ocupar o Estado e torcer a economia a seu favor. Este esquema não leva em consideração como sociedade, Estado e economia estão inteiramente emaranhados, em sua genealogia e funcionamento. O Podemos também incorre nessa insuficiência, por exemplo, com a expressão “sociedade em movimento” [62], enunciada pelo seu porta-voz, Jorge Moruno. Por um lado, falar “sociedade em movimento” tem o mérito de contornar o conceito de “movimento social”, tateando por novas dinâmicas e processos sociais. Falar em “movimento social” como agente da mudança hoje está se tornando cada vez mais quimérico, devido à substituição da matriz de organização social da lógica vertical de bases/dirigentes por redes/hubs; por outro lado, não pode se tornar um antagonismo indeterminado.

Nova matriz civilizatória

Uma maneira de travar essa discussão sem se restringir à navegação de cabotagem é pensar não numa nova matriz econômica, mas numa inteira matriz política, antropológica, civilizatória, que esteja à altura dos desafios e antagonismos do século XXI. Isto significaria, por assim dizer, elaborar um pensamento econômico usando Oswald de Andrade, para superar os “entraves estruturais” de nosso positivismo metodológico. A revolução industrial instituiu o capitalismo globalmente, a mediação do salário como medida do trabalho realizado pelo trabalhador. Ao redor da relação salarial, se organizaram o direito, a cidade, o Estado. Para responder à revolução russa e à grande depressão, o New Deal do fordismo-keynesianismo inventou o “salário social”, que é parte conquista das lutas, parte acomodação do devir revolucionário. A relação remodelada do capital carrega consigo essa ambivalência constitutiva.
O welfare sintetizou a pretensão de reequilibrar a crise por meio do estado-capital, do intervencionismo planificado, e funcionou por trinta anos nos países ocidentais (Brasil fora). Na década de 1970, outra virada levou ao pós-fordismo e à globalização financeirizada, momento em que o welfare dos países desenvolvidos iniciou um processo de lento desmanche. A virada pós-fordista significou a afirmação de um regime de crise permanente, possibilitado pela capacidade de não precisar mais forjar um equilíbrio macroeconômico pela via do intervencionismo estatal e da dinâmica salarial. Com a financeirização da vida, passa-se a governar no próprio desequilíbrio, na fragmentação social mesma. Não mais crise do capitalismo, mas capitalismo de crise. O resultado disso é uma interpenetração entre lucro e rentismo, invalidando o antigo esquema braudeliano que explica as crises pela dialética entre economia real e economia financeira [63].

Desenvolvimentismo na América do Sul: de um lado Gramsci, de outro o ibope

Daí emergiram novos ciclos de lutas, afrontando as estruturas dos velhos partidos operários ou socialistas, das centrais sindicais “duras”, e que pararam de fiar-se nas dicotomias da era fordista: maio de 68, black power, movimentos LGBT e feministas, lutas anticoloniais, ambientalistas, indigenistas, zapatismo, alterglobalização, digitais, hackers, revoluções árabes, 15M, Occupy, Turquia, Brasil, Ucrânia, Hong Kong. O que está em disputa, hoje, não é mais um welfare, indexado ao fordismo industrialista e suas disciplinas de produção, um parâmetro da relação de emprego e cidadania que foi contestado pelas próprias lutas locais e globais. Mas um commonfare, um “salário do comum”, atrelado à produtividade no tecido conjuntivo das redes materiais e digitais. Não é que se resume a uma posição movimentista ou utópica, mas à construção de instituições do comum ao redor da renda para todos, como remuneração pela participação de cada um na produção e riqueza. O PBF e os PdC, no Brasil, deram pistas de um caminho possível, que pode ser radicalizado. E tal “programa”, necessariamente em aberto, não tem como ser limitado ao horizonte nacional, onde na América do Sul o desenvolvimentismo ainda é o nec plus ultra [64] — além de um imaginário setentista nacional-popular, numa mão tem Gramsci e na outra o ibope. Depende, sobretudo, de uma articulação global, da capacidade de reforçar as linhas de contágio e interação entre os vários focos do presente ciclo de lutas, em seu desentendimento mesmo.
Os indígenas do Xingu conversam com os quéchuas do Altiplano que conversam com os sioux do norte, as acampadas de Barcelona se conectam com a Praça Tahrir, com a Cinelândia e as assembleias do Maranhão; os ecologistas de Istambul se misturam com as minorias curdas, os imigrantes formam seus comitês de solidariedade e ocupamos juntos, gradualmente, praças, redes, espaços políticos. Para falar como os levellers do século XVII, “não ignorar a importância da terra, mas não se limitar a derrubar as enclosures, dentro das cercas onde ovelhas devoram homens, onde homens são criados para servir” [65]. A campanha é pela plenitude da liberdade e, diante do capitalismo, também é solidão, deserto. É esse o tamanho do desejo que não está representado, e da indignação que tem atiçado as lutas.

Por Patricia Fachin