quarta-feira, 25 de abril de 2018

O partido que não temos (Demétrio Magnoli)

FHC disse, há pouco, que se arrepende de, no passado, não ter se aproximado de Lula. Em entrevista recente, Fernando Haddad, possível candidato lulista à Presidência, reconheceu o avanço econômico e institucional obtido pelo Plano Real. As duas declarações reinstalam uma questão histórica especulativa, mas relevante num sentido tão atual quanto inesperado: o que teria sido o Brasil se o PSDB e o PT tivessem optado pela aliança, no lugar da letal rivalidade?
“Opção” não é o termo apropriado. A rivalidade é fruto de escolhas anteriores dos dois principais partidos que nasceram na transição à democracia. Na sua complexa trajetória ideológica, o PT roçou a social-democracia para, imediatamente, trocá-la pela tradição populista da esquerda latino-americana. O PSDB, por sua vez, afastou-se da social-democracia para conduzir as reformas liberais de estabilização da economia e, depois daquela etapa heroica, dissolveu seus ensaios programáticos na mera pregação da ortodoxia econômica e num defensivo antipetismo. Uma muralha separou FHC de Lula. O resultado foram as alianças sucessivas do PSDB e do PT com o PMDB — e o colapso do sistema político da Nova República.
A crise política brasileira inscreve-se, como singularidade, na crise mais ampla das democracias ocidentais. Na Europa e nos EUA, sob formas distintas, regridem os grandes partidos de centro-esquerda e centro-direita. Na América Latina, o “Extremo-Ocidente”, o esgotamento do neopopulismo não parece abrir caminho a uma nova onda sustentada de reformas liberais. O traço marcante do cenário brasileiro é a fadiga do centro político: Lula e Bolsonaro emergem como relevos notáveis na planície desolada. As escolhas do PSDB e do PT têm forte responsabilidade pela desolação.
A “fórmula Macron” tornou-se, com boas razões, uma obsessão entre os que investigam saídas para o declínio do centro político no Brasil. Contudo, de modo geral, como atesta a fracassada “operação Luciano Huck”, não se entendeu que a ascensão de Emmanuel Macron nada tem a ver com a rejeição da política ou dos políticos. O presidente francês deflagrou seu movimento por um gesto de ruptura, com o Partido Socialista, e um de construção, de um novo partido com nítida definição ideológica.
O “Em Marcha”, de Macron, ergueu-se sobre dois pilares que se completam e se contestam: o socialismo democrático e o liberalismo progressista. Nenhum deles é uma novidade no universo das democracias ocidentais. A novidade está na fusão de tradições ideológicas aparentemente inconciliáveis. O primeiro é o que o PT poderia ter sido; o segundo, o que o PSDB poderia ter sido.
O liberalismo progressista nasce da herança liberal, mas rejeita sua massacrante carga conservadora. Os liberais clássicos puseram o acento nas liberdades econômicas e políticas — isto é, na limitação do arbítrio estatal. Mas, oriundos dos sistemas políticos elitistas do passado, desprezaram a importância das liberdades públicas — isto é, do direito de reivindicar salários e proteções sociais. O liberalismo progressista, um fruto das democracias de massas, abraça a luta contra a pobreza, a exclusão e a discriminação.
O socialismo democrático emana da herança social-democrata, mas distingue-se pela sua abordagem do tema da igualdade. Na social-democracia tardia, o “bem público” tornou-se quase indistinguível dos interesses corporativos: a inflexível regra trabalhista, a aposentadoria precoce, os subsídios aos “campeões nacionais”, os privilégios das castas superiores do funcionalismo. O socialismo democrático, em contraste, sublinha o valor dos direitos sociais universais e dos serviços públicos: o hospital, a escola, o metrô, a água limpa, o teatro, a biblioteca, a praça e o parque.
As duas tradições são estranhas à história política latino-americana. No “Extremo-Ocidente”, o liberalismo importado da Europa revestiu sociedades patriarcais, patrimonialistas, assentadas na propriedade fundiária. O DEM e o MBL, cada um a seu modo, explicitam a natureza corrompida do liberalismo caboclo. Já o socialismo, também importado, contaminou-se com os metais pesados do caudilhismo, do populismo e, mais depois, do stalinismo em versão castrista. O PT e sua pobre dissidência psolista evidenciam o caráter farsesco do socialismo brasileiro.
Mas a fórmula dual de Macron oferece respostas para nossos impasses crônicos que, na campanha em curso, manifestam-se pela fragmentação de candidaturas situadas entre a centro-esquerda e a centro-direita. A régua do liberalismo progressista descortina um horizonte além do capitalismo de estado de raízes varguistas e atualização lulopetista. O compasso do socialismo democrático propicia uma reinterpretação das políticas sociais, afastando-as da armadilha corporativista.
Os caminhos do PSDB e do PT se desencontraram. Seguindo trilhos divergentes, os dois partidos nucleares da “Nova República” consumiram totalmente seu combustível ideológico. Mas, sem qualquer nostalgia, vale a pena imaginar o que poderia ter sido: o exercício servirá, talvez, para reinventar o presente.
Fonte: O Globo (23/04/18)

A hora e a vez de Joaquim Barbosa (Fernando Limongi)

Joaquim Barbosa, após os resultados promissores do Datafolha da semana passada, ameaça atravessar o Rubicão. Filiou-se ao PSB e foi ao encontro das lideranças do partido para uma operação de reconhecimento mútuo e acerto de ponteiros. Todos saíram satisfeitos, ou assim o declararam. Os sinais emitidos pela pesquisa justificam o otimismo dos que querem vê-lo candidato. As dificuldades à frente, contudo, são enormes.
Durante a semana, os órgãos de imprensa se puseram em campo para decifrar a esfinge. Apesar dos 9% de intenção de voto, pouco se sabe sobre o que seria um governo presidido por Barbosa. Sua imagem pública vem do protagonismo assumido ao longo do julgamento do mensalão. Em algumas questões, suas decisões e sentenças, assim como sua biografia, oferecem pistas. Mas nada além de pistas. Não se sabe sua posição sobre a gestão da economia. Nessa área, nada pode ser deduzido de suas sentenças. O mistério será solucionado ao serem conhecidos os nomes dos economistas que encontrará nos próximos dias. Fala-se em uma reunião com o ubíquo Armínio Fraga, mas há outros na fila, vindos do campo oposto.
A comparação com a entrada de Marina Silva na eleição de 2014 é inevitável. Joaquim Barbosa chega por cima, sem vinculação direta com os dois polos do espectro político brasileiro. Acenou que faria reformas defendidas pelos que colocam a austeridade fiscal como prioridade, mas não deixou de enviar sinais de que preservaria as políticas sociais voltadas aos mais pobres. Um pouco para todos os gostos.
Os dados do Datafolha apontam para um copo meio cheio. Na pesquisa espontânea, Joaquim Barbosa colhe um raquítico 1% das intenções de voto. Na sua companhia, com percentuais igualmente minguados, estão candidatos declarados, como Geraldo Alckmin, Marina Silva, Ciro Gomes e Alvaro Dias. Os únicos a se destacar na espontânea são Lula, com 13%, e Bolsonaro, com 11%.
Quando o eleitor é confrontado com listas de candidatos - e os pesquisadores torraram a paciência dos entrevistados com nove cenários diferentes - Joaquim Barbosa fica entre 8 e 9%, chegando a 10%, em uma das cartelas sem Lula. Marina tem crescimento mais expressivo, sobretudo nas configurações em que o ex-presidente é deixado de fora, chegando a 16% em alguns cenários. Barbosa não parece herdar votos de Lula, pelo menos não de forma significativa. É certo, porém, que nunca fica atrás quer de Geraldo Alckmin, quer de Ciro Gomes, o que indica, por um lado, seu potencial para crescer e, de outro, a fragilidade desses políticos experimentados e com longa carreira nas costas.
O desempenho de Jair Bolsonaro é singular. Sua votação varia pouco na passagem da espontânea para a motivada e praticamente nada com a variação da lista de candidatos. Faça chuva ou faça sol, o seu apoio é o mesmo. Só para comparar, Lula mais do que dobra seu apoio quando se passa da espontânea para a motivada. Sem Lula, Bolsonaro atinge seu nível máximo, 17%. Além disso, o candidato tem apoio concentrado em grupos específicos. Seu eleitor típico é branco, educado, tem renda média e mora no Centro-Oeste. A dificuldade com mulheres, mais pobres e os moradores do Nordeste é evidente. A truculência aprisiona o candidato a um nicho estreito, tão estreito quanto suas ideias, que, muito provavelmente, se encarregarão de detonar sua candidatura ao longo da campanha.
A flutuação positiva de Marina e Barbosa, quando comparada à estagnação relativa de políticos mais tradicionais, como Alckmin e Ciro Gomes, mostra que o eleitor abraça com maior facilidade as candidaturas que sinalizem renovação. A novidade, sem dúvida alguma, tem valor no atual mercado político.
Contudo, não qualquer novidade. Os novatos mais claramente identificados com o mercado, os que defendem versões diversas do Estado enxuto e da privatização generalizada, não importa se com ênfase ou não nos costumes, nunca passam de 1% das intenções de votos.
O clamor por renovação não garante o sucesso dos calouros e, muito menos, elimina o desafio que enfrentam. São mais do que desconhecidos, não possuem a reputação que dá base à confiança que justifica o voto, algo que só pode ser construído pela repetição da interação. Nesse particular, partidos não são diferentes de empresas e os empresários-ideólogos deveriam saber disso.
O vazio eleitoral atual pode ser entendido por meio dessa chave. A Lava-Jato destruiu a reputação dos principais partidos. O eleitor perdeu a confiança que depositava nos partidos tradicionais e procura novas opções, mas essas não brotam do dia para a noite.
Por isso mesmo, ainda que pouco se saiba sobre as políticas específicas defendidas por Joaquim Barbosa, o quase-candidato conta com enorme vantagem na largada. O mensalão lhe garantiu exposição e reputação de homem sério e intransigente. O trampolim está montado. Falta saltar e mostrar que sabe nadar. E aí, pelo que já se sabe do temperamento do ex-ministro, a coisa complica.
Na quinta-feira, Barbosa foi conhecer o partido a que se filiou. O episódio com a militante que o aguardava na entrada da reunião fala por si. Driblada na chegada, foi novamente ignorada na saída. Barbosa fez questão de deixar registrado seu desprezo à admiradora: "Sei que é candidata é quer aparecer na foto".
Pois Joaquim Barbosa também é candidato e sabemos que também quer aparecer bem na foto. Para tanto, além de solucionar seus problemas existenciais e os da sobrevivência de seus dependentes, terá que aprender a dividir os holofotes e a ribalta. Por enquanto, sua candidatura é uma sucessão de incógnitas que habitam um ego repleto de convicções inabaláveis. Ser candidato demandará grande esforço do candidato.
Políticos não brotam em árvores ou podem ser improvisados. A corrida é longa e repleta de obstáculos. O PSB já conhece a história: nem todos que largam na frente ganham a parada.
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (23/04/18)

‘Lula manteve a esquerda sitiada’ (Wanderley Guilherme dos Santos)

O cientista político lança nesta semana o livro ‘A difusão parlamentar do sistema partidário’, que desmistifica o papel dos partidos nanicos
Jeferson Ribeiro | O Globo (22/04/18)
Mesmo com um cenário bastante incerto para a disputa presidencial, o que é possível prever para os próximos meses?
Primeiro vamos de Lula. Ele é uma figura carismática indestrutível, mas isso não significa que permanecerá com essa capacidade eleitoral. Nem todos que dizem votar no seu indicado, votarão. Mas o Lula tem que tomar decisões importantes nos próximos meses. Primeiro, terá de decidir se não será mais candidato. Uma segunda decisão relevante é se realmente vai apoiar alguém. Terceiro, quem será o escolhido. Essas três questões vão chacoalhar o quadro de hoje. Não sei se a polarização está morta, talvez a que exista entre PT e PSDB, sim. Mas pode acontecer com outros nomes.
Qual deveria ser a estratégia da esquerda?
Eu acho que a esquerda devia estar discutindo um outro candidato. Mas isso depende do Lula. Não há outro caminho e isso pode gerar o acirramento desse radicalismo, esse sebastianismo evangélico do PT, contra uma alternativa bastante interessante que é Ciro Gomes. Esse silêncio pode criar a inviabilidade de um acordo entre as forças lulistas e o Ciro e tem a capacidade de dividir a esquerda. E ele é o cara ideal para entrar em disputa com os conservadores, ele é um cara que tem tutano para fazer isso. O Jaques Wagner e o (Fernando) Haddad são ótimos quadros, mas não para o contexto desse debate duro. O Lula, para meu desgosto, manteve toda a esquerda sitiada. Está presa junto com ele. Então, a chance de vitória da direita, em tese, é maior. O problema da direita é que não tem candidato. Por isso, se o Joaquim Barbosa for candidato, eu acho que herdará os votos da direita. Ele é um homem para o momento, assim como o Ciro. A eleição será dura. Antes da prisão do Lula e do aparecimento do Joaquim, eu achava que a esquerda poderia levar fácil. Agora, a coisa muda de figura.
Qual o tamanho do impacto da prisão de Lula para esse campo?
Estão desorientados. Sem rumo. A posição majoritária do campo da esquerda é com Lula até o fim. Mas isso não pode ser até o dia 7 de outubro. Acho que está tudo desorganizado desde o impedimento da Dilma (Rousseff). Há uma desorientação grande e um erro estratégico tanto de esquerda quanto da direita. Pior, está se criando um contexto cívico de difícil recuperação. Hoje, não existe uma polarização eleitoral ou sequer partidária, o que há é uma divisão de culturas, de valores, de comportamento, enfraquecendo a direita e a esquerda. Basta ver as manifestações nas redes sociais. A esquerda está fazendo censura tanto quanto a direita. Assassinatos de caráter, falsificações de números e de fatos, um é o espelho do outro. Nunca aconteceu antes. Isso está tornando muito difícil a administração por parte das lideranças políticas, aquelas que ainda estão com um pouco de sanidade, desse período até outubro. Porque tem que chegar até outubro para eleger alguém com legitimidade.
Como o senhor vê o desempenho de Bolsonaro?
O Bolsonaro ainda não entrou na minha equação política. Ainda não estou convencido de que ele significa algo, exceto para tomar voto da extrema direita. Não acho que a situação dele ficará assim até outubro. Quem precisa se preocupar com esse cenário de crescimento é o (Geraldo) Alckmin e o Joaquim Barbosa, porque estão no campo de direita. Portanto, ainda não levo a sério o Bolsonaro. O que não quer dizer que isso não possa mudar.

A persistente resiliência da democracia liberal (Steven Pinker / Rubert Muggah)

A persistente resiliência da democracia liberal
[RESUMO] Autores reconhecem a existência de certo pessimismo quanto ao futuro dos governos ocidentais, mas afirmam que a capacidade de resistência do sistema político causa otimismo.
Não é nada óbvio que a democracia esteja em recuo em todo o mundo. Não há provas claras de um declínio drástico no apoio a esse sistema na maioria dos países
Por mais difícil que seja acreditar nisso, o mundo vem constantemente se tornando mais seguro e mais próspero. Mas é evidente que algumas partes do planeta estão se saindo bem melhor do que outras.
Os países governados por democracias se destacam: eles tendem a registrar índices mais elevados de crescimento econômico, menos guerras e genocídios, praticamente nenhuma onda de fome e cidadãos mais felizes, mais saudáveis e com educação melhor.
Para os cerca de dois terços da população mundial que vivem em uma democracia, essa é uma boa notícia. No entanto, existe uma inconfundível sensação de pessimismo quanto ao seu futuro. Por quê?
A confiança no avanço da democracia está minguando. Estudiosos falam de forma sombria sobre como esse sistema político está enfrentando maré baixa, retração, recessão e até mesmo depressão.
Outros se preocupam com a possibilidade de que as democracias estejam se esvaziando, tornando-se parciais, de baixa intensidade, ocas e não liberais: ainda que ocorram eleições, liberdades civis e freios e contrapesos ao poder são rotineiramente desrespeitados.
Os fracassos das revoluções coloridas [manifestações contrárias a governos pró-Russia em países da União Soviética] e da Primavera Árabe foram um grande revés. As tendências autoritárias que estão se aprofundando em velhas e novas democracias dispararam alarmes. Organizações ativistas como a Freedom House estão convencidas de que o planeta está se tornando progressivamente menos livre.
Uma sensação cada vez mais intensa de pessimismo vem se estabelecendo. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt [autores de "How Democracies Die", como as democracias morrem] acreditam que as democracias tipicamente acabam com um suspiro, não com uma explosão.
A imprensa livre e as restrições ao exercício do poder vêm sendo gradualmente envenenadas por demagogos, como se pôde ver recentemente nos Estados Unidos.
Enquanto isso, Yascha Mounk [autor de "The People vs. Democracy", o povo contra a democracia] e outros alertam quanto à difusão do liberalismo não democrático, que protege os direitos básicos, mas delega o poder real a tecnocratas não eleitos, como no caso da Comissão Europeia. Existe uma preocupação real de que os jovens, especialmente, estejam se afastando da democracia, inclusive no Ocidente.
Embora essas preocupações sejam reais, é fácil esquecer que a democracia liberal é uma ideia relativamente nova. Os conceitos de eleições livres, justas e competitivas, a separação de Poderes, direitos humanos, liberdades civis e proteções políticas só decolaram genuinamente no século 20.
Até poucos séculos atrás, a maioria das sociedades oscilava desconfortavelmente entre a tirania e a anarquia. Os primeiros governos (não democráticos) ofereciam melhora apenas modesta, frequentemente impondo repressão brutal para manter os súditos sob controle.
O despotismo impiedoso persistiu porque as alternativas eram muito piores. A democracia, então, assim como agora, não era inevitável.
A expansão dos governos democráticos aconteceu de maneira intermitente. O cientista político Samuel Huntington divide sua expansão em três ondas.
A partir do século 19, o primeiro período de expansão foi liderado pela democracia constitucional dos Estados Unidos, com suas muito admiradas limitações aos poderes e privilégios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Esse modelo foi emulado em toda a Europa Ocidental, o que resultou em um total de 29 democracias em 1922, que foram reduzidas a 12 em 1942.
A segunda onda conduziu a um pico de 36 democracias em 1962. O número recuou uma vez mais, passando a 31, devido à reação de regimes autoritários e à tomada de poder por comunistas na Europa, na América Latina, na África, no Oriente Médio e no Sudeste Asiático.
A terceira onda foi mais como um tsunami, efetivamente triplicando o número de democracias no planeta até o final da Guerra Fria. Governos militares e fascistas caíram em toda parte até a década de 1980. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da implosão da União Soviética, em 1991, o número de democracias disparou.
Surgiu uma espécie de era de ouro da consolidação democrática. No começo do governo Barack Obama, em 2009, havia 87 democracias. Apesar da velocidade surpreendente com que esse regime se expandiu, ou talvez por causa dela, começaram a emergir preocupações sobre a qualidade da governança nos países recém-convertidos.
A verdade é que não é nada óbvio que a democracia esteja em recuo em todo o mundo. Não há provas claras de um declínio drástico no apoio a esse sistema na maioria dos países, incluindo os Estados Unidos.
Isso não significa que o avanço das autocracias deva ser ignorado, mas os rumores sobre a morte da democracia talvez sejam exagerados.
Além disso, as pesquisas que mostram um recuo no apoio à democracia, especialmente entre os jovens, devem ser encaradas com cautela. É difícil discernir o apetite das pessoas por democracia em regimes autoritários, já que entrevistados frequentemente hesitam em declarar publicamente sua preferência em uma ou outra direção.
Manchetes negativas incessantes também reforçaram a sensação de que o iliberalismo —e, mais recentemente, o nacionalismo populista— está em ascensão.
Pesquisas do Polity Project, no entanto, sugerem que, em vez de recuar, a terceira onda de democratização pode ser sucedida por uma quarta. Em 2015, o ano mais recente para o qual há dados, o número de democracias no planeta era de 103, e elas respondiam por mais de metade da população mundial.
Se a esse montante forem acrescentados os 17 países que são classificados como mais democráticos do que autocráticos, a proporção da população mundial governada por democracias sobe a dois terços.
Isso pode ser comparado com o nível do início do século 19, quando apenas 1% da população mundial vivia em democracias. Embora a governança democrática tenha muitos matizes, essa estatística bastaria para justificar uma reconsideração.
A resiliência persistente da democracia não é desculpa para complacência. O avanço continuado do governo democrático está longe de garantido. Quando examinadas quanto a níveis de pluralismo, participação política e respeito pelas liberdades civis, é verdade que diversas democracias mostram sinais de retração.
De acordo com o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit, apenas 19 países —a maioria deles se localiza na Europa Ocidental— podem ser descritos como democracias plenas (as demais classificações incluem democracias falhas, regimes híbridos e regimes autoritários). Dos 167 países considerados, 89 mostraram sinais de deterioração em 2017, na comparação com o ano anterior.
Embora a maior parte do mundo ainda favoreça a democracia, ela está longe de ser o único modelo possível. Tome-se o exemplo das teocracias do mundo islâmico e o capitalismo autoritário da China. Algumas dessas abordagens são atraentes para os autocratas e populistas porque podem gerar certas vantagens econômicas no curto prazo.
Pode-se afirmar também que alguns países recentemente convertidos à democracia estão retornando ao autoritarismo, incluindo os chamados "Quatro de Visegrad" (República Tcheca, Hungria, Polônia e Eslováquia). E ainda temos os homens fortes que estão tentando abalar democracias vizinhas, com destaque para Recep Erdogan, na Turquia, e Vladimir Putin, na Rússia.
Diante de todas essas ameaças à sua existência, o que torna a democracia tão bem-sucedida? Não são somente seus procedimentos, como eleições, ou mesmo os mecanismos de controle entre os Poderes, por mais cruciais que sejam.
Pode ser que —para parafrasear Winston Churchill—, apesar de suas muitas falhas, a democracia ainda seja preferível às alternativas. Ela dá às pessoas a oportunidade de remover seus representantes do poder sem derramamento de sangue.
Como aponta John Mueller, democracias liberais bem governadas oferecem ao povo a liberdade de "reclamar, peticionar, organizar, protestar, fazer manifestação, fazer greve, ameaçar emigração ou secessão, gritar, publicar, exportar seu dinheiro, expressar falta de confiança... [E] o governo tenderá a responder aos gritos daqueles que gritam".
Até mesmo as democracias liberais mais maduras são obras em andamento e requerem cuidados e melhorias constantes.
O requisito mais básico de uma democracia bem-sucedida é que ela seja competente o bastante para proteger as pessoas da violência e impedir que sejam seduzidas pelo primeiro homem forte que diga que só ele é capaz de representá-las e fazer o trabalho.
Para que ela floresça verdadeiramente, os cidadãos precisam estar convencidos de que a democracia —na forma presidencial, parlamentar ou de monarquia constitucional— é uma alternativa superior à teocracia, ao direito divino dos reis, ao paternalismo colonial ou ao domínio autoritário.
À medida que as pessoas reconheceram os benefícios da democracia liberal, a ideia se tornou contagiosa e se espalhou.
A despeito de suas limitações, as democracias se provaram incrivelmente efetivas na contenção dos instintos mais sinistros dos governos. Os direitos humanos, que foram amplamente incorporados aos códigos legais desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, servem como exemplo.
Outro é a pena de morte, que costumava ser regra em todo o mundo. Projeções recentes sugerem que a pena capital pode ser completamente extinta em menos de dez anos.
O ponto é que eleições livres e justas, direitos das minorias, liberdade de imprensa e Estado de Direito são ideias pelas quais vale a pena lutar. Embora diversas democracias venham enfrentando uma crise de confiança nos últimos anos, sua perseverança, apesar de todos os obstáculos, é causa de otimismo.
(*) Steven Pinker, 63, linguista e psicólogo canadense, é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard. Lançou neste ano o livro “Enlightenment Now” (Viking).
(*) Robert Muggah, 43, é cofundador e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé e sócio-diretor do SecDev Group.
Fonte: Folha de São Paulo (22/04/18)

O outubro de nossas preocupações (Bolívar Lamounier)

O script é difícil e o elenco deixa a desejar. Essa a proposição dominante a respeito da eleição presidencial e de seus efeitos na recuperação econômica do País. Dela podemos derivar uma conclusão provisória: em 2019 o quadro pode melhorar um pouco ou piorar muito.
Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importantes no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda a classe política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativo tornaram-se escorregadias, para dizer o mínimo. Não passamos nem a reforma da Previdência, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.
Mas a variável-chave, como comecei a dizer, é o elenco. Temos aí uma dúzia e meia de candidatos ou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso – para não dizer patético – é a óptica pela qual os analistas e observadores tentam decifrar esse caleidoscópio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidade provavelmente chegariam mais perto da realidade, pois se contentavam em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesse à mente. Os príncipes ficavam contentes e iam ou não à guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.
Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativos das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significados, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país.
Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilidade social, um conhecimento mais preciso dos meios necessários para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectual) e conferem importância decisiva à estabilidade social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamentos foram feitos sobre essa questão.
Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolarizados do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.
Não creio que algum pesquisador sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmente de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.
Considerando, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarização entre um “esquerdista” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergindo para um ou mais candidatos de perfil moderado.
A contragosto, dado o raciocínio que venho de expor, tento identificar alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdista, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiário. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertamente em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionando um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponíveis, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivelmente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizante; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.
Dada a manifesta inconsistência dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiência de governo no Estado de São Paulo e um temperamento afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperação econômica dificilmente atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.
A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposições que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.
Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/04/18)

terça-feira, 24 de abril de 2018

A hora e a vez do novo (Rosiska Darcy de Oliveira)

É como se após uma sufocação, voltássemos a respirar ar fresco. Vínhamos há muito tempo condenados a uma polarização alimentada pelo ódio e pelo medo, sentimentos corrosivos, que dividem pessoas e sociedades.
A escolha entre Lula e Bolsonaro deixava órfão quem, perplexo, se perguntava que maldita máquina do tempo era essa que nos atirava de volta a 50 anos atrás, quando o confronto entre direita e esquerda desembocou em 20 anos de ditadura militar.
A cena política mudou. Lula foi preso depois de um discurso em que tentou transformar um político preso em um preso político. Pregou ódio e violência talvez apostando em um conflito mais grave que, instalando o caos, fizesse de um condenado por corrupção uma vítima do arbítrio. Não conseguiu.
Bolsonaro, por sua vez, que surfava na onda de violência que desgraça o país, prometendo como solução mais violência, foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal pelo crime de racismo. Já havia sido denunciado pela mesma PGR ao mesmo STF por incitação ao estupro.
E, por fim, o resultado da pesquisa Datafolha de intenção de votos para a Presidência da República apontando para o colapso da velha política. Lula perdeu votos, Bolsonaro empacou na votação que tinha até agora. Ascendentes, duas candidaturas, um negro, Joaquim Barbosa, e uma mulher, Marina Silva, com trajetórias de afirmação pessoal e reputação ilibada. Ambos conheceram a pobreza na infância e juventude. Nem um nem outro esqueceu o que isso significa.
As agressões de Bolsonaro contra os negros e as mulheres, ampla maioria da população, esbarram na realidade de um país em que negros e mulheres vêm levando com coragem uma luta pelos direitos que vertebram uma verdadeira democracia.
É preciso agora desmistificar o anacrônico confronto entre esquerda e direita que Lula e Bolsonaro tentam nos impingir como expressão da sociedade, o que é falso. É torpe a tentativa de Lula e do PT de jogar no campo da direita, como um anátema, todos os que dizem que eles foram desonestos, faliram o Brasil e merecem a condenação da Justiça. O que é verdade.
Combater a pobreza e a desigualdade é uma tarefa inadiável. Não foram os movimentos sociais aparelhados pelo PT que mudaram o Brasil, foi a sociedade em movimento, os que se educaram com imenso esforço, exercem sua liberdade de pensamento e de escolha, lutam na vida real contra a pobreza e desigualdade. Os que exigem um governo livre da corrupção e acreditam na Justiça como essencial à democracia.
Lula e seu partido, Bolsonaro e quase toda a classe política não se dão conta do quanto o Brasil mudou. Não estão à procura de um centro, o que subentenderia uma referência ainda à esquerda e à direita. Um novo Brasil emerge em outro lugar, fora da polarização.
O crescimento das candidaturas de Marina Silva e Joaquim Barbosa sinaliza uma aspiração à decência na vida pública que pulsa na sociedade e será incontornável nessa eleição. Foi essa aspiração que apoiou a decisão do Supremo Tribunal Federal que, negando o habeas corpus a Lula, reafirmou a jurisprudência que permite a prisão após condenação em segunda instância, essencial à eficácia do combate à impunidade. É ela que exigia que Aécio Neves fosse tornado réu, pelo STF, como de fato foi.
Outro mito, o das máquinas partidárias, todo-poderosas, que decidem as eleições no lugar da vontade popular. Sem elas, os candidatos seriam inviáveis. O que manteria o eleitor inescapável refém dos grandes partidos por mais desmoralizados que fossem. Ora, a pesquisa atribui pífias intenções de voto ao MDB, detentor da maior parcela do fundo partidário e do tempo de televisão. O que dá ainda maior relevo à trapaça que é a atribuição de tempo e dinheiro a partidos que a população despreza. Esse mito aposta na profecia que se cumpre, desqualificando e minando candidaturas com forte potencial eleitoral como Marina e Barbosa.
É difícil reconhecer o que é novo. Programados para conviver com o velho, o novo, que vem emergindo, imperceptível, surpreende.
Somos uma sociedade que, depurada da corrupção e fortalecida pela Justiça, terá que enfrentar seus desafios maiores, a violência, a pobreza e a desigualdade, os frágeis direitos das minorias e de maiorias como os negros e as mulheres, a crise ambiental, cicatrizes que desfiguram nossa democracia.
Longe do ódio e do medo que nos separam, é em outro lugar, o da honradez, liberdade e dignidade para todos, que devemos nos reunir. A pesquisa Datafolha colocou esse lugar no mapa eleitoral.
(*) Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Fonte: O Globo (21/04/18)

sábado, 14 de abril de 2018

A profecia abortada de Gleisi (Juan Arias)

Uma sociedade muda é uma sociedade morta. O poder sempre preferiu o silêncio das ruas ao ruído dos protestos. Existem, no entanto, momentos históricos em que os gritos e as ameaças podem se tornar armas. Dias antes de o juiz Sérgio Moro decretar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a atual presidenta do seu partido, o PT, senadora Gleisi Hoffman, ré por corrupção no Supremo Tribunal Federal, lançou uma profecia terrível: “Para prender Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar”. Hoje Lula já está na prisão e ninguém teve de morrer para que a decisão do tribunal fosse cumprida. Felizmente, a profecia de Gleisi foi abortada.
Dias atrás cheguei a perguntar, nesta coluna, se o Brasil não estaria sofrendo “um ataque de loucura”, dada a situação política e social que o aflige e na qual parece que todos enlouqueceram de repente, das altas instituições do Estado às forças judiciais, políticas e até militares. Hoje, em vista da capacidade que a sociedade demonstrou para metabolizar o trauma da prisão de Lula sem que as ruas fossem tomadas para evitá-lo, cabe perguntar se não estamos desvalorizando a maturidade de uma sociedade que começa a encarar como normal, por exemplo, que a justiça seja igual para todos. Uma sociedade que deixou de ser muda para gritar seu protesto. Uma sociedade que está, por exemplo, vigiando um Supremo Tribunal Federal que flerta com impedir a prisão dos condenados por um tribunal de segunda instância. Até os menos cultos entenderam que essa decisão permitiria que os condenados importantes, que podem se dar ao luxo de pagar advogados de ouro, adiassem sua prisão recorrendo a instâncias superiores. A sociedade entendeu que, dessa maneira, os pobres continuariam igualmente presos e até mesmo sem serem julgados, como sempre o foram. Viu que o que os magistrados querem, sob o pretexto de defender a presunção de inocência, é parar a Lava Jato e salvar os mais de cem políticos acusados ou já condenados por corrupção.
Uma sociedade capaz de ver Lula, o primeiro ex-presidente deste país preso por corrupção sem que isso tenha sido uma convulsão social, como enfatizou o jornal Folha de S. Paulo, talvez seja uma sociedade mais equilibrada e moderna do que aparece na superfície das águas agitadas pelos ódios dos radicais das duas frentes. Enquanto muitos jornais e televisões de todo o mundo deram a prisão de Lula como uma tragédia nacional, mais de 200 milhões de brasileiros continuaram trabalhando, produzindo, se divertindo e até felizes de que aos três “pês” que, segundo a sabedoria popular, eram os únicos a ir para a cadeia e apodreciam nelas –pobres, putas e pretos– agora tenha sido acrescentado um quarto “p”: o dos políticos.
O Brasil talvez seja maior e mais sólido do que parece, com vontade acima de tudo de melhorar sua vida. Um país consciente do que lhe falta, que exige melhorias sociais e serviços públicos dignos e que quer se parecer mais com as nações desenvolvidas nas quais, às vezes, os cidadãos nem lembram o nome do presidente, do que com as repúblicas de bananas, onde políticos e messiânicos poderosos vivem não para criar uma sociedade melhor e mais justa, mas de costas a ela, preocupados em enriquecer e se perpetuar no poder à sua custa. É possível que a força dos que preferem a paz à guerra, o diálogo à intransigência, a convivência ao ódio, seja maior do que a dos destemperados ruidosos e, felizmente, maus profetas, como a aguerrida senadora Gleisi, que já via a prisão de Lula semeada de cadáveres.
O Brasil não se desarticulou vendo Lula na cadeia e tenho certeza de que tampouco o fará quando recuperar sua liberdade. Aqueles que o endeusam e aqueles que o odeiam são menos do que aqueles que veem com naturalidade que a política é feita por pessoas de carne e osso, e não por divindades, como na Grécia Antiga. A história é feita por homens e mulheres normais, com seu cansaço e sua esperança em um futuro melhor para seus filhos. Somente as Igrejas têm a prerrogativa de proclamar santos. O realismo – não o mágico das sociedades ainda imaturas, mas aquele misturado com a terra – é o melhor condimento para fortalecer uma sociedade capaz de viver em liberdade e ser governada com justiça. Todo o resto é areia ideológica jogada nos olhos das pessoas para evitar que elas vejam uma realidade que sempre estará inevitavelmente misturada com tragédias e esperanças, porque a vida é assim. O ruído dos protestos dos vivos é sempre melhor, no final, do que o silêncio dos mortos.
Fonte: El País (10/04/18).

Carta aos sobreviventes (Paulo Delgado)

Morremos incessantemente vendo alastrar a ousadia dos donos da circunstância nacional. O pouco tempo que nos separa do vazio final que podem vir a ser as eleições de outubro precisa ser preenchido por uma vida menos moribunda. Só a ressurreição dos silenciosos enterra os fantasmas que não querem desaparecer e insistem em assombrar.
Os veteranos que viveram esse modelo, e ficaram imunes a ele, deviam começar a se mexer, buscando a simbiose entre os velhos preservados e os novos promissores. Absorvam os ventos da mudança, transitem para a nova forma de fazer política. Rasguem as fotos, fotografia é esquecimento.
Não é preciso falar o nome dos personagens. São grilos falantes. É necessário um “não saber deles” para melhor lhes responder e opor ao seu desejo de nos impor seus costumes. Encontrar brechas na degradação, abrir nossas fissuras, a fenda que nos resta de liberdade e lucidez. Buscar a vibração esquecida do movimento que ilumina o reino de sombras que resiste à mudança. E impôs a servidão aos sentidos como se fôssemos tontos, cúmplices ou culpados.
Antes de renunciar à esperança desligue a conexão com tagarelas. Movimente você as manobras do movimento deles. Organize o pessimismo. Use sua experiência. A imitação produz semelhanças sociais. Despeça-se de quem tem acentuada tendência para falar de si mesmo. Faça seu corpo ficar aquém da sua idade, sua mente além do seu corpo e seu caráter coincidir com sua boa natureza. Hoje vê melhor quem vê mais fraco, ouve mais quem fala baixo. Evite os fluxos de vaidade que emanam da TV de juízes e da negatividade dos carros de som. Exibicionismo não é transparência, é devassidão. Bem viveu quem bem não viu.
Minorias intimidadoras criaram um estado de exceção fosforescente dentro de um circo de marionetes ofuscantes. Após dose enorme de regularidade, a tolerância a bobagens alcançou enorme prestígio e parece sem fim. Disso se observa a cuidadosa servidão da Justiça que, cheia de dedos, julga e aborda o homem paparicado, líder da classe dominante do capitalismo sem concorrência. Ao impor o método de detenção, exigindo prazo, culto e comício, é evidente o universo de privilégio que cerca o personagem. Incapaz de refletir sobre a solidão e o ócio de uma cela, desatento à fadiga do inconsciente, libera um amontoado de palavras ofensivas ao juiz, misturadas à comiseração por si mesmo. O êxtase fúnebre da alienação de um período improvisador mais se revela. Se a prisão é tão injusta assim, negociar com o opressor é de envergonhar Apolônio. Mas não, o objetivo é enfeitiçar a mídia, atrair devotos para impor desespero à decepção e, meu Deus, gravar um vídeo cuja síntese é: causa justa limpa dinheiro sujo. Não há história, nem penitência. Redimir para voltar a pecar? Aparência e coerência, senhores, são quase toda a conduta.
Aguente as tempestades. Aumente a qualidade da sua solidão. Fuja aos escombros do País abatido pela velha Justiça. Não caia na armadilha de ser parte do que repele. Observe o privilégio como desejo que devora. Tristeza sem desespero, alegria sem contentamento. Não chore, não solte foguete. Um caminho é procurar sua linha de vida, e não estacionar inviável diante dos condecorados. Nem tudo o que tem função tem sentido. E alguns, olhando assim de longe, estão mesmo é com a cabeça quebrada precisando de conserto. A história, de moral baixa, anda cheia de juristas e especialistas, fruto desses vazamentos no crânio, que foram aumentando, e acabou atacado por cardumes. Mas é sempre cada um que arruína a própria reputação, pois os cascos mais protegidos são os dos refratários à adulação. Desde Petrarca, há mais virtude em desdenhar da honra recebida do que ser merecedor dela.
A memória rígida da informática trouxe nova cultura, novo ciclo de verdade, uma moralidade do “fato”, que desmoraliza velozmente o curral político com seu emblemático domínio da versão. Há grandes inimigos do povo que não aceita vida de gado. Houve evolução: lembre-se dos atos secretos do Senado; da nomeação para a Casa Civil escancarada pelo celular; do erro do acusado de querer intimidar a Justiça e pretender ser absolvido sem se confessar; do circuito revelado da fortuna ilegal; dos que romperam o pacto, ajudando o País a ver o lodaçal.
A sociedade amanhece 6 a 5 mais otimista, mas continua ameaçada. Exéquias para quem pactua com o atraso. Não era melhor antes. Era um blefe.
É hora de alguém menos glutão que nos conceda hiatos de sensatez. Capaz de deter a insolência da facilidade e de empurrar quem decidir cair na vala comum que é errar sem se arrepender. Pense na sua experiência. Não jogue luz para fora do seu corpo se não for para iluminar o caminho de alguém. Não se deixe comer pela treva da ideologia de almanaque, o buraco da angústia que fez do Estado negócio de panelinha, uma certa esquerda ligada a certa direita. A arrogância exótica do governante e sua predileção pelo lado oportunista do capital, subtraindo energia da Nação. O que vai abrir espaço para outra formulação é fugir à esclerose em placa do gênio malicioso do fanático. Há outra política, outra economia, um melhor direito, fora da cabeça de heróis bebês e seus assuntos. O reino messiânico dessa gente subjuga o discernimento e o estilo opulento da política que praticam fez sucumbir o rosto da pessoa normal, levando o cidadão sem trejeito a desaparecer como um clandestino.
A alegria interrompida voltará em novos rostos. E jogará luz sobre o povo silencioso, ofuscando a glória dos que produziram a amargura. Um fardo, dar fim ao tempo desse gênero de líderes e autoridades latino-americanas em torno de quem o domínio público perde o poder de iluminar. Tempo que desorganizou a ordem dos afetos, separou famílias e nos roubou o entusiasmo e a admiração uns pelos outros, a única arte da política diante dos abismos do mundo.
Fonte: O Estado de São Paulo (11/04/18)

Lula e as razões da incerteza eleitoral (Marcus André Melo)

A combinação de recessão econômica e exposição quase pornográfica da corrupção é "explosiva": em qualquer contexto leva governos e lideranças à bancarrota. Esse é o ponto de partida para a análise das eleições gerais de 2018.
As consequências dessa combinação explosiva são instantâneas em países parlamentaristas: queda do gabinete e eleições gerais. Mas em regimes presidencialistas esse impacto é diferido no tempo.
Ao contrário da maior parte das democracias presidenciais —da Argentina aos EUA—, não temos no Brasil eleições intermediárias ("midterm elections", no jargão). Se a crise tem início no primeiro ano de governo —como no caso da gestão Dilma— , suas consequências sobre o sistema partidário só se farão sentir quatro anos depois.
As eleições municipais de 2016 dão uma pista sobre o que pode ocorrer com as candidaturas proporcionais e majoritárias nas eleições de 2018: o PT perdeu 60% das prefeituras que detinha.
A eleição presidencial será, assim, a primeira em que observaremos as severas consequências esperadas da "combinação explosiva". Mas há três fatores que mitigam seu impacto e juntos tornam o pleito presidencial especialmente singular.
Em primeiro lugar, o impacto se deu não apenas sobre o governo: a Lava Jato alcançou o natural beneficiário da bancarrota, o então líder da oposição Aécio Neves, pulverizando sua candidatura.
Em segundo lugar, a narrativa do impeachment como "estratégia de estancar a sangria" foi eficiente em arrefecer a rejeição ao PT e a Lula, a qual se reduziu em quase 40% em cerca de um ano.
Em terceiro lugar, a demora na recuperação da economia arrefeceu o impacto da "combinação explosiva" porque diminui a clareza de responsabilidade pela crise (a quem atribuir a culpa, Dilma ou Temer?).
O efeito na direção contrária do "voto com o bolso" devido à melhoria recente (baixa de juros, geração incipiente de emprego etc.) pressupõe candidaturas minimamente viáveis do campo do governo. Mas elas inexistem. A perda de centralidade da economia na explicação do voto é singular nas eleições de 2018.
A eleição presidencial torna-se assim insólita: pela primeira vez desde Sarney, o presidente incumbente é não só ator secundário como torna-se tóxico. A debacle das candidaturas de Temer, Aécio e Lula (esperada devido à Lei da Ficha Limpa) fragmenta a disputa baixando o sarrafo. O resultado é o surgimento de outsiders viáveis como Bolsonaro ou Joaquim Barbosa, pela primeira vez desde Collor.
A prisão de Lula e manutenção de sua candidatura exacerba a incerteza geral. Paradoxalmente seu efeito mais contundente é sobre o campo da esquerda, no qual exacerba problemas de coordenação.
(*) Marcus André Melo é professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pela Sussex University.
Fonte: Folha de São Paulo (09/04/18)

A marcha da insanidade (Alfredo Sirkis)

O psicodrama ou psicotragicomédia em torno da prisão de Lula é menos importante, em si, do que como um sinalizador de tempos ameaçadores. Há três anos assistimos o desmonte destrutivo –num certo sentido revolucionário-- do establishment político brasileiro, fortemente dominado pela corrupção, institucionalizada. Era assim, a perder de vista, no passado mas nos anos petistas chegou ao apogeu: o PT pretendeu permanecer no governo, indefinidamente, a qualquer preço, unindo sua força popular e sindical com a cooptação dos tradicionais esquemões corruptos-clientelistas da política brasileira e um "tesouro de guerra" avassalador capaz de bancar super campanhas como a de 2014.
Infelizmente, tenho poucas dúvidas em relação à responsabilidade política de Lula no “Petrolão” e outras armações desenhadas para consolidar o cofre da hegemonia amealhando o que combinado com o abuso da máquina pública, perigava inviabilizar, de forma duradoura, qualquer possibilidade de alternância política. Isso quando o país e sua economia já estavam cabalmente falidos. Resultou na vitória de Pirro da reeleição de Dilma e no subsequente "cavalo de pau" que ela operou na economia, mergulhando o país numa recessão cavalar.
Em última análise o grande responsável político foi o Lula, um grande líder popular, o maior deles, desde Getúlio Vargas e a companheirada sedenta de continuar controlando seus carguinhos e esquemões. E a corda arrebentou... Num estado de direto, no entanto, a justiça não é simplesmente o exercício de um castigo a qualquer preço. Nesse sentido, acredito, sinceramente, que o julgamento de Lula pelo juiz Sérgio Moro, na primeira instância, depois agravado pela trinca radical de Porto Alegre, tratando especificamente do episódio envolvendo apartamento de Guarujá, foi uma aberração jurídica, no que pesem as loas cantadas pelos comentaristas e o deleite da classe média "indignista".
Questiono aquela sentença por três motivos que nossa grande mídia não quer ver de jeito nenhum. Primeiro: Moro funcionou tipicamente como um juiz de instrução. Trata-se de uma instituição interessante que não existe no Brasil. Lá onde existe, o juiz de instrução chefia a investigação mas não profere sentença. Instrui, mas deixa para outro magistrado, menos envolvido, essa decisão. O Brasil deve muito a Moro mas apesar disso, dado seu envolvimento, projeção midiática e antecedentes de parti pris --como aquela divulgação abusiva dos “grampos”, as polêmica públicas e sua própria caraterização como herói do processo, imune a reparos e controles-- não se assegurava aquela imparcialidade necessária para ser ele a proferir a sentença. Foi uma justiça de exceção. Revolucionária.
A segunda questão foi o fato desse processo ter feito tábula rasa do princípio in dúbio pro reu numa postura que nos aproxima de países autoritários: o réu é que tem de provar a inocência, sem margem a uma dúvida razoável. Se o apartamento, vazio, de Guarujá foi pagamento de propina por um ato de oficio, corrupto, feito para beneficiar a empresa em seus contratos com a Petrobras, tratou-se claramente de uma tentativa, não consumada, de cometer tal delito porque nem Lula nem sua família de fato se apossaram ou usufruíram daquele bem. Também não ficou provada, sem margem a dúvida razoável, uma contrapartida. Aceitou-se uma acepção vaga de aquilo fazia fora parte de uma propina pelo processo de fraudes na Petrobras genericamente falando embora na falta um ato de Lula, enquanto presidente da república, que claramente a caracterizasse. A tese do “domínio do fato” é de aplicação muito nebulosa e presta-se facilmente a colossais abusos. Entende-se sua aplicação em relação a quadrilhas mafiosas. Nos delitos vinculados à política há uma proliferação de zonas cinzentas.
Não se levou em conta outra possibilidade: a de que aquele ato preparatório para um “agrado” tivesse sido, nesse caso, praticado por Leo Pinheiro por amizade. Era, de fato, amigo de Lula devotava-lhe grande admiração, independente da corrupção na Petrobras. Em relação a qual a responsabilidade política de Lula é inquestionável mas faltam provas para além da delação premiada de pessoas em desespero para, nesse caso, considera-lo culpado de receber o apartamento como propina sem margem a dúvida razoável. Na jurisprudência brasileira esse tipo de ilação, por um pagamento que não se materializou, jamais conduziria a uma condenação de 13 anos de prisão agravada que foi pelo TFR 4 num julgamento-espetáculo televisivo de natureza a criar novos heróis midiáticos por atender o "clamor popular". “Aquilo era no tempo da impunidade, agora é assim”, dirão, muito embora para os embandeirados de verde anil, nas ruas, continua tudo "acabando em pizza”. Fica a pergunta no ar: o que precisa acontecer para deixar de ser considerado “pizza”. A execução dos corruptos --ou supostos corruptos-- com um tiro na nuca para depois da família pagar a bala, como na China? Vamos tomar um certo cuidado com aquilo que sonhamos. Pode, eventualmente, acabar se realizando.
Lula ainda vai se julgado por frequentar o tal sítio, com lago e pedalinhos, do qual, de fato, usufruiu –assim como daquele sítio que o Fernando Henrique lhe emprestava, nos anos 80-- e de um outro apartamento em relação ao qual exibiu recibos de aluguel de autenticidade contestada pelo MP. Lula será é o primeiro "grande homem" ao qual amigos ricos e admiradores proporcionam agrados e que acredita piamente que isso lhe é devido. Há muitos anos vivia assim. Depois de novas passagens por Moro e pelo TFR 4, em novos julgamentos-espetáculos, vai terminar com condenações somando mais de 30 anos, o que, na sua idade, é praticamente uma condenação a morrer na cadeia. Pode também ser rapidamente beneficiado por um habeas corpus desses tão odiados últimos moicanos da justiça liberal no STF. Mais brasileiros ficarão convencidos de que tudo "acabou em pizza" ainda que o fato de ter sido preso e impedido de se candidatar seja uma punição de vulto por sua responsabilidade política, inquestionável.
O fato é que sua prisão e tem como efeito objetivo radicalizar o clima político do pais estimulando o pior de cada um dos lados que se confrontam de forma cada dia mais irracional. Lembra aquela peça: ”Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A verdade é que a sorte de Lula menos importante em comparação com outra mais abrangente que é a do Brasil. A fase de destruição punitiva foi fundamental para desmontar os esquemas de corrupção mas em nada garante que os hábitos, costumes, cultura e cotidiano da política brasileira se transformem do dia para a noite.
O lavajatismo corre aquele clássico risco das revoluções. Alimentado cobertura de mídia fortemente emotiva e repetitiva que estimula toda noite o "indignismo" e a raiva de dezenas de milhões, a sociedade torna-se adita a esse sentimento e enamorada da guilhotina. Como uma droga: toda a frustração da crise econômica, da insegurança, todos o problemas estruturais e difíceis do país passam a ser sublimados e compensados pela lâmina sangrenta, implacável, catártica. As pessoas tomam gosto pela coisa num prazer punitivo compensador na degola --por enquanto figurada-- dos culpados, dos acusados e dos eventuais bodes expiatórios. Tudo velho como a história, já aconteceu trocentas veres em inúmeros países e momentos históricos mas nunca trouxe nada de bom, de fato, pelo menos a curto e médio prazo. É sofrimento sublimado em glória: pode não have solução alguma, avanço zero na qualidade da representação ou da governança mas tem o consolo de mais gente atrás das grades. Cria-se uma máquina punitiva que precisará se alimentar sempre mais e mais. Novos polos de poder se sentem ungidos pela missão de "limpar" o país muito embora faltem-lhes, objetivamente, os meios para produzir a melhor representação e a melhor governança que lhe faltam dolorosamente ao Brasil. Isso, até segunda ordem, depende de uma melhor qualidade da representação eleita.
A destruição punitiva não conduzirá a um país melhor se não for seguida de uma reconstrução em novas bases, um establishment político menos corrupto, fisiológico e clientelista onde haja mais participação, diálogo e tolerância. Isso inclui uma confiança e tolerância maior entre brasileiros, --ambas hoje pela hora da morte-- e pelo estabelecimento de uma autoridade acatada socialmente. O problema é que estamos rumando em alta velocidade no caminho oposto, aquele da entropia.
Uma democracia precisa de uma esquerda democrática e de uma direta civilizada. Ambas têm que fazer parte de um respeitoso jogo de aceitação da diferença e de alternância. O que temos aqui é uma esquerda regressiva que no seu ressentimento namora o chavismo e não consegue ter a menor dimensão autocrítica da sua responsabilidade em tudo que ocorreu. Do outro lado, uma direta hidrófoba, truculenta, raivosa que busca bodes expiatórios e teorias de conspiração. Seu eventual ponto de chegada é o “homem forte”: um Erdogan, Duterte, Sisi, Orban, Kaczinski, Putin, verde anil.
Uma resultante mais imediata é o caos, a síndrome dos estados falidos da qual o Rio é um prenúncio. Ninguém controla mais nada e ninguém confia mais em ninguém. Multiplicam-se ditaduras locais num momento de ouro para o crime organizado. Bandidos a sério mesmo, daqueles que matam a rodo, não esses meliantes políticos, pilantras e frouxos. É sua hora de acumular poder.
Ainda há tempo de se restabelecer um mínimo de sensatez e reduzir essa temperatura escaldante, essa histeria, de parte a parte. Senão vamos temer um amanhã pior.
Fonte: Blog (07/04/18)