quinta-feira, 28 de maio de 2015

Auto-engano ameaça futuro do PT (Murillo de Aragão)

Murillo de Aragão


A crise é o PT 

Nas últimas semanas, aumentou a contestação ao governo Dilma Rousseff por parte de lideranças do PT, o que deve acirrar os debates no quinto congresso da legenda, a ser realizado entre 11 e 13 de junho, em Salvador (BA).

Considerado nome preferencial do partido na disputa presidencial de 2018, Lula criou um “Conselhão”, integrado por Alexandre Padilha, Antonio Palocci e Fernando Haddad, entre outros, para debater temas da agenda política.

Integrante da Mensagem do Partido, corrente de oposição a Construindo um Novo Brasil (CNB), o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro mudou-se para o Rio. Ele critica o ajuste fiscal e defende a formação de uma “nova frente de esquerda” visando às próximas eleições.

O plano de Tarso é afastar o PT dos peemedebistas do Rio de Janeiro, estado em que o aliado tem criado mais problemas ao governo no Congresso. Mesmo que não tenha força para inviabilizar a dobradinha dos dois partidos em 2016, o ex-governador conseguiu dar amplitude nacional à bandeira de contestação ao partido do governador Pezão e do prefeito Eduardo Paes.

No congresso do PT, temas como a aliança com o PMDB e o ajuste fiscal prometem acirrar o debate interno. Um exemplo disso tem sido observado nas votações das MPs do ajuste, durante as quais importantes lideranças petistas têm criticado o pacote, chegando inclusive a divulgar um manifesto cobrando mudanças na política econômica.

Na pauta da reunião em Salvador, a discussão de novas formas de eleição de sua direção dará a Tarso a oportunidade de angariar apoios à tentativa de contestar o domínio exercido pela CNB. Não deve dar certo. Mas o partido deverá sair dividido.

O movimento de Tarso Genro e a rebeldia de senadores do partido, como Paulo Paim e Lindberg Farias, colocam a possibilidade de um racha no partido no horizonte. Marta Suplicy já saiu. Outros podem seguir o mesmo rumo.

O sucesso do PT existiu quando ele conseguiu liderar uma ampla coalizão de centro-esquerda e centro-direita em favor da governabilidade. Foi a fórmula do sucesso que é rejeitada agora em favor de uma tática de confronto. A tolerância de agregar postos e a habilidade de construir consensos foi o grande trunfo do passado.

Agora, em meio as dilemas da governabilidade, setores do partido atacam moinhos de vento e apontam conspirações imaginárias. Não fazem a devida crítica dos erros cometidos. Ao comprar briga com a “direita”, o partido  fica mais isolado e afastado da parcela do eleitorado que votou com o PT nas últimas eleições, mas não é identificada como “petista de carteirinha”.

O certo em meio ao mar de dilemas é o fato de que o partido vive um longo inferno astral que  não tem fim. Outra certeza é a de que as respostas aos desafios do momento dividem mais do que agregam e quase nunca convencem além dos arraiais partidários. O partido vive um grave processo de auto-engano.

Mais do que nunca o PT precisa da união de seus membros em torno do governo. Não é o que parece que vai acontecer.  Precisaria também ter elevadas doses de autocrítica. Tampouco parece que irá acontecer. Dois graves equívocos que podem ameaçar o futuro do partido. 

A vitória do Podemos e a expectativa de um efeito dominó contra a austeridade (Rudá Ricci/entrevista)





“O Podemos está crescendo e será o grande novo partido da Espanha nos próximos meses. Eles é que irão dirigir as principais cidades da Espanha, com um perfil jovem, inovador e de esquerda”.  O número de votos que os candidatos do Podemos receberam nas eleições municipais e comunidades autônomas na Espanha no último domingo, 24-05-2015, não é “uma total surpresa”, avalia Rudá Ricci em entrevista concedida à IHU On-Line.  A surpresa, lembra, ocorreu há um ano, quando o Podemos surgiu como consequência das inúmeras manifestações que eclodiram no país com o 15M, que tomou as ruas e praças da Espanha em 2011.
De acordo com o professor, atualmente a Espanha vive uma “explosão” de novos partidos, que surgem para atender demandas territoriais. O Podemos, partido que tem maior representatividade nacional, congrega “forças de esquerda tradicionais da Espanha, com algumas forças novas” e “trouxe para dentro de si a Esquerda Unida. A Esquerda Unida, por sua vez, é um racha do Partido Comunista Espanhol com ecossocialistas e movimentos feministas”. Contudo, explica, “existem também, na Catalunha, articulações trotskistas clássicas, principalmente da Quarta Internacional, que é Mandelista (ligada a Ernest Mandel). Além disso, tem lideranças operárias de muitos sindicatos, e lideranças nacionais contra o arrocho econômico, que é muito parecido com esse que a Dilma criou no Brasil”.

O número de votos que elegeu a nova prefeita de Barcelona, Ada Colau, porta-voz da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca – PHA e integrante do Podemos, deve ser entendido, de acordo com o sociólogo, a partir da presença fortíssima do movimento feminista em algumas regiões da Espanha. “A vitória dessas mulheres, Colau e Manuela, não é à toa. Uma das características da mudança da composição política de 2011 para cá na Espanha vem do movimento feminista, do movimento de autonomia e independência dessas regiões, como é o caso da Galícia e Catalunha. Esse movimento contra as hipotecas é liderado por mulheres”, pontua.
Para Ricci, o país “está vivendo uma transição forte, com uma crítica forte aos partidos. (...) Mas quando você percebe a eleição dos novos, do Podemos, e do Ciudadanos, que é outro partido que também está crescendo - mas eles são mais liberais -, percebe como esses novos partidos estão corroendo a estrutura do sistema partidário vigente. Ou seja, o país está numa transição que pode ser que comece a se concluir nas eleições nacionais do final do ano”.

Rudá pontua ainda que o Podemos “vem caminhando mais próximo de uma agenda econômica social democrata”, mas que terá “dificuldades imensas para governar” por falta de dinheiro. Agora, passado o período das eleições municipais, chegou a hora de o que o sociólogo chama de “realismo político”. “Se, por um lado, a crise econômica estará na conta do Podemos, e eles terão de inovar em termos de política pública - e agora vem a prova de fogo -, por outro lado, aumentam as forças políticas da Europa que são contra os pacotes de austeridade, que estão na Grécia, na Irlanda, em Portugal, em todo o leste europeu. Neste momento é possível que estejamos vivenciando o efeito dominó, ou seja, o início de uma nova onda de políticas desenvolvimentistas antiausteridade, fazendo com que o discurso do FMI caia de uma vez por todas em desuso”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor interpreta o resultado das eleições municipais e comunidades autônomas na Espanha? O resultado foi uma surpresa em algum sentido?
Rudá Ricci – Em primeiro lugar, gostaria de dizer que o século XXI começou na Europa neste ano, com a eleição do Syriza na Grécia e com a estupenda votação que o Podemos teve em várias cidades da Espanha, especialmente no Sul do país, em Madri, em Barcelona e em outras cidades da Catalunha. Acontece que não se trata de uma total surpresa. A surpresa aconteceu em 2014.

Vamos lembrar rapidamente o que aconteceu na Espanha: em 2011 aconteceram manifestações gigantescas - algo semelhante ao que aconteceu no Brasil em junho de 2013 - e, em 2012, essas manifestações começaram a fazer uma série de ações junto ao Congresso Nacional e aos Parlamentos regionais – o que não tivemos no Brasil.

Em 2012, por exemplo, 50 mil pessoas abraçaram o que seria o Congresso Nacional em Madri e gritaram: “Vão para casa”. Nesse momento, as manifestações explodiram nas redes sociais da Espanha – várias universidades analisam essas manifestações há algum tempo e mostram mapas de como foi a repercussão desse ato nas redes.

Em 2013 nasceu o primeiro partido político que saiu das ruas, que é o partido X. Esse partido era, de certo modo, muito radical, porque não queria lideranças políticas e queria que houvesse uma participação de base ampla, especialmente nas redes sociais, ou seja, queriam uma revolução na forma de organização política da Espanha. Mas o que importa para nós é o fato de ter nascido um partido político que surgiu das manifestações de rua. Esse processo, entretanto, não ocorreu no Brasil.

Articulações políticas

Com a politização das manifestações do 15M de 2011, finalmente, em janeiro de 2014 nasceu o Podemos, um partido diferente do partido X, porque congregava forças de esquerda tradicionais da Espanha, com algumas forças novas. O Podemos trouxe para dentro de si a Esquerda Unida.

A Esquerda Unida é um racha do Partido Comunista Espanhol com ecossocialistas e movimentos feministas.

Existem também, na Catalunha, articulações troikistas clássicas, principalmente da Quarta Internacional, que é mandenista, ligada a um economista belga chamado Ernest Mandel. Além disso, há lideranças operárias de muitos sindicatos, e lideranças nacionais contra o arrocho econômico, que é muito parecido com esse que a Dilma criou no Brasil. Assim, o principal movimento social na Espanha hoje é o movimento contra a cobrança de empréstimos e hipotecas de casas próprias, porque muitas famílias estão sendo despejadas de suas casas por não conseguirem pagá-las.

Além disso, tem os movimentos feministas e os movimentos de autonomia regional, além do grupo que coordena o Podemos, que é um grupo de professores universitários de Ciência Política, Economia e Comunicação Social, cujo líder principal é Pablo Iglesias. Esse grupo do Podemos é muito inovador e foi consultor dos governos da Bolívia, do Equador e da Venezuela.

Então, eles não são qualquer grupo; são um grupo de esquerda muito hábeis na comunicação, e no Brasil pouco se sabe o que eles estão fazendo.  Por exemplo, Pablo Iglesias lançou um livro com uma série de autores que analisam o Game of Thrones, que muitos jovens estão assistindo na Europa. Veja, ele é muito esperto e organizou um livro com pessoas comentando o Game of Thrones a partir das suas militâncias, ou das suas categorias profissionais, ou seja, são economistas, ambientalistas. A capa do livro é o trono do Game of Thrones, cheio de espinhos, e quem está sentado na poltrona é o Pablo Iglesias. Veja que eles têm uma capacidade de comunicação de massa ampla, sendo muito irônicos.

Eu estou trazendo eles para o Brasil nos dias 20 e 21 de junho, mas me reuni com eles no ano passado, na Espanha. Lá, eles me disseram que não gostam de falar de esquerda e direita, mas, sim, falar de “castas dos de cima e dos debaixo”. Segundo essa interpretação, os partidos que acabaram de perder a eleição para eles são os “de cima”, que se aliaram aos grandes empresários, que estão expulsando as pessoas de suas casas.

O Podemos está crescendo e será o grande novo partido da Espanha nos próximos meses. Eles é que irão dirigir as principais cidades da Espanha, com um perfil jovem, inovador e de esquerda.


IHU On-Line - Quais as principais diferenças nas eleições de Madri e de Barcelona?

Rudá Ricci – São muito diferentes, porque Madri faz parte de uma região da Espanha que se chama Castilla y León, que é uma região muito elitizada. Anos atrás estive nessa região, em Palência, e quase fui escorraçado porque eles achavam que eu tinha cara de árabe.

Na Catalunha é o inverso, tem uma população mais solta, que se autodenomina de “os cariocas da Espanha”. Eles têm uma história de esquerda e uma série de novidades em termos de políticas públicas. A Catalunha faz parte de um dos governos estaduais autônomos e tem um tipo de governo específico, chamado Generalitat, que é quase um país, bastante organizado a partir das comissões operárias (obreras), que seria algo parecido com a Cut no Brasil. Dito isso, aí é fácil perceber porque o Podemos ganhou as eleições nessa região, especialmente em Barcelona, e ficou em segundo lugar em Madri, onde teve, inclusive, de se alinhar com o que seria o PT no Brasil, que é o PSOE, para poder governar.

O país está vivendo uma transição forte, com uma crítica forte aos partidos. O que equivale ao PSDB no Brasil, o PP, ganhou mais votos, mas perdeu 10% do eleitorado e as principais cidades. Mesmo assim, eles tiveram 27% dos votos. O que seria o PT, o PSOE, teve 25% dos votos. Mas mesmo assim, você vê que nas regiões mais conservadoras, ou que têm tradição nesses partidos, eles continuam tendo uma massa de votos muito grande. Mas quando você percebe a eleição dos novos, do Podemos, e do Ciudadanos, que é outro partido que também está crescendo - mas eles são mais liberais -, percebe como esses novos partidos estão corroendo a estrutura do sistema partidário vigente. Ou seja, o país está numa transição que pode ser que comece a se concluir nas eleições nacionais do final do ano.

IHU On-Line - Qual a representatividade da eleição de Colau, em Barcelona e de Manuela Carmena, em Madri? Qual a expectativa em torno de se ter duas prefeitas que surgiram das manifestações de rua ? Qual o significado político disso?

Rudá Ricci – Queria lembrar que no país Basco, que fica a Nordeste da Espanha, a organização feminista é muito forte e em outras regiões do país também. Em novembro e dezembro eu estive em regiões mais rurais da Espanha, em Mérida, e lá o movimento feminista é fortíssimo. Essa é uma cidade polo regional, mas ali o movimento operário e feminista foi muito forte. Com isso, quero dizer que a vitória dessas mulheres, Colau e Manuela, não é à toa.

Uma das características da mudança da composição política de 2011 para cá na Espanha vem do movimento feminista, do movimento de autonomia e independência dessas regiões, como é o caso da Galícia e Catalunha. Esse movimento contra as hipotecas é liderado por mulheres.

Em Portugal, o grupo de esquerda, que é outro partido, que tem esse estilo mais tradicional do Syriza e do Podemos, é liderado por mulheres. Inclusive, nesse evento dos dias 20 e 21 de junho, vamos trazer as duas irmãs Mortágua, que são dirigentes do Bloco de Esquerda. As mulheres estão significando uma expressão dessa mudança política que é muito maior na Europa.

No Brasil também não é conhecido o fato de que há, na Europa, uma articulação muito forte entre esses partidos de tipo novo, como o Podemos, o Syriza, o Bloco de Esquerda de Portugal e a articulação de esquerda na Irlanda. Pelo menos esses quatro grupos estão muito articulados entre si.

IHU On-Line - Além do Podemos, que outros partidos surgiram das manifestações do 15M, como o Barcelona em Comum? Eles compartilham uma agenda comum?

Rudá Ricci – Ao longo da Espanha há vários partidos regionais e muitos deles surgiram das manifestações, mas outros surgiram de movimentos. As manifestações surgiram de uma crise do sistema partidário e, como na Espanha há uma autonomia regional, ocorre uma explosão de movimentos de independência territorial, que se mesclam com temas ligados ao aumento da pobreza da classe média em função dos pacotes de restrições econômicas e dos investimentos sociais.

Eu lembro de uma reunião que tive com membros da Esquerda Unida e eles me disseram que uma coisa é a situação do Brasil, em que agora muitas pessoas que foram pobres começam a poder comprar carros e a poder viajar, e outra coisa é entender que uma pessoa que é engenheiro de classe média, que tem dois filhos pequenos, que vem de uma família em que o pai e o avô também eram de classe média, de repente perde a casa e tem de voltar a morar com os pais.

Essa mudança de perspectiva na vida gera revolta total. E é esse o estado de bem-estar social que está sendo quebrado na Espanha. Então, isso explodiu na Espanha vinculado à ideia de território, ou seja, as pessoas da Catalunha acham que não têm nada a ver com os de Madri. E o pessoal do país Basco acha que não tem nada a ver com o restante do país. Então, por isso surgiram muitas organizações locais. Nos país Basco existem dois ou três partidos feministas e na Catalunha tem o Barcelona em Comum, que se articulou com o Podemos. O que está acontecendo na verdade é a formação de uma frente de novos partidos. Mas como eu disse, do ponto de vista nacional, antes do Podemos nasceu o partido X, que não teve a potência do Podemos, porque este conseguiu juntar uma série de forças.

IHU On-Line – No Brasil sempre se faz referência ao Podemos como o principal partido que surge desse descrédito com os partidos tradicionais, sem se mencionar esse novo quadro político, com o surgimento de novos partidos regionalizados.

Rudá Ricci – Sim, trata-se de um quadro novo, muito regionalizado. É como se de repente surgisse uma série de novos partidos no Nordeste brasileiro. Na verdade, no Brasil está, timidamente, acontecendo algo parecido.

Por exemplo, o PSOL está ocupando um lugar em algumas regiões do Brasil, como no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Brasília e no Pará. Mas tem uma articulação em São Paulo e no Rio de Janeiro de autonomistas, ecossocialistas, que vieram do PT, do PCdoB, da Rede e estão formando esse novo partido que se chama Raiz. A Luiza Erundina está vindo para esse novo partido, o Roberto Amaral está discutindo a possibilidade de se vincular a ele, e alguns petistas também estudam a possibilidade de sair do PT e migrar para esse partido. Então, está tendo uma movimentação, mas principalmente do Centro Sul do país. Se vê que está tendo uma quebra do sistema partidário por dentro, porque os brasileiros não conseguem se ver dentro dos partidos criados nos anos 1980. Está tendo uma procura por novos partidos, como foi a procura pela Marina nas eleições passadas. Os brasileiros querem tentar outra via. Isso aconteceu na Espanha, mas lá teve uma explosão nacional.

Eu me reuni com o pessoal do Podemos, na Espanha. Eles marcaram comigo numa praça no centro de Mérida, no inverno. Quando cheguei na praça, não vi ninguém, aí telefonei para um dos membros do partido, que disse já estar chegando. Nesse meio tempo, dei uma olhada para os lados e vi duas pessoas, um senhor e uma jovem, que estavam abrindo um portão e acendendo uma luz numa sala em que tinha uma mesa grande, cheia de jornais. Fui até lá e perguntei se era ali que iria acontecer a reunião do Podemos. Eles confirmaram e perguntaram de que país eu era e já me convidaram para participar - eu vivi isso no início dos anos 1980, com a formação do PT. O senhor foi um líder importante da região e era do Partido Comunista Espanhol e a jovem era do movimento feminista. Essa era uma das poucas sedes físicas do Podemos na Espanha. Eles se reúnem toda semana, à noite, e cada noite um coletivo deles usa o espaço da sede. Naquela noite, era o dia da reunião das feministas. No dia seguinte seria a reunião do grupo que estava organizando a campanha da eleição que eles ganharam nesse domingo. Então, o que quero mostrar ao falar isso é que há uma autonomia impressionante do uso do espaço da sede. Não tinha um dono: e esse é o Podemos.

IHU On-Line - Como vê, por outro lado, o acordo que o Podemos fez com o PSOE?

Rudá Ricci – O Podemos, desde o ano passado, vem caminhando mais próximo de uma agenda econômica social democrata. O próprio PSOE acusou o Podemos de copiá-los. Eu vi o Pablo Iglesias rindo da cara do PSOE na televisão, dizendo que se eles não tinham conseguido cumprir a promessa, o Podemos iria fazê-lo. Veja como eles são irônicos. Mas já era previsível que eles tivessem uma aliança em algum momento. Eu vi o programa econômico do Podemos, conversei com a direção do partido e inclusive disse para eles que via que estavam se aproximando do PSOE. Aí eles responderam: “A questão é a seguinte: uma coisa era o movimento que criamos no início de 2014, questionando o sistema partidário; outra coisa é agora nós sermos poder. E para ser poder, precisamos governar para a Espanha; não dá para governar somente para os meninos. E para isso, teremos de ampliar a nossa agenda”. Com isso, já estava ficando claro que eles estavam indo para a direita e não seriam tão radicais como se mostravam no início.

Mas como eu disse, o PSOE, no final do ano passado, estava com muito medo do Podemos. Eu lembro que à época conversei com alguns amigos socialistas da Espanha, que já me diziam que iriam acusar o Podemos de ser de extrema esquerda, porque era o único jeito que viam de barrá-los. Isso demonstra como a Espanha está passando por uma transição muito radical e rápida, e os partidos não estão sabendo lidar com essa novidade.


IHU On-Line – O 15M surgiu na Espanha recusando os partidos, mas depois, se viu o surgimento do Podemos de dentro dessas manifestações. Como vê a transição desse movimento até se chegar a constituição de um partido que poderá ganhar as eleições nacionais do final do ano?

Rudá Ricci – Primeiro, tem uma conjunção de fatores que geram a crise na Espanha, que junta o antigo com o novo. Aqui no Brasil só tem o novo surgindo, e os antigos reagindo negativamente ao novo.

O que se tem de fato na Espanha? Tem os meninos do 15M, que explodem em toda a Espanha, mas tem um movimento subterrâneo que se articula rapidamente ao 15M, que é o movimento de luta pela sobrevivência de famílias de classe média e de pessoas da terceira idade. Isso não surgiu no Brasil, porque o que aconteceu aqui foi um divórcio das pessoas de mais idade e da classe média com os jovens. O pessoal de classe média no Brasil foi para a direita. Na Espanha não aconteceu isso, porque lá  os Democratas estavam governando, um partido que equivaleria ao PSDB no Brasil, e posteriormente governou o partido que tinha iniciado essas políticas que originaram o suicídio, que equivale ao PT no Brasil.

Parece que nesse momento começa a surgir no Brasil algo parecido com o que aconteceu na Espanha, ou seja, o pessoal da direita ficou frustrado com o PSDB porque ele não aceitou o impeachment da presidente Dilma. Isso aconteceu de forma radical na Espanha, de tal modo que setores de classe média e pessoas de 40 a 60 anos de idade, que não tinham os partidos nem da direita nem da esquerda como referência, não conseguiam ver neles uma alternativa. Isso não aconteceu no Brasil. Aqui o discurso da direita pegou parte do eleitorado frustrado. Lá não, porque o pessoal foi contra os partidos tradicionais. Então, o primeiro movimento foi a articulação dos jovens, depois a junção das pessoas que estavam perdendo as vantagens do estado de bem-estar social, e há ainda uma terceiro movimento, que é o do pessoal que está lutando pelo separatismo, que é o caso do país Basco e da Catalunha, que no ano passado votou pela separação da Espanha. Esse é outro movimento que não temos no Brasil.

Então, na Espanha há uma convergência de situações. A crise econômica, agravada pelo pacote da troika, rompeu com o sistema vigente partidário e aí surgiram essas novidades regionais que se somam ao Podemos e outras se somam ao Ciudadanos. Esse partido Ciudadanos é um partido como o Podemos, mas mais à direita. Isso nós não temos no Brasil, nem uma novidade à esquerda nem à direita.

IHU On-Line - Apesar de ter tido o resultado menos expressivo dos últimos anos nas eleições municipais de domingo, por quais razões o Partido Popular - PP continua sendo o mais votado?

Rudá Ricci – Sim, ele foi o mais votado, com 27% dos votos. Essa expressividade se deve ao mesmo motivo que acontece no Brasil. O PT parece ser o partido mais odiado hoje, mas mesmo assim reelegeu a presidente Dilma. Existe uma inércia e um charme dos partidos que estão no poder, porque eles têm a caneta, os compromissos locais e uma rede de lealdade de políticos locais, mas temos de ver isso em perspectiva. Um partido como o Podemos, que tem pouco mais de um ano de existência, roubou 10% dos votos do PP e quase 500 cidades da Espanha. Em perspectiva há uma inércia em relação ao PSOE, porque o PP caiu mais.

José María Aznar, que foi primeiro ministro do PP, que derrubou José Luis Rodríguez Zapatero, gerou essa geração que saiu derrotada das urnas no domingo. O PP está órfão e perdeu forças em Madri, que é a região mais conservadora da Espanha, e perdeu as lideranças que eram a renovação do partido. O PSOE ganhou em algumas regiões, como Valência, que é importante para o partido, e em Sevilla. Ou seja, o PSOE está em crise, mas conseguiu manter sua base aliada, mas o PP, não.


IHU On-Line - Quais as expectativas em relação às eleições nacionais do final do ano e qual poderá ser o peso político do Podemos daqui para frente?

Rudá Ricci - Agora é a hora de o realismo cair pesado sobre os ombros de quem vai governar. Eles terão dificuldades imensas para governar, porque não têm dinheiro. Eles vão frustrar os mais radicais, porque vamos lembrar que houve um racha no Podemos no mês passado. O grupo do Pablo Iglesias, que é mais tradicionalista e centralizador em termos de organização, ganhou as eleições internas do Podemos, e os mais inovadores em termos de organização saíram do partido. Então, vamos ter como consequência agora um banho de realismo político. Por outro lado, os cinco deputados eleitos para o Parlamento europeu do Podemos, que foram eleitos no ano passado, vão se encontrar com o Syriza e com os irlandeses com muito mais força. O que temos de entender é que se, por um lado, a crise econômica estará na conta do Podemos e eles terão de inovar em termos de política pública, e agora vem a prova de fogo, por outro lado, agora aumentam as forças políticas da Europa que são contra os pacotes de austeridade, que estão na Grécia, na Irlanda, em Portugal, em todo o leste europeu. Neste momento é possível que estejamos vivenciando o efeito dominó, ou seja, o início de uma nova onda de políticas desenvolvimentistas antiausteridade, fazendo com que o discurso do FMI caia de uma vez por todas em desuso. Vamos lembrar que a crise dos EUA de 2008 gerou um pacote do FMI que foi rechaçado pelo Obama, mas é o mesmo pacote que a Dilma quer implantar no Brasil.

Eu estou falando do pacote da Dilma, porque estamos vendo um possível suicídio político do PT e, nesse sentido, a eleição da Espanha pode significar um farol para enxergarmos o futuro do Brasil. Tenho a impressão de que o Podemos terá a dificuldade de governar na crise, mas terá a vantagem de se juntar aos seus amigos do Syriza, que também são poder. É o início de um efeito dominó que atinge outros países nessa mudança. Vamos lembrar que os três países que comandam essa austeridade são a Alemanha, a França e a Inglaterra. Vamos lembrar ainda que na França, na Áustria, na Bélgica e na Suíça a extrema direita está ganhando ainda mais votos. A Europa está numa radicalidade ideológica dos dois lados muito forte. A eleição do Podemos pode significar uma força para a esquerda nesse momento. Ou seja, tudo está em aberto.

(*) Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica) e Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto), entre outros.

Sobre a Greve (Daniel Aarão Reis)




Prezad@s, saúde e paz, conforme disse em sala de aula, aqui vão algumas reflexões sobre o movimento grevista que ora se anuncia na Universidade Federal Fluminense e em outras universidades públicas.
Vivemos hoje, e tudo indica que viveremos nos próximos anos, tempos difíceis do ponto de vista das relações entre governo e educação, em geral, e entre governo e universidades públicas, em particular. A presidenta, uma vez eleita, e ao contrário de tudo o que prometera na campanha que a elegeu, resolveu definir como política de "saída de crise" um conjunto de propostas que se assemelham em tudo e por tudo ao que seus adversários queriam realizar. Como em muitos países do mundo, vem por aí um "ajuste", cujo custo será pago pelos trabalhadores e pelas camadas populares. A cartilha já foi aplicada na Europa e em outras partes do mundo. O resultado? Menos e mais precários serviços públicos, menos e mais precários direitos sociais, menos e mais precárias perspectivas para a melhoria do padrão de vida das grandes maiorias.
As Universidades Públicas sofrerão, já estão sofrendo, o impacto deste "ajuste" – verbas "contingenciadas", ou seja, cortadas; salários congelados ou, no melhor dos casos, reajustados abaixo da inflação, cujos índices são maquiados. Nem preciso falar dos resultados, eis que são visíveis a olho nu.
Para enfrentar, e superar positivamente, as ameaças, vai ser preciso muito conversar e debater, e lutar, para lidar com esta conjuntura que se anuncia de "vacas magras" (podem por magreza nisto). Para isto, a universidade deve continuar funcionando, viva.
Entretanto, como de sua tradição, as entidades de professores, funcionários e estudantes voltam a propor a sua cantiga de uma nota só: "vamos à greve˜!
A proposta é anunciada, discutida e decidida por pequenas minorias de ativistas iluminados, sem representatividade, concentradas em assembleias não precedidas de reuniões locais ou setoriais (departamentos, institutos, etc.). Carecem, portanto, de legitimidade. Trata-se também de um dispositivo tradicional, que isola as entidades de suas bases sociais. Para uma luta de longo fôlego, como a que teremos pela frente, não é um bom começo.
Mas não me oponho a esta greve, como me opus a outras, apenas por estas considerações, já bastante relevantes em si mesmas.
O que me parece também muito importante é que, nesta greve, como em outras, do passado, apenas são penalizados os cursos de graduação. Só param, quando param, as aulas dos cursos de graduação. As pesquisas continuam a todo o vapor. Os Programas de Pós-Gradação, também. Continuam sendo escritos artigos e livros, apresentados em Congresso não adiados, ou desmarcados. Projetos financiados continuam a ser implementados. É tão evidente que chega a ofuscar: só param mesmo os cursos de graduação.
O prejuízo seria, porém, concebível, se a forma de luta adotada fosse eficaz. Mas não é. Quem não se lembra da paralisação da semana passada? Onde vingou, o que tivemos? Uma universidade deserta, sem viv’alma, fechada. Debate? Zero! Discussão? Zero. Capacidade de pressão? Nula.
A verdade é que, como já foi demonstrado em muitos outros momentos, a situação do sistema educacional torna-se assunto "público", e se realizam pressões efetivas em prol de medidas positivas para a educação pública, quando estudantes, professores e funcionários conseguem ir para as ruas, apresentando à sociedade suas reivindicações, impondo-se, pelo seu movimento social, à atenção das gentes e à agenda dos governos. A greve nos serviços públicos é uma infeliz mimetização dos movimentos operários, ou dos segmentos que trabalham nos setores produtivos. Ao invés de prejudicar os patrões, prejudica apenas e tão somente os usuários dos serviços, no nosso caso, os cursos de Graduação.
A greve, "por tempo indeterminado", não qualifica o debate, anula-o; não acumula forças, dispersa-as; não concentra, fragmenta e pulveriza; não fortalece, enfraquece.
Não é uma forma de luta consequente e por isso deve ser evitada e rejeitada. Só é razoável concebê-la em momento ou dias de manifestação. Aí, sim, ela pode se justificar. Parar aulas e cursos, e redação de artigos e provas, para ir às ruas, protestar nelas, agitando, politica e culturalmente, a sociedade.
Acresce ainda, e finalmente, uma última razão. É que os grevistas do serviço público no Brasil, pelo absoluto descaso com que são estes últimos tratados pelos governos, têm seus salários regularmente pagos no fim de cada mês, estejam ou não trabalhando. Como já disse em outros momentos, se os trabalhadores do mundo soubessem que é possível fazer greve ganhando salários...ai do Capitalismo, não haveria um que não paralisasse imediatamente o trabalho.
Por todas estas razões, prezad@s, continuarei oferecendo meus cursos. Se a universidade estiver fechada, trabalharemos nos gramados do campus, com belas vistas para o mar e para as montanhas. Reconhecerei o direito dos estudantes que divergem destas considerações e não computarei suas faltas, oferecendo-lhes, quando, e se voltarem, às aulas, avaliações de conhecimentos apropriadas. Mas informo, desde já, que não pretendo repor aulas. Por duas razões: porque elas terão sido dadas, e por não acreditar na eficácia da reposição, mesmo quando ela se realiza, o que não é sempre o caso, infelizmente.
Divulgarei o presente texto para minhas bravas turmas e para os professores de História. É livre, naturalmente, sua divulgação.
Que todos façam o que lhes ditarem as próprias consciências.
Quanto a mim, como disse um velho revolucionário em momentos de incerteza: Dixi, et salvavi animam meam (Disse, e salvei a minha alma).
Saludos,

Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
21 de maio de 2015

terça-feira, 19 de maio de 2015

Brasil vai voltar a crescer e panelaços irão acabar (Chico de Oliveira/entrevista)






A crise parece muito grande, mas não é. O Brasil vai voltar a crescer, tem uma economia privilegiada e será uma sociedade mais igualitária. A burguesia do país é muito autoritária, mas seu jogo não vai prosperar. Os panelaços não terão continuidade. "A sociedade não aguenta mais ver a demissão de 2.000 pessoas".

A análise é do sociólogo Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, 81. Para ele, o país vive como em um baile, onde tudo está em movimento, o que gera sensações de pressa e angústia. "Isso é ótimo. A pior coisa é a estagnação". E é preciso lutar pelo poder.

Fundador do PT e do PSOL, professor aposentado da USP e autor de clássicos como "A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista" (1972), ele condena a ausência de ousadia dos últimos governos. "Brizola é o grande político que falta no Brasil. Falta alguém com audácia", diz.

Crítico do lulismo, que classifica como um movimento conservador, avalia que é possível, mas não provável, a derrota do partido em 2018. Na sua visão, Lula vai precisar se realinhar de forma radical, fazendo política de forma mais contundente, ou os tucanos voltarão ao poder. "Se houver um desastre e o PT for desalojado do poder, as burguesias nunca mais se esquecerão disso. Vão tentar manter o PT afastado", declara.

Nesta entrevista, concedida na sua casa na Vila Romana, em São Paulo, Chico de Oliveira fala de seu projeto para um novo livro. Quer tratar do que identifica como chances perdidas pelo lulismo, que deveria ter ampliado muito mais os benefícios sociais. "Erraram. Foi um sonho que poderia ter sido e não foi em toda a sua intensidade", afirma.

Folha - O que está acontecendo no Brasil?

Francisco de Oliveira - As posições se acirraram porque tem o PT de um lado e os tucanos de outro. Todo o meio desapareceu. PDT, PPS, os democratas, outros partidos praticamente desapareceram. A consolidação de posições que são opostas dá essa sensação de que está tudo muito ruim, mas não está não.

O que há de bom nessa conjuntura?

Bom seria um exagero. É uma conjuntura cíclica, que vai e volta. A crise parece muito grande, mas não é. A concentração da crítica na Dilma é fogo de palha. Nem ela mesma tem o controle do partido dela. O controle ainda é do Lula. Mas Lula não é homem de partido, ele é muito personalista.

Há choque entre Lula e Dilma?

Vai haver sempre. Porque Lula elegeu a Dilma para ser um pau mandado. Mas, quando se chega à Presidência, a regra do pau mandado não vale. Ela tem pouco jogo de cintura político, tem que ouvir muito. O poder fica muito diluído.

Qual sua avaliação do governo Dilma? O que ela faz de bom e de ruim?

Nem nada de muito bom nem nada de muito ruim. É um governo médio e medíocre. Ela não é responsável pelos grandes males do país nem tem solução para esses grandes males. É uma presidente fraca. Votei com convicção nela nas duas vezes e não estou decepcionado. Ela me pareceu ser mais de acordo com as minhas percepções. O governo não tem quase respostas para nada, mas não faz o programa do PSDB. É um programa quase óbvio. Vai empurrando com a barriga. Felizmente, apesar de governos fracos, a tentação autoritária não está voltando.

A ascensão de movimentos mais conservadores nas ruas e no Congresso lhe preocupa?

Não me preocupo porque os tucanos não são populares. Eles não conseguirão galvanizar essa tentativa de desestabilização com apoio popular. Os tucanos sempre evitam recorrer às ruas. Panelaço não é o povo quem faz. Esse tipo de movimento não tem continuidade. Já o PT não pode mover-se com a facilidade que tinha antes de ser governo. Não acredito que o PT tenha solução para nada.

Há uma ascensão da direita?

Não vejo. A direita existe mais na imprensa do que no movimento real de setores da população. A sociedade brasileira é muito diversificada e não comporta uma direita extremada. Existe uma polarização entre os muito ricos e muito pobres. Mas esses dois segmentos não fazem política. A polarização se dá em picos. A linha de continuidade é muito por baixo e muito fraca. Os picos parecem nos espantar. A discussão do impeachment não vai para frente. Renan Calheiros e Eduardo Cunha são fracos. Se fosse com o Ulysses Guimarães, a senhora Dilma estaria dançando miudinho.

Como o sr. analisa a situação do Brasil no mundo?

O Brasil é área de disputa muito forte. É a sexta economia mundial ou algo nessa dimensão. É muito bom fazer negócios aqui, especialmente num momento em que EUA e Europa estão mais ou menos estagnados. A Índia é muito pobre. Na China, ou os negócios passam pelo Estado ou não passam. O Brasil é uma ilha de muita liberdade empresarial. Não tem muita regulação. Salvo em setores muito vulneráveis, se faz qualquer negócio em qualquer parte. O Brasil cresce. Agora está patinando, mas é só uma patinação. Esse ciclo é passageiro; haverá reativação. O Brasil não é um país condenado ao esquecimento. É por isso que é preciso lutar.

Lutar como e para quê?

Pelo poder. Numa sociedade estagnada a luta é mais fácil. Aqui, não. Aqui é como um baile: está tudo em movimento. Dá uma sensação ao mesmo tempo de pressa e de angustia. Porque você nunca está sossegado. E isso é ótimo. A pior coisa é a estagnação. É preciso andar para dar um mínimo para a população mais pobre. Não se pode mais deixar milhões sofrerem com necessidades básicas. Isso não existe. É preciso jogar a bola para frente –e correr atrás dela.

O perfil desse governo é mais protecionista ou liberal?

O governo não sabe se definir em relação a isso. Não sabe se é protecionista ou livre cambista. Vem de uma herança pesada. FHC jogou para destruir regras de proteção, fez um jogo liberal. O que não era esperado, pois sua tradição era pela esquerda. Lula não puxou para a esquerda. Daí vem a indefinição do governo federal, que prossegue com Dilma.

Reajustes reais do salário mínimo, Bolsa Família não são pontos de um governo de esquerda?

Sim, comparando com outros. A ironia é que são medidas capitalistas. Moro num prédio de classe média, onde quem trabalha na portaria já tem carro. É um índice de êxito do capitalismo, até certo ponto. Só um socialista louco –como já fui; hoje sou apenas socialista– para achar que eles não melhoraram de vida. Melhoraram extraordinariamente.

O sr. já afirmou que as esquerdas no Brasil, desde os tempos do auge do PC, passando pelo PT e pelo PSOL, nunca conseguiram ter um projeto para o país. Por quê?

As esquerdas são muito brasileiras: tendem mais à conciliação do que ao conflito. É da formação da sociedade e do Estado. As esquerdas também são muito conservadoras. Na redemocratização, em 1945, o projeto do PCB para o petróleo era privatista. Seguia a linha de aprofundar o capitalismo para criar condições para o socialismo. Esquerda e nacionalismo convergiram numa certa fase. A atual esquerda não tem projeto. Lula nunca teve; Dilma também não tem. O PT não sabe o que é o Brasil, não tem um projeto para o país. Está superado. Não vai acabar, mas não tem nada a dizer a respeito do desenvolvimento do Brasil. Vai empurrando com a barriga. É o partido da ordem.

Seu diagnóstico de esgotamento do PT significa previsão de derrota do partido em 2018?

É possível, mas não é provável. Quando jogo for pesado, Lula vai ter que se realinhar. De forma até radical, o que não é do estilo dele. Ou Lula volta a fazer política de forma mais contundente e mais consistente ou se prepara para entregar o queijo para os tucanos. Lula vai ter que ser mais partidário e retomar a militância política. Vai precisar dar apoio a Dilma para que o mandato não tenha um desenlace que caia em cima dele. Se houver um desastre e o PT for desalojado do poder, as burguesias nunca mais se esquecerão disso. Vão tentar manter o PT afastado.

Há personalidades alternativas?

Brizola é o grande político que falta no Brasil. Governou dois Estados (o RJ duas vezes). Não tem ninguém com esse perfil, com essa audácia. Falta alguém com audácia.

Como o sr. enxerga o Brasil a longo prazo?

Vai caminhar para ser uma sociedade mais igualitária. Não é otimismo. Em geral, a obrigação do cientista social é ser pessimista. Nenhuma sociedade aguenta o nível de desigualdade que se produziu no Brasil. Há pressão da população. Não existe manter 200 milhões de pessoas sob o jugo da desigualdade, reprimida por inteiro. No longo prazo seremos mais igualitários. A democracia está ao alcance das mãos; não é um sonho utópico e é necessária. Menos para os democratas e mais para os não democratas. Quem estiver jogando jogo autoritário não vai aguentar. A burguesia brasileira é muito autoritária. Mas hoje a sociedade não aguenta mais ver a demissão de 2.000 pessoas. Ela não permite. As empresas não são mais donas absolutas do jogo econômico social e político. Têm que prestar contas à sociedade. O confronto deslocou-se do âmbito de empresas e sindicatos para a sociedade.

Como avaliar politicamente essa fração da população que ascendeu nos últimos anos?

Ninguém sabe. É como olhar dentro de uma chaleira. Há vários pontos de ebulição. Há uma ebulição geral na sociedade. Mas o Brasil vai melhorando, incluindo mais gente. É a forma do capitalismo se renovar. Ninguém pense em reformas profundas. As reformas são dadas pelo crescimento econômico e pelo crescimento da população. Pela alfabetização. Essas são as reformas que movem a sociedade. Eu, como um velho socialista –mais velho do que socialista–, não vejo revolução à vista. O Brasil vai engatar, vai crescer. É impossível conter 200 milhões de pessoas, cada uma querendo o melhor para si. Esse egoísmo capitalista é positivo. O socialismo é algo para além.

O sr. planeja um novo livro?

Sobre o ciclo do lulismo. A chance que o Brasil teve desde FHC e, com mais intensidade com Lula, não é de fácil repetição. FHC abre o ciclo. É homem de elite, não gosta do Nordeste, dos pobres. Tenho desgosto em relação a isso. Trabalhamos muito juntos; ele não era assim. O Lula não fez nada de excepcional, não na dimensão que poderia. Excepcional foi o Brasil desde 1930. Agora a chance foi desperdiçada, principalmente por Lula. O capitalismo só funciona com inserção social e não houve nenhum milagre no Brasil. A economia brasileira é privilegiada, disputada. Mas está faltando capacidade de aproveitar isso, ocupar espaços. No passado, quem percebeu isso com lucidez foi San Tiago Dantas (1911-1964, ministro de João Goulart). Ele meteu o pé. Hoje também há oportunidades, mas não há percepção.

Como seria o título do livro?

Vi recentemente "Um Sonho Intenso" [documentário de José Mariani] e tem um título me perseguindo que é "Um Pesadelo Intenso". Pela frustração dessa oportunidade única. Erraram. Foi um sonho que poderia ter sido e não foi em toda a sua intensidade. Não culpo a Dilma. É o lulismo que, contraditoriamente, é muito conservador. Lula não ousa tudo o que poderia ter ousado. O que ele fez em relação à previdência social? Basicamente nada. Quando não se pode incluir pela expansão do mercado, essa é a forma de inclusão, fora do mercado. Ele poderia ter feito um esforço mais intenso para ampliar os benefícios sociais. E isso não é risco para o Tesouro, porque vem compensação pelo outro lado –pela expansão da economia, pelo aumento de arrecadação. Era hora de meter o pé no acelerador e Lula fez o contrário.

Como o sr. avalia o caso Petrobras?

Petróleo ainda é o melhor negócio do mundo. A Petrobras é de 1953 e avançou. Vargas foi obrigado a se suicidar por isso. Os norte-americanos até hoje não engolem o fato de ela ser estatal, mesmo sendo um estatismo frouxo. Não engolem porque é um filé. Está abalada hoje. Há pressão para que ela seja fatiada. A burguesia brasileira quer pegar nacos. A Petrobras é um item de segurança nacional; não pode ser privatizada.

E a questão da corrupção envolvendo empreiteiras?

Há tempos, quando todo mundo se desesperava com isso, Ignácio Rangel (1914-1994), que era realista e cético, dizia: "A corrupção é o creme do capitalismo. Não se desesperem, isso é sinal de que o capitalismo está se expandindo". É isso: tudo é corrupto no capitalismo.

Fonte: Eleonora de Lucena (Folha de São Paulo (17/05/15)

Crise e eleições municipais (Murillo de Aragão )





O resultado das eleições municipais de 2012 confirmou a polarização política entre PT e PSDB e manteve o PMDB como líder absoluto em termos de número de cidades governadas. Para 2016, tudo indica que o quadro poderia se repetir, já que não há nenhum partido de peso entrando no jogo, as reformas políticas podem não entrar em vigor a tempo de alterar o quadro partidário e as grandes marcas ainda mantêm o predomínio no cenário eleitoral. Porém, as eleições municipais serão fortemente influenciadas por uma conjuntura muito diferente da existente em 2012. O que, no limite, pode provocar surpresas.

Serão eleições complicadas para todos, governistas e oposicionistas. Porém, não há dúvida de que elas serão mais difíceis para alguns. Em especial, para o PT. Este sofre por causa da ambiguidade demonstrada em relação ao ajuste fiscal, além de ter um grave problema de imagem. Longe da crise personalizada do PT, as demais legendas também estão diante de desafios sérios. O PMDB se ressente da tensão entre seus três polos de liderança, que poderiam estar unidos para fortalecer um projeto nacional para o partido. O PP foi devastado pelo petrolão. O PSB sem Eduardo Campos perde charme e energia. O Rede ainda não está montado. O PSDB não está em seu melhor momento. Por ser oposição, pode ganhar algum espaço, mas é questionado pelas oposições que se organizam nas redes sociais e nas ruas.

Outro vetor sério são os cortes de despesa justamente num ano em que os prefeitos têm de mostrar serviço para buscar a reeleição ou fazer o sucessor. Sem verbas do governo federal, a situação é preocupante. E há ainda a questão do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, em que centenas de municípios estão pendurados. Em reação ao sufoco, entre 25 e 28 deste mês se realizará em Brasília a tradicional Marcha dos Prefeitos, que ocorre há 17 anos. A pauta de reivindicações está montada. Os prefeitos querem que a União pague 60% da folha dos professores. Querem, ainda, aumento na fatia dos royalties de petróleo, algum refresco na Lei de Responsabilidade Fiscal e desconto nas dívidas com a União. Porém, nunca na história recente houve momento mais difícil para se atender aos prefeitos.

Outra questão refere-se aos desdobramentos do petrolão. O escândalo não chegou a impedir os grandes doadores de se movimentar nas eleições gerais do ano passado. Porém, com o agravamento das investigações e a prisão de envolvidos, eles deverão se mostrar mais inibidos em relação a gestos generosos.

Disputar eleições em um ambiente de desaquecimento econômico, restrição fiscal, sem obras para mostrar e sem grandes doadores pode ser a realidade predominante em 2016, o que tornará a campanha mais dura e realista.

O cenário armado para as eleições municipais está muito interessante e tem potencial para mudanças que podem ter reflexos importantes em 2018.

Fonte: O Globo

O Brasil e os partidos (Denis Lerrer Rosenfield)





O país vive uma grave crise e, no entanto, os partidos políticos estão se comportando como se só os seus interesses propriamente partidários estivessem em jogo. As questões nacionais passam a segundo plano, servindo apenas de pretexto para os jogos cada vez mais brutos de poder. Governistas atuam como se oposição fossem, enquanto a oposição age como o PT de antanho, renegando, inclusive, as suas próprias ideias. É como se o país tivesse de testar o abismo para logo recuar. Destaca-se, neste cenário, o PMDB que, mal ou bem, está contribuindo decisivamente para a aprovação das medidas provisórias do ajuste fiscal, absolutamente necessário enquanto etapa preliminar do saneamento das contas públicas.

O PT, a partir dos dois últimos anos do governo Lula e dos quatro do governo Dilma, levou o Brasil a uma situação econômica e ética insustentável. A tal “nova matriz econômica”, eivada de posições estatizantes e esquerdizantes, conduziu ao descontrole da inflação, ao PIB negativo, às contas fiscais em desajuste extremo e, agora, ao desemprego. Neste meio tempo, apoderou-se cada vez mais da máquina estatal, colocando-a a serviço dos seus interesses partidários e eleitorais, como se só isso valesse. O país, enquanto bem maior, bem coletivo, não entrou neste cálculo, sendo apenas um meio de consecução dos objetivos propriamente partidários. A conta desta irresponsabilidade finalmente chegou e o partido, assim como o seu governo, tem imensas dificuldades em reconhecer os seus próprios erros. Continua apostando no marketing e em discursos de esquerda cada vez mais radicais, como se aqui se encontrasse a sua saída.

A esquizofrenia partidária, neste contexto, só tende a aumentar. Sua expressão mais manifesta consiste na oposição que o PT faz a seu próprio governo, tendo chegado, inclusive, inicialmente, a rejeitar demagogicamente as medidas do ajuste fiscal, condição mesma para que o país saia de seu atual atoleiro. Comporta-se como se o governo não fosse seu, como se essas medidas fossem coisas apenas do ministro Joaquim Levy, um “neoliberal”. Note-se que “neoliberal” significa, no atual contexto, a qualificação de uma política que tem como objetivo colocar as contas em dia. Ser neoliberal significa tão somente ser responsável. A esquerda perdeu o discurso.

O PSDB, que deveria ser o partido líder da oposição, não faz melhor figura. Adotou a atitude do PT de antanho, vindo a criticar as medidas de ajuste fiscal como se essas fossem prejudiciais ao país. Ora, essas medidas seriam muito parecidas com as que Aécio Neves viria a implementar caso tivesse sido eleito. É bem verdade que as medidas seriam mais abrangentes e teriam também um forte componente de crescimento. Em qualquer caso, um ajuste fiscal deveria ser feito. Neste sentido, os tucanos são contraditórios consigo mesmos, vindo a renegar o que eles mesmos defendiam na disputa eleitoral. Exercem uma oposição irresponsável, apostando também no fracasso. Acontece que um fracasso das atuais medidas econômicas, mais do que uma disputa partidária, mostrar-se-ia extremamente daninho para o país. É como se os partidos brasileiros não tivessem a menor noção do significado de “oposição responsável”, voltada para o bem coletivo. Cada um olha apenas o seu próprio umbigo!

O PMDB, apesar de seus conflitos internos e a voracidade fisiológica de boa parte dos seus membros, está se saindo melhor do que os seus partidos concorrentes. Graças às novas funções de articulação política assumidas pelo vice-presidente Michel Temer, o partido está se colocando como aquele que melhor expressa os interesses nacionais. Sua atitude de defesa do ajuste fiscal, coerente com uma posição governista e reconhecendo, implicitamente, os erros que foram cometidos, sinaliza para uma postura voltada para o bem coletivo, embora possa, evidentemente, usufruir dos seus dividendos políticos em caso de êxito. O vice-presidente tem clara consciência de que a não aprovação dessas medidas poderia vir a criar um quadro econômico e político extremamente maléfico para o país. Reconhece os limites do jogo político, reconhece aquilo que o país pode ou não suportar. E um downgrade das agências de avaliação de risco poderia ser insuportável!

O enquadramento do PT é um fato também novo nestes 12 anos de governos petistas. O partido sempre se comportou como se o governo fosse exclusivamente seu, colocando os demais partidos aliados em uma posição claramente subalterna. Agora, tentou fugir de suas responsabilidades e foi enquadrado. Procurou, mesmo, votar contra o ajuste fiscal como se não fosse coisa de seu governo, jogando, como se diz, para a plateia. Foi obrigado a fechar questão pelo vice-presidente e pelo PMDB que, por sua vez, teriam ameaçado não levar essas medidas de ajuste fiscal à votação. Forçado a recuar, o PT terminou aprovando essas mesmas medidas com as quais professa não concordar. A desorientação é total. Na hora decisiva, teve medo das consequências de sua irresponsabilidade. Foi impelido a ser governo, apesar de si mesmo.

Ocorre, porém, que o país não pode ficar a mercê das vicissitudes desses mais distintos posicionamentos partidários. Se essa primeira etapa de aprovação do ajuste fiscal não for levada a cabo, se ela não for seguida de iniciativas subsequentes de crescimento responsável, o próprio Brasil pode ser o maior prejudicado, o que significa dizer que o ônus recairá sobre o conjunto dos cidadãos. O país não pode ficar refém das disputas partidárias, como se essas fossem um mero jogo de substituição de posições. O governo age como se não tivesse sido oposição e a oposição age como não se tivesse sido governo. É como se contassem somente os interesses particulares de cada um. É como se nos pleitos eleitorais o bem coletivo e as propostas que poderiam a ele conduzir fossem um mero pretexto. Falta a escritura de um texto, de uma verdadeira narrativa, chamada Brasil.

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(*) O Estado de S. Paulo

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Então o povo emana do poder? (Eugênio Bucci)






Na terça-feira passada, às 8 e meia da noite, quando o Partido dos Trabalhadores ocupou as redes de TV com seu programa de propaganda política, uma pergunta ficou no ar: que país é esse que aparece no vídeo do PT?

Claro, é um país que avança no avanço, ura país avançadíssimo. Na tela eletrônica, a moça bonita de sotaque carioca anuncia: "Finalmente vivemos num país onde as mais justas reivindicações da população passaram a ser as mesmas das democracias mais sólidas do mundo". Ou seja, no proselitismo petista, o Brasil já é de "Primeiro Mundo" no quesito "reivindicações da população". O Brasil pode ficar feliz e satisfeito: se suas soluções ainda não são de "Primeiro Mundo", os seus problemas já são.

Quer dizer que o Brasil ficou igual à França? Quer dizer que no Canadá a polícia cai de pau (e de bala de borracha) em cima de professores que protestam na rua? E os salários dos professores no Brasil são equiparáveis aos dos professores belgas? Então agora, na Noruega, os cidadãos estão preocupados com uma Polícia Militar que mata milhares de jovens negros desarmados todos os anos? Os londrinos enfrentam problemas de filas em hospitais? Os alemães acham que a redução da maioridade penal vai resolver o descalabro da segurança pública?

O país da publicidade petista é esquisito, híbrido, torcido e distorcido . Em certos ângulos, é fácil reconhecê-lo. Parece o país de verdade. Em outros enquadramentos, é a própria Terra do Nunca. Por exemplo: o Brasil do PT não tem presidente da República. O filme do PT consegue a proeza inaudita de ser um filme governista e, ao mesmo tempo, falar de um país que não é governado por ninguém (embora, claro, esteja sempre "avançando na direção "correta"). Em seus dez minutos de duração, o programa se dedica a esconder ninguém menos que a chefe de Estado. Chega ao cúmulo de defender mais espaço para a mulher na política sem tocar no nome de Dilma Rousseff.

No lugar de Dilma, quem aparece em close é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O curioso é que Lula não fala como defensor do governo, mas como um líder sindicalista de oposição. Em tom ameaçador, afirma que a mudança da lei que abre espaço para a terceirização de mão de obra colocará o Brasil no mesmo nível em que estava no início do século XX, quando não havia 13-salário. Quer dizer: o Brasil, que não tem presidente da República, só tem um líder, mas de oposição, e o nome desse líder é Lula.

A propaganda petista segue em guerra contra os moinhos do passado. É contra o passado que Lula se insurge. A partir daí, os contrastes entre o hoje um "hoje" publicitário) e o ontem (um "ontem" acusatório, o ontem que é culpa "deles") atingem o clímax. A dona de casa orgulhosa de sua nova sala sorri para as câmeras. O jovem que foi à universidade graças ao Prouni diz que agora pode sonhar. As meias verdades se põem a serviço das meias mentiras (ou mesmo das mentiras inteiras). Por exemplo: é verdade que, nos governos de Lula, o Brasil melhorou sua distribuição de renda, e isso o filme mostra, mas é verdade, também, que a gestão da política econômica não foi nada bem no governo Dilma, e isso o filme esconde {a ponto de ter de esconder a própria Dilma).

Outra coisa é que, ao que tudo indica, parece que andaram roubando um pouquinho nos governos do PT, mas, quanto a isso, o filme tem outra interpretação, insiste que o PT é o campeão no combate à corrupção. O jovem apresentador faz cara de seríssimo e dispara: "Outra virada histórica do Brasil, tem sido o combate contra a corrupção. E, por mais que alguns setores da imprensa omitam, se você buscar a verdade, vai descobrir que o PT também liderou algumas iniciativas contra a impunidade" Em seguida, uma voz em off garante que antes dos governos do PT o Ministério Público e a Polícia Federal não tinham autonomia para trabalhar, mas agora é diferente.

Conclusão: se hoje há ladrões de dinheiro público batendo ponto na cadeia, agradeça ao PT. Alguns são filiados ao PT? Não ligue. Se forem condenados, serão expulsos, garante a propaganda. Aí você pergunta: mas se vão expulsar os que vierem a ser condenados por crime de corrupção, por que não expulsaram os que já foram condenados? O PT não responde, pois não escuta, assim como não escutou os panelaços durante a exibição de seu programa. Empenhado em inventar seu país publicitário, o partido parece acreditar que será capaz de fabricar, com sua propaganda, um povo crédulo, medroso e obediente. Na TV do PT, não é o poder que emana do povo, mas o povo é quem há de emanar do poder.

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA USP 
Fonte: Época

terça-feira, 5 de maio de 2015

sobre o voto distrital (I) - (Bruno Pinheiro Wanderley Reis/entrevista)

- Aprovação da proposta para as Câmaras Municipais de grandes cidades pelo Senado ainda gera certo ceticismo e muitas divergências em relação ao modelo

Iuri Pitta - Estado de S. Paulo

SÃO PAULO - Mudar o atual sistema eleitoral não é consenso, mas mobiliza a comunidade acadêmica e os políticos há pelo menos uma década. Com a aprovação do voto distrital puro para as Câmaras Municipais de grandes cidades pelo Senado, um primeiro passo para aprimorar o sistema de representação no País parece ter sido dado, mas permanece certo ceticismo e muitas divergências em relação a esse modelo.

O Estado entrevistou três cientistas políticos sobre o assunto, confira a íntegra das entrevistas abaixo:

- Bruno Pinheiro Wanderley Reis

• Cientista político da UFMG, estuda financiamento de campanhas na Universidade da Pensilvânia (EUA)

Estado - O sr. considera válida e adequada uma das premissas adotadas nessa discussão sobre o voto distrital: a de que se trata de um "ponto de partida" para a tão desejada reforma política mudar o sistema de votação na eleição para vereador das grandes cidades e, posteriormente, ampliar as mudanças para os demais legislativos e para as outras questões?

Bruno: Preliminarmente, vou fazer uma explicitação de um viés. Eu não acho que o sistema distrital seria uma boa ideia. Ele tende a favorecer máquinas locais e a fazer proliferar "distritos seguros", elevando barreiras à entrada de um modo indesejável. Dito isso, porém, nada impede que cogitemos de reformas que incidam sobre parte do sistema, sem necessariamente mexer nele inteiro. Mas devemos ter noção de que isso não é necessariamente "experiência" no sentido de que, se der errado, voltamos pra trás. Isso nunca é assim. Toda mudança cria relações de poder específicas e clientelas próprias, e pode muito bem acontecer de, mesmo com resultados negativos, a mudança se mostre irreversível. Mais interessante de um ponto de vista federativo (embora bastante arriscado) seria deixar cada estado ou município resolver as regras que quer adotar. Mas deveríamos nos preparar para um festival de casuísmos locais...

Estado - Um primeiro risco, então, seria a dificuldade de se reverter o modelo adotado, sem entrar no mérito de qual sistema que se escolha?

Bruno: Isso. A proposta do (senador José) Serra tem um sabor de "experimento" que, de fato, nunca acontece no mundo real, em instituições políticas. Gradualismo, de um modo geral, faz sentido, é claro. Exatamente porque não conseguimos ver todos os efeitos de uma mudança, cabe cautela nessas manobras. Mas a gente deve ter clareza de que, a rigor, não há volta. Feita uma mudança, interesses se realinham, e o cenário com que vamos nos defrontar depois já é outro, com dinâmica própria.

Estado - Tratando agora especificamente do voto distrital, de suas vantagens e desvantagens. O sr. já apontou um problema, o risco de se criar "distritos seguros" e de proliferar os casuísmos locais. Isso é um problema que já ocorre hoje, o Rio, por exemplo, tem locais em que o acesso dos candidatos depende de autorização de por forças paramilitares, sejam ligadas ao narcotráfico, sejam milícias. O voto distrital puro necessariamente agravaria situações assim? O que poderia ser feito para amenizar ou coibir esses redutos dominados por alguma força paramilitar ou mesmo por uso de máquina político-administrativa?

Bruno: São coisas diferentes. Uma coisa é uma área territorial qualquer em que o cidadão tem dificuldade de contar com os serviços do estado, e máfias criminosas se insinuam. Outra coisa é a franca hegemonia de uma máquina partidária sobre determinados distritos eleitorais. Isso pode se dar, em princípio, em qualquer lugar do país. O valor importante a ser preservado nessa discussão é a perspectiva de representação adequada da pluralidade dos interesses existentes na sociedade. Isso depende fundamentalmente de visibilidade dos atos dos representantes eleitos, e do grau de competitividade política pelas posições em jogo. A ideia de que vamos ter visibilidade garantida por termos um representante por distrito é bem fantasiosa. Frequantemente sabemos melhor o que se passa na Câmara em Brasília do que aquilo que faz o síndico do prédio em que moramos. Essa visibilidade depende da existência de um sistema de comunicação plural e uma imprensa independente ativa e diversificada. E tudo isso vai depender também da existência de oposição partidária local viável. Se temos um só representante por distrito, e o PMDB tem um cara no local que controla os canais de comunicação e os fluxos de recursos, a competição seca, e a visibilidade dos atos vai embora junto.

Estado - O sistema distrital misto, que combina a divisão por distritos geográficos e mantém bancadas partidárias em toda a extensão da cidade ou Estado, é suficiente para resolver essas questões colocadas?

Bruno: Esse é bem mais engenhoso. Os alemães fizeram um bom trabalho de combinar os méritos dos dois sistemas mais famosos. Mas isso porque, apesar do nome com que o sistema é conhecido no Brasil, deve-se sublinhar que se tratade um sistema proporcional. É a distribuição dos votos entre as listas partidárias que define o tamanho das bancadas e a relação de forças partidárias no parlamento alemão. Os eleitos nos distritos (cujo número equivale a aproximadamente metade das cadeiras) simplesmente garantem sua própria cadeira, e tomam o lugar dos últimos da lista, caso já não estivessem eleitos por ela também. É um bom sistema. Mas gosto ainda mais da variante sueca. Ela é idêntica, exceto pelo fato de que os distritos não elegem um só. São distritos pequenos (com cinco a oito deputados na última vez em que vi isso), mas isso assegura um desejável pluralismo local, evitando o risco de eventuais monopólios longos demais.

Estado - Para você, esse modelo sueco serviria para o Brasil? Existe um sistema mais "adequado" para um país continental e desigual como o Brasil?

Bruno: Eu não correria para grandes mudanças. Como diz o meu colega Jairo Nicolau, todo cientista político tem sua reforma política de estimação, mas devemos a todo custo evitar pautar o debate por elas. Sim, gosto do sistema sueco. Mas, se trata de reformar o sistema brasileiro, precisamos de um diagnóstico sobre o que é que funciona mal entre nós, para atuarmos especificamente sobre aquilo. 

De outra maneira, ficamos perdidos, e não é à toa que nada acontece. No caso do Brasil, apesar de a imprensa sempre culpar o Congresso por não sair a reforma, a verdade é que pelo menos desde 2003 são os deputados quem está sempre trazendo a discussão de volta, embora o desacordo sobre o que fazer só aumente. O motivo me parece muito claro: é o financiamento de suas campanhas. A ciência política brasileira demorou mais do que deveria para acordar para esse problema, e para a legitimidade da conversa sobre reforma. Tendemos a uma posição muito defensiva, de dizer que tudo estava bem e não precisávamos mudar nada. De fato, o Brasil nunca tinha tido tanta estabilidade política e econômica quanto teve no período entre 1995 e 2013, e isso não deve ser minimizado. Mas o financiamento estava erodindo a base do regime, inclusive entre os próprios políticos.

Estado - Então resolver a questão do financiamento de campanha deveria ser a prioridade, e é ela quem cria problemas como falta de representatividade e de corrupção envolvendo políticos?

Bruno: Claro que há corrupção para além do financiamento de campanhas. Como em toda parte. Mas o fato de que todos os 513 deputados federais, e mais as centenas de deputados estaduais e os milhares de vereadores País afora tenham de correr para bancar pessoalmente sua próxima campanha dali a quatro anos, é um problemão para as instituições de controle. E isso, assim como a fragmentação partidária, decorre do sistema eleitoral. Daí que o esforço de se equacionar devidamente o tema do financiamento das campanhas não é um assunto desconectado do sistema eleitoral. Foi esse o problema que os deputados federais puseram na mesa com a "proposta Caiado" em 2003. Para lidar com o problema do financiamento de campanhas, eles propuseram (até por falta de ideia melhor no debate da época) a novidade do financiamento público exclusivo. Para viabilizá-lo, se dispuseram a propor a lista pré-ordenada (mais conhecida como lista fechada). O financiamento público exclusivo era uma proposta radical, sem precedente, e muito problemática. Mas era uma proposta séria, que tentava lidar com um problema real, e foi muito mal tratada tanto na imprensa quanto na ciência política. Minha impressão é de que eles atiraram no que viram e acertaram no que não viram.

Estado - O sr. disse que é importante ter o financiamento mais fragmentado, desconcentrar as fontes de financiamento, mais do que simplesmente reduzir a extensão territorial da campanha, como propõe o sistema distrital. Como fazer isso?

Bruno: Fazendo o que quase todo mundo faz. Impondo tetos nominais (relativamente "baixos") para as doações, por doador. Esse é o teto usual, e por isso mundo afora as pessoas presumem que, se há tetos, então o sistema é mais equânime. Ocorre que o Brasil adotou um tipo de teto muito peculiar, que é um percentual da renda do doador. Isso provavelmente tem o efeito oposto, de concentrar as doações entre poucos, enormes doadores. Se o teto é 2% do faturamento bruto para as empresas, e 10% da renda bruta para as pessoas físicas, então o dono da padaria da esquina vai poder doar apenas alguns milhares, mas o banco e a empreiteira vão poder doar milhões. Os candidatos a deputado ou vereador, na prática, simplesmente não têm escolha, a não ser submeterem-se ao ritual humilhante de bater na porta do grande doador. Sabendo desde o início que, sendo um candidato entre centenas, será o doador quem ditará os termos da conversa. Um candidato a presidente ou governador ainda pode chegar a ter uma conversa minimamente horizontal com o doador, mas os das proporcionais, sem chance. As exceções parciais são os raros candidatos que já são "donos" de algum "reduto", ou então as chamadas "celebridades". Esses dependem menos de dinheiro para serem lembrados na hora agá. 

Já li em jornais que, ao contrário do Obama com sua máquina de arrecadação desconcentrada online, os políticos brasileiros "preferem" bater na porta das grandes empresas. Ora, não são eles quem prefere. É a legislação que praticamente determina. Tetos nominais forçam a pulverização dos doadores. Ou então os grandes doadores vão ter pelo menos de se virar para encontrar "laranjas" para doarem por eles - por sua própria conta e risco. Hoje eles têm o controle legal do financiamento das campanhas, e assim estão em posição de exercer influência desproporcional sobre os mandatos.

Estado - Depois da Operação Lava Jato, os partidos têm reclamado da queda nas doações aos partidos. Esse ambiente de "torneira seca" e os desdobramentos da investigação, inclusive com prisão de executivos envolvidos nas contribuições às legendas, pode ser visto como momento de se mudar o sistema de financiamento das campanhas? Ou o sr. é cético em relação à disposição dos políticos de mudar esses mecanismos?

Bruno: Na verdade, acho que os políticos querem mudar o financiamento de campanhas há muito tempo. Por isso o tema da reforma política entra na pauta em todo início de legislatura no Congresso. Se formos recapitular essa história veremos que é a Câmara dos Deputados quem tem pautado mais insistentemente a reforma política nas últimas décadas. Candidatos a presidentes da Câmara têm feito campanha junto ao plenário prometendo tocar a reforma. O que falta é consenso, maioria clara para a aprovar alguma reforma específica. E esse impasse tem sido favorecido também por falta de massa crítica sobre o assunto na sociedade, na imprensa e (até recentemente) mesmo na ciência política. 

Durante a crise do "mensalão", em 2005, político que falasse em reforma política a propósito do episódio costumava ser acusado de diversionista, de querer erguer uma cortina de fumaça sobre a investigação, que a hora era de punir os culpados etc. Mas o escândalo tornava evidente o que já se sabia havia muito tempo: havia problemas sérios com o financiamento. Agora, com a Lava Jato, talvez de fato não tenha mais jeito de ignorarmos a questão. Desta vez, não apenas políticos, mas também executivos das empreiteiras foram presos. Agora, além de entrar na sala, o elefante sentou no sofá, está espalhando a comida e quebrando a decoração. Não vai dar mais pra ignorar.

Além da Lava Jato, há também a decisão iminente do STF, de proibir a doação feita por pessoas jurídicas. O ministro Gilmar Mendes "sentou em cima" do processo quando pediu vistas há mais de um ano, mas o placar vigente, de seis a zero, deixa evidente que as doações serão proibidas se não houver mudanças na lei. A obstrução do Gilmar está dando tempo ao Congresso para tentar sair em busca de alguma coisa. O grande aumento recente no fundo partidário deve ser compreendido nesse contexto. É uma provisão de recursos que os partidos fizeram, para atravessar esse período de incerteza. Neste momento, sei que há conversas sobre a introdução de tetos nominais para os doadores, e entendo que esse é o caminho a ser trilhado.

Não me atreveria a mudar, numa tacada só, um sistema de doações tão pesadamente empresarial como o nosso para a proibição completa das doações por pessoas jurídicas. Temo que isso nos expusesse ao risco de aumentar o descontrole sobre as prestações de contas. Mas acho que os eventuais tetos nominais devem ficar em valores que induzam os candidatos a diversificar as suas fontes. O princípio básico é que nenhum doador deve poder ser o "dono" de uma campanha, e assim o teto deve ficar bem abaixo do orçamento típico de uma campanha.

Estado - Entidades civis, como CNBB e OAB, defendem o chamado modelo belga, com eleição para o Legislativo federal em dois turnos (o primeiro para eleição das bancadas partidárias, apenas com voto nas legendas, e o segundo para formar a lista de cada partido, conforme o número de cadeiras obtidas na votação prévia). O que o sr. acha dessa proposta?

Bruno: Me desculpem os proponentes, mas essa é uma proposta ingênua. Se eu sou um eleitor engajado, com fortes simpatias partidárias, eu vou simplesmente votar no meu partido no primeiro turno, favorecendo a sua quota de cadeiras, e depois votar num candidato fraco do partido rival, tentando tumultuar a lista deles e tirar do legislativo um adversário poderoso. Não faz sentido deixar o sistema de representação política e os partidos vulneráveis a esse tipo de sabotagem pelos adversários. E esse não é o sistema belga. A Bélgica tem um sistema federativo complicado, mas o sistema eleitoral é convencional. É um sistema proporcional, com listas pré-ordenadas mas flexíveis, em que o eleitor pode optar por votar em uma das listas tal como apresentadas ou tentar modificá-la. Em um turno só. Ela é famosa por uma razão histórica simples: foi o primeiro país a introduzir, em 1899, o sistema de representação proporcional, com listas partiidárias fechadas.

A última coisa que devemos tentar fazer a esta altura é improvisar, inventar sistemas de efeitos desconhecidos. A política no Brasil ainda nos impõe desafios importantes, mas é preciso reconhecer que o país nunca tinha sido tão estável quanto nos últimos vinte anos. E temos resultados importantes para mostrar: tanto estabilidade econômica quanto importantes melhorias nos indicadores sociais. 

Agora precisamos de ajustes, mas é preciso moderação e cabeça fria ao avançarmos, para não colocarmos tudo a perder.

Fernando Henrique, ponto fora da curva? (Francisco Ferraz)

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem-se movimentado deliberadamente para aquele local misterioso denominado por um ministro do STF como ponto fora da curva. Esse ponto fora da curva corresponde à sua manifesta oposição ao impeachment da presidente Dilma, na contramão do que defendem lideranças de seu partido. O ex-presidente também já manifestou sinais de abertura para eventualmente "pactuar" com o governo uma saída para a crise econômica.
FHC escolheu uma posição pessoal, no mínimo muito singular. Fora da curva do seu partido e do presidente do partido, Aécio Neves, que vem adotando uma atitude dura com Dilma e o PT; fora da curva do sentimento popular de hostilidade ao PT e de rejeição do governo Dilma; fora da curva do debate político em que se tornou o alvo de Lula, Dilma e políticos do PT em ataques à sua pessoa, à sua administração e ao legado do seu governo; fora da curva da oposição, que por mais de uma década se mostrou inapetente para a função e agora deseja manter o governo e o PT enfraquecidos. Não há como saber com certeza as razões dessa sua opção. Pode-se, entretanto tentar algumas conjeturas.
FHC deve sentir-se (e tem sobradas razões para tal) muito acima da maioria dos líderes mundiais na escala dos estadistas e, muito mais ainda, dos brasileiros. Para ele Lula, Dilma, Aécio, Temer, Marina não passam de políticos voluntaristas, ambiciosos e superficiais que não estão preparados para as responsabilidades do governo de um país do porte e potencial do Brasil. Ele deve se ver como professor, por vezes o preceptor, no mínimo como um possível exemplo para essas lideranças que, por sua imaturidade, desmontaram o País que ele com tanta competência havia consertado. Não sendo persuadidos pela razão nos bons momentos, talvez nos momentos de crise possam abrir-se para uma influência mais madura e equilibrada. Creio que essa interpretação pode não ser a mais exata, mas não deve estar muito distante da realidade.
Dir-se-á que, se verdadeira, a postura de FHC seria de vaidade e presunção, traços pessoais que se não forem exatos também não estarão muito longe da realidade, já que o ex-presidente não costuma ser "acusado" de humildade.
Impossível saber com certeza as razões que fazem FHC buscar esse ponto fora de todas as curvas que só favoreceria o PT. Em situações como essas, a sabedoria da política ensina que devemos recorrer à expressão latina cui prodest - a quem beneficia esse curso de ação?
Não a Aécio, que se cacifou para a estatura presidencial pelo combate dado a Dilma na campanha e, com a próxima eleição marcada para daqui a três anos, não se pode afastar demais do sentimento popular.
Não a Dilma, que se chegar ao fim do segundo mandato estará politicamente exaurida.
Não a Lula, que agora precisaria da ajuda de FHC. Do mesmo FHC cujo legado há 12 anos tenta demonizar na lembrança dos brasileiros, com agressividade, mau gosto e demagogia.
Não à oposição, que encontra agora, com os escândalos da corrupção e o desgaste de Lula, de Dilma e do partido, sua chance de derrotar o PT no Congresso, na opinião pública e nas eleições municipais de 2016.
Não a Temer, que recém-ganhou protagonismo por causa do enorme desgaste de Dilma; nem ao PMDB, que nada teria a ganhar com o ingresso no jogo político de cardeal de elevada estirpe, reconhecida habilidade política e carreira irreprochável.
Incidentalmente, FHC traiu-se ao usar o termo cardeal numa palestra promovida pela Goldman Sachs, quando afirmou que, "se a situação de Dilma piorar muito, chegará um momento em que os cardeais do País deverão se reunir para costurar uma saída para este governo".
Ao implicitamente se incluir como cardeal (termo que não vem sendo usado no vocabulário político) no jogo político brasileiro, quis inevitavelmente significar sua posição superior em relação aos demais e sua presença como player neste jogo. O jogo político dominado por cardeais sempre visou o poder papal e só ocorria na combinação de um papa fraco com um baixo clero desqualificado.
De outro lado, não seria sensato admitir que FHC adotasse essa posição política generosa para com Dilma e o PT num momento em que quem pode deles busca se afastar. Deve haver uma razão muito mais elevada do que as usuais acusações de "murismo", "covardia", "esquerdismo enrustido" que justifique seu comportamento e possa compensar os riscos a que expõe sua imagem.
Esse ponto fora da curva somente pode ser ocupado por ele. Num momento em que todas as outras lideranças nacionais (Dilma, Aécio, Marina, Temer e Lula) estão derrotados ou sem chances de vir a disputar a Presidência, quem vai sobrar daqui a três anos e meio? Mais ainda: assim como o Lula dos tempos de glória abafava FHC, agora o Lula desgastado pode ressuscitar FHC.
Se Aécio não sobreviver politicamente ao desgaste deste período; se Lula, Dilma e o PT estiverem inviabilizados politicamente; quem além de FHC poderá unir um PT fraco, mas agradecido pela proteção recebida no seu pior momento, e um PSDB que finalmente, com ele, poderá voltar ao poder?
FHC pode (e acredito que está tentando) emergir como o estadista acima dos medíocres interesses políticos, voltado para os grandes objetivos da Nação e emprestando seus talentos, sua sabedoria e sua respeitabilidade à recuperação do Brasil. Não lhe faltam saúde, nem condições intelectuais e, deve-se supor, tampouco vontade para se dedicar a essa missão.
Talvez não seja um ponto tão fora da curva lembrar que o povo brasileiro pode querer convocá-lo novamente para presidir o País num regime, quem sabe, parlamentarista, em mais um desafio de recuperação nacional. Por certo esse não é hoje o resultado mais provável. Trata-se, entretanto, de uma hipótese que nem nós nem ele, neste momento, podemos excluir.

Fonte: Política Para Todos (03/05/2015)
Estadão (02/05/2015)