terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Brasil e o triângulo das Bermudas (Nelson Rojas de Carvalho)

Não é novidade que a reflexão política, vez por outra, pule o muro do terreno de disciplinas vizinhas em busca de inspiração tanto para a projeção de eventos políticos ordinários e corriqueiros, como para a construção de grandes modelos de equilíbrio institucional. Se as microanálises orientadas pela matriz da escola da escolha pública e da teoria dos jogos hoje passeiam de mãos dadas com a matemática e a álgebra em suas modelagens, no passado era a geometria quem encantava filósofos do calibre de Thomas Hobbes, dando lastro e inspiração a alguns dos melhores escritos sobre a natureza do Estado.
Dito isso, não parece heresia ou quebra com a tradição analisarmos a conjuntura do país - e projetarmos os anos vindouros - por meio de recurso a uma figura geométrica. Em breve síntese do resultado das pesquisas desenvolvidas no campo da ciência política nas últimas décadas, podemos afirmar com algum grau de certeza que democracias longevas se ancoram em pelo menos três suportes:instituições políticas legítimas e eficientes, crescimento econômico e participação cívica. Guardaria, assim, a boa sociedade analogia com um triângulo - equilátero, no melhor dos casos -, onde a economia, a política e os valores constituiriam seus vértices.
Nessa linha, cabe aqui uma afirmação, seguida de duas indagações: a) a crise em curso no país traduz-se em inédito encurtamento - além de perda de densidade e capacidade de vertebração - de dois desses vértices - a economia e a política -, sobressaindo, como resultado, o espaço reservado ao campo dos valores: a moralização e judicialização do debate público, a antipolítica na sua versão gerencial ou religiosa e a explosão das demandas identitárias são indicadores de um espaço tão novo quanto superdimensionado - à direita, prioritariamente, e à esquerda, residualmente - pela agenda dos valores; b) se esse quadro configura situação nítida de desequilíbrio, em que medida é razoável esperarmos por um ajuste dos três vetores no curso do atual governo?; c) E, mais importante, qual cenário podemos projetar para o processo eleitoral, em 2018, caso os vértices de nosso triângulo permaneçam em situação de desajuste?
Relembrar o lugar de centralidade do primeiro vetor - a economia - na vida política é exercício para lá de trivial e não requer esforços comparativos. Limitando-nos a exemplos do nosso próprio quintal, no Brasil, dois planos de estabilização monetária - o plano Cruzado e o plano Real- resultaram em vultosos dividendos políticos; tiveram por desdobramento, como se sabe, a eleição de 22 governadores de Estado, no primeiro caso, e de um presidente da República, no último. Mais recentemente, os índices de popularidade de Lula e de Dilma Roussef estiveram intimamente relacionados à oscilação dos preços das commodities no mercado internacional e ao poder de comprar das camadas populares e dos segmentos médios.
Ungido ao Poder com a expectativa de recobrar a confiança dos agentes econômicos - e, portanto, o investimento -, Temer e sua equipe seguem a dura cartilha da ortodoxia monetária que, ao preço de contração da atividade econômica e do aumento do desemprego, tem por propósito declarado levar a inflação ao centro da meta já em 2017. A projeção da inflação em descenso em 2018 acompanhada por aumento tímido nos investimentos, inibirá, contudo, os dividendos políticos do ajuste e com dificuldade se produzirá contexto favorável ao "voto econômico" - quando o eleitor recompensa com o voto ganhos pretéritos ou expectativas futuras de renda.
Se a economia dificilmente terá, então, protagonismo no jogo de 2018, desempenhando na melhor das hipóteses papel de coadjuvante no mercado dos votos, a carta da política tradicional poderá também estar fora do baralho. Rechaçada pelas ruas em 2013, acuada pelas denuncias da Operação Lava Jato, nossa elite política se desintegra de forma inédita e alarmante. A pulverização das legendas partidárias no Congresso, a fragmentação das lideranças no campo da oposição, notadamente no interior do PSDB, são indícios mais do que suficientes do processo de desintegração de nosso campo político. Difícil, portanto, não ver a eleição de 2018 como cenário de disputa fragmentada e ao mesmo tempo aberta; indefinida em relação não só aos resultados, mas sobretudo à extração e origem dos contendores.
Num cenário em que a economia e as forças políticas tradicionais se mostrem incapazes de mobilização da sociedade, abre-se campo fértil para o agenciamento da pauta de valores. Entre nós, como se sabe, os valores capazes de mobilizar tanto os segmentos populares como os setores médios têm extração fortemente conservadora: endurecimento penal, criminalização do aborto, escola sem partido e, mais recentemente, a negação da política e sua equalização à gestão empresarial, fazem parte de um pacote de valores hegemônicos que, necessariamente, exigiriam como contraponto liderança vertical e dissociada do establishment. Em nosso caso, e diferentemente, portanto, do exemplo dos EUA, o terreno dos valores, e não a economia, aparece como o terreno fértil para o florescimento de potenciais outsiders.
Com um certo tom de pessimismo, temos de concluir que nosso triângulo de Bermudas desajustado em que hoje se ancora o país, onde a economia e a política se veem à deriva, é de difícil ajuste no curto prazo. Na ausência de coordenação entre os atores políticos, de um lado, e de evidências substantivas de recuperação da atividade econômica, de outro, a persistência desse desajuste será caldo de cultura para gestação de franco-atiradores embalados pelos piores valores.
(*) Nelson Rojas de Carvalho é professor associado do PPGCS/UFRRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ
Fonte: Valor Econômico (30/01/17)

domingo, 29 de janeiro de 2017

Crises são fruto de políticas inconsistentes (Fernando Abrucio)

O ano começou com a crise dos presídios e parecia que não tínhamos a menor ideia da situação da política prisional no país. O assunto ficou fora do noticiário por um bom tempo e se tornou, ao grande público, um não problema. O descalabro das penitenciárias e da política penal, no entanto, estava no radar de organizações não governamentais, nacionais e internacionais, e de pesquisadores, mas perdeu espaço para as dificuldades políticas e econômicas. Enquanto os governos, os políticos e a própria sociedade não se pautarem por políticas públicas consistentes, sempre seremos pegos de surpresa, em todos as áreas governamentais.
Mas o que são políticas públicas consistentes? Em primeiro lugar, são aquelas que se guiam não só pelo curto prazo, mas que miram fortemente as questões de longo prazo. Claro que as conjunturas mudam e é preciso ter respostas mais imediatas para determinados problemas. Não obstante, é muito mais fácil resolver uma dificuldade conjuntural se houver um desenho mais amplo, intertemporal, das políticas públicas.
Exemplos nesse sentido não faltam. O tema da Previdência só piora com o decorrer do tempo porque o país não estabeleceu arranjos de longo prazo, levando em conta as mudanças demográficas do país. Teremos um apagão de professores nos próximos dez anos. O Brasil está se preparando para isso? Depois de mais de uma década encarcerando a torto e a direito pessoas com tipos muitos diferentes de crime, vem a pergunta: o que faremos com o crescimento do crime organizado nas prisões? Ninguém está falando que o futuro poderá ser pior: quando saírem do inferno em que estiveram por anos, o que se pode esperar?
A consistência das políticas públicas, ademais, deriva do eterno monitoramento de suas demandas e resultados. Fazer políticas públicas é analisar constantemente os problemas que as circundam, procurando construir evidências, indicadores e instrumentos de gestão. Toda vez que ocorre uma crise em determinada área, pode-se constatar pela resposta dada se aquele setor governamental verdadeiramente acompanha sistematicamente suas ações. Novamente citando a crise prisional, as respostas dadas por autoridades federais revelam o desconhecimento das causas dos problemas e do impacto das políticas adotadas. Construir mais presídios federais não é inútil, mas não atuará profundamente sobre a prática tresloucada de encarceramento.
O governo saberia disso se acompanhasse a evolução mensal do aprisionamento. Porém, hoje não se tem um censo fidedigno da população prisional, dizendo quantos são os presos, o que os levou até lá, em que estágio do processo penal estão e, por incrível que pareça num país acostumado com programas policiais fascistas na TV, seria fundamental colher opiniões dos presos e dos funcionários sobre a condição dos que passam a vida nas penitenciárias. Sem mapas quantitativos e qualitativos de sua situação não é possível fazer políticas públicas consistentes. A improvisação, o anúncio de medidas de efeito marqueteiro e a produção de planos genéricos nascem da falta de estruturação prévia, de gestões que se realizam ao sabor das circunstâncias.
O acompanhamento de um problema e das políticas derivadas dele geram radiografias, porém não necessariamente produzem as respostas adequadas. A inovação nasce por razões que vão além - mas não aquém - das evidências científicas relativas a um problema. A implementação exige uma série de condições sociopolíticas, institucionais, de técnicas gerenciais e de competências do capital humano que se combinam. Assim, quando um determinado governo consegue produzir uma política bem-sucedida para determinada questão que se repete, em boa medida, em outros lugares, é preciso compreender as razões desse sucesso e as formas de sua disseminação.
Bons governos são aqueles que estão sempre com as antenas ligadas em busca de práticas bem-sucedidas de gestão e resolução de problemas de políticas públicas. Uma estrutura governamental consistente tem de ter gente acompanhando o que está acontecendo em outros lugares, dividir problemas e soluções com outros parceiros, conversar constantemente com especialistas e lhes propor desafios para resolver. Conhecimento compartilhado é matéria-prima básica para escapar do amadorismo e das respostas inconsistentes.
Essa comunicação entre os governos e destes com outras organizações que produzem conhecimento sobre políticas públicas tornou-se ainda mais importante no mundo contemporâneo por conta da complexidade dos problemas e do aumento do acesso à informação. Hoje é possível saber onde ocorrem políticas públicas bem-sucedidas em várias partes do mundo, do mesmo modo que temos mais dados - embora ainda insuficientes - sobre o que se faz de bom nos vários entes governamentais no Brasil. Soma -se a isso, no caso brasileiro atual, o contexto de crise fiscal, que deve levar a aumentar a importância da parceria e da busca de melhores práticas.
Recentemente, acompanhei uma experiência que revela bem os caminhos de uma política pública consistente. Com o apoio do Instituto Natura, fiz uma pesquisa sobre a política educacional do Ceará, particularmente seus arranjos de cooperação do governo estadual com os municípios. O sucesso desse modelo se consubstanciou no chamado Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), criado há dez anos. Baseada em diagnóstico prévio, em monitoramento contínuo da política pública, na criação de uma engrenagem de implementação mobilizadora de todos os atores educacionais importantes e em instrumentos gerenciais adequados à melhor prática pedagógica, o PAIC teve resultados espantosos. Em uma década conseguiu retirar o Ceará de uma situação calamitosa e colocá-lo em grande destaque: hoje, das cem melhores escolas do Fundamental I, 77 estão em solo cearense.
Conhecer essa experiência é fundamental para os governos subnacionais brasileiros melhorarem sua atuação na Educação Básica. Primeiro porque o chamado Regime de Colaboração entre os Estados e os municípios funcionam muito mal no Brasil. Isso afeta os resultados educacionais, dificultando particularmente a transição dos alunos do Fundamental I para o Fundamental II, quando, em geral, saem de uma escola municipal e vão para outra estadual. Entre outros fatores, isso gera o seguinte cenário: os resultados educacionais do primeiro ciclo têm melhorado e os do segundo têm estagnado. Logo, aperfeiçoar o Regime de Colaboração incrementaria a qualidade da educação brasileira.
Além disso, os resultados da alfabetização ainda deixam muito a desejar no país. Conhecer experiências de sucesso e analisar como incorporá-las é essencial para um bom governo. Nesse sentido, entender o arranjo institucional no Ceará que faz a ponte entre a meta, a implementação e os bons resultados é uma tarefa inexorável para quem quer melhorar o aprendizado dos alunos.
Outro ponto de destaque na experiência do PAIC é a capacidade de juntar ações de avaliação contínua com medidas pedagógicas adequadas. Não adianta saber quanto é preciso melhorar sem que se saiba como aperfeiçoar o desempenho educacional. Claro que essa engrenagem não foi montada do dia para a noite. Para se ter uma política pública consistente é necessário perseverar, seguir uma estratégia que não se mova ao sabor das circunstâncias. É preciso ter uma escolha política pelo longo prazo.
Essa e outras experiências bem-sucedidas no Brasil são pouco aproveitadas pelos outros governos, infelizmente. Aprender com o outro e incorporar boas práticas é um passo muito importante para criar políticas públicas consistentes. Mas há exceções. O governo do Espírito Santo, na semana passada, firmou uma parceria com o Ceará para aprender e reproduzir, com as devidas adequações, o modelo do PAIC. Tal humildade não nasceu à toa em solo capixaba, pois não é a primeira vez que o governo conseguiu captar a necessidade de trazer o que dá certo em outros lugares - inclusive na experiência internacional - para suas políticas públicas
O Espirito Santo, na verdade, é um caso em que políticas de Estado têm sido implementadas para além das dinâmicas do governo de ocasião. Sua política fiscal é um exemplo importante para outras unidades da Federação, lembrando que em 2002 o governo estadual estava quebrado, política e financeiramente. Ou seja, dada a situação de outros Estados no país, o caso capixaba mostrou que é possível sair da crise, contanto que se adote políticas públicas consistentes. O exemplo da parceria com o Ceará também poderia ser copiado por outros governos.
Construir políticas públicas consistentes, por fim, passa pelo diálogo contínuo dos governos com todos os atores sociais relevantes em cada área. Isso traz informações essenciais para o sucesso das ações governamentais. É preciso estabelecer um ambiente de confiança e mostrar à sociedade o trabalho contínuo e árduo dos governos. Se isso não for feito, quando vierem as crises, a população esperará por salvadores da pátria e soluções mágicas. E isso é o contrário de uma desejada política pública consistente.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico/Eu&Fim de Semana (28/01/17)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

As aparências enganam (Carlos Pereira)

Na grande maioria das vezes, mudanças de grande magnitude em sociedades complexas não ocorrem aos poucos ou de forma incremental. Mudanças profundas ocorrem de forma abrupta, muitas vezes motivadas por choques inesperados, sejam eles externos ou internos.
Transições que engendram mudanças dessa natureza são geralmente precedidas de desequilíbrios ou desconexões entre as crenças/expectativas com os resultados obtidos e gerados pelo conjunto de instituições. Crenças são modelos mentais sobre o funcionamento do mundo. São percepções de causa e efeito entre instituições (regras do jogo) e os resultados das políticas de um determinado país. Sociedades em equilíbrio seriam portanto aquelas em que os resultados esperados são consistentes com suas crenças. Nesses casos, mudanças seriam eventos infrequentes ou ajustes marginais, muitas vezes imperceptíveis. Por outro lado, inconsistências entre crenças e resultados podem se acumular produzindo desequilíbrios, gerando assim janelas de oportunidade a mudanças, principalmente quando sociedades são atingidas por choques.
No livro "Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change", recentemente publicado pela Princeton University Press, eu e meus coautores argumentamos que o Brasil possui alguns dos elementos capazes de levá-lo a fazer uma transição para o grupo seleto de países desenvolvidos. Vale salientar que esse argumento não é uma previsão e nem tampouco uma aspiração normativa. Trata-se sim da constatação de que as crenças de inclusão fiscalmente responsável têm persistido no Brasil a despeito da sucessão de crises e choques.
Como mudanças desse porte não são lineares, o ceticismo atual sobre o futuro do Brasil não é gratuito. Um exame rápido de alguns dos indicadores de desempenho fornece elementos suficientes para se suspeitar do argumento que o país passa por profundas transformações em rota para o desenvolvimento. Recessão econômica, desemprego, violência, desigualdade, infraestrutura débil... a lista das disfuncionalidades não é pequena.
Parece ingênuo, entretanto, esperar que um país, em um processo bem-sucedido de desenvolvimento, apresente melhoras em todas (ou na maioria) das dimensões de forma monotônica e simultânea. O processo de desenvolvimento em qualquer país parece ou pode ser sujo, pois é não-linear e, fundamentalmente, contextual. E no Brasil não tem sido diferente. Uma combinação de indicadores não oferece sinais inequívocos de que esse ou aquele país está de fato na rota para o desenvolvimento. Um profundo processo de reformas já pode estar em curso sem que seus efeitos estejam plenamente visíveis ou aparentes. Portanto, precisamos nos valer não apenas de indicadores de desempenho, muitos deles ainda imperfeitos, mas também da observação atenta de mudanças institucionais e no sistema de crenças da sociedade.
Na década de 90 surgiu uma ideia-força como princípio organizador da mudança institucional ancorada na inclusão social fiscalmente responsável. Essa crença dominante é fruto da combinação de dois elementos. O primeiro, a inclusão social, surgiu como reação ao modelo de desenvolvimentismo excludente do regime militar. O segundo, o equilíbrio macroeconômico, é produto da experiência traumática da hiperinflação. O boom de commodities, a descoberta do pré-sal e o neo-desenvolvimentismo pós-crise de 2008 representou um choque que abalou, mas parece não ter eliminado esse conjunto de crenças. Ainda que outros fatores também tenham contribuído, é sugestivo que a presidente Dilma Rousseff tenha sofrido impeachment justamente por crimes fiscais e pela interrupção do processo de inclusão social responsável.
A sucessão de escândalos de corrupção e a reação das instituições de controle (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal etc.) parecem ter aberto uma nova janela de oportunidade. Percebe-se que a crença de inclusão social fiscalmente responsável tem se fundido com uma clara intolerância à corrupção e o fortalecimento do estado de direito. O combate à corrupção no Brasil é o tema que mais suscita preocupação entre os brasileiros, à frente de desemprego, saúde e violência. A atuação das instituições de controle, impondo perdas não-triviais para os envolvidos, tem gerado uma espécie de ciclo virtuoso. O ponto de virada parece ter sido o julgamento do Mensalão, quando o desempenho do STF, punindo envolvidos no escândalo, alinhou-se com a preferência da maioria da população. Uma série de inovações institucionais pós mensalão (lei da ficha-limpa, lei da transparência, lei da delação premiada, lei da leniência etc.) criaram condições para o sucesso subsequente da operação laja-jato, que apesar do infortúnio ocorrido com seu relator Teori Zavaski, espera-se que prossiga sem intempéries.
Nada garante que novas crenças venham a criar instituições que proporcionem resultados consistentes com as expectativas. O processo pelo qual novas crenças substituem antigas não garante progresso. Pelo contrário: a maioria dos países têm passado por repetidos ciclos, sem realmente avançar em termos de desenvolvimento sustentável. Mas, uma análise atenta do que vem ocorrendo no Brasil, sugere que estamos diante da possibilidade de um grande salto. Muito do que a sociedade brasileira sempre reclamou sobre a impunidade de crimes cometidos por brancos, ricos e poderosos parece estar chegando ao seu fim.
(*) Carlos Pereira é professor titular na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV)
Fonte: Valor Econômico (23/01/17)

‘O populismo na Europa precisa ser combatido’ (Daniel Cohn-Bendit/entrevista)

• Para o histórico líder francês de centro-esquerda, a União Europeia não vai ficar calada se Donald Trump concretizar a sua ameaça de adotar medidas protecionistas contra o continente
Graca Magalhães-Ruether | Especial para O Globo
BERLIM - Daniel Cohn-Bendit, ex-deputado no Parlamento Europeu pelo Partido Verde (2004 a 2014), vê o risco de racha da União Europeia, em consequência dos ataques do novo presidente americano, Donald Trump, e dos populistas que avançam em vários países da Europa em direção ao poder. Em entrevista ao GLOBO, Cohn-Bendit, visto pela imprensa francesa como o provável vice da chapa do candidato Emmanuel Macron, lembrou que as medidas protecionistas anunciadas por Trump serão rebatidas pela Europa e o resultado pode ser uma guerra comercial capaz de afetar o mundo inteiro com uma estagnação econômica.
• Donald Trump ainda não tinha assumido a Presidência quando começou a abalar a Europa com os seus ataques. Na sua opinião, ele pode mesmo contribuir para agravar a crise e a divisão da Europa?
Talvez esta seja a sua intenção. Antigamente, eu teria dito que a Europa não corre riscos porque é capaz de oferecer uma resposta à altura. Mas os países do núcleo da UE — França e Alemanha —, que antigamente eram responsáveis por iniciativas para consolidar a integração europeia, não estão em condições. Os dois passarão este ano por importantes eleições. Na França, há até o risco de ser eleito um presidente da extrema direita.
• O senhor quer dizer Marine Le Pen, da Frente Nacional?
Isso mesmo. Havia o receio de um segundo turno dos populistas contra os conservadores. Mas, para falar a verdade, agora eu acredito que vai ser possível a vitória de Macron (o ex-ministro da economia Emmanuel Macron, de centro-esquerda). O fenômeno do populismo na Europa precisa ser combatido através da luta contra as circunstâncias que o causaram, a falta de programas sociais que deixou grandes camadas da população empobrecerem... Sem esse fenômeno, Le Pen e outros populistas na Europa não encontrariam a ressonância que têm no momento. Esses partidos crescem porque têm o apoio de uma camada da população que se sente perdedora com a globalização. Mas não devemos esquecer, muitas pessoas que hoje buscam os populistas perderam o emprego ou caíram de status econômico por culpa do capitalismo. O mesmo ocorre com as pessoas que elegeram Trump, em grande parte trabalhadores que perderam o emprego por causa da globalização. É uma grande ironia da História que o capitalista Donald Trump, um bilionário, seja o seu representante.
• A imprensa francesa já abordou a possibilidade de uma chapa MacronCohn-Bendit. O senhor vai ser o vice de Macron, com quem esteve na semana passada, aqui em Berlim?
Só quero dizer que vou apoiar a candidatura de Macron porque ele é a única chance de frear a direita de Le Pen.
• Quer dizer que descarta?
Nada está decidido.
• Se Le Pen ganhar, ela vai mesmo cumprir a ameaça de organizar um referendo para a saída do país da UE?
Um referendo não significa necessariamente a saída. Todo esse debate sobre o Brexit (a saída britânica do bloco) e Trump teve na França um efeito contrário, de aumentar o interesse pela UE. As últimas sondagens indicam que dois terços dos franceses são a favor da permanência do país no bloco.
• Também os membros da UE do Leste, como Hungria e República Tcheca, apoiam Trump e vivem criticando o bloco e a política de refugiados da chanceler alemã Angela Merkel. A Hungria é o próximo candidato à saída da UE?
A Hungria é um caso interessante porque vê a UE como meio de receber ajuda financeira. Já quando tem que cooperar, como no caso dos refugiados, fecha questão, recusando-se a recebêlos. Acho provável que a Hungria termine deixando a UE. Mas a saída de dois ou três membros não significa o fim do projeto da integração europeia.
• Como a Hungria, também alguns outros países do Leste perderam o entusiasmo pela UE e voltaram a se aproximar de Moscou. Uma possível aliança entre o presidente russo, Vladimir Putin, e Donald Trump poderá ajudar Moscou a voltar a formar uma espécie de novo bloco leste?
Vejo um grande perigo e, por isso, volto a afirmar que o mais importante no momento é o desenvolvimento da ideia da União Europeia, não apenas administrar a crise, mas ir adiante na integração. Essa ideia tem encontrado um grande obstáculo porque os países ainda são movidos pelos interesses nacionais. A França quer uma UE à francesa, a Alemanha no estilo alemão. Em resumo, falta a capacidade de consenso.
• Tudo isso costumava ser resolvido ou pelo menos discutido pelo chamado eixo Paris-Berlim. Esse eixo deixou de funcionar porque Merkel não se entende com François Hollande?
Também houve problemas na época de Helmut Kohl/François Mitterrand ou de Gerhard Schröder/Jacques Chirac. Nem sempre os dois países tinham posições parecidas. A diferença é que eles se falavam mais do que agora, com Merkel e Hollande.
• Trump antecipou medidas de aumento das tarifas alfandegárias, o que teria o efeito de agravar a crise do euro. O que a UE, ou melhor, a zona do euro, pode fazer contra as possíveis medidas americanas?
A UE não vai ficar calada se Trump concretizar a sua ameaça de endurecer com medidas protecionistas. Há empresas americanas gigantescas, como a Google e a Amazon, que podem sofrer com as retaliações da UE. No final, o mundo inteiro poderia sofrer os efeitos de uma guerra comercial. Se houver ataque (protecionista), haverá um contra-ataque.
• O retrocesso da ideia da integração europeia, a volta dos Estados nacionais, tudo isso aumentaria o perigo de guerra que, depois da queda da Cortina de Ferro, parecia definitivamente superado?
Não vejo qualquer perigo de volta desse fantasma. A democracia não corre risco na Europa. Não devemos despertar um medo que não tem risco de acontecer.
23/01/17)

domingo, 15 de janeiro de 2017

A Lava Jato e a ordem democrática (Sergio Fausto)

Ao longo da História o Brasil experimentou mais o arbítrio do que a lei. Não apenas porque vivemos a maior parte do tempo sob regimes não democráticos, mas também porque mesmo na democracia a lei foi aqui aplicada desigualmente. Seu peso recaiu, em geral, sobre quem tinha pouco ou nenhum dinheiro, prestígio social e/ou poder político. Contra esse pano de fundo, a Lava Jato representa a possibilidade de uma mudança de época. É um daqueles processos que podem separar um antes e um depois na História.
Sem ser especialista no ramo, não me convenço das críticas feitas à atuação da força-tarefa do Ministério Público (MP) e do juiz Sergio Moro. Advogados criminalistas renomados apelaram a analogias descabidas entre a prisão preventiva e a tortura, como se o País tivesse retrocedido aos anos de chumbo. Pode ter havido abusos no uso daquela, mas a maioria das delações premiadas foi negociada com delatores em liberdade. Tudo sob a tutela do STF.
Curiosamente, o PT adotou argumento semelhante, acusando a Lava Jato de proceder de forma arbitrária, porque supostamente seletiva. Na retórica de combate ao suposto golpe parlamentar contra a presidente Dilma, a Lava Jato e o impeachment foram apresentados como parte da mesma orquestração que visaria a criminalizar o PT e tirá-lo do poder. A alegação se desmoralizou à medida que a operação alcançava outros partidos e lideranças partidárias, incluídos os que passaram a ser governo após o impeachment.
Mais plausível é a crítica dos que apontam os riscos de um certo moralismo salvacionista atribuído aos protagonistas da Lava Jato. Ao exacerbar o senso comum de que “todo político é ladrão” e toda política se resume a um jogo sujo de poder, feito à revelia do cidadão e do interesse público, os promotores de Curitiba e o juiz Moro estariam minando o terreno da política democrática.
O sociólogo Luiz Werneck Viana, que escreveu textos pioneiros valorizando a renovação geracional do Judiciário e o papel do Ministério Público, disse em entrevista a este jornal (25/12/2016) que “tenentes togados” comandam “uma balbúrdia política” com objetivos corporativos. Comparou juízes e promotores de hoje aos suboficiais do Exército que ao longo dos anos de 1920 lideraram revoltas militares contra os governos da República Velha. Ressalvou que os tenentes de farda pelo menos tinham um programa de reforma econômica e social para o País, ao passo que os “togados” não têm a oferecer senão uma “reforma moral”.
A preocupação com a concentração de poder no Judiciário não é descabida, mas Werneck força a barra no argumento. Exagera ao apontar a existência de uma “inteligência organizando essa balbúrdia”. A ideia de que há uma orquestração visando a desmoralizar o sistema político e defender interesses corporativos espúrios desconsidera as rivalidades existentes entre Polícia Federal, promotores de Curitiba e Ministério Público Federal, magistrados de segunda instância e juízes de tribunais superiores, etc. Como o próprio autor reconhece, o aumento do poder do Judiciário é antes consequência do que causa da deterioração do sistema político.
Não resta dúvida de que a loquacidade e o personalismo de alguns membros do Judiciário têm adicionado ruído à balbúrdia institucional. O exemplo mais recente foi a decisão monocrática do ministro Fux declarando inconstitucional, em caráter preliminar, a forma como a Câmara deliberou sobre as dez medidas anticorrupção apresentadas pelo MP. Caso claro de indevida judicialização da política.
Coisa muito diferente é a atuação dos protagonistas da Operação Lava Jato. Em que pesem erros e exageros cometidos, alguns mais na forma que na substância, a força-tarefa sediada em Curitiba e o juiz Moro não se movem por interesses corporativos. Desenvolvem seu trabalho nos limites do devido processo legal, tensionando-os, é verdade, mas em geral sem ultrapassá-los, como atesta o fato de que foram poucas as decisões do juiz Sergio Moro reformadas por instâncias superiores do Judiciário.
Ao contrário dos tenentes nos anos 20 do século passado, eles não agem inspirados em ideologias autoritárias nem visam à derruba do governo pelas armas. Ao ler a realidade de hoje com a lente daquele período, Werneck escorrega no anacronismo e minimiza a importância da Lava Jato para o aperfeiçoamento e mesmo a manutenção da ordem democrática. Computados seus créditos e débitos, sobra, a meu ver, um significativo saldo positivo: um grupo de servidores do Estado brasileiro deslindou e desbaratou um esquema colossal de corrupção, com ramificações no exterior, envolvendo não poucas das maiores empresas do País e vários políticos de destaque, de variados partidos. Como nunca antes na História deste país.
Seria ingênuo minimizar os riscos da Lava Jato. Tanto o de jogar na vala comum do descrédito, quando não das punições indistintas, delitos de gravidade diferente e políticos que não são farinha do mesmo saco, quanto o de terminar em alguma forma de pizza, pela ação do Congresso ou inação do STF.
Concluindo, acreditar que a salvação do País depende de uma “reforma moral” conduzida por “justiceiros” é perigoso. Não se justifica, porém, minimizar o potencial da Operação Lava Jato para enraizar na sociedade a crença no princípio da igualdade perante a lei e para estabelecer um padrão mais rigoroso para a política e os negócios públicos em geral. Sem avanços nessas duas dimensões da moralidade pública, o déficit de credibilidade das instituições e da autoridade do Estado continuará perigosamente alto, assim como os desincentivos para que um número maior de pessoas comprometidas com o interesse público participe da política profissional. A Lava Jato não é condição suficiente, mas é condição necessária para mudar esse quadro, que ameaça a ordem democrática do País.
Fonte: O Estado de São Paulo (14/01/17)

sábado, 14 de janeiro de 2017

Zygmunt Bauman, o teórico da sociedade líquida (António Guerreiro)

• Sociólogo tão crítico quanto empenhado, reactivou a noção de pós-modernidade e deu-lhe um conteúdo mais preciso, capaz de abranger fenómenos que marcam os novos tempos.
Zygmunt Bauman, o sociólogo que nasceu em 1925 em Poznan, na Polónia e morreu esta segunda-feira em Leeds, onde estava radicado há vários anos, teve direito a uma fama e a um reconhecimento internacionais que estão muito para além da legitimação concedida pelos seus pares, no interior das ciências sociais. No lugar mais central da obra deste polaco que se refugiou em Inglaterra em 1971, fugindo às purgas do regime comunista, e aí fez toda a sua carreira académica (foi professor na Universidade de Leeds), está o conceito de “sociedade líquida”. Foi esta a sua grande “invenção” de sociólogo, que ele aliás explorou à exaustão, aplicando-a muitos domínios. Foi assim que, depois da Liquid Modernity, em 2000, veio o Liquid Love, em 2003, e a categoria da “liquidez” passou a atravessar quase todo o seu trabalho posterior.
A ideia de uma sociedade líquida ganhou assim o poder de dar uma configuração à nossa época, tal como Bauman a vê: uma época caracterizada pelo triunfo da fluidez, do precário, do transitório, do permeável e do que não se deixa apreender com segurança. Para ele, esta é a condição da sociedade em que vivemos, em todas as suas dimensões, tanto estruturais como super-estruturais, tanto no plano material e económico, como no plano da vida afectiva e intelectual. De certo modo, Bauman, fazendo da noção de liquidez um instrumento de diagnóstico do nosso tempo (e retomando assim a tradição dos diagnósticos sociológicos, à maneira de Simmel), transpôs para a nossa época um princípio semelhante àquele que tinha sido enunciado por Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista: “tudo o que é sólido dissolve-se no ar”. Nesta pespectiva, a sociedade líquida e tudo aquilo que lhe corresponde (incluindo as manifestações dos sentimentos) dão uma configuração total à nossa época: ela abarca fenómenos tão diferentes como o consumismo, a imigração, a globalização, o desmoronamento das ideologias. E é porventura essa vontade de explicação total que torna a tese de Baumann tão atractiva para um público leigo, mas ao mesmo tempo tão suspeita para os sociólogos.
A Europa à procura da sua Primavera
Em 1989, Zygmunt Bauman já tinha conhecido um primeiro momento de grande sucesso, para além das fronteiras académicas e disciplinares. Nesse ano, publicou um livro que teve uma enorme irradiação: Modernity and the Holocaust. Aí desenvolvia a tese (não propriamente nova) de que o programa de extermínio dos judeus levado a cabo pelo regime nazi foi um acontecimento consubstancial à modernidade, vista tanto na sua dimensão técnico-científica como político-ideológica. A este livro não são estranhas as contingências biográficas de Bauman, que escapou com a família (de origem judaica) para a União Soviética quando a Polónia foi invadida pelo exército nazi. Tal como não é estranha a grande parte da sua obra uma filiação marxista, posterior à Segunda Guerra Mundial, que Bauman nunca rejeitou totalmente, muito embora tenha integrado referências teóricas e métodos de análise bastante eclécticos e longe de qualquer ortodoxia ideológica.
Incidiu com muita intensidade nas questões relacionadas com a globalização e os refugiados. Foi, de certo modo, um sociólogo empenhado, na medida em que não quis apenas dar aulas, fazer ciência e elaborar teoria, mas também intervir de modo crítico, com palavras de denúncia, no estado do mundo. Nunca esteve do lado da teoria pura nem do academismo puritano. Preocuparam-no a pobreza, a exclusão, o triunfo de uma sociedade consumista. E, enquanto sociólogo, integrou essas questões nas suas análises, de uma maneira pouco habitual num universitário em Inglaterra. A tradição intelectual continental permaneceu nele como uma veia muito forte.
Numa altura em que a noção de pós-modernidade parecia ser já pouco produtiva, Bauman reactivou-a e deu-lhe um conteúdo sociológico mais preciso, capaz de abranger fenómenos que marcam os novos tempos, na passagem do século XX para o século XXI: por exemplo, o triunfo das relações laborais precárias, à medida que o trabalho intelectual se impõe sobre o trabalho material; e também o grande fenómeno das migrações e do terrorismo.
O sociólogo Zygmunt Bauman fez assim um percurso académico e intelectual determinado por uma relação muito estreita e empenhada com o presente, com o seu tempo. Em certa medida, ele quis configurar esse tempo nos seus movimentos, nas suas tendências e nos seus tropismos mais evidentes. Fê-lo recorrendo mais a instrumentos teóricos especulativos do que às análises empíricas. Foi, por isso, um sociólogo “impuro”. Ou, pelo menos, com uma enorme vontade de transpor limites disciplinares.
Em Portugal – país que visitou mais do que uma vez, nomeadamente em Abril de 2013, quando participou no Festival Literário da Madeira –, Bauman tem traduzidos e editados os seguintes títulos: Amor Líquido (2008), Modernidade e Ambivalência (2007), Confiança e Medo na Cidade (2006), todos pela Relógio D’Água; e também A Liberdade (Editorial Estampa, 1989). Em parceria com outros autores, estão também publicados em Portugal, também pela Relógio D'Água, Estado de Crise (2016, com Carlo Bordoni) e Cegueira Moral (com Leonidas Donski), ambos de 2016.
Fonte: Público (Portugal)

sábado, 7 de janeiro de 2017

Um país a inventar (José de Souza Martins)

• O Brasil não é isso que está aí. A obra e a vida dos intelectuais, dos cientistas e dos trabalhadores podem trazer de volta os anseios de construir, em vez de só demolir
Num momento como este, de graves tensões políticas, sociais e econômicas, que propõem a passagem de ano fora dos marcos da tradição e do costume, nós nos defrontamos com um abismo de incertezas, impróprias para o rito das travessias simbólicas que dão sentido à vida com esperança.
No balanço do ano civil que acabou, há débitos enormes que dificilmente serão pagos no ano que começa. Perdemos a compostura política e perdemos o sentido da honra na política, basicamente porque a perdemos de vista e chegamos ao absurdo de achar que a política é um estorvo, que seria melhor acabar com ela. Sem política as sociedades não existem nem podem existir. Confundimos política com políticos.
Este foi mais um ano de perdas para o Brasil. Nossa grande perda foi a do autoaniquilamento do Partido dos Trabalhadores, que arrastou consigo boa parte do nosso sistema partidário. Porque, mais do que a imensa maioria dos partidos políticos brasileiros, o PT nasceu para cumprir uma função histórica que nenhum outro poderia cumprir. Ele poderia ter sido o grande canal de expressão daquela parcela da população que a história condenara ao silêncio. Mas partidarizou sem politizar, incluiu sem democratizar, anexou os diferentes sem gestar o direito à diferença. O PT foi vitimado pelos equívocos e ambições das facções de militantes mais escravas da ideologia do que ativistas do historicamente possível. Sucumbiu à incapacidade de consumar a ruptura histórica que alardeara em sua ascensão ao poder. Revelou-se igual aos partidos que abomina. Negou-se, mergulhando na conciliação com o crônico conformismo da história política brasileira. Optou pela mera hegemonia, mais para desfrutar do que para governar. Para opor-se ao PSDB, que equivocadamente elegeu como inimigo seu e dos pobres, ainda que formados ambos da mesma matéria-prima social-democrática, associou-se à direita e ao oligarquismo retrógrado. O qual, com essa aliança, se fortaleceu para, no final, cuspir do casulo do poder o parasita oportunista e ingênuo, o PT.
Seu suposto socialismo, sem referências teóricas consistentes, não levou em conta que o mandato da transformação política só é legítimo em resposta a carências radicais. Um país carente, como este, que, no entanto, já não tem carências radicais, tem se movido ficticiamente com base nas motivações superficiais das frases feitas, da imitação e da mímica. Os atores se repetem, como se viu na retórica de ambulante que caracterizou tanto a melancólica defesa petista do mandato de Dilma Rousseff quanto a recente oposição ao iníquo e enganador projeto de reforma da previdência. Mais para acusar do que para propor. Tudo igual à fragilidade da retórica do atual governo na apresentação de suas reformas econômicas sem conteúdos sociais.
As épocas não terminam no fim do ano. Terminam na difusa consciência de que algo se perde e acaba e de que algo não muito claro começa. Um longo ano desconhecido começou nas manifestações de rua de 2013 e ainda não terminou nem terminará tão cedo. Talvez encontre seu término em 31 de dezembro de 2018. Só então poderemos falar em ano novo, no sentido histórico de um tempo novo.
Até lá continuaremos nesse ano longo e inconcluso que estamos vivendo, o ano cinzento e sem fim, o ano da incerteza. Muita coisa foi demolida ao longo desse ano de mais de mil dias, muita gente que se achava poderosa caiu e ainda não se deu conta da queda. Uma presidente da República teve o mandato cassado, um poderoso presidente da Câmara está preso, um poderosíssimo presidente do Senado e do Congresso teve as prerrogativas de poder castradas, reduzidas à metade. Gente que se achava acima da lei foi e está sendo presa, investigada, julgada, condenada. Ricos e poderosos na cadeia podem ser um sinal demarcatório de uma nova e inesperada era. Há uma convulsão nas instituições até aqui subjugadas pelo oligarquismo e o poder pessoal dos régulos de província. Resta saber o que colocaremos no lugar, que novo Brasil vamos inventar, com qual matéria-prima. Não há, na situação atual, nenhum sinal de consciência e de criatividade política, apenas cópia e repetição, muito imaginário e nenhuma imaginação. Nem na rua.
Desde 2013, somos apenas contra. Não somos a favor de nada. Tanto antes da queda de Dilma Rousseff quanto depois da ascensão de Temer, somos contra. Os grupos apenas mudam de lado. Não percebemos que o sistema partidário derreteu, que, na prática, já não há partidos políticos. Há figuras residuais que substituem os partidos, ocas de utopia, doutrina e projeto histórico. Os partidos já não protagonizam a política. Os grupos de interesse usurparam-lhes as funções. Tanto nas ruas quanto no Congresso Nacional, quanto no Poder Executivo e mesmo no Judiciário, as funções institucionais foram substituídas pelos demolidores. Há exceções que, no entanto, não geram protagonismo de renovação. Nas ruas, os quebradores de portas e vidraças, os apedrejadores, os queimadores de ônibus, tanto de esquerda quanto de direita, não têm um projeto de nação. São apenas contra. Não têm ideias, têm apenas raiva. Em todas essas manifestações, o Brasil que sobra é o Brasil arcaico. O Brasil cujo futuro é prisioneiro do passado.
Seria decepcionante, nesta hora litúrgica, se o País se ativesse aos aspectos mais irracionais da história de agora. O Brasil não é isso que está aí. Ele é sobretudo o que não se vê, mas se faz. Infelizmente, a corrupção e os oportunismos da política, as vulgaridades, têm mais visibilidade do que a obra e a vida dos intelectuais, dos artistas, dos poetas, dos cientistas e dos próprios trabalhadores. No entanto são essas vidas e essas obras que no silêncio que lhes é próprio dizem que estamos vivos. Em 2016, brasileiros fizeram poesia, incrementaram as artes, colocaram nossa ciência em destaque, universidades como a USP estão no topo da lista das congêneres latino-americanas, ainda que haja quem queira demoli-las ou minimizá-las com critérios de botequim de esquina.
Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (1/01/2017)

Como o discurso político virou entretenimento (Eugênio Bucci)

“Durante um breve período tivemos a ilusão de que poderíamos (...) voltar à argumentação racional, de modo que a retórica pudesse substituir os ritos. (...) As sociedades complexas e de mudanças rápidas, contudo, pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para ser cada vez mais sociedades da expressão. A unidade de comunicação entre o emissor e o receptor vai se quebrando. Cada vez menos tratamos com comunicadores e cada vez mais com atores”
Alain Touraine, Communication politique et crise de la représentativité (1989)
A denúncia de que a comunicação política se rebaixou definitivamente a um circo de bufões populistas virou um mantra mundial em 2016. Em setembro, a revista The Economist publicou uma capa sobre a “pós-verdade”. Segundo o semanário inglês, os políticos – e mesmo os estadistas – não precisam mais ter compromisso com a verdade dos fatos, e a maior demonstração do fenômeno seria Donald Trump, que fez sua campanha movida a mentiras escalafobéticas. Os eleitores também não estão nem aí: tomam suas decisões com base em fanatismos e mistificações, estimulados pela performance do histrião da vez. Se o que ele diz é verdade ou mentira, ora, isso é um detalhe irrelevante.
É claro que a distorção não vem de hoje. Nem de ontem. A própria expressão “pós-verdade” – que, por sinal, foi eleita pelo Dicionário Oxford como “a palavra do ano” – entrou no circuito ainda em 2004, quando foi título de um livro de Ralph Keyes – The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Bem antes disso, Alain Touraine, em tons comedidos, já lamentava a transformação da política num jogo de “atores”. Mentira e política, enfim, são íntimos há muito tempo. A novidade é que a coisa piorou muito.
Hoje, os discursos políticos se encaixaram perfeitamente bem na grande indústria do entretenimento. Seja nas campanhas eleitorais, seja nas mensagens que o poder público dirige aos cidadãos, a comunicação política segue cada vez mais as regras, os formatos e os ritmos estabelecidos pelo entretenimento. Não é preciso que nos lembremos do palhaço Tiririca, um supercampeão das urnas, para nos rendermos a essa constatação. Não é preciso citar o êxito de um Silvio Berlusconi na Itália, de um Arnold Schwarzenegger na Califórnia, de um Marcelo Crivella no Rio de Janeiro ou de um João Doria em São Paulo, todos adestrados pelo cinema e pela televisão, para sabermos de vez que os ideólogos perderam seu lugar para os marqueteiros, que os pensadores vêm sendo substituídos pelos animadores de auditório, que a razão vai sendo revogada pela diversão e que os palanques, depois de convertidos em palanques eletrônicos, agora fulguram como picadeiros virtuais. O respeitável público ora gargalha, ora espuma de ódio, e vota como quem aplaude.
Não é mais pelas leis da retórica, da oratória e da lógica que se entende a identificação entre governantes e governados. Elementos estéticos incidem fortemente nos laços de atração entre os “atores” do teatro político e seus seguidores acríticos. Não custa alertar que falamos aqui de uma estética menos “artística” e mais industrializada, fabricada pela indústria cultural. Falamos de uma “estética” artificial, que se vê em rodas de liga leve, em acessórios do vestuário, na decoração de interiores, na fachada de agências bancárias. É essa “estética” rebaixada, tão característica da indústria do entretenimento, que explica o comportamento da massa seduzida. Não é a economia que define o eleitor – é o circo, por mais que a economia tenha seu peso.
Nas redes sociais isso é flagrante. Por que notícias abusivamente mentirosas – como a de que o papa teria dado seu apoio a Trump – ganharam tanta adesão de tantos americanos? A resposta é tão simples quanto desalentadora. As calúnias, infâmias e invencionices extraem sua força do desejo do eleitor. Passam longe da razão. Se a notícia falsa cai no agrado das fantasias que ele nutre, será proclamada verdade suprema naquele instante de puro prazer.
As pessoas escolhem suas causas políticas com os mesmos neurônios com que escolhem um estilo de game, um gênero de filme (drama, ação, suspense, etc.), um time de futebol ou um ídolo do sertanejo universitário. A opinião pública é uma criança mimada: supõe que a realidade existe para diverti-la, para vingá-la, para lavar-lhe a alma ressentida.
A esse deslocamento estético corresponde um redimensionamento ético. Com isso a ética do discurso político vai mudando. Antes, ele se comportava como um discurso lastreado na verdade dos fatos. De uns tempos para cá, parece comportar-se como um discurso de ficção, de entretenimento. Numa telenovela, por exemplo, é aceitável que, lá pelas tantas, a personagem diga que tal refrigerante é uma delícia (trata-se do famigerado “merchandising”). O telespectador não se incomoda, em nada, mas, se o telejornal adotasse a mesma prática, ele se sentiria traído.
Eis, então, que na era da “pós-verdade” até mesmo “merchandising” o discurso político deu de fazer. É inacreditável. Soube-se agora que em 2013, ao fazer uma palestra paga na inauguração de uma fábrica de cerveja, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atendendo a encomenda expressa daqueles que o contrataram, afirmou em sua fala: “Eu duvido que a gente tome no mundo uma cerveja melhor que a Itaipava. A melhor cerveja que o povo nordestino vai beber. Cerveja de qualidade”. (Ver reportagem de Ricardo Brandt, Fábio Serapião, Julia Affonso, Beatriz Bulla e Fausto Macedo, Propaganda de cerveja em palestra, publicada no Estado de 29 de dezembro, página A6.) Identidade mais perfeita entre a marca de um político e a marca de uma mercadoria, impossível.
Mais um pouco, vão legalizar o “merchandising político” como solução para o financiamento das campanhas eleitorais. O entretenimento tomou o poder e sai caro.
Fonte: O Estado de São Paulo (05/01/17)

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O dilúvio e a arca de Noé (Luiz Werneck Vianna)

Rituais estão aí para serem observados, e mesmo os céticos os reverenciam pelo sentimento imemorial de que crenças coletivas, mesmo que não se acredite nelas, não devem ser desafiadas. Neste primeiro dia de 2017 acabamos de celebrar o nascimento de um ano novo, em que se renovam as esperanças de uma vida melhor, recém-saídos de uma balbúrdia que nos aturdiu, em meio a vociferações, ódios desabridos e o alastrar da cultura do ressentimento como se vivêssemos na cena das revoluções. Ainda bafejados pela confraternização das festas natalinas, ganhamos a graça de uma trégua que nos abre espaço para a reflexão e nos distancia das agitações estéreis que têm mantido o País em constante sobressalto. Mas sem ilusões, porque alguns eixos saíram do lugar e não é tarefa fácil devolvê-los às suas operações originais.
Impeachments são processos dolorosos. Em particular se o seu objeto tiver sido o de afastar da Presidência da República uma mandatária eleita por um partido socialmente identificado como de esquerda, com expressiva representação congressual e em movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores. Quadro que se agrava pelo fato de sua principal liderança, Luiz Inácio da Silva, e outras importantes personalidades partidárias se encontrarem na situação de réus em processos criminais, alguns deles presos. Sob essa pressão, o PT e seus aliados se movem nas ruas, nas escolas e no Parlamento em encarniçada oposição às políticas com que o governo Temer – notoriamente sem poder de influir na condução da Operação Lava Jato – intenta enfrentar a pesada crise econômica que paralisa o País.
Nessa loucura há um método: trata-se de atalhar, por fás ou nefas, o mandato do governo Temer, escolher um sucessor anódino por alguns meses, convocando-se eleições gerais para outubro, em que Lula, tido como imbatível nas urnas, seria apresentado como candidato à Presidência, voltando-se a tudo como dantes no quartel de Abrantes. Com pachorra, tal plano foi explicado linha por linha por João Pedro Stédile, dirigente do MST, em programa de entrevista do canal de TV CBN, esquivando-se o jornalista da pergunta clássica, hoje incorporada à nossa fala comum, formulada por Garrincha a seu treinador: se ele havia combinado seu desenho tático com os russos, nosso adversário em jogo decisivo na Copa de 1958. Os “russos”, no caso, os parlamentares e os ministros da Suprema Corte.
Planos mirabolantes fora, é um dado incontornável da realidade a forte intervenção da chamada Operação Lava Jato, que, a esta altura tendo em mãos as delações premiadas de altos executivos envolvidos em práticas de corrupção com parlamentares e agentes públicos, promete sanear por via judicial a vida política do País. O espaço público se torna um imenso tribunal, com seus membros desfrutando o protagonismo que em tempos não tão remotos era exercido pelos generais. Egos inflados de alguns ministros, cada qual brandindo um texto da Constituição, que juram venerar, trabalham sem o saber para conduzi-la à sepultura, invadindo os demais Poderes, dos quais os mais afoitos usurpam competências sem maiores cerimônias.
O egocentrismo, essa nova peste que assola o País, se assenhoreou também da classe política, que, mesmo tendo a seus pés o precipício, flerta animadamente com o perigo, não havendo um dia em que não saia das sombras o nome de um novo candidato à Presidência, na expectativa de que o governo Temer não prospere. A mídia, ao invés de ignorar esses pescadores de águas turvas, empresta-lhes vocalização e amplifica a balbúrdia.
Marx, em texto justamente célebre sobre os processos que levaram à ruína a República francesa de 1848, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, narra com sarcasmo as peripécias do sobrinho do grande Napoleão em busca do poder absoluto, o qual construiu seu caminho em meio a uma política em frangalhos e de cisões insanáveis nas forças que se lhe opunham. No caos reinante, sequiosa de tranquilidade para seus negócios, a burguesia francesa teria abdicado de bom grado do poder político, confiando-se a um patrão que zelasse pelo destino de todos. No lugar da República, Marx anota com ironia, a Infantaria, a Cavalaria e a Artilharia.
Também nisso seria preciso combinar com os “russos”, que, escaldados em experiência recente, parecem ter tamponado os ouvidos para não se deixarem enlear pelos cantos das sereias que gostam de rondar os quartéis. Mas logo que vier a inundação de fim do mundo, com as homologações das delações feitas na Operação Lava Jato, contaremos ou não com uma arca de Noé a fim de recomeçarmos a vida quando cessar o dilúvio? Ou estaremos confiados a um governo de juízes, para desgraça deles e nossa?
Os operadores da Lava Jato não devem desconhecer as lições de Weber em sua clássica distinção entre as éticas de convicção e as de responsabilidade, que podem, longe de se confrontar, ser complementares, como nos ensina, em Paradoxos da Modernidade, Wolfgang Schluchter, notável intérprete desse autor. Certamente boa parte deles conhece e cultua Ronald Dworkin, que erigiu o modelo do juiz Hércules como seu ideal de julgador em páginas magistrais do seu Império do Direito. Hércules, para ele, é um engenheiro social que, aberto à história da sua sociedade com suas vicissitudes, preserva a integridade do Direito ao tempo em que o renova na resolução de conflitos difíceis que lhe são submetidos.
Mas tréguas devem ser respeitadas e na paz destes dias de começo de ano convém notar que temos um governo que governa, desses que sabem, como dizia Ulysses Guimarães, que a cada dia cabe sua agonia, e que se deve ter paciência, esperança e mão firme no leme, porque o tempo de bonança talvez não tarde, porque não é pouco o que se tem de salvar dessa barafunda. A começar pela Carta de 88, já na mira dos que sempre desdenharam dela.
Fonte: O Estado de São Paulo

'Polaridade PT e PSDB tende a acabar, mas 3ª via é frágil' (Carlos Melo/entrevista)

- A "nova direita" entrou no debate político em 2016, com o impeachment e as eleições municipais.
O cientista político Carlos Melo, professor no Insper, diferencia a "nova direita", formada por liberais descontentes com a atuação do Estado que desejam operar pela via eleitoral, do setor reacionário sobrevivente do malufismo.
Ele prevê em 2018 uma "polarização improdutiva e perniciosa".
• Folha - A direita "envergonhada" pós-ditadura se renovou?
Carlos Melo - É necessário separar o que se chama de "direita". Há um setor conservador e reacionário, presente desde sempre, que não se renovou. É também refratário aos direitos civis e humanos e teve importância até pelo menos o início dos anos 1990, articulando-se em torno do "malufismo".
Com o ocaso de Paulo Maluf, esse setor foi cooptado pela centro-direita, em que o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) parece ser a maior expressão.
Com o protagonismo econômico e o sucesso dos governos FHC e Lula, esses setores se recolheram. Mas voltaram a ocupar a cena com a recessão, a derrocada do lulismo e o fracasso da autoproclamada esquerda.
• E há a 'nova direita'? Quais são suas características?
Com grande grau de imprecisão, chamemos de "nova direita" setores novos: liberais, privatistas, críticos da ação do Estado, ressentidos da má qualidade dos serviços públicos e indignados com a corrupção.
São inadvertidamente confundidos com a "velha direita", mas guardam importantes diferenças, operando no campo da democracia liberal e eleitoral. Expressam setores médios urbanos. Gente que paga impostos e não vê retornos.
• Por que há adesão aparentemente crescente a ela?
O primeiro fator é econômico. O crescimento levou à euforia e à adesão de grande parcela do eleitorado ao lulismo. A desaceleração, porém, e o início do naufrágio petista trouxeram frustração, despertando críticas de liberais econômicos e conservadores, já em 2013.
A errática estratégia defensiva do PT, qualificando críticos de "contra os pobres", abusando de locuções como "nós contra eles", jogou esse contingente na oposição. A tal "nova direita" passou a se identificar, antes de tudo, como "antipetista".
• Então despontam movimentos Brasil Livre e Vem Pra Rua, que catalisaram esses setores?
Sim. Há também a defesa intransigente da Operação Lava Jato e da apropriação exagerada da imagem do juiz Sergio Moro como uma espécie de "herói nacional".
Com a evolução das denúncias, passam a se opor também a outros setores do espectro político, como o PMDB e até o PSDB. Por sinal, hoje, os tucanos têm dificuldade em dialogar com a "nova direita".
Contudo, há, no interior desses movimentos, setores provavelmente minoritários, que se confundem com a "velha direita", radicais e sectários.
• Quais consequências dessa reorganização ideológica já são observadas?
O antigo centro político, mediador de conflitos e conciliador, dilui-se no tradicional fisiologismo. Suas lideranças, não fisiológicas, perdem espaço, desaparecem. Não se renovam. A polaridade PT versus PSDB tende a desaparecer. A eleição no Rio expressou isso.
• Em que medida os governos petistas colaboraram com a ascensão da direita?
Mencionei o erro da polarização forjada do PT, o "nós contra eles". Mas não foi só isso: a adesão ao fisiologismo e à corrupção retirou do PT o discurso da ética e certa hegemonia no campo progressista. O tema se transferiu a esses novos setores, às vezes como indignação legítima, às vezes como moralismo despolitizado.
• A ascensão de grupos evangélicos está associada à reorganização da direita?
A ascensão evangélica é anterior e corresponde a uma série de fatores como a perda de terreno da Igreja Católica e a habilidade dos pentecostais em se aproximar dos mais humildes.
• O que o sr. projeta para a próxima eleição presidencial?
A crise é enorme. Importante repensar conceitos de governabilidade, aperfeiçoar o sistema eleitoral. Contudo, neste momento, não há lideranças capazes de elaborar, comunicar, persuadir e articular o novo: o cardápio de nomes para 2018 é superficial, uma mesmice. O centro desapareceu. Aquilo que poderíamos chamar de "terceira via" parece tão frágil quanto omissa. Penso que iremos para uma polarização não só improdutiva como perniciosa.
Fonte: Folha de São Paulo (31/12/16)