segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Luiz Werneck Vianna (Entrevista)

Endurecimento de Dilma com centrais promove "limpeza"

Sociólogo diz que, no novo governo, conflitos tendem a sair do estado e voltar à sociedade, "onde vão ser processados democraticamente"

Uirá Machado

SÃO PAULO - Acabou o monopólio da política estabelecido por Lula, afirma o sociólogo Luiz Werneck Vianna.

Autor de livros como "Liberalismo e Sindicato no Brasil", Vianna vê no endurecimento da presidente Dilma Rousseff com as centrais sindicais um sinal de que o novo governo, constrangido pelas circunstâncias, promove uma "limpeza do Estado".

O resultado, diz ele, é que conflitos saem do Estado e são devolvidos à sociedade.

Folha - O sr. tem afirmado que a derrota do sindicalismo na disputa pelo salário mínimo não foi tanto de natureza econômica, mas política. A vitória governista é mais política do que fiscal?

Luiz Werneck Vianna - No caso das centrais sindicais, é uma derrota política, porque elas, na verdade, faziam parte do governo.Para a presidente, o que acontece é que ela fez uma campanha em uma conjuntura e, terminada a disputa, o cenário mudou.A conjuntura internacional mudou com o levante democrático-popular do mundo árabe. Internamente, está vindo agora a conta das políticas que foram seguidas desde a crise financeira de 2008. Isso implica cortes, e contar com um adversário instalado ao seu lado, como estão, ou estavam, as centrais, é muito difícil. Está havendo aí uma limpeza de terreno.

Em que sentido?

Essa crise vai ser enfrentada a partir de que lógica? Da racionalização da administração, economia e gestão. Essa racionalização é também a limpeza do Estado, a fim de que os tomadores de decisão, que são basicamente [a presidente] Dilma [Rousseff] e [Antonio] Palocci [ministro da Casa Civil], tenham liberdade para operar.Tudo isso tende a delimitar o sindicalismo ao seu papel, digamos, de mercado.

Trata-se de uma reação à mudança de conjuntura ou é um esforço de diferenciação em relação ao governo anterior?

É fundamentalmente a conjuntura. Agora, isso enseja mudanças que até são funcionalmente adequadas ao perfil da nova presidente. Ela vem do mundo da gestão e tem dificuldades de operar no mundo da política.A questão decisiva é que ela tem de operar nessa direção porque está sendo constrangida pela mudança nas circunstâncias. Uma coisa é certa: se o governo deixar voltar a inflação, ele acaba.

Se o conflito com as centrais era inevitável, quanto da forma como ele ocorreu decorre de uma diferença de estilo entre Dilma e Lula?

É difícil ponderar. É muito difícil também dizer que isso não teve influência. Mas essa influência não foi decisiva.Agora, o que não está sendo devidamente percebido é que o mundo sindical brasileiro de hoje é uma potência. As pessoas ainda pensam o sindicalismo brasileiro com os olhos dos anos 80, 90.

No entanto, o sindicalismo sofreu forte derrota...

Não, os sindicatos foram apenas deslocados. É claro que não sairão do governo prazerosamente, vão resistir.A bancada sindical é expressiva e atravessa diferentes partidos. O sindicalismo, saindo do governo, terá que buscar o Congresso e as ruas.

Dá para supor que o governo Dilma vai enfrentar grandes mobilizações de massa como as que ocorreram no governo FHC, mas não sob Lula?

Muitos sindicalistas influentes estão comparando a política do governo Dilma com as reformas presumidamente neoliberais praticadas durante o ciclo Fernando Henrique.

É possível traçar alguma linha de FHC a Dilma?

O que está havendo, desde FHC, é uma enorme afirmação da ordem burguesa no Brasil, de racionalização do capitalismo brasileiro. Isso começou com FHC, continuou com Lula e tem com Dilma o seu momento mais forte. Inclusive por causa das novas circunstâncias.

É correto dizer que Dilma, em comparação com Lula, deve ampliar os conflitos?

Não, ela libera os conflitos do Estado e os devolve para a sociedade, onde vão ser processados democraticamente.

Em contrapartida, o aumento do espaço de atuação da sociedade civil leva a maior pressão sobre o governo.

Não é necessariamente ruim. O governo pode manobrar. É o espaço democrático. O que vive a França.

Nesse cenário, os partidos ganham mais espaço?

Sim, abriram-se as possibilidades. É uma conjuntura mais propícia do que a anterior, porque Lula exercia o monopólio da política. Só ele fazia política no Brasil.Mas os partidos estão com dificuldades de aproveitar a situação.

Há necessidade de uma reforma política?

Precisamos de uma política bem ordenada, e, para isso, a reforma é necessária. [Do contrário,] fica um Estado barroco diante de uma sociedade moderna.

FONTE; FOLHA DE S. PAULO

Moacir Scliar: Legado imortal

Um dos mais prolíficos e premiados autores brasileiros, Moacyr Scliar tinha presença constante e intensa na vida literária local e nacional. O escritor morreu na madrugada de domingo, aos 73 anos, depois de permanecer mais de 40 dias internado no Hospital de Clínicas. Durante o velório, na Assembleia Legislativa (foto), colegas, amigos e autoridades saudaram a memória do autor que tornou o Bairro Bom Fim universal.

A cena estava ali, aos olhos de todos os que chegavam ao Salão Júlio de Castilhos da Assembleia Legislativa ontem à tarde: o esquife fechado, como manda a tradição judaica, guardava o corpo do escritor Moacyr Scliar, e sua família enlutada recebia os cumprimentos de uma multidão que se manteve constante.

Mas a sensação de muitos dos presentes era resumida pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, secretário de Cultura e amigo de Scliar:

– Ainda não consigo imaginar um cenário da literatura do Estado sem ele, tal a intensidade com que ele vivia a vida literária, tão importante e aglutinadora era sua presença.

O rosto sério, encostado a um pilar do salão, outro dos grandes autores do Estado, Sergio Faraco, dizia algo parecido:

– Para nós, que começamos com ele mais ou menos na mesma época, pensar em um mundo sem Scliar é como sentir que falta um alicerce.

Tão logo soube da morte, ainda de madrugada, o presidente da Assembleia, Adão Villaverde, colocou à disposição da família o salão para o velório, e lá ficou grande parte do tempo.

O autor de mais de 70 livros em 73 anos de vida não tinha apenas talento e facilidade para a escrita, mas para fazer amigos. Sua morte na madrugada de ontem, depois de mais de 40 dias internado, deflagrou amplas manifestações de luto. As homenagens foram prestadas por conhecidos de Scliar em todos os seus campos de atuação: integrantes da comunidade judaica, médicos, jornalistas, escritores, leitores.

Seu editor, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, voou de São Paulo tão logo soube da notícia. Discreto durante o velório, por vezes trocava algumas palavras com Judith, 64 anos, com quem Scliar era casado desde 1965. Um pouco mais ao fundo do salão, amigos manifestavam sua solidariedade ao filho de Scliar, o fotógrafo Beto, 31 anos. Membros da comunidade judaica de Porto Alegre, do meio literário, da imprensa, todos se enfileiravam para demonstrar seu respeito ao autor de O Centauro no Jardim. A Academia Brasileira de Letras, para a qual o escritor havia sido eleito em 2003, foi representada por Domício Proença Filho. Dilma Rousseff enviou uma coroa de flores. E a comoção chegou até a internet, onde a morte foi lamentada em blogs e no serviço de microtextos Twitter por jornalistas, escritores, amigos e leitores que só o conheciam por seus livros, por palestras para as quais o generoso autor sempre encontrava tempo ou pelas suas múltiplas crônicas na imprensa – para Zero Hora, ele escrevia três colunas semanais.

– Perdemos um dos nossos, mas a tristeza é de todo o Brasil. E também dos gaúchos que lamentam a perda de um escritor que retratou como ninguém o Estado em livros e em crônicas – disse o vice-presidente executivo do Grupo RBS, Eduardo Sirotsky Melzer.

Prêmios e fundação homenageiam autor

As homenagens ao autor devem se prolongar por todo o ano. Ontem, no velório do escritor, o governador Tarso Genro decretou luto oficial de três dias e anunciou que o prêmio literário que o Estado vai criar a partir deste ano, com apoio da Petrobras, para livros lançados nos dois anos anteriores, receberá o nome de Moacyr Scliar. A Academia Brasileira de Letras, em que Scliar ocupava a cadeira 31, também decretou luto oficial. O secretário de Cultura de Porto Alegre, Sérgius Gonzaga, presente no velório, informou que a Semana de Porto Alegre deste ano será em homenagem a Scliar. O Prêmio Fato Literário, entregue pelo Grupo RBS durante a Feira do Livro, homenageará o escritor em 2011.

– É uma perda enorme. Scliar era um escritor e um colega extraordinário, generoso e de grande simplicidade. Um homem que, com a mesma paixão, em um dia podia dar uma palestra em uma escola no Interior e dois dias depois estar em Nova York, para um curso – destacou o vice-presidente RS do Grupo RBS, Geraldo Corrêa.

A própria família Scliar estuda, passado o primeiro impacto, criar uma fundação com o nome do escritor para se dedicar a fazer o que ele sempre fez: apoiar novos autores. Scliar era conhecido por ser prestativo e atencioso com autores da nova geração e redigiu prefácios e textos de apresentação para muitos deles.

– Olhando agora, é bem apropriado que o último livro dele se chame Eu Vos Abraço, Milhões. É quase um livro-testamento para um autor que de fato parecia generoso o bastante para abraçar o mundo – disse Luiz Schwarcz.

REPERCUSSÃO

O adeus dos colegas

Durante todo o domingo, o nome de Moacyr Scliar se manteve entre os tópicos mais comentados – no Brasil e o no mundo – no Twitter, site em que fãs destacaram, além de seus livros favoritos, lembranças singelas. “Você contando suas histórias para mim sobre sua máquina de escrever. Obrigada por me dar esse momento maravilhoso. Vá em paz”, recordou uma admiradora de São Paulo, sem detalhar local ou data do encontro inesquecível. Veja, a seguir, o que disseram personalidades da área literária:

“Estou muito triste com as mortes do Scliar e do Benedito Nunes (filósofo e escritor paraense, também morto neste domingo). Perdi dois grandes amigos em um dia. Participamos (Scliar e eu) de alguns eventos literários juntos. Sempre foi uma pessoa muito generosa com os escritores. Nesse mundinho da literatura, há muita vaidade, uma vaidade doentia, como talvez exista em todas as profissões. O Scliar estava acima disso. Quem é generoso não precisa ficar se afirmando.

Não achava que ele iria embora agora, sinceramente. A morte é sempre um escândalo.”

Milton Hatoum, escritor amazonense, autor de Dois Irmãos

“A Academia está muito magoada. Moacyr foi um acadêmico exemplar porque ele era um acadêmico múltiplo: era um acadêmico na Academia e para a Academia. Ele era muito presente em seminários, simpósios, missões no Exterior, universidades estrangeiras.

Quantas e quantas vezes Moacyr nos advertia para questões de trabalho excessivo. E eu, muitas vezes, perguntava: ‘Moacyr, qual é a autoridade que você tem para reclamar de quem está trabalhando muito? Você não para de trabalhar!’

Marcos Vinicios Vilaça, presidente da ABL

“Era um dos escritores mais queridos da literatura brasileira. Não só por causa da obra, cuja importância é indiscutível, mas também pela generosidade com que tratava colegas, leitores, editores, jornalistas.”

Michel Laub, escritor gaúcho, autor de O Segundo Tempo

“Gostava muito do Scliar. A leitura de O Centauro no Jardim foi um impacto para mim. A Majestade do Xingu é um romance perfeito. Acabei de ler Eu vos Abraço, Milhões. Ele internacionalizou a literatura brasileira. Era um herdeiro do estilo do grande narrador.

Costumava encontrá-lo em feiras de livro. A última vez foi em Ribeirão Preto, em agosto. Em um hotel do Rio, no café da manhã, ele olhou para o meu prato e disse: ‘Bá, tchê, que frugal que tu és’ (risos). Como médico, achou a minha alimentação ótima, deu nota 10. Anos atrás, éramos jurados do prêmio Portugal Telecom. Um dia, brincou: ‘Agora vou me alimentar. Eu nem sei por que vou comer, já que eu sou imortal’. Só tenho doces lembranças dele.”

Cristovão Tezza, escritor catarinense radicado no Paraná, autor do multipremiado O Filho Eterno

“Ele fez a orelha do meu terceiro livro, Anotações Durante o Incêndio (2000). Não me conhecia, não sabia quem eu era. Leu e, em três dias, estava pronto. Depois descobri que ele era generoso para tudo. Quando eu era diretora do Instituto Estadual do Livro, se faltasse um autor para atender a uma escola lá num cafundó, ele ia. Era um entusiasta da literatura, um amante da vida. Muito grato ao Brasil, ao Rio Grande do Sul – foram esse país e esse Estado que acolheram a nossa gente. Ele se sentia profundamente gaúcho. Era sinceramente gaúcho e sinceramente judeu, embora não fosse religioso. Perdemos um homem maravilhoso, um diamante.”

Cíntia Moscovich, escritora gaúcha, autora de Duas Iguais
FONTE: ZERO HORA/RS (Larissa Roso)

Luz própria (Denis Lerrer Rosenfield)

Passados dois meses do governo Dilma, já é possível uma primeira avaliação, evidentemente preliminar, da nova presidente e de suas medidas. Uma primeira constatação se impõe: ela age com luz própria, abandonando discretamente, mas seguramente, o papel de criatura que lhe estava reservado. As suas diferenças em relação ao governo anterior são visíveis e podem ser classificadas em dois grandes grupos, um de estilo e forma, outro de conteúdo propriamente dito.

No que diz respeito ao primeiro, convém ressaltar as suas raras aparições púbicas, dedicando-se à gestão, o que é certamente a primeira função de um governante. Não mais temos as aparições cotidianas do ex-presidente Lula, que confundia a arte de governar com um palanque eleitoral constante. Esse traço se acentuou nos últimos anos e semanas de seu mandato, como se a ansiedade de ter de deixar o poder lhe atingisse ainda mais. Muitas de suas declarações eram incoerentes e contraditórias. Agora, a mudança de estilo é total, pois a presidente Dilma pesa suas aparições públicas e transmite mensagens por seus assessores e ministros, resguardando a sua própria imagem. Evita conflitos e não traz as brigas para si.

Entende que sua tarefa básica - a de ser a administração - passa por despachos e controle dos ministros, equacionando outro grande problema, o de ministros que agiam em seus domínios próprios como se fossem senhores feudais. Observa-se que os novos (e velhos) ministros agem diferentemente, evitando declarações que destoem do que consideram as concepções da presidente. Na ausência delas, a cautela passou a ser uma virtude.

No que diz respeito ao segundo grupo, há mudanças de conteúdo em curso, embora a nova presidente aja com prudência, para não descontentar o seu mentor. É bem verdade que a mudança de estilo pode ser uma simples mudança de forma, mas ela pode sinalizar também para questões substanciais. Citaria duas que merecem atenção: relações exteriores e ajuste fiscal.

Um dos pontos mais criticados, para não dizer mais detestáveis, do governo anterior foi a conivência com as piores ditaduras do planeta, num desprezo manifesto para com a questão dos direitos humanos. As brincadeiras de péssimo gosto com opositores cubanos e iranianos, alguns à beira da morte, foram o ápice de um processo que em muito contribuiu para macular a imagem externa do País. Hoje, ironicamente, os "amigos" e "irmãos" do presidente Lula estão caindo num salutar efeito dominó nos países árabes e muçulmanos, com seus povos se insurgindo contra seus respectivos tiranos, alguns sanguinários do pior tipo, como Kadafi na Líbia. Quem criticava era porque não entendia nada da política externa brasileira. Os resultados estão à vista, basta perguntar aos povos árabes. Felizmente, a nova presidente não está sendo vítima do oportunismo, pois se levantou contra o apedrejamento das mulheres no Irã, sinalizando concretamente, antes dos levantes árabes, que haveria uma inflexão da política externa brasileira em matéria de direitos humanos.

Outro ponto que merece ser destacado é a sua preocupação com o ajuste fiscal, o que se traduz pelo corte anunciado de R$ 50 bilhões e por uma postura firme na negociação e aprovação do novo salário mínimo. É bem verdade que o corte anunciado não foi ainda detalhado nem se sabe se o atual governo continuará a maquiar suas contas via financiamentos ao BNDES por meio de recursos do Tesouro e outras medidas semelhantes. No entanto, um crédito deve ser dado à nova presidente.

Sobre a negociação do valor do salário mínimo e sua regra de concessão, o novo governo foi firme com centrais sindicais que, no governo anterior, tinham se acostumado a ditar políticas, sendo recebidas no tapete vermelho. Ao não verem mais o tapete estendido, rebelaram-se e alguns dirigentes sindicais chegaram às raias da má educação, num comportamento absolutamente condenável. Alguns não souberam entender a mudança que, no entanto, a médio prazo lhes é muito favorável. O PT agiu com absoluta responsabilidade, atuando como um partido de governo, que não faz oposição a si mesmo. Não houve aqui esquizofrenia, com o partido adotando uma política de responsabilidade fiscal, independentemente de que esta corresponda ou não às suas bandeiras históricas.

Contudo, os tucanos e a oposição em geral deram um triste espetáculo de irresponsabilidade, com prejuízos também institucionais. O que o governo e o PT fizeram foi seguir uma marca do governo Fernando Henrique de responsabilidade fiscal. As oposições, entretanto, que no poder seguiram essa mesma linha, agora, por razões meramente eleitorais, adotaram uma postura infantil, sendo contra para serem simplesmente do contra, nada avançando de substantivo. Não foram politicamente responsáveis. Se tivessem sido, teriam votado com o governo, aperfeiçoando o mecanismo de reajuste, aceitando o valor proposto e abrindo um novo caminho de negociação que tem como valor maior o bem do País.

Se tivessem sido responsáveis, teriam contribuído para um novo panorama institucional. Do ponto de vista das ideias, diria que teriam aberto um campo de "social-democratização", com o PT identificando-se mais com essa concepção e os tucanos agindo consoante concepções que dizem defender. Haveria uma saudável inflexão de ambos os lados. O ganho de um campo por assim dizer "social-democrata", por exemplo, se traduziria por menores concessões que o próprio governo, na ausência de colaboração das oposições, é obrigado a fazer ao fisiologismo e à corrupção. Se houvesse um diálogo baseado em ideias e em efetivas medidas para governar, os grupos que vicejam na defesa de interesses os mais pequenos e mesquinhos não teriam como prosperar. Urge que um novo campo político se instaure entre nós, que reúna partidos da situação e da oposição, visando a criar um ambiente salutar, cujo maior proveito seja o bem público. E a oposição é também por isso responsável.

Professor de Filosofia/UfRGS

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

O salário mínimo e a judicialização da política (Luiz Werneck Vianna

A controvérsia sobre o salário mínimo escapou dos gabinetes palacianos, onde foi objeto de acordo, em 2007, entre o governo Lula e as centrais sindicais, ganhou o Parlamento, submetida à votação nas duas Casas congressuais, e por pouco não atingiu as ruas. Agora, tudo indica, a se confiar nas declarações transcritas pelos jornais de líderes políticos da oposição, que mudará de arena, migrando para o Poder Judiciário por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) a ser impetrada por eles no Supremo Tribunal Federal.

A matéria dessa ação não diria respeito aos aspectos substantivos - o valor do salário mínimo -, e sim aos procedimentais, uma vez que o artigo 3º da lei aprovada delega ao Executivo, nos próximos três anos, mediante decreto, a fixação do mínimo conforme fórmula prevista nesse novo diploma legal. Na leitura dos partidos minoritários, tal delegação significaria uma usurpação de poder do Legislativo em favor do Executivo, vindo contra disposições expressas da Constituição, que, no seu artigo 7º, inciso IV, dispõe que o salário mínimo deve ser fixado por lei. A maioria defende a constitucionalidade da nova lei, sustentando que os futuros decretos presidenciais sobre o valor do mínimo apenas cumpririam a vontade já expressa do legislador.

Como se vê, a controvérsia imprevistamente mudou de forma, deslocando-se do plano econômico-corporativo para o político-institucional, quando passa a admitir a arbitragem do Judiciário, o Tertius constitucional. Mais um caso, entre tantos, na moderna democracia brasileira, do assim chamado processo de judicialização da política, recurso hostilizado por alguns em nome de presumidas filiações ao republicanismo da Revolução Francesa de 1789, que teria fixado como princípio dogmático o império da vontade majoritária. Além do fato de que esse princípio não foi consensual entre os revolucionários franceses, os contestadores do controle de constitucionalidade das leis por parte do judiciário desconsideram outra robusta tradição republicana, a da revolução americana, que trouxe consigo a sua institucionalização.

Mas, sobretudo, não levam em conta a inequívoca vontade do legislador constituinte brasileiro de abrigar esse instituto no sentido de proteger sua obra de eventuais mutilações, respaldada por uma teoria democrática que admite, como intérpretes da Constituição, filha da soberania popular, entre outros, atores originários da sociedade civil, como os partidos, e as associações empresariais e de trabalhadores.

Certamente este é o caso do ilustre presidente do Senado, José Sarney, o ex-presidente da república sob cujo mandato foi elaborada e promulgada a Carta de 1988, que, ao criticar a iniciativa da oposição, declarou que "chamarmos o Supremo como uma terceira via é uma coisa que deforma o regime democrático", sentenciando "que as questões políticas devem ser resolvidas dentro do Parlamento" (Valor, 25/02/2011, p.10). Essa não é, sem dúvida, uma opinião isolada, merecendo ser ouvida, embora a questão em tela esteja longe de ser bem encaminhada com soluções ao gosto do senso comum.

A emprestar alcance universal ao que preconiza essa declaração, a segregação racial nos Estados Unidos poderia ter resistido, sabe-se lá por quanto mais tempo, às sucessivas tentativas dos parlamentares que combatiam aquele odioso sistema. Notório que, diante dos impasses e das divisões reinantes no sistema político americano, foi o Judiciário quem cortou o nó górdio daquele litígio com suas evidentes, na conjuntura da época, ameaças de guerra civil, em uma solução típica de judicialização da política, que, como se verificou, criou um ambiente de paz nas relações raciais daquela sociedade.

Como anota um conhecido especialista no assunto, a judicialização da política somente encontra campo para sua manifestação em países de regime político democrático, diante de um Judiciário autônomo das instâncias do poder e de franquia, garantida constitucionalmente, das liberdades civis e públicas. A propósito, nessa outra margem do Mediterrâneo, onde agora se alastra o levante de povos inteiros contra regimes autocráticos, vigem mecanismos institucionais que permitam a seus cidadãos exercer o controle de constitucionalidade das leis?

A floração do constitucionalismo democrático nos países de sistema da "civil law", coincide, não por acaso, com a derrota, em 1945, do nazi-fascismo, e com a convicção, então generalizada na opinião pública internacional, de que um sistema de poder com as características desumanas daquele não deveria se repetir. Como se sabe, na Alemanha de 1933, a ascensão do nazismo ao poder transitou sob a chancela do princípio do voto majoritário. A partir daí, sob a inspiração da Declaração de Direitos Humanos, firmada pela ONU em 1948, as democracias ocidentais passaram a positivar em suas constituições determinados valores, materiais e procedimentais, constituindo o que alguns denominam o núcleo dogmático das constituições, e, como tais, não passíveis de derrogação por eventuais expressões da vontade majoritária.

Mas, esse é apenas um dos aspectos das atuais mutações por que passam as relações entre os poderes republicanos, com a emergência, em escala mundial, do fenômeno da judicialização da política. Outro, decisivo, tem sede na própria ação do legislador que, por imperativos da complexidade das sociedades contemporâneas, produz leis com cláusulas de caráter aberto e indeterminado, admitindo o juiz no papel de legislador implícito. E mais tantos outros, inclusive o fato, só na aparência trivial, de que o instituto das ações de controle de inconstitucionalidade "pegou" no Brasil: são cerca de 200 Adins ao ano, e, aliás, o PT, hoje, partido no governo, quando na oposição, foi um dos grandes campeões na sua propositura.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Infinito, elétron e outras invenções (Marcelo Gleiser)

Baseamos os nossos argumentos no que podemos medir. E o que vem a ser a coisa real? Talvez nunca saibamos

OUTRO DIA, meu filho de quatro anos perguntou: "Pai, você pode contar até infinito?" "Não posso, filho, não ia acabar nunca". "Mas quanto é infinito menos três?" "É infinito também". "Mas como se escreve o número infinito?" "É um oito deitado." "Mas isso é um número, feito um ou dois?"
O infinito é mais uma ideia do que um número. É um conceito que criamos para representar sequências infindáveis de números, ou um ponto no espaço ou no tempo infinitamente distante da nossa posição ou do nosso momento presente.
O infinito não é algo a que chegamos; é algo sobre o qual pensamos.
Uma representação de nossas limitações, já que somos finitos no espaço e no tempo. Por outro lado, é também exemplo da nossa criatividade.
Mesmo que arredio, o infinito está por toda parte. Em cosmologia, dados atuais indicam que o Universo é infinito. Se andarmos numa direção e mantivermos a rota, jamais retornaremos ao ponto de partida. Se o universo fosse finito, feito a superfície de uma bola (em 3D), poderíamos circunavegá-lo, como o fez Fernão de Magalhães com a Terra (ou os que restaram de sua tripulação.)
Podemos ter certeza de que o universo é infinito? Não. Sabemos apenas que a porção do espaço que podemos medir, o que chamamos de horizonte -a distância percorrida pela luz em 13,7 bilhões de anos- é plana (ou quase). E uma geometria plana, como a superfície de uma mesa, estende-se ao infinito. Mas nossa certeza termina aí.
É possível que nossa porção plana do espaço faça parte de um universo curvo gigantesco. Se não temos acesso ao que há fora do horizonte, não temos certeza do que existe lá. Podemos apenas inferir.
E os pontos e linhas da geometria? Conceitos estranhos, também.
Um ponto marca uma posição no espaço, mas não ocupa espaço: seu volume é nulo. Uma linha, ligando dois pontos no espaço, não tem espessura. E é feita de pontos adjacentes. Coisas sem volume, lado a lado, fazem uma linha sem espessura!
Portanto, representamos coisas no espaço usando coisas que não existem no espaço, mais ideias do que coisas. Representações matemáticas, como quando desenhamos pontos num papel e os conectamos com linhas, mesmo que ilusórias, funcionam extraordinariamente bem. O real baseia-se no intangível.
Quando procuramos pelos menores pedaços de matéria, encontramos ideias semelhantes. Átomos são formados de elétrons, prótons e nêutrons. Prótons e nêutrons são formados de quarks. Portanto, dizemos assim que a matéria é feita de quarks e elétrons.
Será que quarks e elétrons são feitos de coisas ainda menores? Um elétron não é simplesmente uma bola de energia com carga negativa.
Um físico de partículas diria que um elétron não tem estrutura interna, que não há nada "lá dentro". Mas não podemos ter certeza.
Baseamos nossos argumentos no que podemos medir. Podemos tratar o elétron como uma partícula "pontual", com carga elétrica negativa, mas devemos lembrar que esta representação é uma aproximação da coisa real. E o que é essa coisa real? Talvez nunca saibamos. Como pontos e linhas, os elétrons e quarks são construções que usamos para representar como vemos o mundo.
Eles são como os vemos.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

FILOSOFIA PRIMEIRA (Elio Gaspari)

Está chegando às livrarias "Lições de Filosofia Primeira", do professor José Arthur Giannotti.
É uma obra erudita, severa, lição mesmo, daquelas que pedem ao leitor que vá devagar, buscando a compreensão de cada parágrafo, obrigado a acompanhar os raciocínios do autor.
Vai da Grécia antiga ao século 20, chegando ao que Giannotti considera o grande dilema da filosofia contemporânea. Para um lado foi Martin Heidegger e para outro, Ludwig Wittgenstein.
Giannotti narra, não polemiza nem julga. Até onde lhe foi possível, batalhou para tornar o discurso acessível. Explicando a teoria da figuração do "Tractatus logico-philosicus" de Wittgenstein, recorreu ao mapa das estações de metrô de São Paulo. Em outros casos, para manter o nível de seu texto, obriga o leitor a ir ao dicionário.
Psitacismo, por exemplo, é o efeito retórico repetitivo dos papagaios.
Giannotti é um intelectual de brava militância política. Seu texto filosófico vai por outra banda, a da reflexão em torno do pensamento, sem preocupação com as divisões do presente.
Enfim um livro de filosofia no qual Karl Marx é um coadjuvante, com duas rápidas aparições.
A leitura de "Lições" dá um trabalho danado, mas Giannotti informa: "Deu mais trabalho escrever".

Imagens da discriminação (Ivan Marsiglia)

Para socióloga, Lei Maria da Penha não basta para reduzir número de agressões a mulheres no País

Tire as próprias conclusões sobre a cena, que pode ser vista no /externo/?url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3Dquw7H-NXJA8. Aconteceu no dia 15 de junho de 2009, mas por motivos até agora pouco claros, caiu na rede semana passada, após uma reportagem do Jornal da Band. Nas imagens, uma escrivã de polícia acusada de receber propina é confrontada por agentes da Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo. Eles exigem que ela se dispa para que verifiquem a denúncia de que tem dinheiro escondido. Ela responde exigindo que a revista seja feita por policiais femininas, direito garantido por lei. "Pode me revistar, só não quero ficar pelada na frente de homem. Isso é constrangimento ilegal", ela afirma. "Chega. Perdi a paciência, pode meter o grampo nela", diz o delegado Eduardo Henrique de Carvalho Pinto, e, enquanto um policial algema a suspeita, que cai no chão, outros homens tiram a calça jeans e a calcinha da suspeita. Mostram à câmera R$ 200 que seriam produto de corrupção.

O processo por abuso de autoridade durante a ação, que foi registrada pelos próprios corregedores, já estava arquivado. Mas, após a repercussão, o governador Geraldo Alckmin pediu explicações ao secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto - que afastou o delegado Eduardo e seu colega, Gustavo Henrique Gonçalves. Na quinta-feira, foi a vez da corregedora, Maria Inês Trefiglio Valente, que justificara em entrevista a performance dos colegas.

Para a socióloga Wânia Pasinato, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, independentemente da culpa da escrivã, trata-se de caso flagrante de desrespeito aos direitos da mulher. Na entrevista a seguir, ela discorre sobre a discriminação vigente nas corporações policiais e põe em dúvida a capacitação dos profissionais da segurança pública no tratamento de questões de gênero - inclusive na experiência, válida, como diz, das delegacias da mulher. E discute os números da pesquisa divulgada esta semana pela Fundação Perseu Abramo: a cada 2 minutos, 5 mulheres são agredidas no País.

- A cena da escrivã acusada de corrupção sendo revistada e desnudada à força por policiais da corregedoria é algo habitual?
Se é habitual é difícil dizer. Veja que esse vídeo levou um ano e meio para vir a público. O que sabemos é que dentro da corporação existe muita discriminação contra mulheres. Ela aparece na limitação de seu ingresso, nas dificuldades que encontram para ascender na carreira, na relação difícil com a chefia. O vídeo tem muitos elementos para discussão - não apenas de gênero. A questão da corrupção é um deles: se a escrivã é culpada, tem que responder administrativa e criminalmente. Mas a cena toda mostra que, em nenhum momento, ela se nega a ser tocada ou revistada. O que ela coloca é uma condição, que é direito não só dela como de qualquer mulher, de ser revistada por uma policial. E vale notar que há duas delas na sala.

- Em determinado momento, a escrivã pede para não ser revistada na frente dos homens, mas o delegado insiste que tem que estar lá para conferir o flagrante. Ele está correto?
Uma policial poderia ter feito a revista com o delegado na sala ao lado. A porta poderia até ficar entreaberta para ele ouvir o diálogo. Mas o que me chamou a atenção é que essas duas policiais - que não são da civil, parecem ser da Guarda Metropolitana - não se movem! Elas não interferem nem tentam mediar a situação em favor da escrivã. Nessa inação entram outros elementos: o peso da hierarquia, as suscetibilidades por pertencerem a corporações distintas...

- Outra mulher, a corregedora Maria Inês Trefiglio Valente, justificou o arquivamento do inquérito por considerar que os delegados agiram ‘dentro do poder de polícia’ e acabou afastada. Como entender isso?
É algo que também chama a atenção. Inclusive porque a doutora Maria Inês não só foi delegada de uma delegacia da mulher, mas pertenceu ao serviço técnico de coordenação dessas delegacias. Mais: foi muito atuante, com um discurso em prol dos direitos das mulheres. Mas parece que tudo isso se perdeu quando houve o seu deslocamento para outra instituição. Parece que, por não mais atuar em um órgão especializado, o olhar de gênero dela se fecha, sofre um bloqueio. O que é interessante, pois há um debate sobre a especialização dessas delegacias da mulher. Há muito investimento em capacitação sobre gênero, na oferta de um atendimento especializado, na decisão de que policiais que trabalham ali sejam preferencialmente do sexo feminino, com domínio de técnicas de atenção e acolhimento. E, no entanto, a gente não só vê pouco efeito dessa capacitação no atendimento às vítimas de agressões, como parece que a formação se perde quando as profissionais deixam a delegacia da mulher para assumir outros postos.

- Não seria razoável esperar que qualquer delegacia pudesse atender bem mulheres vítimas de agressões?
Sim, e é preciso reforçar isso. Após 25 anos de existência das delegacias da mulher, como a única política de enfrentamento especializado desse tipo de violência no Brasil, é preciso dizer que elas são uma referência para as mulheres. Não dá para simplesmente propor que essas delegacias sejam fechadas e suas policiais diluídas pelos DPs comuns. Mas faz sentido o reforço que instituições como a Secretaria de Políticas para as Mulheres têm dado para que o atendimento seja qualificado em toda a parte. Porque isso é trabalho de polícia. Qualquer policial tem que atender bem.

- A que conclusões chegou na pesquisa ‘Delegacias de Defesa da Mulher e Juizados Especiais Criminais: Contribuições para a Consolidação de uma Cidadania de Gênero’?
Essa foi a minha pesquisa de doutorado, à época em que se discutiam os juizados especiais criminais (chamados de Jecrim), quando os casos de violência contra a mulher passaram a ser julgados nesses espaços. Na ocasião, houve um fluxo enorme de ocorrências policiais no juizado, causando inclusive surpresa, pois os juízes não sabiam sequer como lidar com o problema. Até esse momento, persistia a famosa prática do arquivamento do boletim de ocorrência, que nem se convertia em inquérito policial. Delegados realizavam apenas as tais mediações de conflito: chamavam o agressor para conversar, davam uma bronca e aquilo não ia para a frente. Foi um avanço. Mas minha análise, diferente daquela das feministas, era de que continuava sendo conveniente que a mulher mantivesse o poder de decidir se o agressor seria ou não processado. As feministas consideram que isso trouxe um grande ônus para as mulheres, que passaram a ser alvo de novas ameaças porque o agressor sabia desse poder de decisão delas. Embora eu concorde em parte com esse tipo de argumento, acho também que formalizar para as mulheres o direito de se manifestarem sobre o que esperam de um processo judicial também é uma forma de dar poder a elas. Evidentemente, isso só faz sentido em um contexto de promoção de direitos mais amplo. Não basta dizer à mulher que ela decida se representa ou não contra o agressor, mas é preciso informá-la sobre o significado e consequências disso - além de oferecer a ela atendimento psicológico em caso de separação judicial ou, em caso contrário, espaços e instâncias que a ajudem a reconfigurar sua relação conjugal. É o debate que está ocorrendo agora com a Lei Maria da Penha: aliar medidas punitivas e de criminalização da violência com um conjunto de políticas públicas mais amplo.

- Só na segunda-feira, após a divulgação do vídeo, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, determinou o afastamento dos dois delegados. Por que esse tipo de caso só tem consequências quando divulgado?
Infelizmente, na maior parte dos casos só assim alguma coisa acontece. Acho positivo que, hoje, esse tipo de caso repercuta dessa maneira. Nem sempre foi assim. Mas é preciso que, uma vez havendo esse repúdio da sociedade, o governo se mova. Há alguns dias o Ministério Público já se manifestou contra o arquivamento do inquérito contra os corregedores. Porque a escrivã está respondendo às acusações na Justiça. Vamos esperar que o mesmo ocorra sobre o abuso de que foi vítima. E que se chegue a um desfecho rápido. É muito grave quando se tem um órgão de corregedoria que não acolhe esse tipo de denúncia. Não por acaso, os boletins do Disque 180, da Central de Atendimento à Mulher, registram que as delegacias da mulher são ao mesmo tempo o serviço mais procurado por elas e as campeãs de queixas quanto ao atendimento.

- Recentemente, o estupro seguido de morte da vendedora Vanessa de Vasconcelos Duarte chocou o País. Para alguns analistas, o Brasil deveria adotar para esse tipo de crime a terminologia 'femicídio', usada por países como o México e a Guatemala. Faz sentido?
Acho que não. Essa é terminologia se aplica a crimes ocorridos estritamente por questão de gênero. Mesmo nesses países que você citou trata-se de uma categoria ampla demais, com contornos indefinidos. Ainda mais se aplicados ao contexto brasileiro. Estamos vivendo uma situação relativamente nova de aumento da participação de mulheres na violência urbana. Inclusive com mortes, decorrentes de envolvimento no tráfico de drogas ou outras atividades criminosas, que nada têm a ver com gênero. Então, é preciso entender as razões desse crescimento dos homicídios de mulheres antes de se pensar na utilidade desse tipo de categoria analítica. Senão, corremos o risco de criar uma terminologia absolutamente uniforme, em que tudo vira violência baseada no gênero e se perdem as especificidades dessa violência.

- A Fundação Perseu Abramo divulgou uma pesquisa recentemente que revelou que a cada 2 minutos, 5 mulheres são agredidas no Brasil. Por que esse comportamento persiste em nossa sociedade?
A pesquisa mostra que houve uma redução de 8 para 5 mulheres agredidas a cada 2 minutos na última década. É uma diminuição pequena se levarmos em conta que já se vão 30 anos de discussão da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Mas ela tem que ser comemorada.

- Uma das hipóteses levantadas pelos pesquisadores é que essa redução, ocorrida entre 2001 e 2010, se deva à Lei Maria da Penha. A sra. concorda?
Sim. A Lei Maria da Penha contribuiu muito, especialmente pela exposição pública que teve. É uma lei que caiu na boca do povo. Embora não exista um número nacional de registros de ocorrências nas delegacias, é possível notar um aumento no número de queixas. Em especial, nota-se um crescimento no número de queixas de ameaças - antes mesmo da agressão, o que pode sugerir que essas mulheres estão se adiantando para evitar a situação de violência. Isso é positivo. São dados que podem estar mostrando um movimento da sociedade na direção de reduzir sua tolerância com a violência contra a mulher. Há, por outro lado, recuos. Como no caso daquele juiz de Alagoas que chamou a Lei Maria da Penha de "diabólica". Ele havia sido afastado das funções, mas foi reconduzido ao cargo há alguns dias.

- Dos 8% de homens que admitiram na pesquisa já ter agredido a companheira, 76% disseram ter agido mal, mas 14% justificaram o ato, enquanto outros 10% dizem ‘não saber’. O que isso revela?
Pesquisas de opinião como essa servem muito para mostrar a opinião média da sociedade. Que, infelizmente, ainda é essa. A violência contra a mulher no Brasil ainda encontra certa legitimidade nos discursos. Ditados populares como o que sustenta que "o homem pode não estar sabendo por que bateu, mas a mulher sabe por que apanhou" ainda encontram espaço. As raízes culturais da violência acompanham a sociedade brasileira desde sua constituição. São uma herança de nossa colonização. Não são raízes fáceis de serem removidas. No entanto, são raízes culturais - e, portanto, passíveis de transformação ao longo de gerações. Não sei se nossos filhos e netos vão viver situações diferentes, mas é preciso ainda investir muito na educação. Mostrar que a violência é errada, o respeito entre homens e mulheres tem que prevalecer em qualquer relação - seja entre crianças, colegas de trabalho ou casais. Pois como portadores de direitos da cidadania essa igualdade está garantida em nossa Constituição. Temos que transformar o que é formal em um direito de fato, vivido pelas pessoas.

Vasculhando uma vida reclusa (J.D. Salinger/biografia)

Uma nova biografia expõe as feridas que moldaram o caráter e a ficção de um eterno outsider, J. D. Salinger

Michiko Kakutani

A dedicatória de Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira/Seymour, Uma Apresentação diz: "Se ainda existir um leitor amador no mundo, peço-lhe, com afeição e gratidão, que divida a dedicatória desse livro em quatro com minha esposa e filhos".
O solitário Salinger, que morreu em 2010, aos 91 anos, aparentemente descobriu esse leitor ideal em seu último biógrafo, Kenneth Slawenski, fundador do site dos seus fãs Dead Caulfields, e autor de sua nova biografia, escrupulosa, sensível e de profunda percepção.
Lançada agora, J. D. Salinger - A Life (Random House), que se inspira em grande parte nas cartas do escritor e em um livro de memórias de sua filha, Margaret, peca por pressupor correspondências diretas entre vida e obra do autor. E além disso, repete tópicos cobertos em livros anteriores por Ian Hamilton e Paul Alexander. No entanto, o faz sem aquela especulação condescendente e por vezes voyeurista que prejudicou as biografias iniciais e realiza um trabalho evocativo, traçando a evolução da sua obra e do seu pensamento.
O Salinger que emerge desse livro é um parente próximo, do ponto de vista psicológico, de sua mais famosa criação, o adolescente Holden Caulfield, e das crianças gênios da família Glass, os principais personagens dos seus trabalhos posteriores. Ele é o eterno outsider, o peregrino espiritual que se sente perdido em um mundo materialista, povoado por hipócritas e gente tediosa. Amado de maneira exagerada pela mãe, diz Slawenski, o jovem Salinger "passou a esperar dos outros a mesma reação, e não tinha consideração por quem duvidava dele ou não compartilhava de seus pontos de vista".
A consciência de ser uma pessoa extraordinária se calcificaria posteriormente em uma impaciência para com as outras pessoas, uma incapacidade de ir além da visão de mundo adolescente de Holden, que acabaria moldando a ficção posterior de Salinger, tornando-a cada vez mais egocêntrica e crítica.
As experiências de Salinger na 2.ª Guerra intensificaram seu sentimento de alienação. Segundo Slawenski, a guerra infligiu nele profundas feridas psicológicas, marcando "cada aspecto" de sua personalidade, e reverberando em seus escritos.
Salinger foi hospitalizado em 1945 por distúrbios decorrentes de stress pós-traumático. Em carta a um amigo dizia que, no dia da rendição do exército alemão, estava angustiado, segurando uma pistola na mão - cena que antecipa o final chocante de Um Dia Perfeito para o Peixe Banana.
Ao regressar a NY, escreve Slawenski, Salinger tentou recuperar uma versão da sofisticada vida de Manhattan que ele conhecera antes da guerra (quando namorava a filha de Eugene O"Neill, Oona, e frequentava o Stork Club). Jogava pôquer com amigos, namorava muito e costumava ir regulamente a restaurantes e boates. Entretanto, tinha dificuldade em encontrar o que Slawenski chama de "um lugar "normal" onde pudesse se inserir".
Seu isolamento foi gradativo. Inicialmente, afirma seu biógrafo, ele se mudou para Connecticut, e depois, em 1953, adquiriu uma propriedade numa colina, em Cornish, aldeia de New Hampshire. Na época em que se casou com a jovem Claire Douglas, dois anos mais tarde, levava uma existência austera na qual se dedicava exclusivamente a escrever, meditar e praticar ioga - uma vida, segundo Slawenski, "isenta de hipocrisias e materialismo" que Salinger "repudiara em seus escritos".
Depois do nascimento de sua filha Margaret, em 1955, começou a se dedicar cada vez mais à escrita em um pequeno bunker. Depois de comprar uma fazenda vizinha em 1966, construiu uma casa para si em frente do bangalô da família. Claire pediu o divórcio em setembro daquele ano.
O último livro publicado de Salinger, Hapworth 16, 1924, recebeu uma crítica na imprensa em 16 de junho de 1965, e de 1970 em diante, diz Slawenski, o escritor "cuidou" de sufocar toda e qualquer revelação sobre sua vida particular. Na década de 80, "sua aversão crônica pela correspondência não solicitada passou do terror ao desprezo e medo"; com o tempo, "ignorou não apenas a correspondência de estranhos, mas também as cartas enviadas por familiares e amigos".
O que provocou isso? Não há dúvida de que sua experiência na guerra influiu em seu crescente afastamento, assim como suas crenças religiosas. No fim de 1946, Salinger começou a estudar o budismo zen e o catolicismo místico e, na década de 50, havia abraçado os ensinamentos do místico indiano Sri Ramakrishna. "Desde a época em que concluiu O Apanhador no Campo de Centeio, aderiu à filosofia de que sua obra era o equivalente da meditação espiritual e que a fama, os fãs e a publicidade alimentavam o ego, mas não o espírito."
A biografia também analisa a sua ficção. Slawenski não está preocupado em avaliar os dons de Salinger como escritor: seu ouvido sobrenatural pelo diálogo, sua paixão pela linguagem coloquial, sua capacidade de domesticar as inovações do fluxo de consciência dos grandes modernistas. Ele mapeia as conexões entre vida e arte do autor e os temas recorrentes em sua ficção, mais notavelmente o que Slawenski chama de sua "visão do mundo dividida entre o genuíno e o hipócrita".
Na opinião do biógrafo, depois do Apanhador, Salinger dedicou-se a escrever obras de ficção "de profundo conteúdo religioso, tramas que expunham o vazio espiritual típico da sociedade americana". E afirma que os contos de Nove Histórias narram uma jornada espiritual - desde o desespero de Um Dia Perfeito para o Peixe Banana (no qual Seymour Glass pega uma arma e atira na própria cabeça) à esperança da relação humana de Para Esmé - Com Amor e Sordidez.
Os leitores talvez não concordem com a leitura de Slawenski de determinadas histórias - sua afirmação, por exemplo, de que Teddy, uma enigmática obra que termina com o grito lancinante de uma criança, significa "o poder da fé pela união com Deus" é extremamente discutível - mas seus argumentos são na maior parte fruto de cuidadosa reflexão.
Quanto à explicação de Slawenski sobre a estranha vida de Salinger, ela é marcada por buracos e perguntas sem resposta, o que não deve surpreender, considerando a extrema reticência do seu personagem, sua mania pela privacidade e a dependência do biógrafo de fontes secundárias.
O biógrafo garante que Salinger "sofreu de depressão por muitos anos, talvez durante toda a vida, e às vezes tinha crises tão intensas que não conseguia se relacionar com os outros", mas não investigou realmente fontes anteriores à guerra ou o motivo pelo qual o autor se voltou para a religião como uma maneira de superar seu sofrimento.
"Salinger extravasou sua depressão em todos os seus personagens, mas a alguns deles concedeu alguma esperança ou o "caminho para o bem-estar, frequentemente encontrado graças ao relacionamento humano". Mas embora "o autor muitas vezes compartilhe a dor dos seus personagens, raramente ele consegue curá-la".

TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

Um emirado para Emir

A Casa de Rui Barbosa em busca de transcendência

RESUMO
Prestes a ser nomeado presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, o sociólogo Emir Sader causa polêmica ao anunciar sua intenção de fazer da instituição, tradicionalmente dedicada à preservação de acervos literários e pesquisas históricas, um centro de discussões sobre as realizações do governo Lula.

Rafael Campos da Rocha
MARCELO BORTOLOTI
PAULO WERNECK

UM ESPECTRO RONDA o Ministério da Cultura: o espectro do comunismo.
Não bastasse a polêmica relativa à visão governamental sobre direitos autorais, desde o início do mês a ministra Ana de Hollanda enfrenta a reação de intelectuais contra as políticas que o sociólogo Emir Sader, 67, pretende implementar quando for nomeado para um dos principais órgãos da pasta, a Fundação Casa de Rui Barbosa -o que está na iminência de acontecer. Ao lado do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB), a instituição carioca é referência em diferentes linhas de pesquisa, entre elas os estudos relativos ao modernismo literário e à história da cultura brasileira.

"Precisamos retomar as grandes discussões sobre o país, que sumiram diante da especialização da vida intelectual", anunciou Sader ao jornal "O Globo", em sua primeira manifestação como dirigente da instituição, embora ainda não tivesse nem sequer sido nomeado. "Onde houver um foguinho a gente vai jogar álcool para ter reflexão." Conforme disse em entrevista à Folha, na última quarta-feira, em seu apartamento no Leblon, o que se produz na casa "não é potencializado, não tem temas de muita transcendência".

Foi inevitável: as declarações de Emir Sader soaram como uma espécie de "bullying" de uma instituição de ponta, até então tida como sólida, produtiva e modelar.

BOATOS As ideias de Sader para a Casa de Rui Barbosa transformaram a instituição numa "central de boatos", segundo disse à Folha um pesquisador da casa que não quis ser identificado.
Causaram também apreensão na intelectualidade "de fora" da casa, que viu em seus propósitos desconhecimento das atividades lá realizadas, além de sinais de aparelhamento petista e da intenção de implantar um programa próprio, alheio à produção atual e à vocação da fundação: preservar, estudar e divulgar acervos de grandes intelectuais brasileiros.

Boa parte dos recentes livros de textos inéditos, biografias, volumes de correspondência e edições críticas de autores como Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade tem origem em pesquisas lá realizadas.

POLÊMICA A última polêmica envolvendo Rui Barbosa remonta a 2004, em torno da grafia de seu nome. Enquanto a reforma de 1943 e a própria Casa preconizam a grafia "Rui", com i, os herdeiros da Águia de Haia pleiteiam "Ruy", com "y". Desta vez, porém, a coisa parece ser mais séria.
Emir Sader anunciou à Folha que pretende transformar a instituição num centro de debates sobre "o Brasil para Todos". O uso do slogan do governo Lula não é casual. A seu ver, a redução na desigualdade que teria ocorrido nos oito anos de governo petista não encontrou sua interpretação.
Sader não esconde a intenção de construir em sua gestão o aparato teórico para as realizações do governo. "Quem mais incentiva isso é a Dilma", diz, citando de cabeça uma entrevista dela, publicada em livro organizado por Sader: "Vocês têm que teorizar esse troço, nós estamos fazendo. Nós não temos tempo de pensar os limites, as contradições, os potenciais". Mas isso não caberia, por exemplo, à Fundação Perseu Abramo, do PT? Sader afirma não querer fazer uma discussão "partidária", mas "pública", por isso a necessidade de enraizá-la num órgão governamental.

E a recente tese de André Singer, exposta em artigos na revista "Novos Estudos Cebrap" e na Ilustríssima, sobre as raízes do lulismo, não seria uma "decifração do enigma" Lula, que Sader pretende fazer? Para ele, trata-se de um "ovo de Colombo": "Vai ter trilhões de livros jornalísticos, né? As interpretações do Andrezinho Singer são bem importantes porque são óbvias, né? Chega um limite e ele não avança mais. O lulismo etc. e tal. É descritivo, descreve um fenômeno real, mas não faz a anatomia daquilo."

MINISTRO "O Emir queria ser ministro", disse à Folha uma fonte que pediu para não ter seu nome revelado. De fato, foi grande o seu empenho na campanha de Dilma Rousseff, tendo organizado um encontro da candidata com 300 intelectuais e artistas, entre os quais Chico Buarque. Também organizou um livro sobre o governo Lula, com o assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, e debates sobre o mesmo tema.

A presença magnética de Chico Buarque no evento, vista como determinante para a adesão dos intelectuais a Dilma, ironicamente teria bloqueado as pretensões de Sader, que viu a irmã do compositor e romancista sendo alçada à cabeça da pasta. A Casa de Rui Barbosa seria, então, um "prêmio de consolação" para ele.

Seus planos, no entanto, são ambiciosos: ele pretende fazer da casa uma ponta de lança para a implantação das políticas do ministério. Além disso, tem a intenção de corrigir, a partir da Fundação Casa de Rui Barbosa, um mal que acredita estar disseminado na universidade brasileira: a "especialização". A casa, disse ele, faz "tudo muito especializado, muito interessante, mas meio de costas para a realidade".
"O que um espaço cultural público pode fazer para superar esse deficit de interpretação?", pergunta-se. A saída seria "renovar temáticas" e trazer "de volta" as "grandes questões", criando "um espaço de debate público sobre temas candentes do Brasil".

TRANSCENDÊNCIA Entre os intelectuais, ficou a sensação de que Sader não reconhece o caráter público dos estudos literários, jurídicos e de história da cultura não alinhados ao marxismo. Não teriam também o que ele chama de "transcendência", sem discutir "temas contemporâneos" -cujo foco, no caso, é o "Brasil de Lula".

Sem querer reagir publicamente a um presidente que ainda não foi nem sequer nomeado, restou à equipe da "Casa Rui", como é conhecida, o proverbial bom humor carioca. O burburinho dos corredores passou a especular sobre a conveniência de entoar a "Internacional" pela manhã; se o jardim onde Rui Barbosa eventualmente fazia a sesta seria transformado num canavial -ou se, no pior cenário, todos seriam enviados a Cuba para cortar cana.

Fora da casa, as reações não demoraram a chegar -e sem o recurso do "off the record", em que as fontes dão informações a jornalistas com a condição de não serem identificadas no texto. Em entrevista à Folha, a pesquisadora do IEB Telê Ancona Lopez afirmou: "É preciso entender como as coisas são antes de sair propondo soluções demagógicas. O acervo da casa suscita e pode suscitar debates contemporâneos sem precisar recorrer a palavras de ordem", diz.
O crítico literário Luiz Costa Lima qualifica o pensamento de Sader como "marxismo parnasiano". "Não é possível ter uma análise da sociedade sem levar em conta todos os seus aspectos", diz ele. "E esta linha de pensamento tende a achar que a análise cultural é uma besteira, que o mais importante é a questão econômica."

O historiador José Murilo de Carvalho, que escreveu o clássico sobre a primeira república "Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que não Foi" (1987) enquanto pesquisava na casa, afirmou à Folha: "Transformar uma casa que pertenceu a um ícone do liberalismo que foi Rui Barbosa num espaço justamente para seus inimigos ideológicos seria uma grande traição", diz.
Para outro historiador, Ronaldo Vainfas, que lá trabalhou na década de 1980, "discutir assuntos de esquerda não tem a ver com a história da casa. Quando qualquer instituição fica muito politizada, a pesquisa sai perdendo". Segundo ele, os "grandes temas" mencionados por Sader não passam de grandes bandeiras ideológicas.

No âmbito jurídico, Aurélio Wander Bastos, professor na Universidade Candido Mendes, frisou em carta a "O Globo" que os estudos sobre jurisprudência realizados na casa "muito contribuíram para o moderno conceito de súmula vinculante", quando uma decisão do Supremo passa a valer automaticamente em casos semelhantes julgados em instâncias inferiores.

MARXISTAS X TROPICALISTAS A briga de certa forma reedita uma velha disputa travada na esquerda brasileira. De um lado, estão os marxistas, que veriam na atividade cultural um instrumento de conscientização política, descendentes dos Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE dos anos 60. De outro, intelectuais com formação na esquerda "tradicional", porém filtrada por experiências culturais pós-modernas, como o tropicalismo, Maio de 68, o cinema novo e a poesia marginal -todas elas fundamentais para entender o Brasil nas últimas décadas, sobretudo as articulações entre cultura erudita e cultura popular.

Ao absorver manifestações que vão da literatura de cordel à caricatura e o humorismo, da crônica jornalística à correspondência privada, esses intelectuais deram dimensão política a temas que até então ficavam restritos a uma esfera puramente "cultural", e desviaram a produção intelectual do monopólio dos "grandes temas" do marxismo, aos quais Emir Sader quer voltar.
Boa parte dos pesquisadores da Casa Rui tem esse perfil, inclusive o atual presidente, José Almino, que é poeta, letrista de canções populares e amigo de Caetano Veloso. O compositor comprou a briga e criticou Sader em sua coluna no jornal "O Globo": "Ruim mesmo foi a entrevista de Emir Sader que li sobre sua entrada na Casa de Rui Barbosa".

Caetano disse ter a sensação de "empobrecimento de visão" ao ler os nomes que Sader pretendia levar para as discussões na Casa Rui, "figuras marcadas da esquerda oficial", como Slavoj Zizek, Eduardo Galeano e Marilena Chaui. "Gosto de Marilena", escreveu Caetano, "mas não de sua cantilena contra a mídia para absolver mensaleiros. Refrão que Sader repete na entrevista. Tou fora."
"O Caetano ziguezagueia, fala qualquer coisa", rebateu Emir. "O Gil foi ministro, tem que ter mais coerência, tem que fazer política. Quem diria que aquele nego baiano tem muito mais articulação do que o Caetano?"

Por que Caetano teria entrado na briga? Por temor de perder influência? "Caetano nunca teve influência. Ele fala, causa um certo frisson na praia, 'Ah, o Caetano falou'. Isso faz parte desse pequeno universo que a imprensa forma, mas não me afeta." E crava: "O Caetano é um cara conservador, tradicional, e o Gil é um cara inovador, com o qual eu me identifico".

INTRANSCENDÊNCIA Na entrevista à Folha, as tentativas de contemporizar não esconderam as críticas, ainda que sub-reptícias, feitas às atividades da casa.

O que Emir Sader destaca na produção da Casa Rui? "Eu vou fazer injustiças... A [historiadora] Isabel Lustosa faz um trabalho legal, a [crítica literária] Flora Süssekind... Mas aí é dizer mais ou menos o óbvio, né. A Lia Calabre, na parte de políticas culturais... Eu não conheço direito, não conheço por ignorância minha, mas não conheço por intranscendência da Casa. Você olha aquilo lá e não sabe em que momento do país aquilo foi produzido. Eu também não me informei muito. As coisas da casa não chegaram a mim. E lá de dentro não saiu essa transcendência, de colocar temas importantes".

Na prática, não parece haver tanta margem para alterar os rumos da instituição, cujos pesquisadores têm estabilidade e cujas verbas, como é a regra nas instituições culturais brasileiras, são escassas. O ministério passará pelo recém-anunciado corte de gastos federais: conforme diz Emir Sader, "tem o corte, o orçamento é menor, e tem dívidas. Desde março não se repassou nada aos Pontos de Cultura. Teve uma manifestação em Brasília. Está estourando na mão da [ministra] Ana [de Hollanda] porque ela fica quieta, é meio autista."

A estratégia será batalhar para abrir concursos públicos -o último foi em 2002, no governo FHC- e aumentar a quantidade de bolsas de pesquisa, além de contar com a progressiva aposentadoria dos atuais pesquisadores. E promover seminários.

SEMINÁRIOS Entre as discussões que Sader pretende organizar, está um debate sobre propriedade intelectual -questão particularmente espinhosa numa instituição que lida com a propriedade intelectual em sua materialidade (cartas, diários, documentos pessoais, rascunhos). Para pesquisar e publicar o material da Casa Rui, é preciso, nos termos da lei, autorização dos detentores de direitos autorais -agentes literários e herdeiros volta e meia idiossincráticos ou exigentes.

Debates sobre questões de gênero e direitos humanos também estão na pauta: "Vamos voltar a discutir a questão da comissão da verdade, vamos trazer experiências argentinas, uruguaias, chilenas". E os direitos humanos em Cuba? "Pela demanda da [secretária] Maria do Rosário, é experiência de comissão da verdade, se avançaram, se não avançaram. Experiências similares: Uruguai, Argentina, Chile, basicamente."

E um dissidente cubano, teria lugar na discussão sobre direitos humanos? "É diferente, a polarização cubana. É tão 'Guerra Fria' ainda, contra e a favor, que quem sai vai de tal maneira para a direita... se é que não acaba em Miami". Sader ficou conhecido por ter justificado o fuzilamento de dissidentes cubanos em nome da soberania do país, em 2003.

TESOUROS Nos arquivos da Casa Rui repousam tesouros: potenciais livros de correspondência, documentos pessoais que fariam a alegria de pesquisadores, editores e leitores. Criada a partir de um museu-biblioteca fundado em 1928 pelo presidente Washington Luís para preservar, estudar e divulgar o legado do intelectual baiano, a Casa Rui tornou-se, nos últimos 30 anos, uma instituição de ponta na área dos estudos literários, da Primeira República e de história da cultura, além da vocação natural para estudar o direito e a copiosa produção de Rui Barbosa entre 1849 e 1923.

A instituição funciona na rua São Clemente, uma das mais bonitas do Rio, que começa na praia de Botafogo e termina aos pés do Corcovado, que se deixa ver cenograficamente ao fim da rua, entre nuvens. Rui Barbosa comprou a casa em 1893 e lá morou de 1895 até morrer, em 1923. Além dos livros e da papelada, lá estão guardados os bens da família -por exemplo, os veículos que pertenceram a Rui (honrando o estilo do patrono, são chamados de "viaturas" nas publicações da casa).

É vasta a lista de trabalhos relevantes lá realizados. Para citar apenas alguns exemplos, foi ali que Antonio Houaiss escreveu um monumento sobre edição de livros no país: "Elementos de Bibliologia" (1967). Também foram realizados trabalhos relevantes na área de filologia, como o "Vocabulário do Português Medieval", de Antônio Geraldo da Cunha, e o levantamento de manuscritos de autores como Álvares de Azevedo, José de Alencar e Cruz e Souza.

Mais recentemente, foi feito o preparo de uma edição crítica dos primeiros livros de poesia de Carlos Drummond de Andrade, por Júlio Castañon Guimarães, que também assina o estabelecimento de texto do volume de "Crônicas Inéditas" de Manuel Bandeira (Cosac Naify). A produção de Drummond para os jornais ainda inédita em livro foi levantada pela pesquisadora Isabel Travancas.
ACERVOS No Arquivo-Museu de Literatura, com acesso restrito a pesquisadores autorizados, há 123 acervos de intelectuais centrais no modernismo brasileiro, entre os quais Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Pedro Nava -e por aí vai. Esse material é organizado, anotado e estudado por uma equipe de pesquisadores que goza de uma autonomia inexistente nas universidades, cada vez mais burocratizadas. Os pesquisadores não são obrigados a dar aulas e têm liberdade de escolha para encaminhar seus estudos. As equipes de pesquisa prestam contas em relatórios anuais que detalham sua produção.

É significativo que a especialidade da Casa -a conservação e a pesquisa de acervos- tenha se dado justamente sob a égide de Rui Barbosa, o homem que mandou queimar os arquivos dos senhores de escravos que reivindicavam indenização do Estado após a Abolição. A queima, cujo objetivo seria inviabilizar qualquer tipo de pleito financeiro por parte dos senhores de escravos, prejudicou gravemente o atual conhecimento do mercado negreiro no Brasil da Abolição.

O caso foi estudado por um pesquisador da Casa, Eduardo Silva, no livro "Rui Barbosa e a Queima dos Arquivos", publicado pela Casa Rui em 1988 e vendido no site da fundação por R$ 10. Entre as pesquisas que Eduardo Silva realizou na casa, está um trabalho que revelou a existência de um quilombo fundado no Leblon, analisado no livro "As Camélias do Leblon" (Companhia das Letras).

SEMENTE Em 1973, Drummond publicou em sua coluna no "Jornal do Brasil" o texto "Em São Clemente, 134".
"Poucas pessoas souberam (ou perceberam)", escreveu o poeta, "que alguma coisa de novo aconteceu numa velha mansão da rua São Clemente, ao findar o ano, em honra e benefício das letras. Sem alarde, inaugurou-se na Casa de Rui Barbosa o Arquivo-Museu de Literatura, possível semente de outros".
Mais adiante, ele pede ao escritor João Condé que envie ao Arquivo-Museu "algumas das inúmeras riquezas dos seus 'Arquivos Implacáveis', que nem por isso ficarão menos implacáveis e mais pobres, tá bom?". E arremata: "Colecionador ou não colecionador, que tenha em casa um retrato, uma carta, um poema, um documento de escritor brasileiro digno do nome de escritor, e pode com ele 'enulentar' [sic] o arquivo-museu menino, dirigido pelo espírito público de Plínio Doyle na Casa de Rui Barbosa: faça um 'beau geste' [gesto nobre], mande isso para São Clemente, 134, e terá oferecido a si mesmo o prêmio de uma satisfação generosa".

Scliar consolidou a temática judaica na literatura brasileira (Michel Laub)

É sempre difícil falar da obra de um escritor tão prolífico quanto Moacyr Scliar.

Da estréia com "O Carnaval dos Animais (1968) até o elogiado "Eu Vos Abraço Milhões" (2010), foram algo como 70 livros entre romances, coletâneas de contos, crônicas, ensaios e infanto-juvenis. Um conjunto heterogêneo, naturalmente, tanto nos temas e na forma quanto no resultado --que, em seus melhores momentos, teve registros que iam do fantástico/mítico em "O Centauro no Jardim" (1980) ao realismo histórico de "A Majestade do Xingu" (1997).
Os manuais e enciclopédias do futuro devem creditar a ele, na esteira do pioneirismo de Samuel Rawet (1929-1984), a consolidação da temática judaica na literatura brasileira. Mais amplamente, das questões que envolvem imigrantes na sociedade moderna do país.
Nos anos 70, quando Scliar se firmou na geração que tinha João Antonio, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Angelo e outros tantos nomes menos ou mais engajados, os sentimentos característicos desse tipo de personagem --sua estranheza e ambiguidade diante de uma realidade muitas vezes hostil-- de alguma forma ganharam ressonâncias políticas condizentes com o espírito da época.
Mas o traço que mais define o autor talvez seja o de contador de histórias. Influenciado por tradições ancestrais como a narrativa oral e a parábola bíblica, poucas vezes ele se colocou acima de seus enredos, tanto em termos de estilo quanto de uma suposta sofisticação psicológica.
Para muitos que o conheceram ou trabalharam com ele --amigos, colegas, as dezenas de jovens escritores para quem ele escreveu prefácios, os editores de jornais e revistas que ele salvou de inúmeras emergências em prazos exíguos--, era como se esse procedimento literário, que transpirava interesse pelos pequenos dramas e comédias humanos, fazendo com que isso chegasse ao leitor da maneira mais despojada e saborosa possível, reproduzisse um traço pessoal seu: a generosidade.

Michel Laub é autor dos romances "O Segundo Tempo" (2006) e "O Gato Diz Adeus" (2009), ambos lançados pela Companhia das Letras

Os pobres e os ricos do Nordeste (Suely Caldas)

Nos últimos dias o Nordeste ganhou destaque duas vezes na mídia: em Barra dos Coqueiros (Sergipe), a presidente Dilma Rousseff fez sua primeira reunião com governadores locais; na quinta, o Ministério da Justiça divulgou o Mapa da Violência 2011 - Os jovens do Brasil, despontando os Estados nordestinos como "campeões da violência", título tomado do eixo Rio-São Paulo.

Ao criar a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, o economista Celso Furtado queria levar progresso para a região mais pobre do País com projetos financiados com dinheiro público. Em sua cabeça, a justiça seria feita, transferindo renda de Estados ricos do Sul e Sudeste para desenvolver os pobres do Nordeste. Meio século depois, quase nada mudou e o Nordeste segue pobre, subdesenvolvido e subnutrido. Com exceção de José Sarney, do Maranhão, os coronéis, donos do poder naquela época, aposentaram-se ou morreram, mas a elite política local - com raras exceções - ainda usa a pobreza como argumento para arrancar dinheiro de Brasília.

Da presidente Dilma, ouviu-se um rotundo "NÃO" em resposta a duas demandas: criar uma nova CPMF para financiar a saúde e alterar o indexador para reduzir dívidas com a União, o que implicaria jogar no lixo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário de seu antecessor, Dilma não fez demagogia, recusou os pedidos no ato, sugeriu que administrassem melhor o dinheiro da saúde e procurassem crédito em fontes como o Banco Mundial.

A pesquisa sobre violência mostra mudanças que refletem a ação ou omissão, competência ou fracasso das gestões estaduais de políticas de combate ao crime. Entre 1998 e 2008, enquanto São Paulo reduziu em 62,4% o número de homicídios, a Bahia aumentou em 237,5%; o Maranhão, em 297%; o Pará, em 193,8%; e Alagoas, em 177,2%. Segundo o pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz, em São Paulo "o aparato repressivo foi recuperado, as polícias foram depuradas, as investigações ganharam nova tecnologia e o sistema de informação melhorou". Ou seja, a ação eficaz e a correta aplicação dos recursos deram bons resultados. Já no Nordeste, explica, surgiram novos polos econômicos, a população em torno cresceu, mas o Estado não acompanhou, manteve-se ausente.

A persistência da pobreza no Nordeste é muito mais decorrente da incompetente (e muitas vezes mal-intencionada) gestão dos políticos locais do que da falta de recursos públicos. O dinheiro sai de Brasília, passa pelo governo do Estado, mas não chega à população. Os serviços públicos não funcionam e a multiplicação de fraudes e escândalos de projetos fantasmas da Sudene prova que há uma elite de empresários, políticos e seus amigos e parceiros que retêm indevidamente o dinheiro. Há governadores que resistem e outros que cedem (ou são compadres) a lobbies para suprir gastos de campanha eleitoral ou engordar patrimônios privados.

A pesquisa aponta Alagoas como o Estado campeão em mortes e onde a violência quase triplicou - cresceu 2,7 vezes em dez anos. Em vez de gerir o dinheiro com eficiência, é um dos mais rápidos e persistentes em correr a Brasília quando a situação aperta.

Em 1995, quando a queda da inflação tirou a máscara da contabilidade dos governos, Alagoas tinha três folhas de salários atrasadas, as polícias (civil e militar) entraram em greve, as escolas fecharam, os hospitais entraram em colapso, o Judiciário entregou as chaves do tribunal ao STF. Alagoas vivia um caos nunca visto. O dinheiro nos cofres públicos pingava porque o ex-governador Fernando Collor abdicou da principal fonte de arrecadação de impostos ao isentar os usineiros de açúcar do pagamento do ICMS. O governador que o sucedeu, Divaldo Suruagy, correu a Brasília atrás de dinheiro. FHC negou e despachou para Alagoas um interventor federal para tirar o Estado do caos.

Pois bem. Na reunião com Dilma, na segunda-feira, foi justamente o governador alagoano, Teotônio Vilela (PSDB), o primeiro a defender a mudança do indexador para reduzir o pagamento das dívidas do Nordeste com a União.

Jornalista e professora da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sábado, 26 de fevereiro de 2011

‘À la’ Tarantino (José Miguel Wisnik)

Quando fui convidado a dirigir a Funarte, na gestão de Gilberto Gil, nem por um segundo pensei em aceitar. Não tenho vocação para funções administrativas, me perco nos emaranhados técnico-burocráticos, e minhas ambições e desejos só se reconhecem na escrita, no ensino e na música. Não tenho nenhuma intimidade com os complicados lances da gestão pública. O fato chamativo para mim, ao voltar ao assunto, é que a passagem do bastão da cultura do governo Lula para o governo Dilma tem produzido fagulhas, faíscas, fumaça e princípios de incêndio. Nem sempre é fácil saber exatamente onde está o fogo. Entre o realinhamento mais ortodoxo das demandas internas do PT, depois de um estado de exceção política dado pela escolha heterodoxa de Gil, e a definição de um perfil próprio da ministra Ana de Hollanda, que ainda está em andamento, questões controvertidas e, mais que isso, recalcadas, vieram à tona.

É curioso que o espectro dos anos 60 tenha voltado a pairar sobre o panorama. Gil ele mesmo já era um sinal disso, inseparável dos grandes temas culturais disparados pela música popular do período. Na simbologia da escolha de Ana de Hollanda conta certamente, além do fato de ser mulher, e do seu currículo de esquerda, a mística do nome Buarque de Hollanda. O seu vínculo com a defesa do formato já estabelecido para o direito autoral contra as inovações propostas por Gil e Juca veio, de quebra, como um indicador sintomático das tensões latentes entre o MinC anterior e setores musicais organizados em torno da defesa do formato atual do Ecad e do combate sem tréguas à pirataria (que tem não poucas analogias com as contradições do combate às drogas).

Caetano Veloso tornou-se também um protagonista da discussão ao chamar as posições contrárias para uma explicitação mais precisa dos seus pontos de vista, oferecendo-se como possível mediador e, no processo, acabando por identificar-se mais com os críticos das inovações internéticas do que com seus defensores. Caetano passa do princípio liberal da livre expressão para o princípio liberal da livre competição, assegurado historicamente ao proprietário de matrizes na época da “repetição” (“Ninguém toca em um centavo dos meus direitos”). Por um motivo a ser esclarecido, no entanto, os defensores corporativos da universalidade dos direitos autorais veem a livre flexibilização, por aqueles autores que assim o queiram, e para o universo de suas próprias obras, como uma ameaça à universalidade daqueles direitos. Esse é um foco gerador de mal entendidos e de fantasmas que o estado atual da discussão terá que ultrapassar.

Na última semana a imprensa conseguiu finalmente o que tenta há muitos anos: desencadear a troca de farpas explícitas entre Gilberto Gil e Caetano Veloso. Segundo a “Folha de S. Paulo”, Gil quer que Caetano saia da posição dos que falam do assunto sem ir aos pontos reais em jogo na abertura a novas opções de vínculo autoral. Caetano responde que Gil tem uma visão algo deslumbrada da internet, e diz temer, nas ilusões do processo, a implosão do Ecad, a instituição arrecadadora em música, à maneira do que aconteceu com a Embrafilme no período Collor. (Eu gostaria de saber onde Caetano localiza exatamente esse temor de um semelhante desmanche.)

A complexidade da cena inclui ainda outro personagem significativo. Ocupando a direção do respeitado monastério da pesquisa histórico-literária que é a Casa de Rui Barbosa, Emir Sader reclama para esta uma posição de intervenção ativa e politizada. Contrapor-se à especialização da vida intelectual retomando “as grandes discussões sobre o país”, agitando o clima cultural, é uma ambição enérgica para a instituição, embora soe deslocada diante da antiga vocação documental da Casa. Sader fala em trazer para o debate as vozes da esquerda que não têm espaço na mídia, e em fomentar a reflexão sobre o Brasil à altura dos grandes momentos históricos, como o período getulista (Caio Prado, Gilberto Freyre, Mário de Andrade) e os anos 50-60 (CPC, Bossa Nova, Iseb, teatro, Darcy Ribeiro, sem citar o tropicalismo). Diferentemente dos quadros mais fisiológicos do PT cultural, assume uma posição ideológica que, sem dizer, marca posição contra a gestão anterior.

A posição política de fundo, em Gilberto Gil, em sintonia com a sua poética e presente nos Pontos de Cultura, é a de fermentar o todo. O todo é a capacidade humana de criar-se e recriar-se, capacidade a ser reconhecida democraticamente em toda parte onde ela aconteça. A visão cultural de fundo, em Emir Sader, é de contrapor ao todo (no caso, a totalidade social administrada, a mídia, o capital) uma teoria crítica capaz de evidenciar as relações de poder que o comandam. Nesse caso, trata-se de identificar as vozes capazes de exercer essa crítica e levá-la à “massa da população” inconsciente do debate.

Quanta coisa aí lembra vagamente uma complicação atualizada do debate interrompido em 1968. Só que, numa cena à la Tarantino, Emir Sader (empossado por Ana de Hollanda) aponta Gil que aponta Caetano que aponta Emir Sader. A leitura pode ser invertida: Caetano aponta Gil que aponta Emir Sader que aponta Caetano. Se prevalecer a luta de facções dentro do campo cultural, esta será a melhor alegoria do todo, engolfando consigo inclusive a nossa mais amada canção popular. Se prevalecer a vontade de esclarecer obscuridades contidas nas grandes mudanças, quem sabe não seja este, mesmo, e muito maior que todos nós, um grande momento?

Bloco Regional da Nair - 27 fev - 12 h

O bloco Regional da Nair é um dos mais tradicionais blocos de rua do carnaval de Vitória. Desde 1912 ... ops! calma, vamos tentar mais uma vez:
O Bloco está no seu primeiro ano com a intenção de resgatar carnavais de rua.
A Banda Regional da Nair já existe há tres anos e tocava sempre descompromissadamente em bares e casas de amigos.
Quem organiza são uns caras da área de Comnicação: publicitários, jornalistas, cineastas, mais músicos locais, essas coisas.
Certamente, o Bloco almeja botar na rua os moradores do Centro, pessoal da Piedade, carnavalescos da velha guarda, aspirantes a carnavalescos, simplesmente foliões, boemios, poetas e outros espécimes de bebados.
Vai sair, nesse domingo, 27, da rua Sete e para ajudar pagar custos do Bloco estão vendendo uma caneca do Regional por cinco reais.
A caneca foi patrocinada por tradicional Casa que reúne circunspectas senhorias de Vitória e adjacências, que, ciente de sua responsabilidade social, participa do patrocínio do evento: a Playman.
O carnaval de Vitória já tem uma nova história.

Faraós, califas, mulás, sovietes e mandarins (Ricardo Vélez Rodríguez)

A revolta que assombra os países islâmicos coloca uma questão: as respectivas sociedades, em que pese a diversidade delas, na Tunísia, no Egito, na Argélia, no Iêmen, no Irã, na Líbia, no Marrocos, no Bahrein, etc., buscam uma coisa: melhores condições de vida, liberdade e participação. Tudo isso comunicado, em rede, pelas pessoas, driblando controles policiais e censuras. Um primeiro capítulo dessa onda libertária ocorreu no final do século passado, quando desabaram as ditaduras da União Soviética e do Leste Europeu e quando os cubanos fugiram em massa para Miami, no episódio conhecido como os "Marielitos", na época do governo Reagan. Terremoto semelhante ocorreu na China, com a ocupação da Praza da Paz Celestial pelos estudantes, primeiro, e, depois, pelos tanques.

Uma conclusão salta à vista: o que os revoltosos de ontem e de hoje procuram é o que sempre foi apregoado pelas democracias liberais: liberdade de ir e vir, liberdade para empreender negócios, liberdade de pensamento e expressão, liberdade para as mulheres e para as minorias, controle da sociedade civil sobre o aparelho do Estado, conquista do conforto como expressão do desenvolvimento econômico, tolerância, pluralismo, enfim, tudo aquilo que as elites corruptas dos países sacudidos pela onda de insatisfação negam aos seus cidadãos.

Palmas para o liberalismo que consegue, em pleno século 21, seduzir com os seus ideais as grandes massas dos países que ficaram por fora das reformas ensejadas no Ocidente pelos seguidores de Locke, Tocqueville e Adam Smith. Os ideais liberais superaram a prova da História, não ocorrendo assim com os ideais totalitários de Marx e quejandos.

No final da primeira década do século 21 encontramos, consolidada pela opinião pública mundial, a modalidade de Estado contratualista estudado pelos liberais doutrinários e por Max Weber. Segundo o pensador alemão e os seus precursores franceses (Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville, etc.), ali onde houve uma experiência feudal completa, as respectivas sociedades se diversificaram em ordens diferentes de interesses, que ensejaram o surgimento das classes sociais, sendo o jogo político uma luta entre elas. Esse processo ensejou o moderno parlamentarismo, civilizada arena onde se realiza o confronto entre interesses diversos, abandonando o campo da guerra civil. A alternativa a esse modelo liberal ficou por conta do pensamento de Rousseau, ao longo dos três últimos séculos, que consolidou o ideal da democracia totalitária, alicerçada na unanimidade construída mediante a eliminação da dissidência.

Ora, a luta que observamos presentemente é uma reação de sociedades dominadas por ditaduras, que se constituíram em herdeiras do velho despotismo oriental. O que egípcios, tunisianos, iemenitas, iranianos, chineses dissidentes, etc. buscam é a substituição do modelo do patrimonialismo hidráulico por arquétipos inspirados na prática da representação política e de respeito aos direitos individuais. Ora, isso é possível, inclusive no seio de sociedades diferentes das ocidentais. A Turquia encarna hoje, por exemplo, um regime que se aproxima das modernas democracias.

As ditaduras somente são aceitáveis para aqueles que dominam, jamais para os dominados. Como dizia Talleyrand, a raposa aristocrática, a Napoleão: "Sire, as baionetas servem para muitas coisas, menos para se sentar encima delas." Ou seja: você, governante, quer estabilidade? Construa a livre participação dos seus cidadãos! Essa, aliás, foi a genial lição que o nosso precursor liberal Silvestre Pinheiro Ferreira passou ao seu chefe, Dom João VI, no final da primeira década do século 19, nas suas famosas Cartas sobre a Revolução Brasileira.

Faraós, califas, sovietes, mulás e mandarins jamais conseguiram - nem conseguirão - satisfazer às suas respectivas sociedades, porque está viciado, ab origine, o modelo de patrimonialismo oriental em que se inspiram e que se define como a organização do Estado como se fosse propriedade familiar de uma casta, de um czar ou de uma oligarquia.

Chamou-me a atenção uma reportagem que li num jornal canadense no ano passado: o maior grupo étnico de milionários que busca residência no Canadá é constituído pelas famílias de altos dirigentes chineses. O repórter indagava acerca das razões dessa preferência. O motivo alegado por eles era bem curioso: a China, sim, é uma grande potência econômica e política. Mas ninguém tem certeza de que as conquistas de bem-estar atingidas pela elite - calculada em 400 milhões de pessoas - serão garantidas para as próximas gerações. Assim sendo, os mandarins cuidam para que as suas famílias passem a gozar das benesses do desenvolvimento, não na terrinha (pátria do despotismo hidráulico), mas ali onde estão garantidas, por uma longa tradição liberal, as conquistas dos indivíduos. Ou seja: a China pode ser uma grande potência, mas não é o paraíso, mesmo para as famílias dos seus dirigentes, que preferem um país desenvolvido do Ocidente para ali gozarem as benesses do progresso e do conforto, com a certeza de que esses direitos serão garantidos num clima de liberdade.

A América Latina, na trilha do populismo da última década, abjura justamente o liberalismo e fica presa à manutenção de odiosos privilégios oligárquicos (vide os pactos realistas do partido governante no Brasil com ícones da oligarquia nordestina, que ainda conseguem manter sob censura o mais importante diário do País, justamente por ter sido denunciada nas suas páginas a prática de arcaico patrimonialismo). Nesse ponto, o Brasil consegue ser ainda mais retardatário que o Egito, onde caiu o faraó de plantão, enquanto nós mantemos, felás pagadores de impostos, os privilégios de odiosa nomenclatura em que se converteu a nossa classe política.

COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF

Os outonos (Míriam Leitão)

Todo patriarca, todo autocrata têm seu outono. E eles se parecem no seu final mais do que no início. Delirantes, de óculos escuros, criminosos. Não fosse pela roupa, Muamar Kadafi poderia se passar por Augusto Pinochet com aqueles óculos escuros. A primavera dos povos da África sob regimes tirânicos ensina o resto do mundo sobre seus erros e prenuncia novas mudanças.

É preciso rever conceitos. O professor Hani Hazime, libanês de nascimento, brasileiro naturalizado, e especialista em estudos islâmicos da UFRJ, ensina até novas definições:

- Oriente Médio é conceito errado. Oriente é onde nasce o Sol, que é China e Japão. Os árabes não são orientais. A cultura árabe está baseada na herança judaico-cristã e helênica. A religião é monoteísta, todos filhos de Abraão. O Norte da África é tratado como parte do Oriente Médio.

Enfim, tudo está em revisão a partir das revoltas que pedem mudanças em toda uma vasta região governada por regimes autocráticos. O diplomata Roberto Abdenur não tem dúvida de uma coisa: estamos diante de um processo revolucionário:

- Houve dois momentos revolucionários na segunda metade do século XX. As rebeliões estudantis de 1968, na França, e a queda do muro de Berlim. A primeira alterou comportamentos, foi uma revolução generacional. A segunda mudou a geopolítica, com o fim do comunismo, extinção da União Soviética e democratização dos países da região. O que está acontecendo agora nesta extensa e nevrálgica área do mundo é uma revolução. Não sabemos o que vai dar, haverá desfechos variados, mas é saudável e positivo que centenas de milhões estejam se libertando de governos autocráticos e de oligarquias.

Conversei com os dois no programa da Globonews. O assunto parece infindável. O executivo de uma empresa brasileira na Líbia disse há dez dias aos superiores no Brasil que tudo estava tranquilo em Trípoli. Ontem, já tinha retirado seus funcionários e abandonado as instalações. É espantosamente rápido como os processos se espalham. Hoje, tudo parece instável. Isso assusta a economia e alimenta esperanças na política. A médio prazo, lembra Abdenur, haverá a verdadeira estabilidade, porque o que parecia estável até agora era uma panela de pressão.

Hani Hazime acha que o que aconteceu até agora contraria a visão tradicional do Ocidente em vários pontos.

- Foram revoltas de jovens. Mais da metade desses países é formada por jovens. São multidões e não partidos políticos. Usam meios modernos, o que derruba o preconceito de um Islã avesso à modernidade. Não há religião até agora envolvida. Eles estão pedindo liberdade e democracia, o que o Ocidente dizia que não condiz com o Islã - diz o professor.

Abdenur alerta que cada país é uma situação:

- Afastados Ben Ali e Hosni Mubarak, começa uma transição política na Tunísia e no Egito tutelada pelos militares, mas sob forte pressão da opinião pública. Na Líbia, é diferente. Lá, o poder político estava concentrado em uma pessoa só, tem muito impacto na economia mundial, que não pode se ver sem 1,5 milhão de barris de petróleo e, dependendo da evolução, pode virar uma Somália no Mediterrâneo.

O grande peão é a Arábia Saudita. País que, como lembrou Abdenur, tem vivido há 80 anos a estranha situação de ter o nome de uma família: os Saud. Hani Hazime ilustra mais essa questão, lembrando que lá, na estrutura do poder, estão seitas radicais islâmicas.

- O golfo árabe não é árabe; em alguns países a maioria da população é paquistanesa ou indiana. No Bahrein, o conflito é religioso, parecido com o do Iraque, em que a maioria xiita é oprimida por uma minoria sunita. A grande pergunta é se as mudanças chegarão à Arábia Saudita. Acho difícil. Lá, atuam radicais islâmicos, como a seita wahabista, que foi adotada pela família real, e que usa isso e o fato de ser sede das duas cidades sagradas, Meca e Medina, para se impor. Lá, ninguém levanta a voz. Não haverá qualquer mudança sem ajuda externa. Isso não quer dizer invasão, mas sim conversas com a oposição, convencimento do governo, pressão por reformas - diz Hazime.

Abdenur, que já foi à Arábia Saudita várias vezes, lembra também que lá nasceu a Al Qaeda:

- Nos outros países, os regimes são desafiados pela esquerda. Na Arábia Saudita, há pressões por reformas, mas o principal risco é o regime ser assaltado pela direita, porque o principal alvo de Bin Laden sempre foi a derrubada da monarquia saudita. Outras monarquias da região têm mais enraizamento: a do Marrocos é um líder religioso e o da Jordânia representa os beduínos. Em alguns países há clamor por reformas, em alguns casos se soma a exigência de queda do ditador.

Hani Hazime disse que um grande teste será como o Ocidente vai lidar com os ventos da democracia sobre os territórios ocupados por Israel, onde os palestinos, ele diz, são tratados como cidadãos de segunda classe. Ele acha que o mundo Ocidental esqueceu seus valores e se guiou apenas por interesses. E que num momento em que se fala de proteção da Terra é necessário resgatar valores universais. Abdenur acha que o ponto é importante. Pensa que a região que passa hoje por convulsões foi tratada da mesma forma como os Estados Unidos trataram a América Latina na guerra fria. Os governos latinos não precisavam ser democráticos, apenas simpáticos aos Estados Unidos.

Aqui, o nosso Gabriel Garcia Marquez transformou em literatura a figura grotesca de um patriarca no seu outono. Eles caíram e tivemos a nossa primavera. Lá, a mudança da estação começou, mas é o tempo apenas do imprevisto.

A Itália de Berlusconi, entre o passado e o futuro (Marco Aurélio Nogueira)

A regra é sábia e deve ser usada com frequência: certos eventos políticos estranhos, por vezes escabrosos, somente podem ser compreendidos quando mergulhados na história das sociedades em que ocorrem. É nas águas profundas da vida social que se escondem as maiores verdades.

Não fosse assim, seria difícil compreender, por exemplo, o que leva um país como a Itália - terra de tradições grandiosas, de história e cultura riquíssimas, de pensadores, políticos e humanistas da estatura de Maquiavel, Gramsci e Bobbio, de partidos como o PCI - a ser governado por Silvio Berlusconi. A "grande Itália" parece paralisada pela "pequena Itália", das máfias e do fascismo, que se move e mostra sua força.

Grosseiro, exibido, bufão, fascista de estilo e convicção, Berlusconi não é certamente um desconhecido. Preside desde 2008 o Conselho de Ministros, mas influi no Estado há pelo menos duas décadas. Megaempresário das telecomunicações, é um milionário poderoso. Controla boa parte da mídia italiana.

Fundou em 1993 o partido Forza Italia, que disseminou uma mixórdia de "teses" em defesa dos valores tradicionais, da liberdade pessoal, da identidade nacional contra os imigrantes, do combate à corrupção, da redução do déficit público, numa mistura oportunista de neoliberalismo e fascismo. Impulsionado pela televisão e abusando do imediatismo e da demagogia, ganhou espaço entre pequenos e médios empresários, profissionais liberais, gente das cidadezinhas e das classes médias urbanas. Venceu as eleições de 1994 e governou com uma aliança abertamente de direita (neofascistas do MSI, separatistas da Liga Norte, correntes cristãs). Demitiu-se sete meses depois, mas se tornou líder e fator de unificação das forças mais direitistas e conservadoras do país.

Combateu encarniçadamente os governos Amato, D"Alema e Prodi, de centro-esquerda, entre 1996 e 2001. Começou, então, a acumular denúncias e processos legais: conluio com a máfia, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, participação em homicídio, corrupção e suborno de policiais, financiamento ilegal de partidos. Não chegou a ser condenado, mas as acusações foram compondo sua persona.

Voltou à presidência do Conselho de Ministros em 2001. Foi derrotado por Romano Prodi em 2006, mas retornou ao posto dois anos depois. Forza Italia já havia então virado Povo da Liberdade.

O populismo histriônico e autoritário de Berlusconi, seu poderio midiático, os interesses econômicos que representa e o sistemático desprezo que nutre pelos ritos, pela Constituição e pelas instituições políticas italianas são uma ameaça permanente à democracia. A Itália decaiu muito no período em que ele tem dado as cartas. A estagnação econômica, o desemprego, o empobrecimento dos trabalhadores são hoje evidentes. A política está corroída pela compra de parlamentares e magistrados, pelo cerceamento das oposições, pelo monopólio da informação. O sistema democrático sangra por todos os poros.

Berlusconi cresceu impulsionado pelo uomo qualunque, o italiano médio, fascinado pelo poder e com certo cafajestismo intrínseco, como observou Geraldo Di Giovanni, da Unicamp. A "pequena Itália" - com sua pequena política, seu localismo provinciano, sua resistência à vida cívica superior e ao Estado democrático - lhe tem fornecido bases e oxigênio. O Cavaliere é uma espécie de alter ego desse universo de italianos, escreveu o professor José Claudio Berghella: "introduziu no Estado italiano um modo camorrístico de fazer política e estruturar instituições."

Sua ascensão, porém, não teria ocorrido sem o esfacelamento ético-político e cultural da esquerda italiana, em particular a de extração comunista, que hoje, desgastada intelectual e organizacionalmente, não é sequer sombra de seu passado. Tem baixa competência operacional, não consegue se unir nem definir um rumo programático. O Partido Democrático, seu maior subproduto, tem sido incapaz de atuar com vigor, coerência e credibilidade. Os diversos grupos que florescem à sua esquerda, menos ainda.

Berlusconi também foi auxiliado pela emergência da "vida líquida" na Itália, pelo capitalismo globalizado e pela disseminação da cultura do espetáculo, que contribuíram para desorganizar as forças do trabalho, minar os partidos políticos e embaralhar a relação entre representantes e representados.

Trata-se de um político pequeno, sem nenhum traço de estadista. Seria uma figura entre o folclórico e o patético, que passaria despercebida não fosse a irrupção em praça pública de suas taras e perversões privadas. Como escreveu Sérgio Augusto no Aliás (20/2/2011), o Cavaliere "abusou do poder, do fisco, da propriedade privada, da coisa pública, do sistema bancário, mas só depois que abusou do sexo virou um caso de polícia promissor".

Acossado por denúncias e revelações sórdidas, Berlusconi está sendo mais uma vez levado aos tribunais, agora por abuso de poder, extorsão e prostituição de menor (a marroquina Karima "Ruby" el Mahroug). Declarou que não está preocupado, mas não pôde permanecer indiferente nem à fixação de seu julgamento para o dia 6 de abril nem ao protesto de centenas de milhares de pessoas que saíram às ruas de todo o país, em 13 de fevereiro, para exigir sua renúncia e sua condenação em nome de "mais respeito pela liberdade e pelos direitos das mulheres". Acusou-as de subversivas a serviço da esquerda, valendo-se de um surradíssimo chavão antidemocrático.

Agora é saber como o futuro mostrará sua face. As reservas democráticas do país podem estar adormecidas e desorganizadas, mas pulsam a todo momento. A sociedade civil mostrou força nas manifestações de rua. Poderá crescer com isso e ajudar a que as oposições democráticas e de esquerda saiam do marasmo, acertem o passo e façam algo para projetar a "grande Itália" no lugar que merece ocupar.

Professor Titular de Teoria Política da UNESP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Reformas moderadas (Luiz Sérgio Henriques)

O diagnóstico da necessidade de uma reforma política parte de um dilema que pode ser assim descrito: por um lado, a convicção de que muita coisa vai mal com os parlamentos e com seus integrantes, cujo nível se percebe como continuamente declinante; por outro, a impossibilidade de um consenso em torno de regras que, supostamente, inaugurariam uma nova era na República.

Temas desse tipo estão longe de ser irrelevantes. Ocorre que suscitam projetos gestados em laboratório, nos quais é possível comparar de modo esmagador, mas falso, suas qualidades teóricas com os vícios do mundo real. O que defendo é o princípio de um reformismo moderado, conduzido consensualmente e controlado pela prática. Nenhuma ilusão, pois, quanto a sistemas de votação que, num passe de mágica, evitariam os males atuais.

O mal-estar com a política e os políticos está disseminado por toda parte. Independentemente de serem os sistemas de tipo proporcional ou majoritário, ou de se adotar lista aberta ou fechada, um traço generalizado é o distanciamento entre instituições e cidadãos, entre representantes e representados. Um abismo que, se não for reduzido, conduzirá mais cedo ou mais tarde a uma deterioração ainda maior da esfera pública.

Não há nada de errado com o sistema tradicional nas nossas eleições. Boas democracias podem perfeitamente se valer do voto proporcional, que tem o mérito de registrar a vontade de parcelas minoritárias e garantir a presença dos "nanicos": estão aí partidos como o PPS, o PV ou o PSOL, cuja ausência no Parlamento seria uma perda para todos.

A lista aberta, que praticamos, aumenta a margem de liberdade do eleitor. A lista fechada, ordenada pelas direções partidárias, em outros contextos tem contribuído para tornar ainda mais "autista" o sistema político, como indica ser o caso da vizinha Argentina.

Melhor seria aconselhar cautela aos reformadores. Pequenas mudanças podem ter efeitos salutares: está aí a internet para possibilitar um controle inédito sobre o financiamento de campanha, o que é decisivo para reduzir abusos do poder econômico. A Justiça poderia melhorar alguns procedimentos, impedindo que se repitam situações pendentes das últimas eleições, como, por exemplo, a validade ou não da Lei da Ficha Limpa - aliás, uma lição de cidadania.

Na verdade, o esclarecimento e a mobilização dos eleitores são indispensáveis para o reformismo moderado aqui defendido. Não seria interessante que assistíssemos, "bestializados", a grandes reformas de resultado incerto e possivelmente frustrante.

Luiz Sérgio Henriques é o editor do site gramsci.org

FONTE: JORNAL O TEMPO (MG)