segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O fim do mundo e a judicialização da política (Luiz Werneck Vianna)

O fim do mundo até que pode estar próximo, mas não será agora, já deixada para trás a presumida data fatídica do calendário maia. E se a sociedade brasileira está fadada a conhecer grandes tumultos, prestes a converter a multidão em potência demiúrgica de uma grande transformação, ainda não foram registrados os indícios promissores de evento tão espantoso, nem se deram a conhecer os seus profetas. Por toda parte, dos sertões mais remotos às periferias dos grandes centros urbanos, de Sinop a Lucas do Rio Verde, ao Complexo do Alemão, dos intelectuais enredados em seus afazeres e rotinas cinzentas do mundo acadêmico, dos movimentos sociais ao sindicalismo, nem as antenas mais sensíveis têm sido capazes, até então, de captar, vindos daí, sinais da tormenta anelados pelos que em desespero com o atual estado de coisas no mundo preferem qualquer outro a este aí.
Desejos fortes, quando contrariados, podem dar asas à imaginação, que passa a ver o seu objeto mesmo onde ele não está, tomando-se a nuvem por Juno, que, ao menos, na mitologia condena o seu autor a um resultado infeliz. Assim é que alguns pintam com cores fortes a controvérsia entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados sobre os efeitos da decisão condenatória emanada na conclusão da Ação Penal 470 como uma crise institucional a semear impasses catastróficos nas relações entre os Poderes Legislativo e Judiciário - o gatilho tão esperado para o "fim do mundo"? -, como se não coubesse a este último o papel de intérprete constitucional da lei.
De fato, sem que se incorra aqui na prática que se dissemina no nosso colunismo político de se arvorar, mesmo quando pagão no tema, nas artes intrincadas dos julgamentos nos tribunais, houve, sim, uma intervenção hermenêutica do STF, necessária, nas claras palavras do seu decano, o ministro Celso de Mello, a fim de harmonizar o sentido de diferentes disposições legais da Carta de 88 e do Código Penal quanto à perda de mandatos eletivos. Por maioria, como se sabe, aquele tribunal julgou incompatível com o exercício de um mandato político o parlamentar que, por meio de uma sentença criminal, seja destituído dos seus direitos políticos.
Diante da decisão, vozes interessadas em degradar o histórico julgamento da Ação Penal 470, no curso do qual se fizeram ouvir razões fortes em defesa da República e de suas instituições com uma ênfase desconhecida nos tempos presentes, acusam-no de fazer parte de mais um capítulo da judicialização da política, uma vez que por meio dela o Judiciário estaria usurpando prerrogativas do Legislativo e desobedecendo ao que seriam as rígidas fronteiras a discriminarem os territórios próprios a eles. O refrão do bardo seria bem lembrado: chamem o ladrão, pois nessa versão é o STF que atenta contra a República.
Com efeito, o tema da judicialização da política é perturbador, especialmente na sociedade brasileira, em que esse fenômeno especificamente contemporâneo já afeta a quase totalidade das relações sociais, da saúde às questões ambientais, passando pelos direitos das minorias - vide a decisão do STF sobre as relações homoafetivas -, e, sobretudo, no desempenho da Alta Corte nas ações levadas a ela para a avaliação da constitucionalidade das leis, quando se confronta com a decisão do legislador. O senador José Sarney, em rompante manifestação feita no recinto do Senado, atribuiu a voga do processo da judicialização a uma autoria certa. Em suas palavras, a que não faltam boas razões, "quem inventou isso foi o PT, que na oposição a qualquer problema batia na porta do Supremo", e que estaria, agora, provando do seu veneno (O Globo, 20/12, página 38).
Sobre a matéria, o deputado Miro Teixeira, no seu décimo mandato pelo Rio de Janeiro, é mais reflexivo, conferindo à chamada judicialização da política um caráter positivo, dado que "serviria de contraponto aos grandes grupos que controlam o parlamento". Mais que isso, indo ao cerne do problema, identifica que na raiz do fenômeno da judicialização estaria a "servidão voluntária" a que se teria sujeitado o Congresso Nacional ao Poder Executivo, "em uma renúncia evidente ao poder que lhe foi conferido" (in coluna de Rosângela Bittar, Valor, 19/12).
Nessas reações de dois políticos relevantes, são suscitadas topicamente as questões que são objetos da bibliografia clássica sobre o assunto: o da agenda da igualdade e dos novos direitos a ela associados, e o das novas relações entre o Executivo e o Legislativo vindas à tona desde que, no segundo pós-guerra, se institucionalizou no Ocidente o sistema do Welfare State (Estado de bem-estar social). Foi, de fato, o PT que difundiu entre nós a agenda igualitária, não se furtando à sua judicialização, como no caso das ações civis públicas em questões de saúde, educação e meio ambiente, com frequência em associação com o Ministério Público, assim como tem sido ele, para os fins dos seus propósitos partidários, quem avassalou o Legislativo, tal como dá noticia a Ação Penal 470.
Como nas lições de Mauro Cappelletti, o Judiciário como Terceiro Gigante nasce dessas grandes transformações (Juízes Legisladores?, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1993), a que, evidentemente, não fomos imunes. Não estamos à beira do fim do mundo, mas de um recomeço dele, inclusive no campo das relações entre os Poderes, cuja marca nova é a da colaboração, e não a do insulamento, e devemos reconhecer com John Forejohn, cientista político americano bem conhecido dos nossos acadêmicos, que, sob as novas circunstâncias do século, "é simplista demais restringir a política ao processo legislativo" (Judicializing Politics, Politicizing Law - in 65, Journal of Law and Contemporary Problems, 41, 2003).
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo (29/12/12)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mal estar na democracia brasileira (Marcus André Melo)

A despeito do regozijo coletivo com o desempenho do STF pelo julgamento do mensalão, há um mal estar entre os brasileiros. Avaliar a democracia em um determinado país exige a consideração preliminar de seu desenho institucional porque este embute trade offs importantes. Certos arranjos institucionais que favorecem a tomada de decisões implicam menor potencial de responsabilização. Da mesma forma, arranjos que garantem maior inclusividade implicam menor eficiência decisória, reduzindo a clareza de responsabilidade e debilitando os mecanismos de accountability. Maior participação de atores com poder de veto, por outro lado, podem garantir maior credibilidade às políticas e menos volatilidade, o que seria desejável em algumas áreas como regulação e política monetária.
Dependendo do critério pelo qual se realiza a avaliação, os resultados obtidos serão distintos.
As instituições não produzem corrupção ou ineficiência
A ciência política produziu nas últimas décadas várias tipologias de desenho institucional: sistemas políticos majoritários versus consensuais, de autoridade concentrada versus difusa, sistemas centrípetos versus descentralistas. As democracias do primeiro tipo - cujo paradigma é a Inglaterra - tendem a exibir governos de gabinete de partido único, bipartidarismo, legislativo unicameral, e estrutura territorial unitária. Além disso, tendem a adotar sistema eleitoral com distritos uninominais, e o poder judiciário exibe baixo ativismo, inexistindo revisão judicial (ou até constituição escrita). Nestes países há grande eficiência em levar a cabo reformas. E grande clareza de responsabilidade quando há fracasso ou sucesso. As democracias do segundo tipo tendem a adotar a representação proporcional e consequentemente prevalece o multipartidarismo e governos de coalizão. São ainda federativas, bicamerais e possuem um judiciário ativista com poderes de revisão judicial, além de contarem com constituições de elevada rigidez. Nelas o padrão é incremental.
Segundo Gerring, um grupo de 34 países de sua amostra de 124 democracias possui escore menor que 3, em uma escala de 0 a 6, que mede o vetor centrípeto. A grande maioria dos países europeus - inclusive Alemanha - está neste grupo. Com escore zero - o mesmo dos EUA - o Brasil é classificado como país com autoridade política difusa. Mas o sistema político brasileiro contém um forte elemento majoritário: um poder executivo forte constitucionalmente. O Brasil representa um caso de híbrido institucional.
Como estas características afetam o trade off referido acima?
Parte do mal estar no país em relação ao funcionamento das instituições reflete o seu desenho institucional. Mas parte importante não resulta dele mas de como o poder é exercido.
A percepção de que o processo político é marcado por um padrão incrementalista no qual as mudanças efetivas são difíceis de acontecer claramente decorre dos inúmeros pontos potenciais de veto no sistema (senão de veto pelo menos de "ruído "). E mais: processos erráticos de barganha e negociações envolvendo partidos, entes federativos e interesses regionais. Com seu fortalecimento, o STF e o Ministério Público converteram-se em ator fundamental em certas áreas cruciais de política, e passam a ser parte do jogo decisório. O padrão de tomada de decisões públicas certamente é moldado pelo desenho institucional. Alardeia-se em toda parte que o amplo leque de atores não tem produzido paralisia decisória ou ingovernabilidade. Mas há um mal estar generalizado.
Parte da malaise institucional origina-se também na baixíssima capacidade de responsabilização dos governos no qual outros atores podem sempre ser responsabilizados pelo insucesso ou por graves irregularidades. E não só os partidos da coalizão: também o Judiciário, a Constituição, governos subnacionais, agências de Meio Ambiente, Ministério Público, ou entes reguladores.
Convertidas em plebiscitos, as eleições esvaziam-se em seu papel de punir ou premiar o desempenho. Há baixa clareza de responsabilidade.
Os governos de coalizão engendram uma estrutura de incentivos que levam a um conluio suprapartidário que desencoraja a fiscalização do governo por parte de parceiros potenciais: por que incorrer no ônus que ela traz se isto pode afetar - para usar uma expressão de Victor Nunes Leal - o "privilégio de apoiar o governo", no futuro? Neste quadro o que esperar de uma CPI? A escassa legitimidade do Poder Legislativo reflete o papel limitado que coube aos partidos: de apoiamento irrestrito ao governo.
A fragmentação do poder não tem apenas custos: ela impede a dominância de forças majoritárias - o flagelo que assola as novas democracias. Ao tornar imperativa a formação de coalizões, o multipartidarismo enfraquece o Poder Executivo e mitiga o potencial de abuso presidencial. A delegação de extensos poderes ao ministério público, ao judiciário, aos tribunais de contas, fazem parte também desta estratégia maior. O sistema torna-se também mais legítimo por ser inclusivo. As mazelas resultantes desta estratégia são os custos que a sociedade brasileira paga para evitar o abuso. Estes custos não incluem a corrupção como tem sido argumentado.
Não há nada nos sistemas de autoridade política descentralizada que produza necessariamente corrupção ou ineficiência econômica. Um estudo econométrico de Noorudin mostra que as políticas dos governos de coalizão são menos voláteis e por isso garantem maiores fluxos de investimentos. Tampouco que sejam causa de corrupção. O estilo de gerenciamento presidencial que engendrou práticas corruptas em escala inédita no país mantém pouca ou nenhuma correlação com o desenho institucional.
Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT.
Fonte: Valor Econômico (27/12/12)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

‘Só traficantes ganham com a proibição' (Fernando Henrique Cardoso)

Ex-presidente defende a descriminalização das drogas. Tratar o uso como caso de polícia é inútil e desastroso"
Carolina Benevides
* O senhor declarou que a política de guerra às drogas está falida.
Os fatos falam por si. Décadas de esforços imensos, liderados pelos Estados Unidos, não levaram nem à erradicação da produção nem à redução do consumo. Enquanto houver demanda por narcóticos haverá oferta. Os únicos que ganham com a proibição são os traficantes. As medidas punitivas, por si só, não são capazes de reduzir o consumo.
• O que e possível implementar no lugar?
Ao invés de insistir em políticas ineficazes, mais vale buscar reduzir o consumo e o dano que as drogas causam. Investir em ações de prevenção, tratamento e reabilitação. Abrir um debate sobre o impacto desastroso da política repressiva tanto sobre a saúde das pessoas quanto sobre a segurança dos cidadãos. E confrontar experiências. Nos últimos anos viajei muito. Destes encontros, uma primeira ideia-força foi emergindo com cia-reza: a proposta de descriminalizar o consumo de drogas.Não faz sentido pôr na prisão pessoas que usam drogas mas não cometem crimes contra terceiros. Podem causar danos a si mesmos e a suas famílias mas trancafiá-los em cadeias superlotadas não os ajuda a se livrarem da dependência.
* No Brasil, a lei não específíca quem é usuário e quem é traficante.
É essencial que a lei estabeleça uma diferença clara. Consumo de droga é um problema de Saúde Pública. Dependentes de drogas não são criminosos a encarcerar e sim pacientes a tratar. O medo do estigma e da prisão só faz tornar mais difícil o acesso ao tratamento. O poder repressivo do Estado e a pressão da sociedade devem se concentrar na luta contra os narcotraficantes, sobretudo os mais violentos e corruptores, não em perseguir jovens ou doentes.
• O senhor defende a descriminalização das drogas?
Vamos ser claros. O que estamos propondo à discussão pela sociedade é a descrimi-nalização de todas as drogas e o debate sobre a regulação da maconha. Descriminalização não é sinônimo de despenalização. Em Portugal, ninguém é preso por consumir drogas, mas o Estado tem todo um arsenal de medidas não criminais para dissuadir os consumidores e promover o acesso ao tratamento.
• Como fazer a regulação da maconha?
Regular não é a mesma coisa que legalizar. Regular é criar as condições para que o Estado possa impor restrições e limites ao comércio e consumo do produto, sem colocá-lo na ilegalidade. O que estamos propondo é abrir um debate sobre modelos de regulação da maconha de maneira similar ao que já se faz com o tabaco e o álcool.
• O senhor acredita que a sociedade brasileira reagirá bem a essa proposta?
Temas controversos que afetam modos de pensar e valores precisam ser debatidos primeiro na sociedade. As pessoas hoje pensam cada vez mais com a própria cabeça. É o que está acontecendo na sociedade brasileira, como em tantas outras, a respeito das drogas. A sociedade infor madae conectada muda mais rápido do que o sistema político, e tem a capacidade de formar opinião sobre qualquer tema.
• Há um projeto de lei para alterar a política de drogas, endurecendo as penas e regulamentando a internação compulsória.
Qual a melhor maneira de enfrentar o problema das drogas? Criminalizando ou tratando os dependentes no sistema de saúde? Tratar o uso de drogas como caso de polícia é inútil e desastroso. A internação compulsória é condenada internacionalmente como ineficiente, estigmatizadora e que viola direitos humanos. A guerra às drogas fracassou. É preciso ousadia e pragmatismo para explorar novas soluções. O que importa é um debate sério e rigoroso que permita a cada país encontrar os caminhos adequados. O Brasil se atrasou neste debate em relação a Colômbia e México. Há que acertar o passo e rápido.
Fonte: O Globo (26/12/12)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme (Francisco Weffort)

Entrevista:

Em novo livro, ex-ministro investiga permanência de herança ibérica no Brasil
Cassiano Elek Machado
RIO - Francisco Weffort passou os últimos anos vivendo no século 16. E esteve por lá em busca dos anos 1930.
A máquina do tempo do cientista político e ex-ministro da Cultura não está quebrada. Seguindo as raízes do Brasil, ele procurava realizar um retrato do país na mesma linha dos que pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987) publicaram no início do século 20.
"Espada, Cobiça e Fé - As Origens do Brasil" (Civilização Brasileira, R$ 39,90, 240 págs.), que ele acaba de publicar, foi o resultado destas expedições.
Os três elementos elencados no título são, na ótica de Weffort, 75, vetores essenciais da atuação de portugueses e espanhóis na descoberta (ou conquista, como dizem os hispânicos) da América.
"Nos ambientes europeus em que se formaram, a fé em Deus podia conviver com uma noção de honra e de poder que não excluía a cobiça e a busca do enriquecimento rápido", escreve Weffort. "Sua profunda religiosidade era parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais."
O tripé espada, cobiça e fé, que marcou a atuação dos ibéricos em Terra Brasilis, teria deixado traços profundos no caráter brasileiro.
Para tratar destes temas, e de como eles estão ligados a acontecimentos recentes no país, Weffort recebeu a Folha para uma conversa em seu apartamento, no Rio. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - O seu novo livro é uma busca das raízes do país. O que o sr. encontrou de mais desagradável em nossas raízes?encontrou de mais desagradável em nossas raízes?
Francisco Weffort - Não diria uma coisa só, mas a descoberta ou a conquista do Brasil foi um difícil processo de reconhecimento do povo brasileiro. Levou séculos e se prolongou numa cultura preconceituosa. Os europeus que chegavam aqui, mesmo os padres, que foram os que mais defenderam índios e negros contra injustiças, não tinham a ideia do que era este povo. Estavam desinteressados do tema da humanidade dos negros, por exemplo. O padre Vieira, quando foi consultado sobre o que fazer com o Quilombo dos Palmares, disse que se déssemos liberdade aos negros de lá seríamos obrigados a fazer o mesmo com todos os negros da colônia, o que inviabilizaria a colonização.
No livro, o sr. diz que o Renascimento ibérico se expressava mais na conquista do mundo do que na arte. De que modo a falta de valorização da cultura reflete nosso desinteresse na área?
A tradição ibérica é a da prática, do fazer. No campo das ciências humanas, por exemplo, temos belos historiadores, magníficos ensaístas, mas muito pouca teoria. A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme. Uma vez conversei com uma figura importante na construção de Brasília. Ele comentava que tinham medo que o lago não enchesse, que as árvores não crescessem. Quase perguntei por que fizeram Brasília aqui. Eles eram de uma grande audácia e de uma enorme ignorância, mas fizeram uma imensa cidade.
Um tema importante no livro é a atuação dos bandeirantes. Eles são a melhor personificação da "audácia ignorante"?
Comecei a fazer o livro preocupado com este tema. Sei que os bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los.
O livro ilumina um lado menos conhecido dos bandeirantes, que foi a atuação deles na Bahia. Por que esse capítulo é tão desconhecido?
Existe uma ideia de que os bandeirantes foram só paulistas. Os baianos foram os primeiros. O que é notável é que foram atrás de tesouros por conta das descobertas de riquezas pelos espanhóis no outro lado da América. Se havia lá, deveria haver aqui. Eles não sabiam nada. Mas foram de coragem espantosa.
Outro traço que seu livro acentua ter vindo das raízes ibéricas é a violência...
Os conquistadores construíram o germe de estrutura hierárquica que acompanhou a formação do país nos séculos que se seguiram.Você tinha o monarca, depois os militares que o representavam. A sequência clara disso foi a Guarda Nacional do Império, os coronéis do Nordeste. Até o século 19, o Brasil teve tanta violência que este estilo persiste até hoje.
Como a violência ancestral ressoa no cenário atual?
Não acredito que o crime organizado seja uma projeção da violência daquela época, mas certamente a capacidade que estes grupos marginais têm de produzir violência de maneira organizada tem a ver com esta história. Eles não são finlandeses ou suecos, são como nós. Uma coisa importante é esta dualidade entre os que estão dentro e os que estão fora. No Rio, a grande manobra política recente foi a de expulsar os bandidos que estavam dentro da comunidade. Esta dualidade, os de dentro e os de fora, os civilizados e os bárbaros, está o tempo todo na cabeça do brasileiro.
E qual o papel do personalismo ibérico nisso?
O personalismo é uma dimensão fundamental de nossa identidade. Nós nos reconhecemos de pessoa a pessoa. Na cultura, isso fica claro. Entre nós, quem fala é porque tem algo a expressar do meio pessoal. Por isso você tem aqui artistas que falam sobre qualquer tema: futebol, cinema, guerra.
Numa entrevista anterior o sr. evocou as raízes ibéricas para comentar a formação das instituições políticas brasileiras. O sr. dizia que não havia partidos, só personalismos. O Brasil tem como mudar esta tradição?
O Brasil está mudando. A época atual, não estou falando em governo atual, é de avanços. Quando falo em época, estou me referindo ao pós-1950. É uma época de democratização do Brasil.
E, veja, isso inclui um período de ditadura, mas é democratização no sentido social. O número de pessoas nas cidades, de alfabetizados, de pessoas que expressam algo aumentou na escala de milhões.
Mas e os partidos?
Os partidos... [silêncio]. Em alguns casos, as instituições são mais frágeis do que o crescimento democrático. Isso porque o crescimento democrático também alimenta os personalismos. O Lula é um fenômeno do personalismo. Mas é óbvio que ele é um fenômeno da democracia. É um problema típico da construção das instituições políticas. Se pegarmos uma escala de século, veremos o crescimento das instituições. O que está ocorrendo no Brasil hoje, por exemplo no Supremo Tribunal Federal, era impensável há 50 anos.
Mas no seu livro o sr. fala da "subvalorização das normas e leis, típica da cultura brasileira e hispano-americana em geral"...
Em termos gerais, isso ainda é verdade. Nós tendemos a ter dificuldade para aceitar que a lei tem de ser cumprida. Fulano vai ser preso?, perguntam. Claro, tem de cumprir a lei. A ideia de que é preciso cumprir um princípio abstrato para nós é difícil. Mas cada vez mais vamos aceitando.
A corrupção é herança do tripé fé, espada e cobiça?
Não. As pessoas às vezes projetam uma imagem errada de que o Brasil nasceu de gente sem caráter, de ladrões. Não acho que aqui haja mais corrupção do que em outros lugares. Temos um grau de corrupção coerente com o tamanho do país, que é enorme [risos]. Mas não creio que haja complacência com isso.
Fenômenos como o mensalão não surpreendem o sr.?
Se me permite, não vou discutir o mensalão. O que me parece surpreendente é como a opinião pública e o sistema judiciário estão funcionando tão bem.
O sr. está otimista em relação ao Brasil?
Em relação à democracia no Brasil, sou otimista. Acho até que há uma certa continuidade entre o crescimento econômico da sociedade brasileira e o da participação democrática. É claro que no meio do caminho há muita trombada, botinada, ladrão. Mas democracia é isso.
E dentro dessa perspectiva positiva, o sr. vislumbra a volta a um cargo público?
Não vislumbro nada disso. O que gostaria agora seria pesquisar o corporativismo na sociedade brasileira. É um tema importante porque, no Brasil, quando você critica o corporativismo do outro, não lembra do seu. Nós todos somos corporativistas.
Em termos de gestão cultural, o sr. vê um aperfeiçoamento nos governos Lula e Dilma?
Eu dou uma opinião geral: está melhorando. O ponto de partida é o governo Collor, que foi péssimo nisso. De lá para cá, foi melhorando. E tem que melhorar, até porque, como diz o Tiririca, pior do que está não fica [risos]. Todos os sujeitos que entram no MinC têm ideias, teorias, mas querem mais gente pra trabalhar e mais recursos. Ainda é um tema fundamental. Porque estamos longe de ter esbanjamento em cultura.
Fonte: Folha de S. Paulo (24/12/12)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A lógica de Lula sobre a imprensa (Eugênio Bucci)

Há coisa de dez dias, em Paris, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reclamou dos jornais. De novo. "Quando político é denunciado, a cara dele sai noite e dia nos jornais", disse ele. Na seqüência, lançou uma acusação baixa contra a imprensa: "Vocês já viram banqueiro nos jornais? São eles que pagam as publicidades da mídia" Segundo Lula, os anunciantes estão a salvo das reportagens investigativas, pois os repórteres e os editores não têm a dignidade de apurar os fatos e de publicá-los com um grau mínimo de independência crítica.
Claro: os jornalistas de brio, honrados, foram ultrajados por ele. O interessante é que quase ninguém se deu ao trabalho de responder à ofensa. Por que será?
Existe uma explicação. Essa história de político falando mal dos jornais e das revistas já se banalizou. Virou uma epidemia. Lula não é o único, embora seja dos mais reincidentes. Há cerca de dois meses, no final da campanha municipal, em São Paulo, o então candidato a prefeito José Serra (PSDB) deu de acusar os repórteres que formulavam perguntas incômodas (na opinião dele) de ser agentes de "pautas petistas". Ao desqualificar os profissionais que cumpriam seu dever de perguntar, procurava se esquivar das indagações e, em parte, foi bem-sucedido na manobra. Lula, outra vez, lança mão do mesmo truque. Quando lhe cobram explicações sobre os escândalos de seu partido, investe contra a reportagem. Como ele fala isso a toda hora, seus vitupérios já não chamam a atenção. Deixaram de ser notícia. Daí que os próprios jornalistas não se dão ao trabalho de responder.
Desta vez, porém, uma resposta não pode faltar. O julgamento de Lula está baseado em quatro grandes mentiras, que desinformam a sociedade e podem induzir a enganos desastrosos. Por isso, tratemos de pôr as coisas a limpo.
Primeira mentira. Não é verdade que a imprensa não publica reportagens que incomodam banqueiros. Você, leitor, há de se lembrar. Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos; Luís Octávio Índio da Costa, do Banco Cruzeiro do Sul; Salvatore Cacciola, do Banco Marca; Silvio Santos, do Banco Panamericano; Katia Rabello, do Banco Rural; Ricardo Guimarães, do Banco BMG; entre outros, muitos outros, também se lembram muito bem.
Segunda mentira. Não é verdade que os bancos privados são os maiores anunciantes do Brasil. Segundo um levantamento do anuário Mídia Dados, o Bradesco investiu, em 2011, R$ 905 milhões em publicidade. É muito dinheiro. Mas atenção: a Caixa, que pertence ao governo federal, investiu mais que o Bradesco: R$ 1,092 bilhão. E os dois maiores anunciantes privados do país em 2011 não têm nada a ver com bancos: Casas Bahia (R$ 3,3 bilhões) e Unilever (R$ 2,6 bilhões).
Terceira mentira. Não é verdade que qualquer acusação contra político vira manchete assim sem mais nem menos. A imprensa erra, claro que erra, deve ser criticada com rigor - mas a imprensa não é uma instituição corrupta, vendida. Nos escândalos recentes (mensalão etc.), acertou muito e ajudou a flagrar os bandidos de colarinho branco.
Quarta mentira. Não é verdade que os anunciantes saem sempre bem na foto. Se assim fosse, nenhuma revista, nenhum jornal, ninguém falaria mal dos governos (federal e estaduais), que anunciam bem mais que os banqueiros privados. Já vimos que a Caixa é um anunciante mastodôntico, assim como o Banco do Brasil (R$ 587 milhões em 2011), e, não obstante, alguns de seus dirigentes andaram freqüentando o noticiário. Somente o Ministério da Educação, segundo estimativas do mesmo Mídia Dados, veiculou anúncios no valor de R$ 298 milhões em 2011 - e nem por isso está a salvo de críticas.
Essas quatro grandes mentiras põem em marcha uma lógica desastrosa. Nos dois governos de Lula, os gastos de dinheiro público em publicidade se mantiveram em crescimento. Hoje, o governo federal, com suas estatais, é um dos maiores anunciantes do mercado. Agora que sabemos que, na opinião de Lula, os jornalistas são comprados pelos anunciantes, é o caso de perguntar: com que propósito o governo gasta fortunas em comunicação? Será que pretende comprar jornalistas? Será que os anúncios governamentais são uma tentativa de suborno?
Cuidado. Não caia em embromação. A imprensa pode perfeitamente brigar com os anunciantes, sejam eles estatais, governamentais ou privados. Ela pode até perdê-los. O que ela não pode perder é a confiança do leitor, a sua confiança, que vale mais que banco, mais que ouro. A boa imprensa, aquela que realmente conta, é refém apenas da verdade. Não cede ao dinheiro do anunciante nem aos gritos dos políticos.
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP
Fonte: Revista Época

sábado, 22 de dezembro de 2012

"Essa unanimidade atrofiou a capacidade do Estado de avançar" (Roberto Garcia Simões)

Entrevista concedida a
Rogério Medeiros e Renata Oliveira

“A ‘unanimidade é burra’, porém, perfeitamente explicável”

Marcelo Soriano



Especialista em políticas públicas, o colunista do jornal A Gazeta, comentarista de política da Rádio CBN Vitória e professor da Universidade Federal do Estado (Ufes), Roberto Garcia Simões, faz uma ampla abordagem sobre a conjuntura política do Estado e os problemas sociais que carecem de atenção por parte do governo Renato Casagrande.

A entrevista foi dividida em duas partes, e nesta primeira Simões fala do processo eleitoral deste ano e da gestão Casagrande e sua influência política. Ao mesmo tempo em que estabelece um sistema político que garante a governabilidade, o socialista, na opinião do professor, criou um mecanismo que atrofia o governo.

Sem a oposição ou uma voz crítica para cobrar políticas públicas, Casagrande segue sem dar atenção aos grandes problemas da população como saúde, educação, segurança e outros. Simões fala também sobre os novos prefeitos e o enfraquecimento dos partidos políticos.


Século Diário – Durante o processo eleitoral deste ano, as questões sociais foram tratadas pelos candidatos como “a seca do Nordeste”, todos prometendo uma solução para saúde, educação e principalmente, segurança. Com a chegada dessas pessoas aos governos municipais, o que podemos esperar no que se refere às políticas públicas? Como o senhor avaliou esse processo?

Roberto Garcia Simões – É um dos papéis daqui para frente e estou imbuído desse propósito, é preciso mudar o formato dos debates. Eu participei de um, na Mata da Praia, e não tem sentido. O formato é aquele de que alguém faz uma pergunta e o candidato tem 30 segundos para responder. Acho que nesse sentido, com todos os dilemas que existem por lá, temos que olhar um pouco os Estados Unidos, pegar um tema, por exemplo educação, e faz um debate. Diferente dos que acontecem hoje. O cara vai ao Sindiupes [Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado], promete aumento de salário, vai a outro, faz outra promessa. Tem que escolher o tema e ficar duas horas discutindo esse tema.

– Até porque, quando ocorre de acompanhar os debates, a impressão é que o candidato decorou aquilo...

– A mesma coisa. Ele reproduz uma coisa mínima no tempo e não aprofunda nada. Então, o processo eleitoral ajuda nessa generalização que não leva a nada. Segundo ponto é que há um desencontro que nós não cobramos. Esse processo gera um quadro que é um desencontro. O candidato durante a campanha sabe que não vai ter uma cobrança significativa posterior, faz um discurso para a plateia. Depois, quando o time entra em campo, a conversa é outra. Essas coisas de saúde, educação e segurança estiveram em todas as campanhas, e não resultaram praticamente em nada do ponto de vista efetivo, no ritmo esperado, na intensidade esperada. Não vou dizer que nada aconteceu, mas muito lentamente. Se tivesse um encontro entre o momento da campanha e o momento da gestão, essas coisas estariam acontecendo. Você pega até mesmo o discurso do governador, que se elegeu garantindo essa questão da segurança, está aí essa coisa toda, e ele não vem a público, porque esse é um tema de desgaste. Então quem vai falar? Ele vai tratar de outros temas: “estamos trazendo R$ 3 bilhões...”. Isso mostra essa clivagem, porque antes você tinha políticos com o brio de vir a público e assumir isso, não se terceiriza a coisa. Acho que temos que repensar esse formato. Por exemplo, Câmara de Vereadores, é o mesmo processo da Assembleia. Todas, em grande medida, entram no mesmo ritmo, não há uma fiscalização efetiva, não há sequer um pronunciamento de alguém em relação a um ponto.

– As funções constitucionais de legislar e fiscalizar foram esquecidas...

– Sim. Vocês se lembram que na época de prestação de contas do governador na Assembleia, de Paulo Hartung(PMDB) e Casagrande, os deputados ficam receosos do que vai ser a pergunta. Eles têm que fazer um elogio para ter algum “mas”.

– Muitos deputados sequer a senha do Siafem [Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios] têm, não se interessam em pedir...

– Não acompanham a execução orçamentária do Estado. Agora, você tem uma parte da Assembleia que tem esse tom, mas tem, vamos dizer, 20% da Assembleia que poderia estar fazendo esse trabalho. Essa é a minha indagação, por que não acontece? Estão todos no mesmo diapasão.

– Há hoje na Assembleia um medo por conta de um retorno de Euclério Sampaio (PDT), que fazia uma oposição ao seu modo na época, e da possível entrada do ex-governador Max Mauro (PTB), por conta da postura crítica ao governo que já passou. Dada a fragilidade da Casa.

– Mas você veja que o debate de Vila Velha, que a Segurança tinha todo o contorno para ganhar dimensão, não ganhou. Então, temos que mudar esse formato e ver se isso contribui ou não. Agora, me impressiona esse grau de desinformação presente na sociedade.

– O que o senhor entende por esse discurso de mudança que foi a tônica da eleição, e que elegeu figuras dentro desse discurso, mesmo sendo todas elas já conhecidas do eleitorado?

– Eu não esperava o resultado eleitoral de uma maneira geral. É um negócio complexo de explicar. Porque não é uma combinação entre mim, você e ele. Forma-se uma corrente meio inexplicável, como quem diz: “olha, vamos dar um chega pra lá em todo mundo que já esteve no Executivo”. Menos do que a mudança das políticas públicas e novos métodos de gestão, acho que a população entendeu que a forma de externar a indignação com o que estava até então, só que isso aconteceu dominantemente, como uma tendência. Resolveu tirar todo mundo que já estava há muito tempo aí. Então, você pega Solange Lube (PMDB), em Viana.

– Em Vitória, a dicotomia PT e PSDB caiu, em tese...

– Em tese, mas eu acho que aqui, o que houve de mais forte foi que desde aquela eleição do Paulo Hartung, PSDB e PPS não estiveram juntos. É a primeira vez, porque nas vitórias e nas derrotas, sempre estiveram juntos. Inclusive, o Luciano [Rezende] foi adversário de Coser em 2008 e o PSDB esteve com ele, com o vice, que era o Elizeu, que era lá de São Pedro. Vila Velha, acho que foi o desgaste mesmo. Alguém que aparecesse com alguma novidade, é claro que você não encaixa todo mundo. A população estava cansada desse traço político que estava aí. Se é o novo, se é a mudança, se é alguém que não teve oportunidade... porque Luciano Rezende foi candidato, deputado, vereador, então, vamos dar uma chance.

– Mas a mudança dessas figuras não significa uma mudança política.

– Não, por isso que estou dizendo, eles assinaram... e acho que essa palavra foi boa, se você pegar em 1982, o MDB tinha lá “esperança e mudança”, um documentozinho que andava o Brasil todo. Desde aquela época se prega essa ideia de mudança, porque assume, não muda, assume, não muda, assume, não muda. Só que agora completou o ciclo. O PT assumiu e não mudou e aí zerou.

– E uma opção mais a esquerda, que seria o Psol, ainda não é uma mudança confiável para a população...

– Não criou. Eu até pensei, no primeiro momento, que fossemos ter um número de votos nulo ou em branco maior. Mas eu acho que o que está acontecendo muito é que o voto está sendo anulado, depois que o grupo chega ao poder. A população esta sentindo isso. Ela ainda vota, ela tenta crer, mas quando vai em uma direção não vê resultado. Isso, gregos e troianos estão fazendo.

– Há uma questão muito complicada que aconteceu ainda no período pré-eleitoral, que também é digno de destaque. O deputado estadual Hércules Silveira (PMDB), que vinha inclusive bem cotado na disputa de Vila Velha, chegou a lançar candidatura, e no dia seguinte o próprio partido dele recuou e tirou o nome dele da disputa.

– Mas aí temos que trazer a público uma questão. O que acontece com os partidos hoje de maneira geral, com honrosas exceções? Você tem uma direção central, todas as demais provisórias. Não andou na linha, vai lá e intervém.

– Isso é um problema sério porque na eleição municipal, por exemplo, quem deveria dar a última palavra é o diretório municipal.

– Mas aí você vê a degeneração da organização político-partidária, você tem um cara que define. Segundo, você para não aparecer, dá a doação oculta para o partido. Então os partidos viraram biombos de eleições. Passada a eleição, algum partido promove algum debate, mais amplamente? Reúne para tratar de algum assunto? O PT que tinha esse cacoete acabou.

– Despolitizaram até os partidos.

– Não é mais um partido político, é um partido eleitoral. Funciona nas eleições, é um cartório para competir. E dentro dessa lógica, como o Casagrande está moldando uma unanimidade, ele só não se reelege se houver algum problema lá no PSB nacional, alguma coisa com o PT. O governador está criando as condições até para uma candidatura única.

– Sim, mas acho que a questão da segurança pode prejudicar a reeleição dele, não acha?

– Sim, mas mesmo que continue essa coisa... porque já continuou no governo passado, a segurança continuou problemática por oito anos...

– Mas havia uma contenção da visibilidade

– Olha, mesmo que tenha essa coisa, quem seria o candidato e com quais alianças? Eu não consigo encontrar. A disputa que vai acontecer, e ele vai ficar de camarote, vai ser para o Senado, só tem uma vaga. Ele já está tratando de dar apoio ao João Coser (PT). Ele está tratando de deixar de ser coadjuvante para ser protagonista. Ele passou esse período todo como acessório.

– Mas Casagrande saiu muito fortalecido da disputa eleitoral desse ano.

– Sim, estava falando do Coser. O Casagrande foi o grande vitorioso político. Tem o ponto da gestão dele. essas outras coisas. Mas vejo dificuldade de politicamente sair e ocupar. Ele colocou todo mundo lá. Ele tem uma unanimidade suave, mas ele tem um estilo que está me surpreendendo em algumas coisas. Quando ele não controla diretamente, faz indiretamente. A indicação dele do Macaciel [Macaciel Breda, presidente do PSB/ES] para o secretariado do Juninho, em Cariacica, passa a ideia de que ele tem o PPS em Vitória e colocou um lá para cuidar de Cariacica.

–  Agora para o Senado, João Coser se coloca, Rose de Freitas (PMDB) se coloca, pode ser que Paulo Hartung venha a se colocar. Agora, por incrível que pareça, e aí é o lado perverso da unanimidade... não avançou no governo anterior e neste não avançará o esperado, toda essa questão social por conta da unanimidade. É o discurso de oposição que empurraria o governo. A unanimidade dá tanta sustentabilidade política, que há uma despreocupação com o resultado administrativo.

– Esse dado é perfeito, a unanimidade é tanta que ele não precisa resolver os problemas que estão na frente dele. Ele seguiu um caminho inteligente, a unanimidade do Paulo Hartung era na bordoada, a dele é na suavidade.

– E por incrível que pareça, ela não aparenta, mas ela é tão consistente ou mais que a anterior. Ele traz Luiz Paulo [Vellozo Lucas, PSDB] para o governo, coloca o DEM lá, recebe Rodney Miranda, o PMDB esta lá com Rose. Como a unanimidade paralisa o processo político, não abre espaço para o contraditório, porque isso empurra o governo. Uma voz que diga que a educação não está indo bem, não uma voz de ocasião, como acontece às vezes na Assembleia, para negociar alguma coisa, mas uma voz que diga: “olha esses são os números do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], eu quero ter uma política que melhore a educação. Como podemos fazer para zerar os números de DTs [Designações Temporárias]? Quanto tempo vai durar? Dez anos? Então tá bom”. Isso não tem. Então o governo fica incensado o  tempo todo, e ele também gosta de elogios. E ele tem uma vantagem nessa questão da unanimidade, que é o fato de ele ser partidário. Agora, nesses oito anos, mais dois anos, essa unanimidade política atrofiou a possibilidade de avançar naquilo que não está caminhando.

– Porque ninguém vai cobrar também.

– E eles não querem trazer a sociedade. Olhe a contradição, André Garcia [atual secretário de Estado de Justiça e de Ações Estratégicas], ainda no governo Paulo Hartung, aprovou na Assembleia o Conselho Estadual de Segurança Pública, é uma lei. Não estou dizendo que é a salvação, não, mas existe um Conselho de Segurança Pública instituído. O governo estadual não instala, porque não quer levar a sociedade para junto, porque aí você vai ter que sentar e ouvir. Então, ele criou essa nova situação e, infelizmente, é um efeito deletério continuarmos com saúde, educação, segurança, com esses problemas, por causa dessa unanimidade.

– Acho que um exemplo disso é a Secretaria de Ação Social, que virou um entra e sai de petistas, e é uma secretaria que do ponto de vista de políticas públicas, poderia ser importantíssima...

– Mas aí como ele deu o xeque-mate na secretaria? Tirou a área que mais interessa ao que ele está fazendo de fato, que são as bolsas, essas coisas, e jogou para a Secretaria de Ciência e Tecnologia. Então essas coisas que são mais problemáticas deixa na secretaria. Ele acertou a divisão, vai colocar o Helder Salomão [prefeito de Cariaca, do PT] lá...

– O Helder é indicado porque ele tem um diálogo bom com esse setor...

– Vai dialogar com os movimentos algumas coisinhas, mas eu estava vendo o orçamento, e isso dá uma dimensão do que estamos falando, para implantar o Programa Estadual de Mudanças Climáticas, são menos de R$ 300 mil. O Programa da Juventude, cria um negócio lá e tal... tinha prometido com a Fejunes [Fórum Estadual da Juventude Negra do Estado], cadê o Programa da Juventude? A tendência é de uma continuidade.

– Admitindo que Casagrande seja um homem para oito anos. Em 2018, quem o professor vê nesse cenário como um possível sucessor?

– Não sei, acho que vai depender da disputa ao Senado, desses grupos. Acho que, talvez, pela coisa suave, agora que vai se desenhar o quadro. Nacionalmente, por exemplo, vai que tenha algum piripaque do governo Dilma, com Eduardo Campos, que pode sair para alguma coisa para ganhar espaço, aí esse namoro  PT e PSB não sei como vai ficar. Esse quadro nacional pode afetar. Porque tanto PT quanto PSB estão muito enquadrados nacionalmente. Se o Eduardo Campos disser assim: “Renato Casagrande faça isso”... Casagrande é um homem partidário, mas tem outras coisas. Eu tenho dificuldade de ver ainda como vai ficar esse realinhamento para o Senado.

– Não sei se podemos falar em derrotados, mas acho que se há um grande derrotado, é o PDT.  Vidigal [Sérgio Vidigal, prefeito da Serra] sai muito mal da eleição. Aquela secretaria que o PDT tem, acho que o Renato Casagrande vai trazer um monte de prefeitos para dentro do governo dele. Mas isso tudo vai manter essa unanimidade, vai costurar aqui e ali, e se houve problemas de gestão, isso não interfere muito desde que não seja uma coisa muito escandalosa. Quando apertar, diz que está fazendo aqui uma coisinha, mas isso não é o principal do governo. Não é nem uma visão liberal porque os liberais diziam que o papel do governo é saúde, educação, segurança e transporte. Então nem o papel liberal do governo, de cumprir bem a sua obrigação social e ambiental, de fazer o mínimo.

Tempos de justiça e corrupção (Marco Aurélio Nogueira)

Exceção feita às eleições municipais, cuja importância foi enorme, o ano político de 2012 termina sob o signo da corrupção e da busca de justiça e de equilíbrio entre os Poderes da República.
De Carlos Cachoeira a Rosemary Noronha, passando pelo julgamento do mensalão e chegando às denúncias de Marcos Valério, tivemos um eixo. Uma nova fase pareceu despontar na vida nacional. O protagonismo e o prestígio de que o Supremo Tribunal Federal passou a desfrutar emergem como fato novo, que ainda terá de ser bem compreendido, até para se ver em que medida implica o rebaixamento dos outros Poderes.
O fio que liga os crimes - de uma forma ou de outra associados a formação de quadrilha, tráfico de influência, corrupção ativa e peculato - é o mesmo que une negócios e política, ou seja, que mostra a invasão da política pelo mercado e pelo dinheiro. Seu ponto de partida, no Brasil recente, desponta na votação da emenda da reeleição de FHC e nas privatizações dos anos 90 e encorpa com o caso Waldomiro Diniz (março de 2004), assessor da Casa Civil da Presidência flagrado recebendo propina. Passa pelo mensalão, pelas denúncias de compra de dossiês falsos contra políticos, pelas relações de Cachoeira com políticos de vários partidos e culmina no caso Rose. Fica dramaticamente reforçado com as declarações de Valério comprometendo Lula no mensalão.
É inevitável que bombas desse tipo estourem no colo do PT. O partido tornou-se a bola da vez, o adversário a ser batido. Cresceu, paradoxalmente, durante os anos em que mais se sabe de casos de corrupção. Elegeu e reelegeu Lula, elegeu Dilma, ganhou eleições em Estados e municípios antes inacessíveis, tornou-se uma potência política, caminhando como se nada o atingisse ou prejudicasse. Suas cúpulas insistem em associar as denúncias de corrupção a um plano sórdido da direita, da mídia e da "Justiça conservadora" para desconstruir o PT, desestabilizar seus governos e ocultar suas conquistas. Não percebem que o argumento é ruim, insistem em não reconhecer erros e escolhas equivocadas, prolongando a percepção de que o partido naturaliza a corrupção.
O poder é, em si mesmo, possibilidade e armadilha. Concede aos que dele se aproximam múltiplas vantagens, mas também abre as portas para a tentação, os falsos amigos, as negociatas. Os poderosos muitas vezes se embriagam com os trunfos de que passam a dispor: nomear, indicar, pedir e decidir tornam-se verbos que se confundem no seu léxico e que os fazem, com frequência, meter os pés pelas mãos.
O poder não é imune ao tempo. Tende a se desgastar com o andar do relógio. O poderoso se entedia e passa a ser atraído ou pela inércia ou pela disposição ao risco. O tempo do poder também acompanha o tempo social, precisa decifrá-lo e se ajustar a ele. Hoje, neste tempo de redes, conectividade, informações livres e reflexividade em que vivemos, o poder não consegue mais fazer o que fazia antes. O sistema político-administrativo copia a estrutura em rede da vida, vendo crescer focos de competição dispostos horizontalmente. O poder precisa negociar, ouvir e dialogar mais, lidar com obstáculos e desafios constantes. Está mais exposto, tem menos aura e opera muitas vezes rés ao chão, enfiando-se em arapucas "mequetrefes". Pode cair em descontrole agudo.
Controles rigorosos não combinam com redes e conectividade. Nomear um assessor pode ser o primeiro passo para o inferno: subordinados tendem a se tornar pequenos reis e rainhas de pequenos feudos, nichos de onde operam e corrompem. O caso Rose é emblemático. Beneficiada pelo vínculo pessoal que manteve por anos com Lula e outros poderosos, ela viabilizou um esquema nas barbas do poder. O esquema ganhou vida própria, envolvendo os que o patrocinaram e dele se beneficiaram.
Não se trata de relativizar, muito menos de diminuir a responsabilidade dos dirigentes. Ninguém chega ao comando de um escritório regional da Presidência sem o devido apoio superior. Mas é preciso dar a cada um a sua parcela de culpa. Não é plausível analiticamente (embora funcione como agitação) que se estabeleçam a priori linhas de comando trabalhando em prol da corrupção, como se determinados partidos ou políticos fossem especializados na prática de crimes. Há mais afã desbragado pelo aproveitamento das oportunidades de poder e muito mais aparelhamento de agências e órgãos estatais - um aparelhamento que, à diferença do tradicional, pode até mesmo receber verniz ideológico, "anticapitalista". Cada época tem seu tipo particular de corrupto, e o de hoje parece ser o "facilitador".
Nas décadas recentes, muitas pessoas desejosas de ascensão social, emprego e prestígio foram projetadas em postos-chave do Estado, enredando-se em esquemas e maracutaias. Seus padrinhos conhecem as regras do jogo, não podem ser isentados de culpa. Não há mais "idealistas" no âmbito público e estatal. Também não há como contar com os mecanismos de controle da burocracia, cujas normas e cujo ethos jamais prevaleceram impávidos entre nós. Com isso as oportunidades de aparelhamento aumentaram sensivelmente. As correias de transmissão entre Estado, partidos e particulares ficaram descontroladas.
Precisaremos de tempo e determinação para que os atores entendam a nova estrutura da vida e domem os sistemas. Mas quanto antes começarmos a nos mexer em sentido reformador, melhor. Muito pode ser feito a partir da organização da indignação e dos desejos de se ter um País mais decente. Se aqueles que se mostram aguerridos no combate aos escândalos de hoje capricharem na mira, poderão funcionar como um polo de ativismo ético-político que ajudará a que se processem os escândalos que ainda virão, reduzindo paulatinamente a sua potência.
Bom 2013 para todos.
* Professor titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo

Aonde irá o PT? (Sergio Fausto)

Nenhum outro partido tem raízes populares comparáveis às do PT. Não há outro líder político brasileiro com a história de Lula. Essas duas credenciais, no entanto, têm sido utilizadas para negar, encobrir e/ou justificar práticas flagrantemente contrárias ao próprio ideário republicano de que o partido e seu líder maior se diziam os mais legítimos defensores. Não se trata de práticas episódicas, mas de ações sistemáticas pelas quais instituições e recursos públicos são postos a serviço dos interesses do PT e de seus membros.
É uma tragédia política, porque todo país civilizado precisa de uma esquerda verdadeiramente republicana e democrática. E o PT, que poderia representá-la, afasta-se cada vez mais dessa possibilidade. O partido adquire semelhanças crescentes com o velho PRI mexicano - pela interpenetração de partido, Estado e sindicatos - e com o peronismo argentino - pelas mesmas razões, acrescidas da mística criada em torno de seu líder maior.
A possibilidade histórica de o PT representar uma esquerda democrática e republicana se perdeu - resta saber se definitivamente - em meio à sua transformação num partido pragmático e organizado. O velho PT sectário, fechado dentro da esquerda, e consumido por uma vida interna tão vibrante quanto entrópica, cedeu lugar a uma organização partidária orientada para acumular recursos financeiros, ganhar eleições e governar com amplas alianças.
A experiência em governos estaduais e municipais de grandes cidades tornou o partido mais realista e moderado. O acesso a fundos e empregos públicos em cargos de confiança substituiu, em boa medida, para uma parte importante da militância, os estímulos morais que a crença ingênua num difuso ideal socialista oferecia ao petismo original. O horizonte político-teórico convergiu para o projeto de colocar o "Lula lá". Toda discussão sobre socialismo e democracia, ética e política foi posta à margem.
Quando o PT chegou ao governo federal, abriram-se portas ainda mais largas para fortalecer a máquina partidária, organizações e movimentos ligados ao partido. Além disso, criaram-se perspectivas de ascensão social sem precedentes para quadros e militantes partidários. Por meios formalmente legais (nomeação para cargos de confiança, transferência de parte da contribuição obrigatória às centrais sindicais, etc.) ou inteiramente ilícitos, o governo Lula atuou com desenvoltura, em todas as frentes, para contemplar o conjunto dos apetites. O presidente foi pródigo, pelo menos na complacência com o malfeito. Como houve maior redução da desigualdade e da pobreza em seu governo, qualquer crítica passou a ser "udenismo golpista".
O paradoxo desse processo é que a incorporação do PT ao governo e às elites políticas - um elemento indispensável e positivo da democratização do País -, ao invés de fortalecer, enfraqueceu as instituições e a ética republicanas. Um conservador cínico diria que esse foi o custo inevitável para domesticar o partido. Para quem não é uma coisa nem outra, cabe fazer duas perguntas: era realmente inevitável? E, mais importante, devemo-nos conformar com esse custo, mesmo sabendo que ele se pode perpetuar e crescer?
Há exemplos históricos recorrentes de que a ascensão de novos grupos sociais à elite política vem acompanhada de aumento da corrupção. Esta frequentemente ganha caráter sistemático quando a democratização da elite se faz pela entrada de partidos de massa e corporações sindicais. Dessa perspectiva, a Europa é a exceção no mundo ocidental. Nos Estados Unidos, essa foi a regra, em particular nas grandes cidades industriais do norte, como Nova York e Chicago. Na América Latina também, salvo no Chile e no Uruguai.
Essa constatação, porém, não isenta os atores políticos de responsabilidade. No caso do PT, sobressaem dois movimentos concomitantes ao longo de sua história: de um lado, seus líderes e sua militância, com honrosas exceções, jamais assumiram como patrimônio coletivo da democracia brasileira a construção institucional feita a partir da Constituição de 1988 (valeram-se dessas instituições, isso sim, seletiva e instrumentalmente, como é notório na relação esquizofrênica do partido com o Ministério Público e a imprensa); de outro, curvaram-se à lógica da conquista e manutenção do poder quando esta se chocou com princípios éticos em episódios cruciais da trajetória do partido.
Nunca será demais lembrar de Paulo de Tarso Venceslau, militante histórico da esquerda e então secretário de Finanças de São José dos Campos, que em 1995 levou ao conhecimento de Lula denúncias sobre um esquema de corrupção orquestrado por Roberto Teixeira, empresário-compadre do líder maior do partido, em prefeituras do PT. Para apurar as denúncias criou-se uma comissão que recomendou punição a Teixeira. Nada foi feito. Três anos depois, Venceslau seria expulso do partido. Dos membros daquela comissão, o único a se insurgir foi Hélio Bicudo. E se outros tivessem tido a sua coragem? E se Lula tivesse dado o exemplo, cortando na própria carne? A verdade é que não dá para se esconder atrás da história e da sociologia para justificar tudo isso que está aí.
Coragem cívica anda em falta. Não se espere isso dos apparatchiks da máquina petista. O que mais constrange é o silêncio dos intelectuais próximos ao partido. Uma exceção é Eugênio Bucci. Leia-se e releia-se o seu O inferno astral da estrela branca" (29/11, A2). Diz ele que o PT "precisa arcar com a responsabilidade de fortalecer a democracia que ajudou a conquistar". O difícil é que isso implica enfrentar a herança de Lula e José Dirceu, sem os quais, para o bem e para o mal, o PT não seria o que é hoje.
Uma coisa é certa: o PT não mudará enquanto estiver no Planalto. Caberá aos eleitores fazê-lo descer novamente à planície. Pois só a derrota ensina.
Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

"Marighella’ resgata protagonista da luta armada esquecido pela história oficial

Livro do jornalista Mário Magalhães revela que guerrilheiro estava desarmado quando foi morto pelo Dops, em 69. Biografia revela doações de artistas como Miró e Godard e “mensalinho” pago por Adhemar de Barros ao comunista

Raphael Gomide iG Rio de Janeiro

Dops-RJ / Divulgação biografia Marighella
 
Marighella mostra a jornalistas ferimento a bala em prisão no cinema, em 1964
O jornal francês “Le Monde” o chamava de “mulato hercúleo”, a revista Time fantasiou olhos verdes – eram castanhos –, a CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) o descreveu em relatórios como “sucessor de Guevara” e inspirador de movimentos revolucionários na América Latina. Deputado da constituinte de 1946, cassado quando o partido foi declarado ilegal, o baiano Carlos Marighella aderiu à luta armada durante a ditadura militar, instituída em 1964.
Fundou e comandou a maior organização do gênero, a ALN (Ação Libertadora Nacional), e passou a “inimigo público número 1”, nas palavras do ministro da Justiça, Gama e Silva. Marighella viveu e sofreu quatro das décadas mais intensas da política nacional.
Desarmado, sem seguranças e de peruca, sua vida acabou com quatro tiros, em novembro de 1969, ao tentar alcançar o veneno que levava na pasta, em um “ponto” da ALN, na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Organizada pelo temido delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) paulista Sérgio Paranhos Fleury, que lhe deu voz de prisão antes da fuzilaria, a operação tinha mais de 30 policiais. “Matamos Carlos Marighella”, contou uma agente à mãe, por telefone.
Figura notória na ditadura, quando estampou duas capas da revista Veja, Marighella passou a um nome esquecido da História brasileira, quase ausente nos livros escolares e desconhecido da juventude. O jornalista Mário Magalhães, 48, dedicou nove anos – mais de um terço de sua carreira de 26 anos – para resgatar a história “de cinema” desse neto de escravos e filho de italiano em 732 páginas no livro “Marighella – O Guerrilheiro que incendiou o mundo”, da Companhia das Letras (R$ 56,50).
 
Invisível nos livros de História
Polícia SP/ Divulgação biografia
 
Marighella fichado pela polícia política, em 1939, em São Paulo
“De todos os brasileiros, a vida que identifiquei como a mais fascinante a ser contada foi a de Marighella. Pode-se não gostar dele, mas é impossível ficar indiferente a ele. É um gigante da História do Brasil e um dos brasileiros com maior projeção no exterior. A ausência dele nos livros de História é uma desonestidade intelectual – seria o equivalente a tirar Carlos Lacerda. Não defendo que o promovam, mas não podem omiti-lo”, disse Mário Magalhães ao iG .
Tendo passado boa parte de sua atividade política na clandestinidade, Marighella dificultou o trabalho de seu biógrafo, não tendo deixado diários ou agendas. Para escrever sua reportagem predileta, Magalhães entrevistou 256 pessoas, consultou bibliografia de 600 livros e pesquisou em 32 arquivos públicos – no Brasil, Rússia, República Tcheca, Estados Unidos e Paraguai.
A obstinação – quase obsessão – de Mário Magalhães pela comprovação da prova jornalística o levou a fazer 2580 notas. “A vida de Marighella é tão espetacular que daria margem ao leitor imaginar que havia ficção em um livro que só narra fatos reais. Além disso, é direito do leitor saber a origem de cada informação”, justificou.
Pelo projeto de contar a história “de um brasileiro maldito”, “tido como meio amalucado até por amigos próximos”, Magalhães deixou um confortável emprego na Folha de S.Paulo, onde tinha sido ombudsman e trilhara carreira de destaque e prêmios.
 
Ateu no candomblé e doações de artistas
Divulgação/Biografia Marighella
 
Após ser baleado no cinema no Rio, é levado preso
Na pesquisa, foram ouvidos da professora no Ginásio da Bahia ao policial que o revistou logo após a morte e revelou que o guerrilheiro não estava armado – refutando a versão policial, que ficou registrada na História. As descobertas do autor corrigiram lendas, como essa, e revelaram histórias pitorescas.
Mulato baiano da Fonte Nova, Marighella não bebia, não fumava e, embora se declarasse ateu, Magalhães descobriu que o filho de mãe carola iniciou-se no candomblé, e se descobriu “filho de Oxóssi”. Amante da poesia – no colégio, respondeu uma prova de física com versos –, o guerrilheiro mais procurado do País encontrou tempo para, na clandestinidade, escrever, imprimir e distribuir um livro de versos, boa parte deles eróticos. Inspirou artistas como o catalão Joan Miró e os cineastas Jean-Luc Godard e Luchino Visconti a fazer doações a sua causa.
 
Tortura
Divulgação biografia Marighella
 
Marighella, aos 24 anos, após três semanas de tortura, no Rio
Pela tortura, passou uma vez, em 1936, sob Getúlio Vargas, nunca durante a ditadura militar iniciada em 64. Foram 22 dias de suplícios nas mãos da polícia. Socos no estômago, golpes com canos de borracha nas plantas dos pés, foi açoitado nos rins, costas e nádegas. Pontas de cigarro eram apagadas no seu corpo. Com um alfinete tirado da gravata, um policial enfiou-lhe o metal sob as unhas, dedo por dedo.
Tornou-se liderança do Partido Comunista Brasileiro nos anos 40, década que dividiu entre presídios em locais paradisíacos, como Fernando de Noronha (PE) e Ilha Grande (RJ), e a Assembleia Constituinte, no Rio. Após ser libertado da prisão política pelo regime de Getúlio Vargas, no pós-guerra, elegeu-se deputado pela Bahia, na bancada comunista que incluía o escritor conterrâneo Jorge Amado. O “Cavaleiro da Esperança” e líder máximo do PCB Luís Carlos Prestes, foi eleito senador pelo Distrito Federal.
O deputado tinha três ternos, doados, e amarrava as mangas da camisa com cordinhas; o cinto partiu-se e adaptou outra corda, qual capoeirista. Homem de partido, destinava 92% do seus 15 mil cruzeiros mensais – equivalente a R$ 20.926, em valor corrigido pelo IGP-DI – ao PCB. Vivia com 1200 cruzeiros – R$ 1674 – por mês, e dividia o apartamento com uma família e um amigo. Acabou cassado em 47, com o voto do futuro presidente Juscelino Kubitschek, depois de o TSE pôr o PCB na ilegalidade.
 
Terrorista
Divulgação/ Biografia Marighella
 
Marighella deputado, com um dos seus três ternos
Nos anos 50, organizou greves, foi à China e à União Soviética. Veio a ditadura em abril de 64, e em julho quiseram prendê-lo em um cinema na Tijuca. Reagiu, levou um tiro e foi levado no camburão. Mais adiante, passou à luta armada, quando Moscou era contra e rompeu com o PCB. Criou a ALN e aparecia nos cartazes de “terroristas procurados” do regime militar.
Homem de ação, escreveu o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, apanhado de erros e acertos da ALN que se tornou um sucesso na esquerda internacional. Em “Ditadura Escancarada”, o jornalista Elio Gaspari diz que o “guerrilheiro urbano de Marighella é algo mais que um super-homem”. A descrição é a de, no mínimo, um James Bond, o 007 dos filmes e livros de Ian Fleming.
“É muito importante aprender a conduzir um automóvel, pilotar um avião, dirigir um barco a motor ou a vela”, [o guerrilheiro] deve “conhecer a arte de se disfarçar”, ter “conhecimento de química e de combinação de cores, fabricação de carimbos, o perfeito conhecimento de caligrafia e de imitação das escritas”, “ser um grande tático e um bom atirador”. O próprio Marighella falharia em cumprir uma das mais prosaicas “exigências”: não dirigia. A peruca do disfarce tampouco enganou a polícia na noite de sua morte.

Divulgação / biografia Marighella
Capa da biografia de Marighella, de Mário Magalhães

Magalhães afirma que, apesar de se definir como “terrorista” e guerrilheiro, Marighella condenava atentados contra alvos civis e usava a concepção de “terror” da Resistência francesa à ocupação nazista na 2ª Guerra Mundial.
Na ilegalidade, o protagonista do livro recebeu dinheiro da União Soviética e o autor revela até um “mensalinho” do insuspeito governador de São Paulo Adhemar de Barros – cujo cofre, após a morte, abasteceria outra organização armada, a VAR-Palmares, que o roubou no Rio.
O famoso “ouro de Moscou”, entregue ao PCB no início dos anos 1960, equivaleria hoje a algo entre US$ 752 mil e US$ 1,13 milhão pagos anualmente e superava, para efeito de comparação, o arrecadado em 30 roubos pela ALN em 1968. Antes chamado de “traidor” por Marighella, Adhemar de Barros lhe pagava um “mensalinho” de cerca de US$ 10 mil, em apoio ao PCB clandestino. “Esse mensalinho não lustra a biografia de ninguém”, disse Mário Magalhães.
Fez curso de guerrilha em Cuba e mandou guerrilheiros para lá, comandou assaltos, teve amantes – dizia que “o adultério é tão inevitável como a morte” – e foi espionado pela CIA e o KGB. Mesmo dirigente máximo da ALN, organização de luta armada que fundou, foi “o último a saber” do mais audacioso golpe da guerrilha no Brasil: o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em setembro de 69. Foi ação da DI-GB (Dissidência Comunista da Guanabara), com o apoio da ALN. “Cutucaram a onça com vara curta”, pressentiu Marighella.
 
Morte
Divulgação/ Biografia Marighella
Mário Magalhães levou nove anos para escrever a biografia de Marighella

Foi morto exatos dois meses depois, pela equipe do policial Sergio Fleury, cujos métodos de tortura superavam os do nazista Klaus Barbie, o “Açougueiro de Lyon” da 2ª Guerra Mundial, na avaliação de um ex-membro da Resistência francesa, sobrevivente do suplício físico nos dois lugares.
Diferentemente do que a polícia alardeou à época, estava desarmado e sem seguranças. Segundo o autor, Marighella só portava seu revólver calibre 32 ou sua pistola 9mm em ações, o que não ocorria já havia algum tempo.
O guerrilheiro – ou terrorista, dependendo do ponto de vista – mais procurado do País morreu sozinho, cercado de inimigos.
Lançado no fim de outubro, no ano seguinte ao centenário de nascimento do protagonista, o livro já teve 27 mil exemplares impressos (a tiragem inicial foi de 12 mil) e recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, como melhor biografia de 2012.
O autor disse ter recebido três sondagens para adaptações para o cinema. “A dúvida é se o ator principal será Denzel Washington ou Wesley Snipes. As mulheres preferem Washington”, brinca.

Secretaria da Segurança Pública SP/DIvulgação
Marighella, morto no Fusca, em 1969


A negação da política contra o regime militar (Marco Antonio Villa)

Revolucionários nunca tiveram objetivo no campo democrático. Sem ideias, só personalismo e, como mostra Marighella, ação terrorista e violência. Para quê?
O recém-lançado livro "Marighella: o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" (Companhia das Letras), de Mário Magalhães, permite uma série de reflexões sobre a esquerda brasileira.
Isso porque o autor fez uma pesquisa exemplar, exaustiva. Focou -e não poderia ser diferente, sendo uma biografia- a vida pessoal e política de Carlos Marighella, desde seu nascimento, em Salvador, até sua morte, em São Paulo.
Ao longo dos 58 anos da vida de Marighella, o leitor percorre o caminho tortuoso da esquerda sempre à procura de um farol, de uma Roma vermelha: começando em Moscou, passando por Pequim, depois Havana, Tirana e, quem diria, mais recentemente, Caracas. Viveu de descobertas e, principalmente, de desilusões. E acabou perdendo a possibilidade de entender o Brasil.
Não é acidental que a esquerda revolucionária tenha sido derrotada em todas as batalhas políticas. Restou obter vitórias no campo ideológico e construir mitos, despolitizando-os e transformando-os em heróis, mas heróis fadados ao fracasso. Na falta de ideias, sobrou o culto personalista.
A iniciação política de Marighella teve início durante o primeiro governo Vargas. Logo conheceu a prisão e a barbárie dos torturadores. Ficou muitos anos preso.
Com a anistia de 1945 e a legalização do Partido Comunista, foi eleito deputado constituinte pela Bahia. Dois anos depois, perdeu o mandato e o PC foi novamente perseguido. Viveu em São Paulo como militante profissional. Como todos comunistas da sua geração, tinha em Stálin e em Luís Carlos Prestes os modelos a serem seguidos.
Seu momento de inflexão política foi em 1964. Criticou a estratégia do PCB. Da crítica, chegou ao rompimento e à fundação da Ação Libertadora Nacional.
A ALN recusava qualquer luta política. Diz Marighella: "O dever de todo revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários; e o terceiro é que só temos compromissos com a revolução". Escreveu que o "conceito teórico" que o guiava "é o de que a ação faz a vanguarda" e que "a ação é a guerrilha".
A trajetória de Marighella entre os anos 1964 e 1969, parte mais importante do livro, reforça a negação da política em uma guerra aberta contra o regime militar.
O que não se vê é qualquer ato de busca de apoio popular, de organização, de traçar algum objetivo no campo democrático. Tudo se resume à ação terrorista, à violência. E a cada ação, maior o isolamento.
O máximo de atividade efetivamente política nos atentados, sequestros ou assaltos a bancos são os panfletos atirados logo após alguma "ação revolucionária".
Marighella passou os últimos cinco anos da sua vida como a maior parte dos anteriores: fugindo, se escondendo dos seus perseguidores.
Depois de tantas fugas, sacrifícios, sem vida pessoal plena, em meio à violência e ao sadismo da repressão militar, ficam algumas (incômodas?) perguntas: para que tudo isso? É a busca do martírio? É a tentativa de colocar seu corpo para o sacrifício ritual da revolução? Anos e anos fugindo produziram o quê? O que, do pouco que escreveu, poderia ficar para a construção do Estado democrático de Direito? Que ideia serviria para nortear a consolidação da democracia e do respeito aos direitos humanos?
É difícil, muito difícil, encontrar alguma resposta positiva.
A trajetória de vida do revolucionário baiano serve para refletir como as ideias democráticas tiveram enorme dificuldade de prosperar no Brasil. E mais: mostra como avançamos nos últimos 25 anos enfrentando o autoritarismo histórico das elites políticas. Principalmente quando observamos o século 20 brasileiro, marcado pela negação da política e pela exaltação da violência.
Marco Antonio Villa, 56, é historiador, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Mensalão: o Julgamento do Maior Caso de Corrupção da História Política Brasileira" (LeYa)
Fonte: Folha de S. Paulo

Mexeu com a igualdade, mexeu com todo mundo (Fernando Gabeira)


O sucesso do filme Lincoln, de Steve Spielberg, inspirou uma série de artigos nos Estados Unidos ressaltando a importância da política, quando é realizada por pessoas generosas com o objetivo de melhorar a vida de milhões.
Os articulistas esperam que a exibição do filme leve os espectadores a lamentar a mediocridade da atmosfera política de hoje e que desperte o desejo de elevar seu nível por meio da própria participação.
Não vi o filme, apenas as entrevistas de Spielberg e de Daniel Day-Lewis, que interpreta Lincoln. Consegui, entretanto, o livro que, de certa forma, inspirou o filme: Team of Rivals, The Political Genius of Abraham Lincoln, de Doris Kearns Goodwin. A autora se estende também na biografia dos três candidatos que disputaram com Lincoln no Partido Republicano. Todos jovens ambiciosos e capazes, admirados pelos seus eleitores.
Não posso prever que efeito o filme terá nos Estados Unidos. Noto apenas que a época empurrava para a grandeza: todos saíram de casa e cruzaram os Estados Unidos para construir sua carreira. E havia um grande tema esperando por eles: a escravidão.
Os grandes temas ajudam, quando os políticos são capazes. Joaquim Nabuco, no Brasil, enriqueceu sua trajetória na luta contra a escravidão. Lincoln é produto de outra cultura e se insere de modo especial no momento político americano. Mas, como a reflexão sobre a política trata de variáveis universais, pode ser que desperte algum interesse no Brasil.
Vivemos um momento estranho. Dois presidentes, José Sarney e Lula, defendem-se reciprocamente com o argumento de que estão acima de suspeitas ou investigações. Sarney conferiu a Lula a condição de inalcançável e este, por sua vez, no auge do escândalo no Senado, afirmou que Sarney não deveria ser tratado como uma pessoa qualquer. Criaram uma irmandade dos intocáveis. Sarney já tem um museu dedicado à sua vida; Lula está a caminho de construir o seu.
Além de intocável e com um museu ainda em vida, Sarney também é imortal. Essa condição ainda falta a Lula, mas não me surpreenderia se o amigo conseguisse para ele uma cadeira na Academia de Letras.
Na década de 1960, escrevi um artigo ironizando as pessoas que se achavam especiais porque moravam em Ipanema. Até hoje rola pela internet. Jovem existencialista, mostrava a futilidade de se julgar especial por pertencer a algum lugar ou grupo ou mesmo por alguma condição nata. Era a forma de negar a importância das opções cotidianas, a construção de nossa realidade por meio das escolhas mais intrincadas. Sarney e Lula não reivindicam uma vantagem nata, muitos menos a que decorre do pertencimento a um grupo ou lugar. Eles se reclamam intocáveis pelos serviços prestados ao País. E nisso reside seu erro monumental. Não existem serviços prestados ao País que possam garantir uma condição acima de qualquer suspeita. E, se foram prestados com essa expectativa, corrompem as suas próprias intenções generosas.
Sarney e Lula fizeram nesse aspecto particular um pacto pelo atraso. Com o domínio do Congresso que o primeiro exerce e a popularidade do segundo, continuam com potencial de mobilizar a maioria. Mas sempre existirá uma minoria, resistindo com a frase tantas vezes subversiva: somos todos iguais perante a lei.
Compreendo que há uma luta política. Os governistas precisam proteger a imagem de Lula, pois ela é a garantia de futuras vitórias eleitorais. O desgaste de Lula enfraquece um projeto de poder.
Não compreendo, entretanto, o argumento que nos faz retroceder ao período anterior à Revolução Francesa. Esse desejo de poder estendido ao controle da biografia, da inevitabilidade da morte, do alcance da lei, é um desejo patético.
Mesmo aqueles que acham que o mundo começou com o nascimento de Lula, em Garanhuns (PE), ou com o nascimento de José Ribamar, em Pinheiro (MA), deveriam ser sensíveis à bandeira da igualdade.
A fraternidade dos intocáveis é uma construção mental que rebaixa as conquistas do movimento pela democratização no Brasil e nos divide entre semideuses e seres humanos.
Na verdade, o argumento dos dois presidentes aprofunda a desconfiança na política e nos políticos. Por isso a chegada de Lincoln, o filme, apesar de uma cultura e uma época diferentes, pode ser um pequeno sopro de ar fresco na sufocante atmosfera política brasileira.
Nem nos Estados Unidos nem aqui é possível repetir a grandeza política de Lincoln. Já no segundo capítulo do livro de Doris Goodwin é possível imaginar como Lincoln brigaria feio com os marqueteiros modernos: ele se recusava a dramatizar ou sentimentalizar sua infância na pobreza.
Ainda assim, com todas as ressalvas, precisamos de outras épocas, outros líderes, para ao menos desejar algo melhor do que o que estamos vivendo. Não me refiro, aqui, à satisfação majoritária com as condições materiais de vida. Muito menos quero dar à trajetória democrática no século 21 a dramaticidade de um tempo de guerra e escravidão.
Quando um presidente do Brasil diz uma barbaridade, sentimos muito. Quando dois presidentes dizem a mesma barbaridade, isso nos obriga a apelar para tudo, até para um bom cinema.
Depois do cha cha cha della secretaria, Lula se vê em apuros com as denúncias de Marcos Valério. Concordo com os petistas de que não se deva confiar nele, embora tenham confiado tão profundamente em 2003. Mas a melhor maneira de desconfiar é analisar as acusações, apurando-as com cuidado. É assim que se descobre o que é verdade e o que é mentira.
Fora disso, só construindo uma redoma onde Lula e Sarney possam estar a salvo dos percalços que ameaçam os simples mortais. E criar essa visão religiosa de uma santíssima dualidade. E ninguém se ajoelha e reza diante dela, porque a ferramenta hoje não é oração do passado. Basta um #tag.
Se Sarney e Lula se contentassem com um museu e a condição de imortais, tudo estaria bem. Mas, mexeu com a igualdade, mexeu com todos nós.

Fonte: O Estado de S. Paulo