domingo, 13 de março de 2011

No coração da matéria (Rutherford e os 100 anos da descoberta do núcleo atômico)

Rutherford e os 100 anos da descoberta do núcleo atômico

RESUMO
Há 100 anos, Ernest Rutherford (1871-1937) formulou o moderno modelo do núcleo atômico, que revolucionou a física moderna: um caroço duro e diminuto, que concentra 99,9% da massa do átomo. Ambicioso e aplicado, prêmio Nobel de química de 1908, Rutherford é a antítese do clichê espontaneístav de "gênio" da ciência.

CÁSSIO LEITE VIEIRA

NO OBITUÁRIO QUE o "New York Times" publicou em 20 de outubro de 1937, lia-se que poucos humanos atingiram, em vida, a imortalidade -e, muito menos, o Olimpo. As palavras refletem a extensão da fama do físico neozelandês Ernest Rutherford, cuja biografia lembra a de heróis de contos infantis em que garotos pobres se tornam nobres e admirados.
A obra científica de Rutherford impressiona. Mas ele será sempre lembrado como aquele que escavou o átomo a fundo e, de lá, trouxe ao mundo o coração da matéria, o caroço duro e diminuto que ele batizou "núcleo atômico".
Para entender Rutherford e suas descobertas sobre a radioatividade, a estrutura dos átomos e a transmutação dos elementos, é preciso descrever, ainda que brevemente, a física do final do século 19, da qual ele é fruto. Nas palavras do historiador da ciência Erwin Hiebert, esse cenário era marcado por uma crescente percepção de uma unidade das ciências físicas; pela urgência em abarcar os fenômenos do "muito grande" e do "muito pequeno" em uma só visão do mundo; por uma nova atitude, mais ousada, em relação à especulação científica; e pela ênfase nas colaborações científicas.
Segundo Hiebert, os físicos estavam prontos para (se preciso) construir um mundo radicalmente novo para englobar os novos (e aparentemente não relacionados) fenômenos: elétrons, raios X e radioatividade. Esta última -radiação cuspida espontaneamente pelos átomos- era um constrangimento para a física e a química do século 19, que não podiam explicá-la.
Rutherford, depois de um flerte com as ondas de rádio, descobertas em 1887, passou a estudar a radioatividade, campo que então reunia os elementos básicos para uma (próspera) carreira científica: era intrigante, fascinante, promissor e -principalmente- ininteligível. E com pouquíssima bibliografia -como justificou, mais tarde, a física polonesa Marie Curie, ao escolher o tema para seu doutorado naquele final de século.

ESFORÇO E SORTE Nascido em 1871, em Spring Grove (hoje, Brightwater), área rural ao sul de Nélson, na Nova Zelândia, Rutherford cresceu em família pobre, com pai mecânico e agricultor e mãe professora primária. Era o quarto de 12 filhos. Foi nesse ambiente que, segundo o historiador da ciência Lawrence Badash, no verbete "Rutherford (1871-1937)" do "Dicionário de Biografias Científicas" (Contraponto, 2007), se forjaram os princípios que levariam o jovem Ernest da periferia do império britânico ao posto de cientista mais famoso do início do século passado: simplicidade, retidão, economia, energia, entusiasmo e muita leitura.
As biografias de Rutherford costumam extrapolar para sua juventude o talento de sua maturidade. Pesquisas feitas pelo físico e biógrafo John Campbell mostraram que o estudante -talentoso em matemática e física- estava mais para esforçado e iluminado pela sorte do que para "gênio". Suas oportunidades acadêmicas se concretizaram porque os primeiros colocados acabavam, por algum motivo, não aceitando as bolsas de estudo.
Foi uma dessas bolsas que levou Rutherford, em 1895, ao Laboratório Cavendish, em Cambridge (Inglaterra), referência em física experimental. No ano seguinte, Rutherford finalizou um detector que podia captar ondas eletromagnéticas a até 800 metros -feito tecnológico comparável a um telégrafo sem fio. Começava assim a manifestar, em continente europeu, sua grande capacidade de imaginar, projetar e construir artefatos.
Rutherford tentou patentear seu detector, mas seus ganhos impossibilitavam essa despesa extra: sua bolsa mal o sustentava, atirando-o no limite entre a pobreza e a miséria. Assim, o desenvolvimento do telégrafo sem fio ficaria a cargo do italiano Guglielmo Marconi, que levaria o Nobel de Física de 1909 pela invenção.

O detector e outras habilidades experimentais de Rutherford impressionaram seu chefe no Cavendish, Joseph John Thomson, que, em 1897, descobriria a primeira partícula subatômica, o elétron. A partir de então, a palavra átomo (que em grego significa "não divisível") passaria a ser uma contradição semântica.
Nos últimos 2,5 mil anos, vários modelos de átomos haviam sido idealizados, mas essas entidades diminutas sempre obedeceram aos ditames do filósofo grego Leucipo (c. 500-450 a.C), pai do atomismo: "Toda a realidade consiste em partículas duras e indivisíveis, movendo-se e colidindo no espaço vazio".

PERIFERIA Rutherford também desistiu de Cambridge. Percebeu que, lá, alguém da periferia teria poucas chances de promoção -ele foi, no Cavendish, um dos primeiros estudantes de pesquisa não formados em Cambridge. Indicado por Thomson, que o classificou como o melhor aluno que já tivera, acabou aceitando, em 1898, uma vaga na Universidade McGill, no Canadá, cujo laboratório de física era um dos mais bem equipados do mundo e que entraria para o mapa-múndi da ciência pelas mãos de Rutherford.
Com o auxílio do químico inglês Frederick Soddy, Rutherford passou a trabalhar intensamente. Ambicioso, seu objetivo era publicar muito, para um dia voltar à Inglaterra, onde poderia não só fazer física de primeira, mas também estar ao lado de quem a fazia. De Montreal, escreveu para sua futura mulher, Mary Georgina Newton, com quem se casaria em 1900: "Quero trabalhar bastante e formar uma escola de pesquisa, para ofuscar todo o brilho dos ianques!".
Décadas mais tarde, o ex-físico e escritor inglês C. P. Snow o caracterizou como "exuberante, extrovertido e nada perceptivelmente modesto".

TRANSMUTAÇÃO A dupla Rutherford e Soddy não demorou a apresentar resultados surpreendentes sobre a radioatividade. Um deles: a emissão de radiação fazia com que um elemento químico se transformasse em outro. Ganhou o nome de "transmutação nuclear", teoria que derrubava outra propriedade atribuída ao átomo ainda na Antiguidade: a indestrutibilidade.
A transmutação cheirava a alquimia -na época, já morta e enterrada-, e Rutherford foi cuidadoso em buscar apoio para a ideia junto a químicos de renome, como o britânico sir William Crookes. Com base nessa teoria, calculou a idade de rochas em bilhões de anos, desmontando assim argumentos geológicos, biológicos e religiosos sobre a idade da Terra.
Esses e outros resultados (por exemplo, a descoberta do gás radônio) lapidaram a imagem científica e pública de Rutherford -que se tornou o "Sr. Radioatividade"-, reforçada pela publicação, em 1904, de seu clássico "Radio-Activity". No início do século, sua fama ultrapassava a de Henri Becquerel, o descobridor da radioatividade, e do casal Pierre e Marie Curie, que haviam descoberto dois novos elementos radioativos, o polônio e o rádio. O trio recebeu o Nobel de Física em 1903. Inicialmente, Rutherford os tinha como adversários. Mais tarde, desentendeu-se com Becquerel; com os Curie manteve amizade e admiração mútua, especialmente com Marie.
Os resultados no Canadá renderam a Rutherford o Nobel de Química de 1908. Química? Sim, pois o assunto radioatividade, para o comitê do prêmio, pertencia a essa área. Rutherford resumiria a situação com humor: "Lidei com várias e diferentes transformações em diversos períodos, mas a mais rápida com que me defrontei foi a minha própria transformação de físico em químico". Embutida na frase, há seu preconceito em relação à química -para ele, ciência "malcheirosa". Por sinal, classificava todos os outros ramos das ciências naturais como "coleção de selos".

RUMO AO NÚCLEO O esforço e a perseverança de Rutherford se evidenciaram naquele ano e meio em que ele se debruçou sobre os resultados obtidos pelo físico neozelandês Ernest Marsden entre 1909 e 1910. A ideia do experimento, baseado no bombardeio de uma folha finíssima de ouro com partículas alfa (núcleos de hélio) havia nascido de observação um tanto desconfiada de um experimento anterior, no qual um feixe semelhante de partículas, depois de atravessar uma folha fina de mica, formava, em um anteparo, uma mancha difusa, um borrão. A intuição indicava, com base no que se concebia ser o átomo e as partículas alfa (estas últimas, para Rutherford, "gigantescas" como átomos), que o feixe não sofreria esses desvios.
O mistério permaneceu com Rutherford até que ele e seu assistente, o físico alemão Hans Geiger, resolvessem atacar a questão na Universidade de Manchester, na Inglaterra, para onde Rutherford havia se transferido, ocupando a vaga deixada especialmente para ele pelo físico anglo-alemão Arthur Schuster. Para a tarefa, designaram Marsden, aos 20 anos de idade. A engenhosidade -lançar partículas contra um alvo- foi tamanha que o experimento até hoje é o princípio para perscrutar o interior do átomo.
As partículas alfa vinham de uma fonte radioativa e, transformadas em feixe, eram lançadas contra a finíssima folha de ouro (de 0,00006 centímetro), que estava circundada por uma tela cintilante. A maioria das partículas alfa, viajando com velocidade comparável à de uma bala de fuzil, atravessavam a folha de ouro, quase sem se desviar da trajetória original. Algumas sofriam desvios maiores, atingindo a tela em pontos diversos, que brilhavam com a colisão.
Mas -e aí está o que Rutherford macerou mentalmente por um ano e meio- uma em cada 20 mil partículas, em média, ricocheteava de volta em direção à fonte emissora. Os cálculos finais de Rutherford sugerem uma caligrafia trêmula -talvez, uma reação àquilo que ele começava a entender: toda a massa atômica estava concentrada num caroço central, responsável por desviar ou mesmo rebater de volta as partículas alfa. O átomo, portanto, era um grande vazio. Sintetizou a espantosa conclusão afirmando que seria como se canhões de grosso calibre atirassem contra uma folha de papel e os projéteis voltassem em sua direção.
O núcleo era diminuto (cerca de 0,0000000000001 centímetro), ou seja, o diâmetro atômico teria aproximadamente 10 mil vezes o tamanho do núcleo. Se o átomo tivesse o diâmetro do Maracanã, o núcleo teria mais ou menos o tamanho da cabeça de um alfinete. Se juntássemos todos os núcleos dos átomos que compõem o corpo humano, eles não seriam maiores do que um grão de areia.
O modelo atômico nuclear de Rutherford desbancou aquele idealizado por Lorde Kelvin e aperfeiçoado por Thomson, o chamado "pudim de passas", no qual os elétrons seriam "passas" incrustadas em uma "massa" de carga elétrica positiva. Esse tipo de átomo, pela disposição de seus elementos, não explicava por que as partículas alfa batiam contra a folha de ouro e voltavam.
O modelo de Rutherford não recebeu muita atenção, mas deu início à viagem da ciência rumo ao centro da matéria. E, de certa forma, confirmou as ideias de 1903 do físico japonês Hantaro Nagaoka -citado por Rutherford-, cujo átomo tinha um núcleo gigante, rodeado por elétrons, lembrando os anéis de Saturno.

O ALQUIMISTA Em 1919, Rutherford publicou os resultados que o tornariam o primeiro alquimista da história -feito tão impressionante quanto o núcleo atômico. No experimento, bombardeou átomos de nitrogênio com partículas alfa, produzindo oxigênio e, de quebra, o próton, partícula de carga positiva de cuja existência ele já desconfiava desde o núcleo atômico.
A transmutação de nitrogênio em oxigênio foi seguida, no entanto, de queda significativa de resultados importantes no Laboratório Cavendish, que, desde 1919, após Thomson, estava sob a liderança de Rutherford. A essa altura, Rutherford -que não tinha a física teórica em grande estima- percebeu que precisaria de ajuda para projetar experimentos na área da teoria quântica, que lida com os fenômenos do mundo atômico e subatômico e que ganhou grande impulso na década de 1920. Contratou Ralph Fowler, que, em 1921, casou-se com sua única filha, Eileen Mary Rutherford (1901-1930).
Se tanto fez Rutherford, então por que não recebeu um segundo Nobel? A hipótese mais provável é a de Campbell: o comitê estava certo de que mais um prêmio não acrescentaria nada a sua fama.
A historiografia da ciência vê em Rutherford as origens da "Big Science", o tipo de ciência (principalmente física) feita depois da Segunda Guerra, com enormes volumes de dinheiro, grande quantidade de pesquisadores, laboratórios nacionais, temas por vezes ligados a questões militares. Badash enxerga Rutherford como precursor na formação de equipes de pesquisa, nos laboratórios com numerosos integrantes, no grande fluxo de publicações, na internacionalização dos resultados, nos esforços de especialização, nos meios de disseminação da informação, e na competição -todos eles moeda corrente na ciência atual.
A tese de Badash -apesar de bem argumentada- causa espanto para aquele que conheceu o Cavendish nos tempos heroicos, nos quais um aluno que precisasse de um cano de aço para um experimento recebia uma serra e uma bicicleta velha, da qual devia extrair o que desejava. Era a era romântica da física experimental, com experimentos feitos em prédios úmidos, empoeirados, cheio de fios e equipamentos dispostos sem ordem aparente, empestados pela fumaça dos charutos do chefe, que fazia, para o temor dos estudantes, a ronda diária. Época de físicos com mãos e roupas sujas de graxa.

NÊUTRON A indiferença de Rutherford em relação à mecânica quântica -cuja matemática ia muito além de seus conhecimentos- só foi amenizada com a volta dos grandes resultados do Cavendish. Em 1932, James Chadwick descobriu o nêutron, partícula sem carga elétrica, companheira do próton no núcleo atômico. Chadwick percebeu que aquela partícula, cuspida depois que átomos de berílio eram bombardeados com partículas alfa, não era um raio gama -como foi teorizado à época-, mas algo que seu chefe, Rutherford, já havia proposto em 1920: o nêutron.
Agora, o modelo atômico parecia se completar: prótons, nêutrons e elétrons. Mas a descoberta ou a proposição de novas partículas subatômicas (pósitron, múon, píon) na década de 1930 viriam embaralhar o cardápio dos constituintes básicos da matéria, justamente numa época em que havia muita resistência à aceitação de novos membros nesse clube, cujas portas os físicos sonhavam em fechar. Foi uma época da qual Rutherford desfrutou pouco, assoberbado por palestras, compromissos, cargos e tarefas burocráticas.

AOS PÉS DE NEWTON Aquele neozelandês de olhos claros, voz grave e tenebrosa, que metia medo em seus alunos, exigente e com pouca paciência para experimentos que tardavam a dar resultados foi, no entanto, respeitado e admirado. Sua humildade foi reconhecida: não pôs seu nome em artigos importantes, mesmo que a ideia do experimento tenha partido dele. Não pleiteava nem dinheiro, nem equipamento além do que realmente precisava.
Passou por momentos difíceis. O pior foi a morte de sua filha no parto de seu quarto neto. Lutou pela paz mundial (pediu que aviões não fossem usados para fins bélicos), participou do esforço de guerra para deter o avanço nazista, defendeu a liberdade de imprensa e o direito das mulheres na ciência, concedendo bolsas e oportunidades para físicas.
Até 1930, quase tudo que havia sido feito sobre a estrutura nuclear vinha de Rutherford, escreveu o historiador da física Daniel Kevles. O problema do modelo atômico nuclear -instabilidade, segundo as regras da física clássica- foi corrigido com base na teoria quântica, em 1913, por um de seus ex-alunos em Manchester, o físico dinamarquês Niels Bohr.
Tornou-se sir em 1914 e foi o primeiro barão Rutherford de Nélson em 1931. Em seu brasão, escolheu homenagear seu país natal, com símbolos da Nova Zelândia (um pássaro kiwi e um guerreiro maori). Suas pesquisas em radioatividade e física nuclear hoje levam conforto e saúde a boa parte da população, por meio de usinas nucleares e equipamentos de diagnóstico e tratamento para o câncer, para citar apenas dois casos.
Os restos de Rutherford -morto em 19 de outubro de 1937, aos 66 anos, em Cambridge, por postergar a cirurgia de sua hérnia umbilical- estão aos pés do magnífico altar de Isaac Newton, na Abadia de Westminster, em Londres. Assim, aquele que quiser chegar a Newton, para observar o passado, deverá necessariamente passar por Rutherford. Nada mais justo.

"Lidei com várias e diferentes transformações em diversos períodos, mas a mais rápida com que me defrontei foi a minha própria transformação de físico em químico", afirmaria Rutherford

"Suas pesquisas hoje levam conforto e saúde a boa parte da população, por meio de usinas nucleares e equipamentos de diagnóstico e tratamento para o câncer"
FSP

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