domingo, 28 de agosto de 2016

Torço para que Dilma examine as causas de sua queda (Demétrio Magnoli)

Presidenta Dilma Rousseff, lembro-me, como todos, de sua promessa de abril: "Se eu perder, estou fora do baralho". A derrota, sabemos, já aconteceu; o Senado apenas a oficializará. Torço para que, "fora do baralho", examine as causas de sua queda.
Não culpe os outros ("golpe das elites") ou as circunstâncias ("crise internacional"). Investigue seus erros, sobretudo um, que interessa ao futuro da convivência democrática no Brasil. Refiro-me ao sectarismo. Mais que às "pedaladas fiscais" ou ao escândalo na Petrobras, sua derrota final deve-se ao sectarismo.
O sectário, no sentido que aqui interessa, é o militante convicto, intolerante, de uma doutrina faccional. No fracasso de sua política econômica encontram-se as raízes do impeachment. Não lhe faltaram alertas: diversos economistas sérios avisaram que o voluntarismo estatal conduziria à inflação, ao déficit, à dívida, à erosão da produtividade e, finalmente, à depressão.
Sua resposta sistemática, e a dos seus, foi rotulá-los como agentes de interesses antipopulares: serviçais das altas finanças ou do imperialismo. Não teria sido apropriado enxergar aqueles economistas "liberais" como brasileiros tão bem-intencionados quanto os economistas "desenvolvimentistas" que a cercavam? Mas o sectário concentra-se nos motivos supostos, não nas ideias, dos que o criticam.
O sectário acalenta certezas fulgurantes, que acabam por cegá-lo: a divergência aparece a seus olhos como traição. Daí, num passo imperceptível, ele cruza o limite que separa o debate legítimo da difamação. Campanhas eleitorais são embates amargos, mas devem curvar-se a certas regras implícitas.
Recordo-lhe a peça publicitária de sua campanha que fazia de Marina Silva uma conspiradora associada aos "banqueiros" numa trama destinada a roubar a comida da mesa dos pobres. O castigo veio a galope, em sua peregrinação até o Bradesco para convidar Joaquim Levy a ocupar o cargo de czar econômico do governo. Sem o estelionato eleitoral, um espetáculo lancinante de desonestidade, não haveria impeachment.
"Meu partido, certo ou errado!". O sectário presta lealdade à sua seita, mesmo à custa da deslealdade com as leis e com o conjunto dos cidadãos. Sua tentativa de transferir para o STF as investigações judiciais sobre Lula, por meio da nomeação do investigado à Casa Civil, definiu seu destino. O mandato terminou ali, quando os brasileiros concluíram que, transformando o Palácio em santuário de um poderoso político às voltas com um juiz, a chefe de Estado rebaixava-se à condição de chefe de facção.
Na saga da resistência ao impeachment, difundiu-se a célebre fotografia da jovem Dilma, em novembro de 1970, perante os juízes de um tribunal militar. A estratégia de marketing, que empolgou seus fiéis, investe numa reiteração (o impeachment como reprodução da perseguição política da ditadura) e numa permanência (a Dilma do presente como extensão da Dilma do passado).
A reiteração é farsesca, pois borra a cisão entre ditadura e democracia. A permanência é verdadeira, num duplo sentido: se a coragem de antes não desapareceu, perenizou-se também a chama sectária inerente aos militantes da luta armada. No fim, a tal fotografia ilumina retrospectivamente sua presidência por um ângulo imprevisto, invisível aos olhos dos marqueteiros.
O sectário atribui significados transcendentais a seus caprichos – e, se puder, impõe obediência geral a eles. A circular que obrigava seus subordinados a usar a palavra "presidenta" jamais serviu à causa dos direitos das mulheres, mas criou uma fronteira de linguagem entre a militância petista e os demais cidadãos.
Nunca a tratei assim, enquanto sua assinatura tinha o peso do poder. Hoje, faço a concessão. Presidenta Dilma, "fora do baralho", esqueça Getúlio Vargas e Jango: pense nos seus erros.
Folha de São Paulo (27/08/16)

A falta que faz uma bem compreendida hegemonia (Marco Aurélio Nogueira)

Agosto se encerrará trazendo consigo a conclusão do impeachment, que há quase um ano tem (des)organizado a política brasileira. É o que prevê o cronograma definido pelo ministro Ricardo Lewandowski, encarregado de presidir a fase final do processo. Eventuais acidentes de percurso poderão empurrar a decisão para setembro e criar algum suspense de última hora, mas não mais que isso. O mais provável é que Dilma Rousseff seja afastada em definitivo.
De um modo ou de outro, o processo se concluirá enterrando a tese do “golpe”. O comparecimento da acusada a seu julgamento será um jogo de cena, que em boa medida tem efeito bumerangue. Quererá a presidente confrontar heroicamente seus algozes, constrangê-los e expô-los a uma opinião pública sensibilizada pelo drama presidencial? Estará interessada em pavimentar alguma estrada para seu próprio futuro político? Ou a ideia não vai além da manutenção de uma narrativa para justificar os erros que cometeu durante seu mandato e que terminaram por impulsionar seu impedimento?
A conduta da presidente é cercada de confusão. Ela insiste em voltar, mas promete convocar um plebiscito para que a população decida se quer ou não antecipar eleições. Ou seja, quer voltar para então renunciar, juntamente com o vice-presidente e todo o Congresso Nacional. É uma forma de vestir a carapuça. Quer voltar para desistir de governar. Não faz sentido.
Sem ter intenção, Dilma dá passos que coonestam a legalidade do impeachment e não empolgam, posto que discutíveis demais e erráticos. Mesmo que consiga sucesso em se apresentar como alvo de uma “flagrante injustiça”, isso terá pouco impacto no processo.
Curioso o modo como o impedimento evoluiu: nenhuma resistência expressiva a ele, nenhum abalo na institucionalidade do País, nenhum trauma na governabilidade, nenhum obstáculo para que se passasse a um governo interino, que vem governando em completa normalidade. O episódio, por inusitado, ajuda a que se entendam algumas coisas.
Não houve “hegemonia petista” no ciclo Lula-Dilma. O partido não tomou as providências práticas, teóricas e institucionais para elaborar uma política com que dirigir ética e culturalmente a sociedade. Afirmou sua força sem ampliar sua capacidade de agregação e persuasão pública.
Se tivesse havido hegemonia nesse sentido, ou seja, bem compreendida, Dilma teria sido controlada e ter-se-ia conduzido segundo um plano referendado por um bloco coeso de forças afinadas entre si. Alguma dificuldade adicional o impedimento teria conhecido e o novo governo teria encontrado mais pedras pelo caminho. O que há hoje de resistência a ele vem do chamado “centrão”, ávido para manter viva a chantagem como forma de atuação política.
Com ou sem Eduardo Cunha, essa área mostra que não será facilmente “desidratada”, depois de ter sido devidamente engordada pelas práticas petistas-peemedebistas dos últimos anos. Se hegemonia tivesse havido, o PT e os partidos que o orbitam teriam conseguido fazer mais do que apelar à narrativa tosca do “golpe”: a reação teria sido sustentada política, moral e intelectualmente, teria dado um norte ao País, em vez de se reduzir ao esperneio a que se assistiu. Tivesse havido hegemonia, em suma, dificilmente teria havido impeachment.
Ainda que revestidos de elevado poder simbólico, presidentes não são tão importantes quanto se pensa. Podem ser substituídos sem dor, sem pena e sem glória, podem governar só de modo protocolar, delegando suas funções a terceiros, podem meter os pés pelas mãos sem que nada de mais grave aconteça. Sistemas de governo dependem mais de procedimentos institucionalizados, regras e ritos, do corpo estável de servidores, da dinâmica técnica e política que o condiciona, do que da conduta dos ocupantes eventuais de cargos estratégicos. Não é que não tenham uma função e não possam desempenhar papel de destaque: é que os sistemas vivem sem eles.
No mundo de hoje – marcado pela vida líquida, pela movimentação frenética de mercadorias, capitais, pessoas e informações, pelas redes globais e pela financeirização que fizeram o mercado confrontar com sucesso os Estados nacionais, pela corrosão da política instituída – os fluxos do poder são menos relevantes do que o poder dos fluxos, como escreveu certa vez Manuel Castells. Não importa tanto o que os governantes dizem e fazem, nem suas promessas, mas sim os movimentos e as ações que estão em volta deles, a percepção que se tem do que fazem. Importa menos o que fala o poder e mais o que se diz a respeito das falas do poder. Nesse contexto, presidentes podem, na melhor das hipóteses, atuar como coordenadores de apoios e decisões.
Se tiverem talento e molejo político, animam o conjunto. Se não tiverem, convertem-se em figurantes inconvenientes e terminam por ser deletados.
Falando de modo provocativo: o Brasil poderia viver eternamente em processo de impeachment que nada de muito grave aconteceria. Seria a introdução de um tipo anárquico e informal de “parlamentarismo”, uma jabuticaba a mais para compor a mesa nacional.
Os lamentos de Michel Temer e equipe de que não podem fazer muito enquanto a interinidade não for substituída pela efetividade são lamentos de caráter justificatório, compreensíveis como recurso argumentativo para arrumar a casa e pressionar os recalcitrantes. A partir do desfecho do impeachment – e desde que confirmada a destituição de Dilma –, os lamentos não terão maior serventia. Precisarão ser substituídos pela apresentação clara e vigorosa de um programa de governo que não se restrinja ao “ajuste fiscal” – esse mantra da atual política mundial – e se mostre qualificado para empreender uma inflexão reformadora, em especial na política, que prepare o País para o futuro.
Quando esse dia chegar, chegará a hora de o governo Temer mostrar de fato a que veio.
O Estado de São Paulo (27/08/16)

Escombros (César Felício)

O nascimento oficial da Presidência de Michel Temer, uma certeza para a próxima semana, marca a primeira etapa do fim de um bombardeio. Sob os escombros, lá está a nova oposição, que só não é a mais débil a surgir desde o regime militar pelo seu caráter relativamente homogêneo.
O lado contrário ao Palácio do Planalto não é um balaio de gatos a tal ponto diverso entre si que não se possa unir adiante, embora não tenha conseguido unidade de ação nem na resistência ao impeachment, nem na eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara.
Apesar da enorme dificuldade decisória, PT, PDT, PCdoB e Psol convergem para o que difusamente se convenciona chamar de esquerda. São confusos, mas estão no mesmo time.
Há dois candidatos tácitos à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes. Há um discurso unificador que vilaniza Michel Temer, pela forma como chegou ao poder e pela agenda de medidas econômicas impopulares. Estão ramificados na sociedade por meio dos movimentos sociais. O impeachment de Collor em 1992 baniu o ex-presidente para sempre do primeiro escalão da política. O de Dilma, cuja confirmação é um dado incontroverso, expulsa do palco apenas a ela. Mesmo na mira da Polícia Federal, Lula e PT permanecem por algum tempo.
Isto posto, o panorama é desalentador para os que tentam armar uma frente contra Temer. O impeachment é apenas mais uma etapa da derrocada que continuará na eleição de outubro. Não se acredita, nem mesmo dentro do PT, na reeleição de Fernando Haddad como prefeito de São Paulo. Há uma descrença mesmo sobre sua ida ao segundo turno.
As rodadas de pesquisa do Ibope mostram os candidatos deste eixo de esquerda difusa somando 18% em São Paulo e Rio de Janeiro; 15% em Salvador; 14% em Belo Horizonte. As exceções estão no Nordeste, como mostram Fortaleza e Recife; e em Porto Alegre. Eleições municipais não chegam a ser preditivas do que acontecerá nacionalmente, mas este ano tendem a desossar a principal sigla oposicionista.
Ainda que os oposicionistas preservem algum poder regional, este fica com sua ação condicionada com o ajuste fiscal que cursa em Brasília. Ainda é incerto prever o que será aprovado no Congresso em relação à emenda constitucional que engessa as despesas públicas, mas algo passará, recortando a ação de governadores e prefeitos. É uma questão de pouco tempo, na visão de prefeitos, para funções essenciais serem transferidas à iniciativa privada ou simplesmente interrompidas.
Caberá a Temer o papel de administrador de um montante restrito de recursos a um meio político sequioso de verbas, em um quadro de enxugamento da oferta e de aquecimento da demanda. Por mais que o pemedebista proclame seu pendor federativo, o país viverá um ciclo de centralização.
Nem de esquerda, nem de direita e nem de centro, Marina Silva, o outro polo oposicionista, também enfrenta sua turbulência. A ex-ministra preserva seu capital eleitoral de 2010 e de 2014, mas não ganhou horizontes de articulação política. Pelo contrário.
O Rede promete sair destas eleições tão insignificante quanto entrou e a ex-ministra já é vista no mercado financeiro com mais desconfiança do que era encarada há dois anos. Uma coisa era Marina como alternativa ao PT, outra, bem distinta, é a ex-ministra se contrapor a um governo comprometido com uma agenda de ajuste fiscal.
Nesta nova circunstância, enxerga-se em Marina com mais acuidade messianismo, incapacidade de alianças, discurso inconsistente e amadorismo de sua 'entourage'. São todas características já presentes nas suas últimas candidaturas.
A dona de um em cada cinco votos do eleitorado está também um pouco mais sozinha. Em 2010, ela se apresentou como representante de forças políticas mais expressivas, ainda que modestas, se comparados aos exércitos do binômio tucano-petista. O nanico PV há seis anos tinha uma bancada três vezes maior que a do Rede. Em 2014, herdou uma estrutura ainda maior do espólio de Eduardo Campos.
A soma de Lula e Marina nas pesquisas de intenção de voto alcança cerca de 45% para 2018, percentual que ultrapassa a maioria absoluta caso se considere Ciro Gomes, mas a perspectiva é descendente.
Pesa contra a nova oposição a colheita do vendaval semeado por Dilma. A virtual ex-presidente superestimou sua força política, acreditou que o déficit público era de esquerda e interpretou de forma errada a mensagem de junho de 2013. Se os manifestantes de então não queriam a volta do PSDB ao poder, como demonstraram na eleição do ano seguinte, também cobravam uma renovação, por trás da revolta contra o reajuste de tarifas de transporte, logo revertido.
Estes erros de Dilma foram detectados dentro do PT na esteira das manifestações de 2013. Quase um ano antes da eleição, havia a percepção de que Dilma poderia não terminar o mandato, caso reeleita. A solução seria um confronto interno em que Lula tratorasse Dilma. O ex-presidente se recusou a fazê-lo.
Além da herança de Dilma, do isolamento de Marina e da perda de poder regional, a nova oposição se defronta com a Lava-Jato. Por mais que tenha crescido o noticiário do envolvimento de pemedebistas e tucanos com descaminhos, o único presidenciável tornado réu chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Uma sentença em órgão colegiado pode lhe tirar a sexta candidatura presidencial, uma investida cujo derrota seria quase certa, mas que acumularia forças dentro deste campo para empreendimentos futuros.
Lula ainda se defronta com o peso dos anos. No ato que promoveu ontem em Niterói (RJ), mencionou questões de saúde. A fala, em um trecho, parece evocar a carta-testamento de Getúlio. "Se não tiver mais voz, falarei pela de vocês. Se não tiver mais pernas, caminharei pela de vocês. A natureza pode acabar com a vida de qualquer um de nós, mas nossas ideias não", disse, segundo relato do repórter André Ramalho.
Sem Lula, desce de patamar o eleitorado anti-Temer e o reordenamento na oposição se daria de forma rápida, com o PT caminhando para sua dissolução como força política. Quem se apresenta como substituto é Ciro Gomes, cujo personalismo é medido pelo fato de que vive sua sétima experiência partidária. Não há pecado nisto, mas é um fator que desencoraja os que pensam em construir alianças.
Valor Econômico (26/08/16)

Muito além do impeachment (Demétrio Magnoli)

“Não celebramos, hoje, uma vitória política. Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa da conciliação nacional, em torno de um programa político amplo, destinado a abrir novo e fecundo tempo ao nosso país.” Três décadas atrás, em março de 1985, estas frases, escritas pelo presidente Tancredo Neves para seu discurso de posse, foram lidas pelo vice José Sarney, que subia a rampa do Planalto e proclamava o ano zero da “Nova República”. Michel Temer, o sapo transformado em príncipe, logo as ecoará, com alguma variação retórica, marcando a conclusão do impeachment de Dilma Rousseff. Como quem sacode o paletó, expurgando-o de impurezas, o presidente se libertará do rótulo de “interino” invocando a “conciliação nacional” e anunciado a aurora de um “novo tempo”. A história se repetirá, mas como farsa. De fato, isso é um epílogo, não uma introdução.
O Brasil já teve uma República Nova, proclamada por Getúlio Vargas em 1930, e uma República Velha, o nome pouco lisonjeiro com o qual os vencedores da Revolução de 1930 batizaram o período republicano inicial, inaugurado em 1889. Naquela estranha transição de 1985, pela voz inesperada de Sarney, antigo líder da Arena, o partido de sustentação do regime militar, Tancredo inventou a “Nova República”. A expressão evocava a ideia ilusória de uma ruptura radical. Na prática, a nítida cisão consumou-se mais tarde, pela Constituição de 1988. Hoje, a ascensão de Temer, o terceiro vice afortunado numa linhagem que abrange Itamar Franco, não assinala um novo começo, mas um desfalecimento. A “Nova República” morre junto com o fim do ciclo de poder lulopetista.
A “Constituição Cidadã” de Ulysses Guimarães inaugurou uma época de ampliação dos direitos sociais, demarcando o terreno para a expansão das despesas públicas da União, dos estados e dos municípios. Aquele contrato constitucional tornou-se elemento central na estabilidade da “Nova República”. A elite política civil legitimava-se pelo compromisso de reduzir a pobreza e as desigualdades, por meio da ação estatal. Na sua dimensão econômica, o colapso da “Nova República” reflete o esgotamento da capacidade do Estado de continuar a promover a elevação dos gastos públicos em ritmo superior ao do crescimento do PIB.
A encruzilhada emerge pela terceira vez. No governo Sarney (1985-1990), a expansão das despesas públicas foi financiada pela emissão monetária, gerando uma crise de hiperinflação que consumiu o governo Collor (1990-1992) e só foi resolvida pelo Plano Real, em 1994. Na “era FHC” (1995-2002), sem o recurso à emissão monetária, o governo apelou ao aumento da carga tributária, até ceder ao imperativo do realismo e brecar a marcha dos gastos públicos. A vertiginosa queda de popularidade resultante propeliu a quarta candidatura presidencial de Lula, alçando o PT ao poder.
Na “era lulopetista” (2003-2016), surfando a onda da “globalização chinesa”, o governo acelerou os motores do gasto público. A expansão dos programas sociais, os subsídios ao consumo e os generosos financiamentos ao empresariado soldaram um extenso arco de poder, gerando triunfos eleitorais sucessivos. Contudo, sob Dilma, enfrentando a reversão do ciclo internacional, o governo insurgiu-se contra as limitações impostas pela realidade, financiando seus gastos por meio da elevação do déficit e da dívida. Do voluntarismo dilmista seguiu-se o “estelionato eleitoral” de 2014, uma depressão histórica e, no final, o impeachment. O colapso da “Nova República” deriva da impossibilidade de continuar a financiar despesas públicas crescentes sem reacender a fogueira inflacionária ou recorrer a um aumento brutal da já exagerada carga tributária.
À encruzilhada econômica, soma-se um impasse político-institucional. O sistema de regulação política fundado em 1988 degenerou no “presidencialismo de coalizão”, uma expressão cínica sob a qual se ocultam os intercâmbios criminosos entre o Executivo e o Congresso que asseguram a governabilidade. Sob a égide de Lula, os mecanismos da corrupção sistêmica atingiram um ápice, propiciado pelas complexas teias de negócios do capitalismo de estado. As Jornadas de Junho de 2013 e, depois, as manifestações de rua do impeachment evidenciaram a desmoralização generalizada da elite política. A Operação Lava-Jato descerrou o véu que cobria a captura da administração pública e das estatais pelas máfias políticas. Descosturou-se o tecido do contrato de legitimidade da “Nova República”.
O sistema político-partidário da “Nova República” evoluiu rumo a uma geometria triangular, baseada tanto na polaridade PSDB-PT quanto na oscilação pendular do PMDB. Sob as coalizões lideradas pelo PSDB e pelo PT, o equilíbrio político durou duas décadas, até a crise aberta em 2013, que destruiu as engrenagens do sistema. A agonia do lulopetismo não significará nem a morte do PT nem uma simples troca de guarda no Planalto. Corroído pelas disputas internas entre seus três caciques provincianos e ameaçado pela delação da Odebrecht, o PSDB não tem candidatos presidenciais viáveis. Já o PMDB, eterno partido governista, carece de lideranças nacionais com densidade eleitoral e aparece como alvo destacado da Lava-Jato. Há, na renúncia antecipada de Temer à candidatura presidencial em 2018, bem mais que uma vulgar manobra tática.


Na Itália, a Operação Mãos Limpas, destruiu a Democracia Cristã e o Partido Socialista. No Brasil, o que sobrará intacto até as eleições de 2018? A “Nova República” apaga-se na bruma do passado — mas nenhum sistema político alternativo surgiu para substituí-la. Temer não é Tancredo e não tem o direito de proclamar um “novo e fecundo tempo”. O terceiro vice afortunado é um gerente de ruínas. Quando, finalmente, Ricardo Lewandowski declarar o impeachment de Dilma, sugiro apenas um brinde discreto.
Fonte: O Globo (25/08/16)

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Reunião da pior das tradições na América Latina (José Augusto Guilhon Albuquerque)

Direita e esquerda são desses conceitos operacionais que quase todos sabem como usar, mas poucos definem com precisão. Alguns os tratam como uma dicotomia entre duas posições opostas e excludentes, mas a maioria os representam como um contínuo gradual entre extremos. A dificuldade provém do caráter relacional e operacional, de direita e esquerda, presente em sua origem: a posição tomada pelos diversos grupos no anfiteatro do parlamento francês durante a Revolução - embaixo à frente, no alto atrás, à direita e à esquerda.
Desse ponto de vista tópico, digamos assim, pessoas, ideias e movimentos não são de esquerda ou de direita, apenas estão mais à esquerda do que os que estão mais à sua direita, e vice-versa. Já do ponto de vista conteudístico, esquerda designa um conjunto único de ideias políticas, concepções do mundo e modos de ação que existem nelas mesmas e, portanto, distinguem-se radicalmente das demais ideias, concepções e movimentos, estes, por definição, de direita.
A dificuldade com essa concepção, por assim dizer ontológica, de uma esquerda cuja essência é imutável e eterna, tanto nas ideias como nos movimentos, é que ela ignora o papel da história. As ideias originais de esquerda, que se consolidaram na social-democracia e, posteriormente, no comunismo, partiam da primazia da desigualdade (ou dominação, como queira) econômica, que se refletia na desigualdade política, que, por sua vez, refletia-se na dicotomia entre ideias. Daí a rejeição, pela esquerda, das ideias, pleitos e ações divergentes, portanto devendo ser tratadas como irrelevâncias, desvios ou até traições da classe revolucionária e, consequentemente, da pátria, merecedoras de censura, repressão ou simplesmente extinção.
Desde sua fundação por Karl Marx (1818- 1883), entre outros, o adversário principal da social-democracia alemã eram as ideias, reivindicações e iniciativas liberais, cuja legitimidade foi duramente recusada e cujos porta-vozes nos movimentos de esquerda foram silenciados. Estamos falando dos direitos individuais perante o Estado, dos direitos fundamentais de igualdade política, liberdade individual de pensamento e de credo, de acesso à proteção da Justiça, de liberdade de expressão e de ação política para a oposição e de proteção às minorias de todos os tipos: de gênero, de cor, de etnia, de vulnerabilidade econômica e social.
Hoje essas bandeiras aparecem como conquistas da esquerda. Bravos para a esquerda, se ela aprendeu com a história e encampou as boas e justas ideias de admitir a liberdade como finalidade última da sociedade política, ao mesmo título que a igualdade econômica. O processo de incorporação de ideias antagônicas, entretanto, é tudo menos simples.
Complexo ou não, é árduo e lento o processo que vem ocorrendo ao longo da história conjunta do capitalismo e do movimento operário, cujo antagonismo esteve no âmago da história moderna, sem, no entanto, tolher seu progresso. Progresso que exigiu aceitar a legitimidade das ideias divergentes, fazer concessões mútuas e literalmente coabitar no poder.
Nem sempre, entretanto, o processo seguiu essa trilha da compatibilização entre antagonismos, como ocorreu no Reino Unido, sob o comando do Labour e parcialmente na França, sob o comando dos socialistas. Na América Latina, particularmente - e esse é o caso do Brasil -, em vez de caminhar na direção da incorporação mútua de ideias e valores, a esquerda recorreu a um amálgama entre o conteudismo a-histórico e a expressão das reivindicações liberais, mas destituídas de seu fundamento conceitual.
O resultado tem sido o de conceder espaço de iniciativa para o que chamam de "sociedade organizada", sem reconhecer seu direito à liberdade. Com isso, multiplicam-se os "direitos", traduzidos em prerrogativas corporativas outorgadas a grupos de ativistas, sob a forma de subsídios, concessões, cotas, leniência diante do descumprimento da lei e tudo o que se considera o "legado social" do lulopetismo.
O resultado desse amálgama tem sido devastador para a esquerda latino-americana porque reúne não o que há de melhor, mas o que há de pior nas duas tradições, a inclinação da esquerda para o autoritarismo - para não falar de totalitarismo - e a inclinação para o individualismo extremo da visão liberal. Com isso, a "verdadeira" liberdade do direito à divergência, à diferenciação, à contestação, à opinião, à privacidade, tornou-se justificativa para privar os demais de qualquer direito. O que mais pode explicar o "direito" de um punhado de pessoas para paralisar o sistema de transporte ou destruir equipamentos públicos, como forma de expressar sua insatisfação com o que quer que seja?
Outro desafio dramático para a esquerda, tanto quanto para a direita, é o neopopulismo, ao qual a esquerda se entregou de braços abertos, levando países como a Venezuela, o Brasil ou a Argentina a um colapso econômico e político nunca antes visto e, a direita europeia, a namorar com as formas correntes de fascismo.
Resta saber se é possível compatibilizar os ideais de igualdade com o direito à liberdade, o desafio eterno da política moderna.
(*) José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de relações internacionais e ciência política da USP.
Fonte: Eu&Fim de Semana/Valor Econômico (20/08/16)

O que a esquerda pode e deve fazer? (Renato Janine Ribeiro)

A alternância no poder é um traço da democracia. Até os melhores governantes sofrem um desgaste de material. O PSDB viveu-o após oito anos na Presidência. O PT chegou ao seu depois de 12 ou 13 anos. O esgotamento da esquerda é normal, até para ela se recompor na oposição. O que não é normal é a direita assumir o governo sem o voto popular, pior que isso, contra o voto expresso nas últimas eleições. Tecnicalidades podem dizer que isso não é golpe. Eticamente, é.
O que pode, o que deve a esquerda fazer? Ela ficou numa sinuca. Dilma Rousseff tentou fazer o que devia: 1) retomar o crescimento econômico. Tinha testado as medicinas de esquerda, restavam as de direita. O problema é que elas põem em xeque a razão mesma de um partido de esquerda, que é: 2) manter e completar a inclusão social. Conciliar as duas tarefas era quase impossível. Se Dilma fosse mais hábil, dialogando com políticos e não políticos, poderia impedir a rápida debacle de seu governo, que arrastou o PT e a esquerda. Mas a situação não era fácil. Continua difícil para o governo de direita, mas os cortes que Dilma efetuava a contragosto ele efetua sem dramas de consciência.
A crise atual da esquerda foi precipitada por vários fatores. Primeiro, a contradição que mencionei acima: um governo progressista aplicando uma política de altos custos sociais. Geralmente isso acaba mal, como em Portugal e Espanha na crise dos Pigs. O governo socialista perde a eleição seguinte. (A mancha em nossa democracia é que não se deixou o governo eleito perder em 2018).
Segundo, a crise de liderança. Lula continua sendo o grande líder do PT 30 e poucos anos após sua fundação. Dilma não mostrou essa capacidade. Num artigo de janeiro de 2009, na "Folha de S. Paulo", eu advertia que, depois de dois líderes, FHC e Lula, a Presidência estava sendo disputada por gerentes, Serra e Dilma.
Gerentes lidam com coisas, líderes, com gente.
Um presidente precisa articular pelo menos cem pessoas em cargos destacados no poder - isso, mais outro tanto de empresários e líderes empresariais e sindicais (no Brasil, infelizmente, o peso político de intelectuais, artistas e líderes espirituais é pequeno). São os líderes parlamentares, ministros de Estado, juízes, dirigentes de agências reguladoras, bancos. Conversar, persuadir, agregar pelo menos a grande maioria deles é uma tarefa difícil. FHC e Lula resolviam isso dividindo o trabalho: o presidente decidia as linhas gerais, os ministros e outros dirigentes agiam com autonomia dentro delas. O presidente era líder, os outros semi-líderes e/ou gestores. Mas, quando um presidente desce aos detalhes da gestão e centraliza demais, acaba desconhecendo ou atrasando o que se faz no governo como um todo.
Terceiro - o que pude ver no governo - é que mesmo o público beneficiado pelas políticas públicas na educação não se deu conta da forte crise em que entrávamos. Até agosto de 2015, a maior parte dos que procuravam o MEC não parecia perceber que não havia mais dinheiro, ponto. O governo não conseguiu passar essa percepção - e eles não queriam enxergar o que saía nos jornais, na mídia, nas redes. Podiam ter sido parceiros do governo que os beneficiou quando chegou o momento de crise.
Podiam ajudar a ganhar eficiência e a estabelecer prioridades. Em vez disso, pediam verbas. Tive a impressão de que o apoio político só durou enquanto houve dinheiro. Baixou a arrecadação, baixou o apoio. Faltou comunicação do governo, mas faltou senso político aos beneficiários de políticas públicas.
Quarto e último ponto, a corrupção. É inegável. Não foi cria do PT, mas este não soube tratar do assunto. Ele próprio deveria tê-la investigado. Por que o PT não fez sua própria apuração? Por que não tomou a dianteira para expulsar quem agiu errado? Pior, por que deixou sua imagem de partido mais ético, de único partido ético, do Brasil se perder tão depressa? Porque em 2005 essa imagem já estava comprometida.
O que fazer agora? Lembro dom Helder Câmara, um dos nomes dignos da igreja. Arcebispo nos anos do horror, dizia que a esquerda era ruim de luta armada, na qual eram bons seus inimigos. A esquerda, resumia, era boa nas palavras e nas ideias. Este é o ponto: a esquerda tem que pensar e discutir. Tem de ver onde errou e o que precisa mudar. Sobretudo, não pode confortar-se no papel de vítima. Menos ainda pensar que só ela tem razão, só ela é virtuosa. Essa crença está crescendo nos setores mais à esquerda. Condenam as alianças do PT, porque os aliados desertaram o partido no final - mas esquecem que, sem alianças, o PT teria perdido o governo em 2006 nas eleições, ou em 2005 por um golpe. O reexame que precisa ser feito não é daqueles fáceis, em que você aponta o dedo para o outro com a finalidade de se autocanonizar. Acho isso indecente. Não é um processo de Moscou, ainda que atenuado. É um reexame sério de projetos.
Dou um exemplo. Uma das realizações do governo Dilma foi passar para a economia formal 5 milhões de microempreendedores individuais em dois anos, graças ao ministro Guilherme Afif Domingos. Trouxe esse liberal puro, à época aliado dos tucanos, mas que o PSDB jamais levou a sério (porque esse partido gosta mais da grande empresa do que da micro). Ora, na esquerda pura e dura há quem tenha horror ao empreendedorismo. Mas faz sentido essa repulsa, que reduziria nossa paisagem econômica a apenas os grandes empregadores de um lado, e de outro seus empregados e os funcionários públicos, sem ter entre eles a média ou pequena empresa? Claro que não.
Finalmente, penso que a prioridade não é saber quem vai representar a esquerda em 2018 - mas qual programa vamos delinear para o país. Paremos com nomes, falemos em futuro. Tenho dito: precisamos retomar o crescimento econômico, fazê-lo com sustentabilidade, e isso a fim de completar a inclusão social. Essas três metas não podem ser dissociadas. Nenhuma delas pode antagonizar a outra. Em 2014, os três mais votados para presidente defendiam, cada um, uma dessas políticas.
Precisamos promover sua síntese. O fato é que esse programa ainda não existe. O PMDB e o PSDB estão no poder, mas dificilmente gestarão um projeto com esses três pontos. Ninguém está sabendo desenhar o futuro do Brasil. Esse é o papel da esquerda. Mas ela precisa olhar para o futuro.
(*) Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma, é professor de ética e filosofia política na USP
Fonte: Eu & Fim de Semana/Valor Econômico (20/08/16)

A esquerda no divã (Monica Gugliano)

• Por que governos progressistas da América Latina atravessam suas mais graves crises dos últimos anos
"Como fazemos para distinguir que tal objeto não é nem branco nem preto se não temos a mínima ideia a respeito da diferença entre as duas cores?", observa Norberto Bobbio (1909-2004), em seu ensaio clássico "Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política". Um dos pensadores de maior influência do século XX, Bobbio recebeu críticas à direita e à esquerda quando fez essas reflexões em um de seus livros mais difundidos.
Quase 30 anos depois da primeira edição do livro, países da América Latina assistem a uma grave crise da esquerda: governos eleitos na década passada que prometiam consagrar os projetos mais caros ao discurso da esquerda - como sociedades mais justas e igualitárias - entregaram aos cidadãos cenários de instabilidade econômica, política e, em muitos casos, ética.
"O mundo mudou e a esquerda não percebeu. Perdeu o rumo e não conseguiu construir uma alternativa", afirma o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-governador do Distrito Federal, ex-ministro da Educação do governo Lula e que já foi considerado um dos quadros da intelectualidade petista.
Na terça-feira, a própria presidente afastada, Dilma Rousseff (PT), admitiu que "erros foram cometidos" e que acolheu com humildade "críticas duras" ao seu governo, na carta "Mensagem ao Senado e ao Povo Brasileiro", seu último apelo antes do julgamento final do impeachment.
As críticas, de fato, foram duras e Cristovam não está isolado entre pensadores e políticos que constatam falhas na execução do ideário pregado pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil. "O PT e outros partidos semelhantes fizeram uma reflexão falsa sobre mobilidade social. Criaram um cidadão do consumo. Não se interessaram pela agenda moderna", afirma Paulo Delgado, ex-deputado federal pelo PT, sociólogo e professor. "Era preciso fazer correções que não foram feitas", diz Leonardo Avritzer, professor de sociologia política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, entretanto, é mais adequado falar que a esquerda passa por um momento de inflexão do que de fracasso. "Não é possível afirmar, sem ressalvas, que os últimos governos fracassaram. O país melhorou índices como os de saúde e de educação", diz.
O PT se preocupou com a redução da desigualdade e esse foi um ponto positivo, mas o cientista político Sérgio Fausto, superintendente da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso, considera que o projeto petista não pode ser analisado em bloco. "São enormes as diferenças entre o primeiro e o segundo governo Lula e também em relação ao período de Dilma Rousseff."
Entre os acadêmicos, essas diferenças permeiam e conduzem as discussões que procuram respostas ao desempenho da política econômica dos governos petistas que comandaram por quase uma década e meia uma das maiores economias do mundo. A começar pela pergunta: "O PT seguiu os preceitos usuais numa política econômica de esquerda?". A resposta mais frequente é "não". "Foram erros da política econômica. E eles independem do conteúdo ideológico", diz Nelson Marconi, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
A crescente intervenção do Estado, que chegou ao ápice no governo de Dilma; a adoção da "contabilidade criativa"; o controle de preços - como remédio para conter a pressão inflacionária - e a redução "artificial" da taxa de juros são apontados como os principais equívocos do governo Dilma. "Houve uma total irresponsabilidade da política macroeconômica. O populismo cambial acabou com a estrutura produtiva do país, os salários cresciam acima da média. Preços e tarifas foram controlados. É óbvio que isso não ia dar certo", diz Marconi.
O desmoronamento das teses tão caras à esquerda aparece nos textos do Fundo Monetário Internacional (FMI), que analisam a economia da América Latina. São eles que, à exemplo dos diagnósticos feitos pelo Banco Mundial, assinalam um ponto principal e em comum às análises que se propõem a entender o porquê do naufrágio desses projetos. O consenso diz que a esquerda não soube se ajustar para sobreviver em um mundo onde o sucesso significa conseguir administrar com escassez de recursos e taxas de crescimento cada vez mais modestas.
No Brasil, desde o início desta década, a economia desacelera continuamente. A média anual de crescimento de 4,5%, entre 2006 e 2010, passou para 2,1% entre 2011 e 2014 e bateu no negativo no ano passado. O PIB contraiu 3,8% em 2015, quando a inflação voltou a crescer e foi para a casa dos dois dígitos. O desemprego subiu e afeta mais de 10 milhões de brasileiros e as populações mais carentes, àquelas que os governos de esquerda pretendiam beneficiar de maneira duradoura, são as que mais sofrem.
"Não foram as teses que falharam. Mas a implantação delas", diz Cristovam. "Ser de esquerda não é prometer um Mercedes Benz para cada cidadão. É buscar que todos tenham um meio de transporte. Ser de esquerda é, sobretudo, que ninguém fique fora do mínimo. Ao mesmo tempo, que não seja tolerado o consumo além do máximo. No mundo de hoje não é mais possível o PIB grande. É possível o PIB bem distribuído."
A América Latina teve em 2015 e terá em 2016 taxas de crescimento negativo ao redor de 0,3. A queda dos preços das matérias-primas, atrelada a desequilíbrios e distorções, impulsionaram a fuga dos investidores. Sem reformas estruturais nos países da região, segundo os Indicadores de Desenvolvimento Global 2016, e mantidos os índices de crescimento registrados na década anterior, o percentual de latino-americanos vivendo em extrema pobreza em 2030 será praticamente igual ao de 2012. Em 2012, 5,6% dos latino-americanos viviam com até US$ 1,90 ao dia, ante os 17,8% registrados em 1990, de acordo com o Banco Mundial.
"A esquerda fracassou com os seres humanos que pretendia proteger. Não conseguiu criar as estruturas institucionais capazes de manter historicamente a redução da desigualdade. Exauriu o modelo do Plano Real e não deixou nada no lugar", lamenta Delgado. "O mais interessante é que o PT produziu um desastre do qual ele é o maior prejudicado", diz Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV).
No início da década passada, superados os períodos de aperto, controle, reformas e privatizações que pautaram os governos nos anos 90, uma safra de governantes da América Latina assumiu anunciando que terminara a era dos neoliberais. No caso brasileiro, seria a oportunidade de reduzir uma concentração de renda que, ainda hoje, permite a 8,4% da população guardar 59,4% da riqueza, segundo o Relatório da Distribuição da Renda e da Riqueza da População Brasileira (Ministério da Fazenda 2014/2015).
Embalados por um período mais favorável na economia mundial, os seguidores do chamado "socialismo do século XXI" - termo criado pelo presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013) e ao qual aderiram com maior ou menor entusiasmo Argentina, Equador, Bolívia e Brasil - iriam acabar com as desigualdades.
De fato, relatórios do Banco Mundial atestam que, com a implementação de grandes programas sociais, como o Bolsa Família, nesse período foi possível uma significativa transferência de renda aos mais pobres. O Brasil viveu uma fase de progresso econômico e social, entre 2003 e 2014, em que mais de 29 milhões de pessoas - ou seja, praticamente metade da população da Argentina - saíram da pobreza e a desigualdade foi reduzida significativamente. O coeficiente de Gini (que mede a distribuição de renda nos países em uma escala de 0 a 100) caiu 11% no mesmo período. A renda dos 40% mais pobres da população cresceu, em média, 7,1% (em termos reais) entre 2003 e 2014, em comparação aos 4,4% de crescimento da renda da população total.
A Argentina, uma das maiores economias da América Latina, com um PIB de US$ 541 bilhões, passou pela denominada "era K". Entre 2003 e 2015, os 12 anos em que Néstor Kirchner (1950-2010) e depois sua mulher, Cristina Kirchner, governaram o país, a renda de 40% da população aumentou a taxas anuais de 11,8%. Na Bolívia, durante a década 2004-2014, a economia cresceu a taxas anuais de 4,9%, percentual semelhante ao do Equador, que ficou em 4,6%. A Venezuela, sustentada pelas reservas de petróleo - entre as maiores do mundo -, teria promovido uma redução da pobreza entre 1998 e 2013 de 50% para 30% da população.
Entretanto, seria um equívoco creditar integralmente esse desenvolvimento na conta de políticas de esquerda. No caso brasileiro, por exemplo, existiu um paradoxo entre o discurso e a prática. Uma divergência que se constata também na Bolívia e no Equador. O discurso dos líderes desses países teve tons heterodoxos, mas a prática, nem tanto. Eleito em 2002, empossado em 2003, Lula entregou o controle da economia a Antonio Palocci. Assinalam praticamente quase todas as análises do período que, sob a direção de Palocci, o PT manteve a rédea curta na economia.
Houve aumento do superávit primário, a taxa de juros subiu, para controlar a inflação, e a política macroeconômica era considerada, em especial pelos petistas que bombardeavam Palocci, conservadora. "Nesse período, o PT tinha entendido que existem restrições para uma política econômica e que elas não são de natureza política. Mas por algum motivo, entre 2007 e 2010 esse consenso se perdeu", diz Pessôa.
O fim do boom das commodities e a recessão, depois da crise de 2008, arrastaram as economias emergentes. E, aparentemente, a herança e as mudanças sociais positivas resultantes dos acertos pesam hoje menos na balança do que os equívocos da esquerda, segundo analistas. Para muitos, esse sentimento é uma falsa impressão que se deve, entre outros, ao período de estagnação e perdas que sucederam os tempos de bonança. Para os economistas, é a realidade dos números que, mais cedo ou mais tarde, se impõe.
Pessôa propõe uma comparação entre a Colômbia e a Venezuela. A primeira implementou a política defendida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e as regras do Consenso de Washington, sinônimo de abertura financeira. A Venezuela seguiu o socialismo do século XXI. "O Chile não seguiu os caminhos da chamada heterodoxia. A Argentina, sim. Hoje, em quais desses países os pobres estão melhor?", pergunta Pessôa. "A esquerda latino-americana não sabe como a economia funciona."
O obstáculo não ultrapassado pela esquerda, entende Fausto, foi o de não perceber que a transformação da sociedade pós-globalização eliminou os espaços para os modelos que tentaram resgatar políticas econômicas aplicadas nos anos 50 e 60. Nações cujos governantes, apontam os críticos, investiram em projetos não sustentáveis, como se as reformas estruturais e os ajustes nos gastos públicos fossem sinônimos de uma política neoliberal que destruiria as conquistas sociais.
"A esquerda revelou seu anacronismo. Porque o desafio está em encontrar caminhos para reformatar o Estado, produzir bem-estar social. [O PT] fez uma bricolagem de políticas virtuosas apontadas na Constituição de 1988 com o velho nacional-desenvolvimentismo brasileiro. Quando o boom das commodities acabou, só sobrou mal-estar e a visão de que o PT não foi capaz de formular seu governo, suas propostas", diz Fausto.
Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz que, apesar de haver certa unanimidade na busca por um Estado de bem-estar social, é divergente a maneira de chegar a ele. "Os governos do PT reivindicam uma tradição de esquerda, mas, tirando a promoção de algumas aberturas que permitiram o acesso, um pouco menos segregacionista e desigual, ao ensino superior, o combate à pobreza extrema, que superou muito o trabalho feito nos governos do PSDB, o capital fez uma festa. Onde está o projeto de esquerda? O que ele deixa como construção de uma sociedade menos injusta e desigual?"
Na hora em que a maré baixou, emergiram os "equívocos" dos governos de esquerda. E eles, de acordo com os críticos, foram muitos. "A esquerda nunca soube fazer contas. Não conhece a matemática", diz Cristovam, referindo-se ao rombo nas contas públicas que, segundo o governo interino de Michel Temer, chega a R$ 170 bilhões.
Dentre os problemas econômicos, aparecem dois dos itens que provavelmente mais demonstram a relação com a política: a expansão do crédito subsidiado, sobretudo via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e a intervenção na Petrobras, que bancou as propinas de políticos - nesse caso - sem distinção ideológica. "O PT ignorou princípios políticos consagrados. Achou que uma causa justa legitimaria a falta de princípios", diz Delgado.
Por essa razão é que se atribuiu a esses governos de esquerda, além das consequências econômicas que produziram a maior recessão em décadas, a manutenção de sistemas políticos disfuncionais. O PT, que tornou-se refém de uma maioria no Congresso para aprovar qualquer projeto, pôs de lado as reformas políticas que revigoram os regimes democráticos. E, embora seja importante assinalar que não foi o PT o inventor e nem mesmo o único governo a depender da vontade do Legislativo, há um consenso de que o partido de Lula, até por sua história, deveria ter honrado esse compromisso.
"Não foram feitos os esforços necessários para sair de um sistema político atrasado que já mostrou a rejeição por mudanças em seu próprio funcionamento. O financiamento público das campanhas, por exemplo, não foi aprovado pelo Legislativo, embora o PT majoritário na casa fosse a favor. Coube ao STF [Supremo Tribunal Federal] a adoção da nova regra", diz Avritzer.
Dinheiro escasso, democracias ainda não totalmente consolidadas, casos de corrupção e, como observa Delgado, a própria fadiga do material decorrente da longa permanência no poder, fomentam a sensação de derrota dos governos de esquerda.
Observadores avaliam que boa parte das medidas que poderiam ter conduzido o Brasil a uma melhora nos índices de crescimento ruíram por causa da instabilidade política. Sacudidos por denúncias diárias que os envolvem em atos pouco republicanos, políticos e governantes aguardam o desfecho da Operação Lava-Jato e do processo de impeachment de Dilma. "O PT até hoje não prestou contas do que todos os dirigentes já admitiram como equívocos e déficit de ética. É uma cultura de que tende a tratar a opinião pública como um flanco de inimigos organizados, onde o partido não se sente obrigado a prestar contas à opinião pública", diz Bucci.
Sentindo-se desobrigado de prestar contas aos eleitores, considera Fausto, o PT revela a incapacidade de fazer uma crítica construtiva, de retomar o debate intelectual que foi sufocado pelo partido após chegar ao poder. "O PT não conseguirá sair do buraco sem essa crítica", afirma Fausto.
Fonte: Eu & Fim de Semana/Valor Econômico

domingo, 21 de agosto de 2016

Reflexões sobre o sentido das greves nas universidades públicas (José Antonio Segatto)

As greves que terminaram de maneira lastimável nas universidades públicas paulistas recolocam um problema crucial. Qual seja, os sentidos, as razões e as implicações dos movimentos paredistas no setor público, em particular, para as instituições estatais e para a sociedade que o mantém.
A greve do trabalhador na empresa privada visa compelir o empresariado a negociar a remuneração e/ou benefícios do trabalhador; ao paralisar as atividades produtivas ou de prestação de serviços, a greve nesse setor faz cessar os lucros apropriados do sobretrabalho. Já no âmbito estatal, quem perde é a sociedade, que deixa de receber os serviços pelos quais contribuiu por meio de impostos e a que tem direito. Ademais, o estatuto e o contrato de trabalho de um e de outro, servidor e trabalhador, são distintos e envolvem direitos e deveres muito diferentes.
As peculiaridades do exercício do direito de greve no setor público tornam-se ainda mais evidentes quando se analisa o caso das universidades públicas, em especial, as estaduais paulistas, USP, UNICAMP e UNESP, que são dotadas de autonomia didático-científica, administrativa e financeira (mantidas com 9,57% do ICMS arrecadado no Estado) e autogeridas: todos os cargos dirigentes são eletivos pela comunidade universitária. Assim sendo, elas têm o poder de definir o orçamento, os salários, os benefícios, as carreiras etc, ou seja, têm relativa autonomia para estabelecer e prescrever normas e diretrizes.
Nessas condições, é de difícil compreensão, por parte de qualquer cidadão comum, os propósitos ou os objetivos dos constantes, persistentes e prolongados movimentos paredistas nessas universidades. O direito de greve, historicamente um instrumento fundamental para a defesa dos interesses dos trabalhadores e recurso extremo em situações de impasse, foi banalizado, tornado mesmo trivial em algumas unidades universitárias.
Se, no setor privado, o trabalhador em greve está sujeito a sanções (desconto do tempo parado, reposição de horas não trabalhadas, demissão etc) na universidade, o paredismo constitui-se no melhor dos mundos, verdadeiro paraíso terreno. Depois de meses sem trabalhar e sem quaisquer ônus em seus proventos, o servidor pode receber vantagens como aumento de salário e benefícios vários, mas, em geral, nada ou quase nada perde ou repõe. Efetiva apropriação indébita de dinheiro público, proveniente do labor da sociedade, especialmente, o de trabalhadores cujos filhos muito remotamente ou nunca terão acesso à universidade pública.
Utilizando-se de meios e modos inapropriados, afrontosos e intimidatórios (piquetes, “trancaços”, “cadeiraços” etc), tais greves foram convertidas em expedientes perversos de aviltamento da prestação de serviços públicos essenciais: ensino, pesquisa e extensão. Desencadeadas por decisão de assembléias com quoruns baixíssimos ou inexpressivos (comumente de menos de 10% dos interessados), seus condutores procuram legitimá-las pela coação e pela presunção de direitos e privilégios. Conduzidas por um sindicalismo de resultados agressivo e movidas por um corporativismo insaciável, têm como meta primordial e exclusiva a maximização de interesses e a potencialização de benefícios e/ou vantagens. Ou seja, um sindicalismo movido por conveniências pecuniárias que subsiste de mercadejar o patrimônio e os fundos públicos.
É desnecessário dizer que tais concepções e práticas têm acarretado a depreciação e/ou a degradação dessas universidades públicas que estão, incontestavelmente, entre as principais instituições de ensino e pesquisa do país. Nelas, o regime de trabalho é, ainda, excepcional, como, por exemplo, a liberdade de cátedra e de pesquisa que, infelizmente, encontra-se em constante ameaça por interesses estranhos ao ambiente universitário: corporativismo, patrimonialismo, clientelismo, sindicalização e partidarização de seus órgãos. Urge, portanto, sua permanente democratização e publicização.
(*) José Antonio Segatto, prof. titular do Depto. de Sociologia da FCL/UNESP - Araraquara

Antipolítica não é a solução (Fernando Luiz Abrucio)

Em tempos de crise dos políticos, com denúncias mil e descrédito geral, a tentação de reduzir o espaço da política torna-se sedutora. O Brasil vive isso hoje de forma mais acentuada, por conta da Lava-Jato e da deterioração econômica do país. A opção antipolítica aparece claramente nas regras definidas para as eleições municipais, bem como na estratégia de determinados grupos políticos, dentro e fora dos partidos, de defender que o melhor é escolher prefeitos que não sejam parecidos com os políticos.
Trata-se de uma concepção pouco democrática de como as sociedades devem resolver seus problemas de ação política. Pior: em vez de ser um remédio para nossos males, essa visão de mundo mais encobre do que soluciona as questões mais profundas do sistema político.
Desde a Lei Falcão, famigerada legislação do período autoritário, não tínhamos um conjunto de regras eleitorais tão restritivo. Um primeiro problema está em manter praticamente igual a norma relativa à definição de quem é candidato. Todos os políticos e quaisquer cidadãos poderiam, numa sociedade livre, declarar-se candidato no momento que quisessem. Assim o é na maior parte das democracias. Isso deveria ser válido também para os incumbentes, isto é, os que ocupam cargos públicos eletivos, incluindo aí os que postulam reeleição.
Penso ser positivo que um prefeito, governador ou presidente queira, pelo menos uma vez, ser reeleito. Pois para isso precisará fazer um governo melhor, ouvir os cidadãos e responder adequadamente à fiscalização dos órgãos de controle. Em suma, numa democracia é melhor que o político queira ser "accountable".
Fingir que os governantes não podem fazer campanha antes da eleição leva a três cenários: ou se teme que as instituições democráticas e os eleitores não serão capazes de combater eventuais abusos, o que nos coloca numa eterna situação de minoridade política; ou se teme a responsabilização dos eleitos por meio do voto, o que nos torna pouco democráticos; ou então se trata de pura ingenuidade, uma vez que políticos que podem se reeleger começam sua campanha desde o primeiro dia do mandato, gostemos ou não dessa verdade.
A novidade central das novas regras eleitorais é que o tempo de campanha foi drasticamente reduzido. Alguns defendem isso porque querem diminuir os gastos eleitorais e o dinheiro público colocado, direta e indiretamente, nas eleições. Essa argumentação, no fundo, favorece outra, que também quer limitar ao máximo a duração das campanhas: os programas televisivos são de péssima qualidade, com vários candidatos bizarros e muita baixaria na briga entre os candidatos, e assim desperdiçam tempo precioso da vida das pessoas.
Não se pode ignorar uma série de verdades contidas nas argumentações acima. A qualidade dos programas eleitorais e do próprio debate na campanha tem piorado gradativamente. Porém, diminuir o tempo de campanha não garante que esses problemas serão resolvidos.
Continuaremos vendo muitos candidatos e formas de marketing político deprimentes, especialmente no pleito para vereador - embora o propositor do "aerotrem" em São Paulo, que novamente disputa o Executivo, seja imbatível nesse quesito. E como tais concorrentes terão menos tempo para divulgar suas mensagens, terão de convencer mais rapidamente os eleitores, o que tenderá a torná-los mais agressivos na forma vazia e antipolítica de se expressar. Assistam ao horário eleitoral, leitores-eleitores, e digam depois se esse vaticínio estava correto.
A redução do gasto com as campanhas eleitorais é importante, mas ela deve vir junto com a melhoria da qualidade do processo democrático. Afinal, se as eleições fossem feitas em apenas uma semana, sem direito ao uso de rádio e TV e com poucos candidatos, obviamente que haveria um enorme corte do custo da política. Contudo, também haveria, concomitantemente, uma enorme fragilização da democracia, a tal ponto que sentiríamos saudades dos Tiriricas, Cacarecos e afins - que são bem melhores do que a política sem politicagem da Coreia do Norte.
A tentativa de regular todos os aspectos da disputa eleitoral é outra forma antipolítica que impera nas atuais eleições. O vencedor do prêmio "regra mais inútil do ano" é sem dúvida a necessidade de o candidato ter um fax. Talvez valesse a pena exigir que ele fizesse seu material de campanha num mimeografo próprio.
Mas, para além dos aspectos bizarros, típicos de legisladores e de uma cultura jurídica que bebem num modelo inquisitorial de relação Estado-sociedade, há questões mais sérias que atrapalham o bom andamento da democracia. Uma delas é a regulamentação de quem pode participar de debates organizados pelos meios de comunicação de massas.
O modelo atual toma como base a representação dos partidos no Congresso Nacional. Mesmo que o concorrente não esteja bem nas pesquisas e não tenha uma história política na cidade, mas cujo partido e/ou aliados tenham um contingente mínimo de parlamentares, ele terá de ser chamado aos debates.
Se, numa situação contrária e hipotética, o concorrente estiver muito bem nas pesquisas e for ex-prefeito do município, mas cuja agremiação e aliados não tiverem cadeiras suficientes no Legislativo federal, ele ficará de fora, a não ser que os outros candidatos aceitem sua participação no debate. Obviamente, que essa regra tem um forte cunho oligárquico, mais especificamente criada para manter o poderio dos partidos aliados ao ex-presidente Eduardo Cunha na disputa municipal, após a geleia geral que seu grupo político - o "centrão" - estabeleceu no sistema político.
A pergunta mais importante que esta e outras regulações derivadas desse modelo antipolítico deveriam suscitar é a seguinte: o arcabouço constituído para as eleições municipais favorece o debate público baseado na discussão das ideias e propostas dos concorrentes?
Reduzir o tempo de campanha e dificultar que as candidaturas nasçam antes do pleito, simplesmente diminuir a duração diária do horário eleitoral gratuito de rádio e TV, procurar regular todas as formas de interação e confronto entre os concorrentes, são, em suma, aspectos que definitivamente não contribuem para melhorar o debate público.
Outras questões que afetam a qualidade do debate eleitoral deveriam ter sido mudadas nos últimos anos, e não o foram. Por exemplo, a divisão do tempo de rádio e TV a partir de enormes coligações, tanto para o pleito majoritário como para o proporcional. Isso sim gera alianças espúrias que transformaram o horário eleitoral gratuito na principal peça de barganha política, por vezes alimentando a corrupção entre os partidos ou então a patronagem/fisiologismo desenfreado.
Claro que por trás disso está a enorme e artificial fragmentação partidária, alimentada pelas coligações nas eleições proporcionais, com seu impacto na distribuição das cadeiras parlamentares e na distribuição do tempo de rádio e TV, bem como pela "regra Kassab", que facilitou o troca-troca partidário e o uso indevido do Fundo partidário.
Em vez de reduzir o tempo e o jogo aberto da política, o melhor é aprimorar suas regras de competição e controle do cidadão. É certo que o horário eleitoral gratuito precisa de uma reformulação, mas não para transformá-lo em uma série de pequenos comerciais que passam na TV como se fossem slogans publicitários para qualquer produto.
O que falta à política brasileira, sobretudo hoje, é discutir com mais pormenor as alternativas para resolver seus principais problemas. Um formato midiático deveria ser pensado para ampliar as discussões políticas. Essa carência ganha maior proeminência porque a maioria dos meios de comunicação de massa, especialmente na TV e no rádio, não tem programas nos quais são chamadas pessoas com ideias diferentes, sejam políticos ou não, para confrontar soluções ou mesmo para construir novos consensos, derivados da divergência e da negociação de propostas. O pior é que a legislação eleitoral, há tempos, dificulta a criação de canais de debate na imprensa, em todas as suas formas.
É triste ver que, na encruzilhada política e social em que estamos, a primeira eleição nesse cenário ocorra em meio a regras e mentalidade antipolíticas. Essa eleição municipal deveria ser um espaço privilegiado para reconstruir os objetivos e as formas de funcionamento do pacto político, buscando encontrar alternativas e abrir espaços para que mais atores possam participar do processo eleitoral. Seria o começo de uma trilha que poderia desaguar nas eleições de 2018, evitando a repetição do péssimo debate da última disputa presidencial, cujas consequências foram desastrosas.
Vislumbrar esse caminho de amadurecimento democrático até 2018 não retira a especificidade e a importância das eleições municipais. Isso vale para todas as cidades e com mais ênfase nos grandes centros urbanos, onde os problemas ganharam uma complexidade tal que não podem mais ser definidos e discutidos de forma simplista e dicotômica. Decidir qual vai ser o futuro de Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza, Curitiba e São Paulo depende de muito debate. Por isso, precisamos de mais política, e não de menos.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico (19/08/16)