No dia 15, o candidato derrotado José Serra publicou no jornal "O Globo" um artigo intitulado "Cuidado com a contrarreforma", com argumentação sofrível, como mostrarei aqui, defendendo a adoção do voto distrital puro no Brasil. Em primeiro lugar, convém ser extremamente prudente quando se trata de seguir recomendações de Serra. Não podemos nos esquecer que ele recomendou a si próprio ser candidato a presidente em 2010 baseado na visão de que, por ser supostamente mais bem preparado que a então candidata Dilma Rousseff, ele a derrotaria.
Serra cometeu um erro conhecido pela literatura científica especializada como erro fundamental de atribuição. Ele reduziu a importância das circunstâncias e do contexto, que era fundamentalmente a boa avaliação do governo Lula desde 2009, e deu muita importância às características das pessoas, à comparação pessoal entre ele e Dilma. Tratou-se de um erro crasso. O mesmo Serra que recomendou erradamente a si próprio ser candidato em 2010, tornando-se hoje um moribundo político, enquanto poderia facilmente estar exercendo o cargo de governador de São Paulo, recomenda agora, também erradamente, que o Brasil adote o sistema eleitoral distrital ou majoritário para eleições legislativas. Serra não soube recomendar a si próprio o melhor caminha a seguir, o que dirá, então, quando se trata de recomendar uma ampla reforma eleitoral para o Brasil.
Serra afirma que a reforma política deve "atender a três demandas principais que concorrem para o aprimoramento da democracia: 1) é preciso tornar as eleições mais baratas; 2) é preciso fortalecer os partidos políticos; 3) é preciso aproximar o eleitor do eleito, reforçando a representatividade". Serra afirma que o sistema eleitoral proporcional, o nosso sistema atual, "eleva o custo da disputa a níveis estratosféricos, permite que aventuras personalistas se sobreponham à identidade partidária" - aliás, é muito curioso que Serra se considere com autoridade suficiente para fazer essa crítica - e "obstaculiza a necessária proximidade entre representante e representado".
A grande falácia de seu artigo é que ele não compara em nenhum momento os efeitos do sistema proporcional com o sistema distrital que ele defende no que tange aos três pontos que precisam ser aperfeiçoados. O esforço para fazer isso teria sido mínimo. Bastava que o autor do artigo tivesse consultado a literatura científica para conferir se é possível associar a mudança do sistema eleitoral à melhoria nos três aspectos mencionados. Isso mostra que a lógica não é o forte de Serra.
Vamos à literatura que ele ignorou. Maurice Duverger mostrou, em 1963, que diferentes sistemas eleitorais têm impacto diferenciado no número de partidos. O sistema distrital leva quem o adota a ter somente dois partidos, caso dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, e o sistema proporcional resulta em um sistema multipartidário como é o Brasil de hoje. Em 1990, Gary Cox mostrou que diferentes sistemas eleitorais resultam em graus diferentes de extremismo político. Quatro anos mais tarde, Lijphart mostrou que os sistemas têm impacto diferenciado sobre o grau de desproporcionalidade da representação.
Essa mesma literatura científica também já associou o sistema eleitoral, proporcional ou distrital, a formação de coligações para formar governos, resultados macroeconômicos, estabilidade governamental, congruência entre a preferência dos eleitores e adoção de políticas públicas. Porém, nenhum texto mostrou nenhuma conexão entre o sistema eleitoral e os três pontos que Serra afirma haver conexão. Aliás, campanhas caras ou baratas não têm nada a ver, segundo os especialistas, com os sistemas eleitorais, mas sim com a duração da campanha. Quanto mais longa a campanha, mais cara ela é. Trata-se de uma conclusão meio óbvia, que, portanto, não tem o brilhantismo que Serra atribui às suas ideias. O fato é que, mesmo não sendo brilhante, se trata de uma conclusão verdadeira, ou seja, é uma conclusão que nos ajuda a tomar decisões corretas.
Isso é suficiente para mostrar que o artigo de Serra é falacioso: até o momento não há corpo de literatura de ciência política que dê sustentação ao que ele afirmou. Serra poderia ter se dado ao trabalho de consultar o trabalho de Matt Golder, "Democratic Electoral Systems around the World, 1946-2000", no qual ele analisa 867 eleições legislativas ocorridas em cinco décadas. Golder demonstra que o sistema eleitoral mais adotado em todas essas eleições foi o sistema proporcional atacado por Serra.
Tomando-se os dois extremos da série, tem-se que o sistema eleitoral proporcional rechaçado por Serra foi adotado em praticamente 55% das eleições legislativas ocorridas na década de 1950, caindo para praticamente 50% das 281 eleições legislativas dos anos 90. No mesmo período, o sistema distrital reduziu a sua participação de 36,9% para 35,2%. O único sistema que teve aumento substancial foi o sistema misto, que combina características tanto do sistema distrital quanto do proporcional. Esse sistema respondeu por somente 8,1% das eleições legislativas dos anos 50, praticamente dobrando para 15,3% nos anos 90.
Merece destaque o fato de o sistema distrital ter aumentado muito a sua adoção nos anos 80, período de intenso florescimento democrático na América Latina e no sul da Europa, e despencado nos anos 90. Uma hipótese razoável para esse fenômeno é que as jovens democracias tenham decidido em um primeiro momento copiar os anglo-saxões, adotando sistemas eleitorais majoritários. Afinal, Estados Unidos e Grã-Bretanha foram nos últimos séculos os países mais influentes sobre a maioria das questões importantes na política e economia.
No entanto, depois de uma ou duas eleições, eles descobriram que em se tratando de sistema eleitoral nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para qualquer outro país. Assim, o crescimento abrupto do sistema majoritário nos anos 80 é seguido de uma queda também abrupta de sua adoção nos anos 90. O beneficiário dessa queda foi o sistema misto, o que indica que quem adotou o distrital puro nos anos 80 decidiu adotar algum grau de proporcionalidade nos anos 90, indo contra a recomendação de Serra.
Essa recomendação é errada também por duas outras razões. O sistema proporcional que adotamos é de longe o sistema mais comum na Europa ocidental, na América Latina e nos países que são presidencialistas. Entre 1946 e 2000, ocorreram 164 eleições legislativas na América Latina - 149 foram dentro do sistema eleitoral proporcional e somente ínfimas 7 se deram no sistema eleitoral que Serra defende.
Os dados são por demais eloquentes: a proposta de Serra na América Latina é delirante. Não bastasse isso, e como tributários culturais da Europa ocidental, é possível ver que das 285 eleições legislativas ali ocorridas somente 25 foram no sistema distrital, ao passo que 233 foram sob o sistema proporcional. O sistema distrital prepondera apenas nas ilhas do Pacífico e da Oceania, no Caribe e na América não ibérica. Ou seja, Serra propõe que o Brasil adote um sistema que é forte nas ilhas do Pacífico e no Caribe e fraco na América Latina e Europa ocidental.
Não bastasse esse equívoco, há outro de igual gravidade. O sistema eleitoral mais utilizado nos países presidencialistas é, de longe, o sistema proporcional. No presidencialismo, em 261 eleições legislativas ocorridas, 180 foram por meio do sistema eleitoral proporcional e somente 63 se deram no sistema majoritário. Visto com racionalidade e à luz desses dados, a proposta de Serra seria perfeita para uma ilha parlamentarista do Pacífico ou mesmo para um país de matriz cultural anglo-saxã, mas não se encaixa no Brasil. Esses dados falam por si só e mostram que o supostamente bem preparado José Serra não é tão bem preparado assim quando se trata de argumentar em defesa do sistema distrital.
Há uma importante razão para que os países de matriz cultural ibérica do Novo Mundo adotem o sistema eleitoral proporcional: esse sistema foi elaborado, entre outras coisas, para representar as minorias. O sistema eleitoral majoritário defendido por Serra leva depois de duas ou três eleições ao bipartidarismo. Se ele fosse adotado hoje, teríamos depois de uns dez anos uma disputa somente entre o PT e outro partido que surgiria dentre os vários partidos de centro-direita que disputam espaço atualmente. Porém, o sistema proporcional permite a coexistência do PT com diversos outros partidos: PSDB, PMDB, DEM, PP e PR, apenas para citar os mais importantes. O sistema distrital varreria do mapa político quatro dessas cinco legendas. Isso Serra não diz no seu artigo. É exatamente por isso que o sistema distrital não é recomendável para o Brasil.
Não há dúvida de que temos partidos demais e partidos desnecessários. Porém, não há a menor necessidade de mudar o sistema eleitoral para reduzir o número de partidos. Basta apenas que seja criada uma cláusula de barreira. Se isso for feito, os mesmos grandes partidos que conhecemos hoje continuariam a existir, provavelmente fortalecidos por políticos de pequenos partidos que viriam a ser extintos.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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