quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Na democracia há regras, independente do resultado das eleições (Rudá Ricci)

Primeiros apontamentos sobre a eleição nacional
1. A eleição para Presidente da República neste tumultuado 2018 teve momentos distintos. Até o episódio da facada em Jair Bolsonaro, na cidade mineira de Juiz de Fora, sua candidatura não gerava segurança. Demonstrava estar paralisada em intenção de votos ao redor de 20%. A candidatura petista de Fernando Haddad crescia aceleradamente, procurando transferir votos de Lula, campeão de intenção do eleitorado brasileiro (na marca dos 40%), mas que havia sido preso e impedido de registrar sua candidatura;
2. Com o atentado à Bolsonaro, ocorrido em 6 de setembro, sua candidatura recebeu um sopro de vida. Primeiro, porque a comoção que gerou fez sua candidatura superar os 25% de intenção de votos rapidamente (em 20 de agosto, Bolsonaro tinha, segundo o IBOPE, 20% de intenção de votos; em 11 de setembro, já alcançava 26% e em 24 do mesmo mês, 28%). Segundo, porque o episódio consolidou sua candidatura como a única capaz de enfrentar o campo à esquerda. E, finalmente, porque lhe concedeu o álibi para se silenciar e não participar de nenhum debate público com seus adversários. Ficou em jejum. Todos sabemos da sua inabilidade retórica e fragilidade programática. Se safar dos debates foi um percalço a menos na sua campanha;
3. Na última semana de campanha do primeiro turno, a candidatura de Bolsonarocontinuava crescer modestamente (ultrapassando a marca dos 35%), mas seu principal adversário, Haddad, estabilizava (em 22%);
4. O fato novo, que daria o impulso final à candidatura de Bolsonaro neste final de primeiro turno foi a disseminação de fake news pelos grupos de WhatsApp. Esta inovação de campanha deverá marcar os próximos pleitos nacionais. O fato é que esta tática conseguiu superar o teto do anti-petismo (na marca dos 25% a 30% dos eleitores brasileiros) e conseguiu penetrar nas camadas mais populares. O intento se deu por uma aliança entre igrejas evangélicas (com alta penetração popular) e esta nova tecnologia de comunicação de natureza privada e comunitária. Esta associação proporcionou a construção, já tentada por Marina Silva em 2010, de uma “Cruzada” ou “Guerra Santa” na reta final do primeiro turno. Tanto que o mote dos últimos dois dias de campanha não foi o anti-petismo, mas os gays e feministas que, segundo mensagens disseminadas nesses segmentos sociais, colocariam a família tradicional em risco, fortalecendo comportamentos imorais e inadequados;
5. Pesquisa XP/IPESPE realizada no final de setembro indicava que Haddad herdaria 71% dos eleitores que votariam em Ciro Gomes (equivalente a 8% do total de intenções de voto); 73% do eleitorado de Marina Silva (equivalente a 4%) e 33% dos eleitores de Alckmin (3% das intenções de voto). Assim, em 15 de outubro, pesquisa IBOPE indicava que a intenção de votos de Bolsonaro atingia 59% e Haddad atingia 41% (Bolsonaroobteve 46% dos votos no primeiro turno e Haddad, 29%, demonstrando um maior crescimento do candidato petista no segundo turno em relação ao verificado pela candidatura Bolsonaro);
6. Lentamente, Bolsonaro cai, ao longo do segundo turno, deste patamar de 59% para 55% e Haddad sobe de 41% para 45%. A mudança, ainda que insuficiente para retirar a vitória final de Bolsonaro, se deu em função da descoberta e reação tímida do judiciário em virtude das notícias falsas disseminadas nas redes sociais no final do primeiro turno, além da divulgação de financiamento de empresários para gerar esta fraude;
7. Aqui aparece uma primeira tese que confunde até o momento parte do campo progressista, muito disseminado pela candidatura de Ciro Gomes: a que a escolha de Fernando Haddad facilitou a vitória de Bolsonaro. A tese se apoia num equívoco técnico: pesquisas realizadas no primeiro turno projetariam todos candidatos, menos Haddad, como possíveis de vencer Jair Bolsonaro no segundo turno. A tese incorre em vários erros. O primeiro é que no final de setembro, a candidatura de Haddad já se projetava à frente de Bolsonaro no segundo turno (segundo pesquisas XP/IPESPE e IBOPE). Mas, o erro maior da tese está na própria confiança neste tipo de projeção.
Um dos erros primários que não se pode cometer em pesquisas quantitativas é a indução da resposta. Isto significa que a sequência de questões merece atenção profissional. Uma ilustração é perguntar se uma pessoa gosta de violência e, em seguida, perguntar se vota em candidato que prega a violência. A indução é nítida e gera viés na resposta. Pois bem, ao perguntar, durante o primeiro turno, em quem o eleitor pretendia votar no segundo turno, o viés inviabiliza o rigor em relação à resposta. Isto porque o eleitor projeta seu candidato no segundo turno.
No caso, se o seu candidato ataca um possível concorrente (caso de Marina e Ciro Gomes em relação a Haddad), mas este adversário não fazia crítica aos primeiros (Haddad tentava atrair os outros dois adversários citados), os eleitores se comportam de maneira distinta. Ocorre que num segundo turno, com apenas dois candidatos no páreo, aquela intenção inicial estimulada pela crença em seu candidato do primeiro turno se dissipou, obrigando o eleitor a repensar à luz dos projetos de país em disputa. O erro metodológico foi evidente. Tanto que a projeção das pesquisas realizadas no primeiro turno em relação à intenção de voto do eleitor no segundo turno já revelou total descompasso na primeira semana do segundo turno: Haddad e Bolsonaro passaram a ter um índice de intenção de votos absolutamente distinto das pesquisas realizadas anteriormente;
8. A tese sobre o melhor nome para enfrentar Jair Bolsonaro desconsidera dados concretos da realidade e a sequência de acontecimentos que ocorreram ao longo do primeiro turno. Ciro Gomes nunca conseguiu se revelar um candidato efetivamente competitivo justamente porque não conseguiu formatar um arco de alianças potente, não tinha relação orgânica com estruturas sociais de massa (sindicatos, igrejas ou entidades de representação de classe) e não obteve apoio da maior liderança política do país, Lula. Este foi justamente o diferencial entre Ciro Gomes e Fernando Haddad: o potencial eleitoral dos dois era equivalente (entre 5% e 10%). Foi o apoio de Lula e a estrutura política do lulismo que levou Haddad ao crescimento no primeiro turno. E justamente quando o nome de Haddad ganhou visibilidade e seus méritos passaram a ser examinados de perto pelo eleitor, o ritmo de crescimento do percentual de intenção de votos começou a ser menor até atingir o ponto de estabilidade;
9. O que parece ter ocorrido é que os acontecimentos imprevisíveis que catapultaram a candidatura de Bolsonaro se somaram à fraqueza dos candidatos do campo que se opunha ao candidato da extrema-direita. No campo do centro-esquerda, Haddad e Ciro Gomes – ambos apresentando programas de natureza social-liberal – não possuem carisma ou histórico suficientes para se equiparar à Lula. Poderiam até fazer frente à Bolsonaro desde que a facada e a disseminação de Fake News pelos grupos de WhatsApp não tivessem ocorrido. Com tais situações inusitadas, os dois candidatos não conseguiram atingir corações e mentes das populações silenciosas, não organizadas, altamente religiosas e conservadoras no seu ideário (ainda que não tanto em sua prática social concreta);
10. A eleição revelou um país dividido. Haddad venceu na maioria dos municípios brasileiros: o petista venceu em 2.810 municípios, Jair Bolsonaro venceu em 2.760 municípios. Por outro lado, Bolsonaro venceu em 97% das cidades mais ricas e Haddad em 98% das mais pobres. Entre os mil municípios com os maiores IDHs do País, Bolsonaro venceu em 967, enquanto Haddad conquistou 33. Já nas mil cidades menos desenvolvidas, Haddad ganhou em 975 e Bolsonaro em 25. Portanto, a campanha lulista conseguiu penetrar nos grotões;
11. Nas 500 cidades brasileiras com maior percentual de eleitores até 24 anos, Haddadvenceu em 457. Já nas 500 cidades com maior percentual de eleitores acima de 60 anos, Bolsonaro venceu em 382;
12. Jair Bolsonaro se saiu melhor nos Estados com maior eleitorado. Venceu a eleição em 16 Estados, incluindo o Distrito Federal, enquanto Fernando Haddad ficou à frente em 11 unidades da federação (no Nordeste). Ganhou do petista por diferença mínima -- menos de 1 ponto percentual -- apenas no Amazonas e no Amapá, onde obteve 50,5% e 50,2% dos votos válidos. Venceu com uma diferença 16 pontos em Minas Gerais (com 58%), segundo colégio eleitoral do país, representando 10% dos eleitores brasileiros. Mas foi São Paulo, o maior colégio eleitoral do país (com 20% dos eleitores), que garantiu sua vitória: 63% dos votos válidos.
13. Em quatro Estados, Bolsonaro obteve mais de 70% dos votos, chegando a 76% em Santa Catarina e 77% no Acre, seus melhores resultados proporcionais.
14. Assim, houve confronto entre os dois maiores colégios eleitorais regionais do país: Sudeste (o maior, com mais de 43% dos eleitores) e Nordeste (com pouco mais de 26% dos eleitores);
15. As dificuldades de Bolsonaro, neste momento, são de equacionamento das divergências internas: entre militares nacionalistas e economistas e empresários ultraliberais. Esta tensão pode ser exacerbada caso a agenda econômica (ultraliberal, já anunciada pelo seu principal assessor da área, o banqueiro Paulo Guedes), próxima à adotada por Michel Temer, for posta em pauta. A frustração do eleitorado menos abastado deverá seguir o caminho da impopularidade que acometeu o governo Dilma Rousseff em 2015 e Michel Temer (que adotaram justamente esta agenda);
16. Outro problema é a crise econômica e de empregos que, segundo agências internacionais, não deverá ser superada no próximo ano;
17. Outro ponto de estrangulamento é a rejeição internacional que seu perfil de extrema-direita provocou na Europa e EUA, entre a grande imprensa, governos e grandes empresas;
18. Finalmente, terá que negociar com o Baixo Clero do Congresso Nacional, sua origem parlamentar, que demanda obras e recursos para suas bases eleitorais, pouco se dedicando às agendas nacionais. As demandas pulverizadas e agressivas tomarão muito tempo de negociação, como ocorreu nas gestões anteriores;
19. Este cenário sombrio sugere que seu governo deverá iniciar com pautas “quentes” mais populares, possivelmente da área da segurança pública, exacerbando suas diferenças com o campo progressista e de esquerda e procurando aumentar sua gordura de popularidade para, então, desfechar a agenda econômica;
20. Resta uma palavra sobre o campo progressista. Bolsonaro é a última liderança do campo conservador. Na verdade, é uma aposta arriscada numa liderança pouco equilibrada e experiente e afeta aos arroubos de extrema-direita. Foram-se os partidos decentro e centro-direita e candidatos “espetaculares”, personalidades sem projeção no cenário político (mas, por isso mesmo, mais fáceis de manipulação). O campo progressista sai derrotado das urnas, mas pode se recompor a partir da agenda econômica ultraliberal (que renderá grande frustração no eleitorado popular) e nos ataques que a vitória de Bolsonaro deve encorajar em grupos paramilitares ou mesmo segmentos reacionários, racistas e sexistas;
21. Não há certeza de nada. Os campos político e econômico continuam abertos e em crise. Os seis primeiros meses podem ser de namoro com a agenda reacionária. Veremos se permanece a partir daí.
Fonte: debate O Brasil que sai das urnas, promovido pelo CEPAT, em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR e o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 13/11/2018.

Do falso bem-estar social lulista ao individualismo predatório bolsonarista (Ricardo Cavalcanti-Schiel)

vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais deste ano expressa a “lógica damaximização do individualismo liberal, que o lulismo promoveu obsessivamente”, diz o antropólogo Ricardo Cavalcanti-Schiel à IHU On-Line. Segundo ele, o novo governo será marcado por um “projeto de regulação social ultraliberal” que tem como característica o “individualismo possessivo, em conjunção com a lógica do privilégio”. Na prática, vislumbra, a nova gestão “vai se assentar sobre uma considerável devastação dos bens públicos (meio ambiente, reservas naturais, bens da União ― Terras Indígenas, por exemplo ―, Sistema Único de Saúde, empresas estratégicas...) ou, em última instância, do próprio espaço público”. Comparando o novo governo com as gestões anteriores do lulismo, Cavalcanti-Schiel é categórico: “Se o lulismo nunca teve por objetivo promover um Estado do bem-estar social, só o que muda agora com o bolsonarismo é a intenção deliberada de promover o Estado do mal-estar social, em nome do individualismo predatório”. 
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o antropólogo comenta o discurso de pacificação do presidente eleito, e afirma que ele “significa a negação do conflito, nos termos de um componente militar da sua lógica política, que é o da tutela”. Essa lógica, explica, “funciona assim: ao se considerarem a salvaguarda em última instância da ‘soberania nacional’, as instituições militares se creem igualmente, em nome dela, dotadas da prerrogativa, se necessário, da tutela dessa mesma sociedade, inclusive para salvaguardá-la da perda de algo que ela não alcançaria reconhecer, que é a tal da ‘soberania nacional’. Só que essa lógica da tutela, no seu grau maximizado (e a ditadura militar assim o demonstrou), significa a pura e simples subserviência, única linguagem que, no fim das contas, um autoritário fala e entende. Essa é a linguagem de Bolsonaro”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - Tenho lido várias análises que tendem a enfatizar o caráter singular, quase excepcional, da eleição de Bolsonaro, como um marco de término de um certo período da história política brasileira ou algo do gênero. Para mim, esse tipo de avaliação tem valor, antes de mais nada, retórico. Creio que ainda é cedo para reconhecer o significado contextual mais amplo desse momento. No geral, o presidencialismo de coalizão ainda deve continuar dando as cartas do jogo, a blindagem de uma corte executiva e legislativa regida pela troca conspícua e venal de favores continua garantida (mesmo que mudem os atores circunstanciais), e a monarquia judicial conservadora ainda está longe de estar sob ameaça ― uma monarquia judicial que tem sua razão de ser não na promoção da Justiça, mas na promoção da Obediência (e a obediência à Lei é apenas o pretexto sobre o qual, na realidade, se desdobram os muitos casuísmos da velha obediência ibérica)

Em termos de relações estruturais, continua tudo como dantes no quartel de Abrantes. Muda-se apenas um certo tom do estilo de governança do país por parte das castas senhoriais, mas esse tom (e apenas ele) vem mudando periodicamente, dependendo apenas da escala que se desenhe para medir a “mudança”. Não estou nem falando de regimes do capital, como gostam os marxistas. Estou falando de um regime de persistente acanhamento da cidadania. Para a grande maioria da população brasileira, em termos de direitos, já de antes de 1988 para hoje as mudanças foram notavelmente circunscritas. Elas incidem, quase sempre, de forma minoritária e pontual, servindo então como diversões táticas sobre as quais se constroem discursos políticos para consumo das classes médias.

Gestão petista

A narrativa de que os governos federais do PT possam ter representado um interlúdio nesse cenário de acanhamento persistente da cidadania, hoje já é claramente reconhecida (exceto pelos petistas) como fantasiosa. A derrota eleitoral do PT não deixa de ser uma expressão maciça desse reconhecimento (que os petistas continuarão se recusando a admitir). A experiência petista de governança apenas deu, aqui e acolá, uma ou outra tintura, muito superficial, aos fenômenos conformados pela velha e sempiterna lógica do privilégio, radicalizando inclusive sua feição liberal, que é o que proporcionou esteio axiológico para a ascensão (e, portanto, a legitimidade simbólica) da extrema direita.
Todo o período dos governos petistas foi marcado pelo desinvestimento simbólico do espaço público e pelo horizonte ideal de saída dele pelos cidadãos: fazer um plano de saúde privado, colocar os filhos numa escola particular, conseguir um financiamento para o diploma universitário na fábrica da esquina para isso habilitada, apropriar-se individualmente de uma marca “étnica” para ganhar uma quota universitária, comprar um carro para poluir mais o mundo, inflar a bolha imobiliária em um espaço urbano vandalizado que, por fim, faz as pessoas se refugiarem na assepsia dos shopping centers (mesmo que para isso tenham que fazer um “rolezinho”), ao invés de irem a parques, bibliotecas, espaços de convivência coletiva, lúdica e cultural... etc etc.

Bolsonarismo

Os valores sobre os quais se assenta a legitimidade e reconhecimento do bolsonarismo são apenas o paroxismo disso tudo. A vitória de Bolsonaro é tanto filha imediata da sociabilidade das redes digitais quanto filha mediata da ideologia lulista das oportunidades. E tudo isso responde à lógica da maximização do individualismo liberal, que o lulismo promoveu obsessivamente.
Se o lulismo nunca teve por objetivo promover um Estado do bem-estar social ― o “social”, no fundo, como instância lógica, mais que apenas retórica, sempre esteve fora e além da agenda lulista ―, só o que muda agora com o bolsonarismo é a intenção deliberada de promover o Estado domal-estar social, em nome do individualismo predatório.
bolsonarismo vai além da figura de Bolsonaro. Ele já existia antes, em projeto, com José Serra e outros cardeais da mesma estirpe do PSDB. Ele é a conjunção do velho autoritarismo senhorial com o moralismo tacanho do patriarcado, com os delírios selvagens dos libertarians do [Movimento Brasil Live] MBL, com a teologia da prosperidade das seitas pentecostais, e com a subserviência geopolítica aos velhos patrões do norte. A eleição de Bolsonaro, a meu ver, insinua a possibilidade de uma mudança de grau, mas não de natureza, no quadro geral das relações sociais no Brasil, onde a cidadania e os bens sociais (aí incluído, por exemplo, o meio ambiente) sempre tiveram um estatuto precário.
IHU On-Line - Em seu terceiro pronunciamento após as eleições, Bolsonaro disse que “vai buscar, seguindo o exemplo do patrono do Exército brasileiro, Duque de Caxias, pacificar o nosso Brasil (...) sem eles contra nós e nós contra eles”. Como avalia esse tipo de declaração e a referência a Duque de Caxias?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - Em primeiro lugar, o dispositivo discursivo intelectualmente primário de alguém como Bolsonaro não funciona sem muletas semióticas que operam como ícones sumariamente mi(s)tificados. No sentido antropológico, Bolsonaro não habita o mundo dos mitos; habita o mundo das farsas; farsas que têm com os mitos uma relação parasitária. E às vezes são farsas de segunda ordem: farsas que se alimentam de outras farsas que se alimentam de mitos.
O primarismo do Bolsonaro aqui é o de querer decalcar, para a sociedade civil, o clichê militar (e farsante) de Caxias como “o pacificador” (aquele da “medalha do Pacificador com palma”). Isso acaba resultando em uma imagem imperial, cesarina, com cheiro de quartel, de gueto militar que preza, antes de mais nada, pela tutela da sociedade civil, como o Duque de Caxias que impôs a ordem imperial a ferro e fogo. Assim, “pacificação” no sentido de Bolsonaro significa a negação do conflito, nos termos de um componente militar da sua lógica política, que é o da tutela.
Eu defendo analiticamente que a lógica da tutela é constitutiva da cosmologia das instituições militares brasileiras. Ela funciona assim: ao se considerarem a salvaguarda em última instância da “soberania nacional” (uma categoria que a própria sociedade civil não se preocupa em debater, delegando-a à discursividade militar), as instituições militares se creem igualmente, em nome dela, dotadas da prerrogativa, se necessário, da tutela dessa mesma sociedade, inclusive para salvaguardá-la da perda de algo que ela não alcançaria reconhecer, que é a tal da “soberania nacional”. Só que essa lógica da tutela, no seu grau maximizado (e a ditadura militar assim o demonstrou), significa a pura e simples subserviência, única linguagem que, no fim das contas, um autoritário fala e entende. Essa é a linguagem de Bolsonaro.
Quando alguém originário do meio militar fizer uso de uma evocação capital e sincera ao exemplo de Rondon, e não ao de Caxias, aí sim, pode-se começar a suspeitar que se trata de alguém interessado no povo brasileiro, e não na sua tutela.
IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirmou que o “projeto de Bolsonaro, no fim das contas, curiosamente, é mais universalista que o do PT”. Quais são as características que indicam esse caráter universalista do projeto ou do discurso de Bolsonaro?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - O universalismo de Bolsonaro é o de uma nação abstrata regida por um único critério, aquele que Crawford Brough Macphersonchamou de “individualismo possessivo”, e que produz o que também Macphersonchamou de “sociedade possessiva de mercado”. É um critério que pretende ter efeito regulatório geral, e nisso ele supera a desarticulação dos particularismos pós-modernos e sua incapacidade de promover um projeto de sociedade para além de ummoralismo fragmentador da política, como o expressava Roberto Dutra Torres Junior aqui mesmo no site do IHU. Só que é um universalismo que volta lá para trás, para então regurgitar o neoliberalismo hardcore.
De qualquer maneira, o poder de agregação (e congregação) dos discursos universalistasé sempre maior que a agenda particularista das políticas de identidades. A eleição de Trump deveria ser vista como uma boa lição. A potência do lema “Make America Great Again” não está tanto no “great”. Esse é o elemento semiótico subsidiário, potencialmente passível até de um questionamento quase que imediato (e essa foi a armadilha estendida para os “progressistas”, que nela caíram e se enredaram). A potência desse lema está no “America”, naquilo que abarca a todos como communitas. Sem ela, nada (nessa perspectiva) mereceria ser “great”.
O próprio PT só se mostrou viável politicamente, lá nos anos 80, quando abandonou seu antigo lema “trabalhador vota em trabalhador” (uma espécie de particularismo classista), para começar então a falar dos problemas do Brasil. Voltar agora com essa história de “mulher não vota em Bolsonaro” é jogar para perder. Nos Estados Unidos, 53% das mulheres brancas teriam votado no Trump.
IHU On-Line - O que significa dizer que o projeto de Bolsonaro é universalista, mas não é cidadão, como o senhor o classifica?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - Não é cidadão porque não se fundamenta na equanimidade dos direitos, mas na predação possessiva (para usar, mais uma vez, a referência do Macpherson), em um contexto sociocultural pré-conformado, que é o da velha e ibérica lógica do privilégio.
Quando eu falo em equanimidade dos direitos, contra a predação possessiva, eu implicitamente evoco o conhecido exercício lógico uma vez feito por Norberto Bobbio, sobre se é possível deduzir a igualdade da liberdade... ou se é possível deduzir a liberdade da igualdadeBobbio “resolve” o problema argumentando que, numa situação em que todos são livres a priori, reconhece-se implicitamente que uns terão a liberdade de se sobrepor aos direitos de outros (e aí entra a possessividade), de onde se torna impossível deduzir, logicamente, qualquer igualdade, qualquer equanimidade. Já a liberdade, essa sim pode ser deduzida da igualdade, porque se a igualdade é dada, como antecedente, todos podem ser igualmente livres, como consequente. A cidadaniae o direito se assentam, por princípio, sobre a ponderação do todo, e não sobre a primazia de alguns.
Como fórmula liberal distributivista (a do John Rawls), mas igualmente “possessivista”, as políticas de identidade também se assentam sobre a primazia de alguns. Não vai ser esse o caminho para equacionar a cidadania.
IHU On-Line - O que deve caracterizar o que o senhor chama de “projeto de regulação social ultraliberal” do governo Bolsonaro?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - Em termos genéricos, vai se caracterizar por isso que eu aventava logo antes: o individualismo possessivo, em conjunção com a lógica do privilégio. Em termos práticos, vai se assentar sobre uma considerável devastação dos bens públicos (meio ambiente, reservas naturais, bens da União ― Terras Indígenas, por exemplo ―, Sistema Único de Saúde, empresas estratégicas...) ou, em última instância, do próprio espaço público. O Brasil, com toda certeza, vai sair menor como país depois de Bolsonaro. Menor em termos de complexidade econômica, de capacidade científica, de condições de soberania, de presença como player geopolítico... Tende a virar uma fazendona, sob a chibata de coronéis selvagens... e capatazes ainda mais selvagens.
Vai ser um teste de força para a nossa complexidade social. A barbárie bolsonarista é a simplificação reducionista. Dado o grau de autoritarismo das figuras centrais do próximo governo (de Bolsonaro a Moro, de Malafaia a Onyx Lorenzoni), ou a complexidade social acaba com eles ou eles acabam com a complexidade social. Sinceramente, ainda aposto na primeira alternativa. Mas os danos serão tremendos. O governo Bolsonaro não deve se caracterizar pela construção de nada. Assim como o governo Collor, é bem possível que ele entre para a história pela destruição que vai produzir. Para construir é preciso gerir a complexidade. Isso é o antípoda da agenda anunciada pelo bolsonarismo.
IHU On-Line - O que o senhor chama de “componente militar da lógica política do eleito Bolsonaro”?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - De novo, em termos mais genéricos, é aquilo a que eu me reportava como a lógica da tutela. Mas aqui é preciso introduzir um pouco mais de complexidade e gradação.
Muitas pessoas tendem a assumir como “militar” algo que parece uma substância homogênea. É muito comum ouvir até que “os militares” estarão no poder com Bolsonaro. Aqui eu tenho que falar como antropólogo e como ex-nativo dessa tribo. Meu pai era militar, eu passei três anos em uma escola preparatória do Exército, quatro anos na academia da Marinha, fui oficial por quase dez anos. Sou tão “capitão” quanto Bolsonaro ― a diferença é que tenho mais tempo de serviço que ele. E também pertenço a antigas turmas de oficiais.
Os altos comandos das Forças Armadas são constituídos por uma certa variedade de linhagens (éticas, ideológicas, doutrinárias), que buscam continuamente se reproduzir e reproduzir seus espaços de influência institucional. Eu diria até que essa diversidade relativa é crucial para as Forças Armadas não se engessarem (e os milicos talvez nem desconfiem que foi Lévi-Strauss quem propôs isso como regra geral para a humanidade).
Os “militares”, em termos genéricos, apesar de comungarem uma mesma visão de mundo (e, para entendê-la, o valor heurístico da lógica da tutela não me parece desprezível), guardam uma certa variedade interna. Em primeiro lugar, Bolsonaro pode gozar até de uma grande simpatia entre os militares, mas o arco de aliança com as suas ideias (ou, antes, suas atitudes) é fundamentalmente costurado com o que se pode chamar de “linha-dura”, e essa é só uma das linhagens militares. A assim chamada Abertura Política, na ditadura militar, só foi possível porque Geisel conseguiu mover as peças para afastar o general Sílvio Frota do Ministério do Exército em 1977. Exigiu certo trabalho imobilizar a linha-dura. Quatro anos depois eles ainda estavam colocando bombas, as mesmas que inspiraram um aloprado Bolsonaro cinco anos depois do Riocentro.
Então, não dá para fazer uma equiparação sumária entre “militares”, Forças Armadas e poder militar. São instâncias categoriais distintas. Bolsonaro pode se sentir extremamente seduzido (como qualquer autocrata) pelo controle do poder militar. Isso não quer dizer que ele vá ter controle sobre as Forças Armadas como instituição. Seria simplório. É mais fácil Bolsonaro ser sutil e sistematicamente desgastado pelas Forças Armadas do que ter controle sobre elas. É a própria lógica da tutela que conspira a favor da “relativa autonomia do campo” militar, para falar como Bourdieu. A partir dessa lógica, as Forças Armadas zelam por ser “uma coisa à parte”, e sabem que não é prudente cometer desatinos em um campo complexo de relações, exceto, claro, os da linha-dura, que se caracterizam, antes de mais nada, pela indigência intelectual, pelo simplismo das apostilas ideológicas.
E tudo isso vai depender das relações que o futuro governo vai construir com outras instâncias institucionais, como o STF, por exemplo, que, a meu ver, vai ser o primeiro “inimigo a ser batido” por Bolsonaro ― e precisa ser, porque é o inimigo mais poderoso, e Bolsonaro precisa aproveitar o acúmulo inicial de força eleitoral, antes que se desgaste. Bolsonaro já avisou que quer mexer no STF. Um soldado, um cabo e um jipe podem até ser suficientes. Resta saber se os generais vão entregar um soldado, um cabo e um jipe. Um paisano aloprado batendo continência no meio da rua não faz a menor ideia do que se passa na cabeça de um general com 40 anos de serviço e uma larga experiência nos gabinetes da corte militar. O problema é que o último processo eleitoral foi caracterizado por uma extrema passionalidade. E aí as cabeças das pessoas começam a funcionar sob curtos-circuitos simplórios.
IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirmou que o discurso petista nas eleições deste ano caiu no vazio. O que é possível esperar do discurso petista daqui para frente? O pronunciamento de Haddad após o resultado das eleições indica como possivelmente será o discurso petista?
Ricardo Cavalcanti-Schiel - Suspeito que o discurso petista vai continuar reincidindo sobre a esterilidade. À diferença até dasForças Armadas, o PT tem dado provas de que não tem mais diversidade interna... ao menos uma diversidade interna orgânica, informacional, questionadora (porque é muito fácil fazer loas à “diversidade” quando ela é tão apenas nominalista, aleatória, reiterativa, acabando por se tornar inócua, senão meramente guetificadora ― que é o discurso neoliberal sobre a diversidade).
Quem ficou no PT parece cultivar uma atitude de descolamento da realidade, agravada por um sentimento de intimidação por todo o resto, da direita à esquerda. O PT está ilhado e parece ter adotado como princípio de existência sequer pensar na possibilidade de uma autocrítica. Como eu disse no meu artigo, o PT padece de uma síndrome de anquilose crônica. Tenho a impressão de que a população percebe isso; percebe que o PT se enclausurou nas suas verdades e não quer mais falar com ninguém. Isso agora de o PT dizer que “possui” 45 milhões de votos, por exemplo, é sinal de um patetismo agonístico, de não ter entendido quase nada do que estava realmente em jogo nas últimas eleições.
Sinceramente, creio que só há possibilidade de pensamento político crítico e criativo, pela esquerda, fora do PT. E digo isso como alguém que militou no PT por bastante tempo, que sofreu sindicância, punições e investigações nas Forças Armadaspor ter feito essa opção. Mas nada compensa existencialmente mais que o esforço permanente por manter alguma lucidez.
(*) Ricardo Cavalcanti-Schiel é graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, mestre e doutor em Antropologia pelo Museu Nacional, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Realizou pesquisas etnográficas entre comunidades indígenas no sudeste amazônico, no Alto Xingu, e nos Andes meridionais bolivianos. Realizou atividades pós-doutorais no Laboratório de Antropologia Social - LAS do Collège de France, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH da Unicamp e na Escuela de Estudios Hispano-Americanos (Consejo Superior de Investigaciones Científicas- CSIC, Espanha). Atualmente é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Futuro deve ser bússola de Bolsonaro (Fernando Luiz Abrucio)

As eleições já acabaram e agora é hora de montar o novo governo. As estratégias e as tarefas que estiveram presentes na vitória eleitoral são bem diferentes dos desafios que vêm pela frente. Mas nem sempre o presidente eleito, Jair Bolsonaro, percebe a diferença entre os dois momentos.
Isso pode ser explicado pela pobreza do debate da campanha de 2018, algo agravado pelo fatídico atentado. Soma-se a isso a inexperiência de grande parte dos bolsonaristas e, como mais um fator, a existência de certas visões ideológicas que dificultam diagnósticos e propostas mais realistas. De todo modo, o sucesso de Bolsonaro vai depender, daqui para diante, de ele adotar o futuro como bússola.
A realidade que o presidente Bolsonaro vai encontrar é bem mais complicada do que foi dito na campanha pela grande maioria dos candidatos. Ele governará um país que precisa urgentemente, e de forma simultânea, sanear o Estado e fazê-lo funcionar bem para a maioria da população brasileira. É uma agenda extremamente necessária, mas cuja aprovação política e implementação administrativa são tarefas hercúleas.
São muitas coisas a reformar, mas há prioridades, não só pelo seu impacto imediato no país, mas também porque a realização dessas mudanças pode dar um fôlego ao governo Bolsonaro para além do período da lua de mel. Neste sentido, é preciso fazer escolhas, tanto de estratégia política como de agenda.
Do ponto de vista político, o pior caminho será apostar apenas no voluntarismo e na pressão vinda das redes sociais, enquanto do ângulo das políticas públicas o maior equívoco será dispersar as energias, atuando em vários e conflitivos temas ao mesmo tempo.
O presidente Bolsonaro tem toda a legitimidade obtida por alguém em dois turnos. Mas o sucesso do governo vai depender não só daquilo que o levou ao Palácio do Planalto, como também de algumas características novas, como paciência, moderação, compromisso com outras forças políticas e atenção para os limites de seu poder. Por essa razão, é preciso ter uma estratégia clara de governabilidade, o que ainda não foi apresentado ao país.
Isso exige, no front político, planejar-se para lidar com três variáveis. A primeira é a do Congresso Nacional. Os votos obtidos pelo presidente e seu partido, a relação com algumas bancadas temáticas, afora os que desejam apoiar o novo governo (e não são poucos), podem facilitar o caminho na Câmara. Só que a aprovação de medidas mais duras e o suporte mais permanente, para além da lua de mel, exigem compromissos mais estáveis com os partidos. Vale lembrar que Collor tentou governar por cima da classe política e teve pouca gente a seu lado quando as crises, que sempre aparecem em qualquer período presidencial, começaram a pipocar.
Bolsonaro enfrentará a primeira batalha na eleição da Mesa da Câmara. É preciso eleger um presidente para essa Casa legislativa que seja, no mínimo, alguém que não atrapalhe a agenda do Executivo. Tanto melhor se for um deputado colaborativo, que acredite nas propostas do governo e que não se furte a mostrar os erros de negociação eventualmente cometidos pelo presidente.
O pior cenário é ter uma figura como a que Eduardo Cunha representou para Dilma, e outro ruim é ter alguém que lave as mãos para possíveis trapalhadas do governo na Câmara. Aparentemente, a melhor saída seria a vitória de um bolsonarista raiz, mas esse ganho poderia representar um tiro pela culatra, sobretudo se o desfecho desse processo deixar muitas mágoas pelo caminho.
Se é verdade que Bolsonaro precisa ter cuidado para não atropelar os parlamentares no momento da escolha do novo comandante da Câmara, também é correto dizer que ele não deve deixar a briga rolar solta na competição pelo posto, sobretudo se seus aliados partidários brigarem com o Centrão e adjacências. O fato é que o governo somente será forte no Legislativo se houver algum acordo pacificador entre os bolsonaristas e os demais, incluindo aí até parte da oposição.
O desafio congressual maior será lidar com o Senado. Lá, existem 20 partidos representados e é possível que se forme uma aliança que vai de boa parte do PMDB até a esquerda, com chances de ganhar a eleição da Casa. Se Renan Calheiros e Tasso Jereissati se acertarem, a probabilidade desse grupo obter o apoio da maioria dos senadores é ainda maior.
Uma união como essa não é necessariamente o fim do mundo. Muitos setores para além do bolsonarimo no Congresso querem apoiar projetos de reforma do Estado, especialmente os de cunho mais econômico, pois têm aliados em governos subnacionais e, ademais, porque sofrerão pressão de muitos de seus apoiadores, que querem a retomada da economia.
Por essa razão, o bolsonarismo tem de ter cuidado com a disputa pelo comando do Senado. Claro que é melhor eleger alguém mais vinculado diretamente aos projetos do Executivo. Se isso não for possível, o melhor é procurar fazer um acordo com um grupo independente que esteja disposto a apoiar parte da agenda governamental e que aceite negociar noutras questões. A pior escolha é ir contra o vencedor que não for aliado de primeira hora. Isso é fazer o jogo da oposição e atrasar as reformas.
Vale lembrar aqui que o sucesso do presidente Bolsonaro, como o de outros governantes em início de mandato, depende de uma velha ideia da ciência política americana: aprovar as políticas públicas certas no início do período presidencial é o caminho certeiro para reforçar o poder do governo no longo prazo. No caso atual, a versão concreta dessa teoria chama-se solvência financeira do Estado, o que passa sobretudo pela reforma da Previdência.
O segundo desafio político de Bolsonaro está na relação com os governos subnacionais. A maioria dos Estados e municípios está quebrada. Não adianta dizer que isso não é um problema do governo federal, porque a provisão dos principais serviços públicos é feita pelas governadorias e prefeituras, e caso elas não deem conta dessa tarefa, há efeitos negativos na popularidade do presidente - ele provavelmente já sentirá isso com a crise do Mais Médicos. Mas não se pode também ajudar governadores e prefeitos sem conseguir contrapartidas. Afinal, o descalabro financeiro subnacional afeta, de várias maneiras, a solvência financeira do país.
Desse modo, uma nova pactuação federativa é necessária, como fora nos governos FHC, que conseguiu renegociar as dívidas estaduais, privatizar ativos subnacionais e, por fim, aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Cabe recordar que, naquela época, chegou-se até a um acordo sobre uma ampla reforma nas regras da administração pública, com a aprovação da Emenda 19, porém, não houve depois continuidade nesse esforço intergovernamental para regulamentar as mudanças propostas. Provavelmente hoje os desafios são maiores, especialmente no que diz respeito à Previdência, e, portanto, a negociação com os governadores é inescapável.
O relacionamento com o Supremo Tribunal Federal é uma questão-chave para o governo Bolsonaro. Muitas de suas medidas legislativas poderão ter de passar por essa instância judicial. Além disso, por conta de besteiras faladas por bolsonoristas e pelo próprio ao longo da campanha, os ministros do STF vão querer marcar a independência do órgão, especialmente no que se refere à questão das liberdades individuais e coletivas. O artigo do presidente da Corte, Dias Toffoli, publicado nesta semana no jornal "El Pais", deixa isso bem claro: ele propõe um amplo pacto político, mas deixa claro o que o STF vai resguardar. Creio que a votação da questão da "escola sem partido" no Supremo, no fim do mês, será a primeira prova de qual é o limite do poder de Bolsonaro e de seus aliados.
Acertando os ponteiros no front político, faltará ao novo presidente apresentar uma agenda enxuta e certeira no início do mandato, isto é, para o primeiro ano de governo. Dispersar esforços, comprar brigas desnecessárias, entrar em discussões internacionais que não geram ganhos ao Brasil e usar o passado como bússola são os erros a se evitar. Bolsonaro teve os méritos estratégicos de ganhar a eleição, mas precisa agora mudar a estação e olhar para frente, sem nostalgias ou ressentimentos. E, acima de tudo, deve escolher os temas e as questões que efetivamente possam gerar um futuro melhor ao país.
(*) Doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/ 23 de novembro de 2018

O Brasil pós-eleição (José Eduardo Faria)

Pelo que disseram os candidatos em suas campanhas, o resultado da eleição presidencial não trouxe novidades. Mostrou a crise da democracia representativa, que não atende aos valores e às aspirações dos eleitores. Revelou que as paixões políticas cederam vez ao maniqueísmo, ao desconcerto e à perplexidade. Sinalizou que a radicalização dos extremos só foi possível por causa da decomposição das bases de centro-esquerda e centro-direita. E deixou claro que, num contexto de fragmentação partidária, que marca um ponto de inflexão na crise de legitimidade das instituições, o desafio é refletir sobre a política e suas possibilidades e seus limites.
Mas em que medida a insatisfação generalizada pode produzir transformações democráticas, a começar pela reconstrução do sentido de responsabilidade, pela recuperação da noção de estratégia e pela formulação de um projeto de nação? Teria sido possível evitar que o segundo turno se resumisse à alternativa entre ceticismo e melancolia, cinismo e pragmatismo?
A votação obtida pelo candidato da direita, cujo discurso se resumiu à promessa de ordem e à manifestação do desejo de que o País de hoje volte a ser o de 40 anos atrás, apontou a disseminação, num segmento expressivo do eleitorado, da ideia de que a política é corrupta e dispensável. Nesse sentido, basta ver o que têm afirmado os parlamentares eleitos por esse eleitorado. O problema, contudo, é outro. Até que ponto uma postura antipolítica é melhor do que uma má política? Desqualificar a política não é também um modo de renunciar à representação de interesses e às aspirações de igualdade, inclusão e justiça?
Na perspectiva realista dessas indagações, lembro o ano de 1999, quando, ao assumir seu segundo mandato, Fernando Henrique enfrentou uma crise cambial e foi objeto de pedido de impeachment apresentado pelo PT. Para rechaçá-lo o presidente loteou postos típicos da burocracia estatal entre partidos sem credibilidade moral. A estratégia deu certo, mas irritou parte da comunidade uspiana, a ponto de um professor emérito, próximo do PT, tê-lo acusado de “ser uma personalidade insensível às misérias da condição humana”. Em 2002, eleito pelo partido que formulara o pedido de impeachment, Lula foi denunciado no caso do mensalão e também loteou o Ministério para não cair.
Nas duas ocasiões, as justificativas de membros da comunidade acadêmica próximos ao PT e ao PSDB foram iguais. Não se faz política se não se puser a mão na massa fecal em que se converteu o presidencialismo de coalizão, disseram os primeiros. Entre os segundos, outro docente emérito da USP afirmou que, apesar da politicagem escrachada matar a política, não se faz política sem dissimulação, troca de favores e indulgências. Por razões históricas, afirmou, no Brasil a política obedece a três premissas: o exercício do poder confunde-se com a gestão de recursos escassos, essa gestão invariavelmente cruza a zona cinzenta da amoralidade e como a política é competição é preciso que os políticos e governantes criem espaços de tolerância para certas faltas, sem os quais é impossível governar (Cf. J. A. Giannoti, Estadão, 19/6/2005).
Não é o caso de retomar os clássicos do pensamento social brasileiro para discutir a moralidade pública e as implicações éticas do presidencialismo de coalizão. É, sim, o caso de rever expectativas com relação à política, para saber se ela é ou não prescindível e examinar se não esperamos dela o que não pode proporcionar numa sociedade como a nossa. É preciso entendera dinâmica da política, para julgá-la no âmbito de um regime democrático. A democracia é um modelo político em que os fins em confronto são múltiplos e muitas vezes colidentes, dada a diversidade de atores econômicos e sociais.
As democracias consolidadas são um sistema cujas instituições e regras constituem uma urdidura capaz de absorver insegurança e garantir estabilidade. Mas por se mover no terreno pantanoso da instabilidade e do desequilíbrio, esse sistema é vulnerável ao questionamento de valores, à intolerância e à indeterminação das identidades políticas. Por isso a efetividade da democracia está condicionada à sua capacidade de aprender a lidar com contingências, desenvolver sistemas de prevenção e gerir conflitos decorrentes do aumento da complexidade socioeconômica. Para tanto, contudo, são necessárias lideranças políticas que a democracia, paradoxalmente, não tem formado.
A crise de moralidade pública é um dos sintomas da patologia da política brasileira, tendo sido decisiva no resultado do pleito. Mas para enfrentar essa crise é necessário afastar esse paradoxo, criando as condições para que a dinâmica democrática abra caminho para lideranças novas, comprometidas com as liberdades públicas, e não para um populista incapaz de entender que governar não é bater na mesa, fazer ameaças ou citar a Bíblia, mas articular apoios, formular políticas públicas e implementar programas. Assim, o que se tem hoje é um cenário de intolerância e mediocridade, de uma crise potencial de governabilidade e de risco de ameaças aos marcos constitucionais, resultante da simbiose entre a fragmentação do sistema partidário, o oportunismo de suas lideranças, a debilidade dos mecanismos de mediação, o negativismo dos eleitores e a opção dos candidatos que disputaram o segundo turno por se desqualificarem reciprocamente, vendo-se não como adversários, mas como inimigos, recusando-se a aceitar que o outro faz parte de sua sociabilidade.
Como essa simbiose tende a sobrecarregar a capacidade adaptativa dos sistemas governamentais e a agravar a desagregação da sociedade, no cenário pós-eleição ainda não dá para saber se o que nos espera é a “floração do esteio” ou, o que é mais provável, “uma noite polar, glacial, sombria e rude”, como disse Max Weber em célebre conferência.
(*) professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas
O Estado de São Paulo/20 de novembro de 2018