quinta-feira, 11 de junho de 2020

Ir às ruas como em 1984 e não como em 2013 (Fernando Abrucio)

 As mobilizações de massa de 2013 fazem aniversário neste mês. De um modo ou de outro, elas mudaram a política brasileira. A origem estava na reivindicação de redução das tarifas de ônibus, mas o que veio depois foi uma miscelânea de reclamações: contra a corrupção, a má qualidade dos serviços públicos, a Copa do Mundo (e nem sabiam do 7 a1!) e, sobretudo, os governos, os partidos e os políticos.

É difícil dizer quais foram os resultados relacionados diretamente a essas manifestações, pois muita coisa aconteceu no meio do caminho. Não obstante, seu sentido despolitizador ajudou a criar um caldo de cultura autoritário que permitiu a ascensão de Bolsonaro ao poder.
A chegada de junho promete trazer novas manifestações sociais, agora mais voltadas à defesa da democracia. Não é mais uma crítica à política em geral, como em 2013. Ao contrário, trata-se de uma luta pela preservação da política democrática definidora dos rumos do país. O alvo é mais específico: as ideias do bolsonarismo, identificadas com uma visão autoritária ou até fascista.
Embora tenha um sentido de oposição contra o atual presidente, não se orienta exclusivamente por seu impeachment, como ocorreu em 1992 com os “cara-pintadas”. Poder viver e respirar sob o regime democrático, em todos os seus significados, é o lema que está juntando todos os que estão querendo ir para as ruas.
É difícil prever o tamanho que essas manifestações vão ter, afora ser mais complicado ainda definir qual será o seu destino. Mas há vários fatores que apontam para uma necessidade social de ir às ruas e que deverão mobilizar muita gente no domingo. É preciso entender o contexto gerador desse fenômeno, bem como seus desafios. De antemão, fica uma provocação: seus organizadores e os manifestantes deveriam utilizar mais os referenciais que orientaram 1984 do que a lógica de 2013.
Sete fatores devem impulsionar as mobilizações de rua pela democracia. O primeiro deles é que, gradualmente, alguns estão se organizando para defender a democracia. Sem a liderança e a tomada de iniciativa, nenhuma ação coletiva acontece. São grupos e pessoas que não descreem das instituições políticas, como muitos em 2013, mas perceberam que a defesa do jogo democrático já não pode ficar circunscrita à esfera do Congresso Nacional ou do STF.
Um segundo fator chama atenção: há uma diversidade de posições políticas e sociais que buscam se juntar. À liderança inicial de pessoas ligadas às torcidas de futebol se somam alguns manifestos pluralistas escritos em defesa da democracia. As jornadas de junho de 2013 atraíram pessoas de diversas visões de mundo, porém, seu resultado final foi a criação de uma enorme polarização na sociedade brasileira, cujo desfecho eleitoral foi o PT versus o antipetismo de Bolsonaro.
As consequências negativas desse processo, vistas agora com o crescimento do autoritarismo do presidente e seus apoiadores, estão congregando uma miríade de pessoas que estavam brigando poucos meses atrás.
A aproximação de grupos e pessoas com visões diferentes de mundo está vinculada à defesa comum da democracia, mas também à piora no sentimento geral em relação ao governo Bolsonaro. Sua rejeição vem crescendo e seus níveis de péssimo e ruim estão em patamares muito altos. Eis aqui um terceiro fator: a impopularidade crescente aumentou a irritação de grande parte dos brasileiros (os 70%, segundo certos líderes) com o desgoverno atual.
O lugar onde essas manifestações vão começar a se expressar são as grandes cidades brasileiras. Mais um fator impulsionador aparece aqui: as periferias urbanas estão sendo muito atingidas pela combinação da pandemia (e do fracasso do Ministério da Saúde nesse processo) com a crise econômica. Há espaço para o crescimento desse sentimento em outras partes do país, mas as capitais devem ser o centro dessa onda de mobilizações pela democracia.
De todo modo, vale ressaltar que a situação sanitária e social tende a piorar nos próximos dois meses, porque a flexibilização do isolamento social está sendo feita de forma precipitada em parte do Brasil, com muita gente ainda morrendo de covid-19, e as medidas econômicas do governo federal parecem insuficientes para tirar o país da crise até o fim do ano.
Outro aspecto de curto prazo deve impulsionar a ida às ruas: as mobilizações nos Estados Unidos em relação à questão racial. O cruel homicídio de George Floyd pela polícia americana gerou uma onda de revoltas por lá que tende a causar impacto em parcelas da população urbana brasileira, especialmente nas áreas mais periféricas. Afinal, o racismo à brasileira gera a morte de muitos negros pelo país, com casos paradigmáticos de necropolítica do Estado, como o caso do jovem João Pedro no Rio de Janeiro.
O impulso às mobilizações passa, ainda, pelo apoio e disseminação de informação feita pelos principais órgãos de imprensa, por organizações da sociedade civil, por artistas nas redes sociais e lideranças intelectuais. É importante realçar que qualquer violência ou obstáculo colocado contra essas manifestações de rua será criticado pelos meios de comunicação de massa. O que antes era opinião difusa e desorganizada contra os disparates do bolsonarismo, poderá se transformar numa bola de neve, sobretudo se houver violência contra os manifestantes.
Para completar essa gama de fatores, há uma sensação de cansaço em grande parte da sociedade brasileira com as provocações do bolsonarismo em meio à pandemia. Aqueles que cumpriram o isolamento social eram criticados por Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o presidente e seus fiéis iam às ruas fazer suas mobilizações contra a política sanitária e as instituições democráticas. Foram vários fins de semana rindo da maioria da população que seguia a ciência e respeitava a democracia.
As investigações contra os bolsonaristas e a família presidencial os fizeram dobrar a aposta em formatos autoritários de discurso e ação, com marchas imitando a Ku Klux Kan, além de usar simbologias vinculadas ao nazismo e ao fascismo. Criou-se um clima político extremista e tenebroso, algo que está sufocando e indignando parcelas importantes da população.
Ao longo dos três meses da pandemia, que afetou fortemente uma sociedade extremamente desigual como é o Brasil, lideranças institucionais e a mídia tiveram de defender a democracia brasileira das ações de Bolsonaro e seus aliados em várias ocasiões. Mas esse tipo de ação terá de se somar ao reforço das ruas, ganhando assim maior poder para limitar o poder presidencial - ou ao menos mostrar os custos políticos vinculados ao comportamento bolsonarista, principalmente aos militares.
A volta de manifestações populares em defesa da democracia traz muitas oportunidades de melhorar o ambiente político, garantindo que o país não caía nas garras do autoritarismo. Entretanto, também há riscos relacionados a esse processo. O primeiro é que a junção de tanta gente, mesmo que em nome da liberdade de todos os brasileiros (e não só dos bolsonaristas), pode piorar a situação da pandemia.
A disseminação do vírus deveria ser evitada ao máximo e, por isso, todos os cuidados para evitar contrair ou repassar a doença deveriam ser tomados. Como isso é possível no meio da avenida Paulista ou na faixa estreita da praia de Copacabana? Essa séria ameaça é uma arma dos bolsonaristas desde março, uma forma de o presidente se colocar como o “dono das ruas”. Será preciso fazer um cálculo de custo/benefício que deve enfrentar o cinismo bolsonarista e garantir a proteção às instituições democráticas.
O segundo risco está nos possíveis confrontos com manifestantes bolsonaristas e/ou com a Polícia Militar. Bolsonaro aposta no caos para se colocar à sociedade como o defensor da ordem. Haverá muitas provocações de rua, pois o bolsonarismo contém hoje gente treinada para arranjar confusão e gerar violência. São verdadeiras milícias políticas. Conseguir lidar com essa situação vai exigir muita maturidade política.

A maior das ameaças está na perda da unidade e de foco dessas mobilizações. Agora, não adianta mais ficar discutindo se PSDB, PT, DEM, PSol ou Novo estão certos, se o melhor para o país é ter Ciro, Huck, Lula, Doria, Amoedo ou qualquer outra liderança no lugar de Bolsonaro. Todos devem estar juntos em prol da democracia, pois, do contrário, não terão o que debater e com quem disputar a Presidência da República em 2022. Quem não entender isso, será engolido pelos fatos e ficará no museu da história política brasileira.

Por tudo isso, o modelo que os manifestantes deveriam utilizar como bússola deveria ser o da Campanha das Diretas em 1984, e não a experiência desagregadora e despolitizadora de 2013. Naquele final do regime militar, houve uma frente ampla de políticos que buscou apoio popular em todos os segmentos sociais. O objetivo foi valorizar a política e os políticos, em vez de depreciar o jogo institucional. Foi feita aliança com os governos estaduais, de modo que governadores e líderes sociais mostraram à PM a importância do momento. E a palavra de ordem era uma só: a democracia é o ponto de partida para resolver todos os problemas do país. Essa é uma lembrança importante para os dias de hoje: o combate à pandemia e à crise econômica não poderá se dar por fora nem contra as instituições democráticas.
Valor Econômico/ 

5 de junho de 2020

Agentes antidemocráticos no poder de Estado (Antônio Oliveira)

A legitimidade da democracia representativa foi posta em xeque desde, no mínimo, Jean-Jacques Rousseau e, enquanto esse mestre viver entre nós, ela será sempre duvidosa. Aparentemente, portanto, os detratores da democracia parlamentar estão em boa companhia, e a defesa do exercício direto e imediato da soberania popular parece ser louvável (aqui deixaremos de lado um relevante “esquecimento” dos defensores da democracia direta: a democracia moderna é uma democracia com Estado). Mas essa aparência se desfaz quando alguns defensores da democracia direta definem as ruas como o espaço público privilegiado para a expressão da soberania do povo. Pode-se defender essa ideia, mas forçosamente deve-se abandonar não apenas Rousseau como também as experiências históricas de democracia direta, porque tanto estas como aquele nos ensinam que a soberania popular é uma instituição política que se exerce no interior de outras instituições políticas.

Não se deve esquecer de que o povo é uma instituição da política. Claro, outros fatores como história, língua, costumes, etc. participam da composição de um povo e concedem-lhe o colorido único, mas ele, enquanto autor das decisões coletivas, é instituído pela política, que pode "desinstituí-lo" também. Não deixa de ser irônico que entre os defensores da democracia direta haja quem negligencie as instituições políticas, como se o Povo fosse um dado “natural”. O povo como Soberano não é anterior à democratização da política, e tanto as democracias diretas que existiram concretamente quanto a idealizada por Rousseau foram politicamente instituídas: sabe-se quando se, e quem, instituiu o "demos"; a República de Rousseau nasce de um contrato. E mais, seja nas democracias diretas empíricas, seja na idealizada, o soberano popular encarna apenas e somente apenas na assembleia geral, porque aí e somente aí eram discutidas e depuradas as várias opiniões sobre o interesse comum. Na polis ateniense os cidadãos individuais encontravam-se nas praças para discutir os assuntos públicos, mas o "demos" só se manifestava na Eclésia, outra instituição política. 
Nas avenidas das cidades contemporâneas vê-se uma multidão fazendo reivindicações, não uma assembleia onde se discute o interesse geral; as discussões travadas no interior das "sociedades parciais" também não forjam a vontade geral. Nem nas democracias diretas que existiram nem na de Rousseau as manifestações populares proferindo “palavras de ordem" eram tidas e havidas como expressão da soberania popular, mesmo porque as manifestações desse tipo são encontradas também nas aristocracias e monarquias absolutas; a democracia, direta ou representativa, é o regime das instituições; manifestações populares fazem parte dela e até podem enriquecê-la, mas não são idênticas a ela, portanto, não podem substituí-la.
Jogar parcelas da população contra as instituições da democracia parlamentar pode fazer sentido para os movimentos que fazem da luta política um fim em si mesmo, ou seja, que lutam pela luta; nesse caso, as instituições, que regulam e estabilizam as relações dos indivíduos e grupos, tornam-se um estorvo, uma verdade bem conhecida pelo fascismo.
O movimento bolsonarista é adepto da luta pela luta. Nele não se consegue vislumbrar nenhum objetivo utilitarista ou um fim moral, ou uma desejável combinação de ambos. Não se está aqui classificando o bolsonarismo como fascista, todavia não se pode deixar de enxergar nele alguns dos elementos cujo conjunto caracteriza o fascismo: as ações assentadas sobretudo na intuição em vez de se basear principalmente na razão e/ou na experiência; o voluntarismo exagerado (eles não negam os fatos adversos, contudo acham que podem vencer pela Vontade os obstáculos, não importa a que custo humano); o descaso com interesses utilitaristas (existe a preocupação com a economia – incluindo a agricultura, o turismo, a infraestrutura e os temas sob o guarda-chuva do Ministério da Economia –, mas ela é secundária em relação à questão ideológica; esta é defendida ainda que possa trazer prejuízos econômicos, aliás, essa característica evidencia que não passa de pura retórica a propalada preocupação com o bem-estar de “coletivos” nacionais, como a “Nação” brasileira, o “Estado” brasileiro ou o “Povo” brasileiro, pois relevante é a luta contra uma “conspiração universal”, vagamente definida); a paixão pela luta em si mesma (o inimigo escolhido – o "marxismo cultural" - é suficientemente indefinido e fluído para a luta não cessar nunca; a mobilização então pode ser permanente, porque os disfarces do inimigo são muitos); o apreço pela violência (a agressão física, ou ameaça de empregá-la, não é avaliada como recurso último, que pode ser necessário porém nunca é honroso, da política, mas como seu meio principal e honorífico). Evidente, nada disso impede que eles possam desfrutar as benesses a que o poder dá acesso, inclusive o enriquecimento pessoal.
Essas características levam a duvidar de que, não obstante as “palavras de ordem” das "franjas” bolsonaristas, o núcleo duro da facção seja defensor de fato de uma ditadura militar, porque essa poderia representar o fim do movimento bolsonarista, e é o “movimento” em si – no sentido de manter seu público interno em permanente estado de mobilização para acompanhar as metamorfoses do inimigo, sempre sorrateiro – que interessa ao núcleo central. As humilhações impostas aos generais do governo são indícios do desprezo desse núcleo pelo apego da instituição militar à rotinização dos afazeres e à previsibilidade das condutas, esses dois atributos da burocracia provocam urticárias em qualquer “movimentista”.
Diante do material humano e intelectual da facção, deve-se reconhecer que existe a opção de ela achar que o golpe militar manteria Bolsonaro na presidência, contudo, parece, eles não querem o poder de Estado para governar, no sentido de administrar a coisa pública para consecução de algum fim, ainda que sejam fins egoístas; eles querem o poder público para alimentar a luta contra inimigos que podem ser criados e recriados indefinidamente, o que seria obstaculizado pela tutela militar: o “gabinete do ódio” funcionaria como? E o cercadinho do Palácio do Planalto para insuflar as “massas”?
Quem quiser ponderar que tais reflexões são enganadoras por causa do nível intelectual dos bolsonaristas, ou seja, que eles não passam de incompetentes destrambelhados e nada mais, deveria não se esquecer de que foi a escória intelectual e moral que elevou o fascismo na Europa. Hannah Arendt pode servir como mestra nesse assunto.
As instituições democráticas brasileiras reagirão como diante dos ataques abertos e declarados à luz do dia? Nas crises anteriores (Collor, mensalão, Dilma) não nos confrontamos com agentes que estavam dispostos ao "tudo ou nada", ou, pelo menos, eles eram minimamente realistas para saber que não dispunham de recursos de poder para partir para o "tudo ou nada". (Um parênteses talvez animador: Umberto Eco certa vez disse que os protofascistas tendem a ser sempre derrotados porque, como eles menosprezam a realidade, eles sempre subestimam as forças do inimigo). O cenário agora é tomado por um tipo de agente que apresenta o caráter descrito acima. A dúvida não é de que eles devam ser detidos; a dúvida é sobre o comportamento da instituição política que têm em suas mãos o fuzil. A decantada profissionalização das Forças Armadas brasileiras talvez seja mais suposta do que real, pode-se duvidar de que esse processo de profissionalização, que de fato existe, tenha se completado, todavia este artigo não é o lugar para tratar desse assunto.
(*) Cientista político e professor da UFBa

3 de junho de 2020

A democracia infantil (Carlos Andreazza)

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Receio que nos tenhamos acostumado, cada um com seus ressentimentos, a que democracia seja medir-se nas praças com o adversário; com o inimigo — porque a gramática é de guerra. Nesses termos, quem poderá mais? Ou melhor: quem se beneficiará, afinal, de um embate cujo produto só pode ser a conturbação?
Receio que nos tenhamos tornado adictos da adrenalina própria à instabilidade, parasitas da depressão política que se aprofunda e traga o país. Jair Bolsonaro é a intensificação da instabilidade — o vício na instabilidade também sendo vício nele.
O Brasil é país doente; doença da qual Bolsonaro, presidente eleito, é a mais alta febre. Vamos para a briga de rua de modo a vencer uma convulsão? É essa a ideia? Valer-se do vocabulário da rinha para enfrentar quem monopoliza o dicionário da guerra?
Partir ao confronto, físico, contra quem se alimenta da radicalização?
Desde há muito denuncio o investimento bolsonarista na forja de movimentos plebiscitários para pressão — para intimidação. As facções têm agenda clara — que costura intervenção militar e os fechamentos do Congresso e do Supremo. Desafiá-los no mesmo tom, no mesmo chão, será legitimar a linguagem beligerante e admitir como terreno o dos tacos, que é o mesmo das bombas, que é o mesmo da desobediência civil — que é o mesmo do estado de sítio. Há quem só espere uma oportunidade.
Fora dos marcos republicanos só prosperam aqueles cujo projeto de poder dependa do esvaziamento — da corrosão do caráter — das instituições.
O espírito do tempo é lavajatista, jacobinista — e que não pensem os que desprezam a figura do justiceiro Moro e o papel dos dallagnols de Curitiba estarem imunes à doença. A doença: a da justiça com as próprias mãos. O zeitgeist é o do justiçamento — produto de uma sociedade que não acredita em sua institucionalidade, a qual aceita atalhar, esgarçar, se para que triunfem os propósitos nobres que, ora, todos temos.
Somos todos democratas, todos bem-intencionados. Certo? Aqueles patriotas, vestidos de intervenção militar, que bradam pelo fechamento do STF — declaram-se democratas e de bem — e os valentes que os combatem, aquelas falanges de torcidas uniformizadas de clubes futebol que marcharam contra o fascismo, com as tantas mortes que já causaram e com as tantas ligações com organizações criminosas que têm; também se dizem democratas e gente boa.
Quem poderá mais, entre esses virtuosos?
O Brasil — sob o norte da mentalidade autoritária — é refém do tribalismo; o próprio paraíso de um autocrata. O paraíso do autocrata — nesta altura, depois de cavalgar pela esplanada como um Newton Cruz, feliz da vida: a descrença nos meios institucionais, descrença que o elegeu, compartilhada com os que, pelas próprias mãos, desejam derrubá-lo. Bolsonaro agradece.
O sonho do autocrata: que grupos em defesa da democracia saiam às ruas para arrostar o fascismo. Não é belo, corajoso? O mundo real, contudo, pergunta: qual é a agenda? É só a sectária, da força pela força, para dar vazão ao revanchismo e ir à forra na pancada, ou se pleiteia, por exemplo, o impeachment do presidente? Qual a agenda?
Recordemos que, expressando-se a rojões, gente sob o mesmo impulso democrático — certamente antifascista — matou o cinegrafista Santiago Andrade em 2013. Qual o projeto? Porque, sem demanda institucional, será só anarquia.
Lembremos que os que ora chamam Bolsonaro de fascista são os mesmos que de fascista chamavam Fernando Henrique Cardoso. Não têm credibilidade. Tampouco a musculatura policial. E não se franqueia a pista de um baile autoritário se não se quer que o autoritário que comanda o guarda da esquina dance.
Nota importante: o apoio fardado ao bolsonarismo — já escrevi nesta coluna antes — não estará nas Forças Armadas, mas em influentes setores das polícias estaduais, como aqueles que se amotinaram no Ceará. Houve amostras — no domingo, em São Paulo — de como podem se manifestar seletivamente entre democratas.
Que não se pense que o que se viu no último fim de semana, especialmente na Avenida Paulista, enfraqueça Bolsonaro. Bem ao contrário: fortalece-o. Uma blitz de homens de preto — vestidos de revolução — para reação e choque. Ele agradece, o reacionário, também ele revolucionário — também ele democrata, segundo Paulo Guedes. A quem aquilo atrai? Aquilo atrai ou repele? Aquilo atrai o cidadão — o cidadão de saco cheio das crises geradas pelo presidente — ou o faz lembrar de por que votou no sujeito? Ou a ideia não seria atrair o cidadão que não é militante do PCB? Qual a agenda?
Ah, sim. Não interessa quem atacou primeiro. Interessa que houve confusão; filme já tanto visto e que ativa — revitaliza — o discurso da ordem. Bolsonaro agradece. Os que — em nome da democracia — vão para o conflito, para a porrada, para a quebradeira, entregam o que busca o bolsonarismo. O caos.
O Globo/2 de junho de 2020

Decálogo da catástrofe (Fabio Giambiagi)

‘O ovo da serpente” é um filme magistral dirigido por I. Bergman, ambientado na Alemanha que sucedeu à Primeira Guerra Mundial. Ele expõe a origem insidiosa do mal e serve para entender as raízes do que aconteceu naquele país nos anos 30 e 40.

Nesse sentido, gostaria de compartilhar com os leitores o efeito que produziu em mim a leitura de “M —o filho do século”, de A. Scurati, que apresenta com meticulosidade de historiador o quadro político e social italiano em 1919/1920, quando estava despontando a figura de Mussolini. O que impressiona no relato é a percepção de que este representava a expressão de uma série de desejos latentes em parte da sociedade, fruto da situação do imediato pós-guerra e que indicavam sintomas de uma patologia social. O resto foi consequência. O final da história é conhecido, mas entre o cenário inicial retratado por Scurati e o fim, a Itália viveu os seus dias mais negros, durante 25 anos. O que vou reproduzir nos próximos parágrafos deveria provocar uma reflexão. Há vários traços distintivos daquela situação, entre os quais destaco os seguintes, sempre com a citação de trechos-chave, copiados do livro:
1) O combate à neutralidade (os “isentões!”): critica-se “os moderados e seu bom senso, a quem desde sempre devemos nossa desgraça” (página 11). E explicita-se: “A luta não admite uma terceira opção, nenhuma neutralidade. Nada de espectadores!” (p.37).
2) O ódio: a descrição que o livro aplica a vários dos personagens que compõem as figuras de proa do fascismo é inequívoca: como o líder, cada um deles é um “odiador profissional” (p.23). A descrição é complementada páginas mais tarde: “Entre eles e o passado, ergue-se um muro de ódio, desprezo e sangue” (p.62).
3) O culto à morte. Na descrição das lutas políticas entre grupos polarizados, chamando a atenção para o fato de que no núcleo do fascismo estava parte dos combatentes da Primeira Guerra — então desempregados. Scurati diagnostica: “É a relação diferente que os dois grupos têm com a morte o que cava um abismo entre eles” (p. 37). É nesse contexto que ele descreve a cena de um dos personagens, almoçando e insistindo, “entre uma bocada e outra, em verificar o funcionamento do seu revólver com o tambor carregado” (p.41).
4) o isolamento do líder. Há uma passagem especial, em que o autor descreve num capítulo a relação (ou falta dela) entre Mussolini e o resto das pessoas, cuja última frase é: “Uma distância intransponível o separa do gênero humano” (p.42).
5) O recurso às ameaças. Estas aparecem em diversas passagens, das quais destaco a seguinte proclamação afixada num muro de Milão na época, dirigida aos “combatentes vitoriosos que devem, e vão, dirigir sozinhos, custe o que custar, a nova Itália. Não provocaremos, mas, se formos provocados, acrescentaremos alguns meses aos nossos quatro anos de guerra” (p.43).
6) A rejeição da concórdia. Scurati cita a carta de um dos líderes intelectuais do movimento, na qual ele escreve, explicitamente, que “para mim e para os nossos pares, a paz é hoje uma desgraça” (p.50).
7) A confusão mental. Este é um dos traços mais marcantes da construção dos personagens. Diz o autor, acerca de um dos tipos: “é um fanático que não sabe viver sem elaborar planos de vingança”. E logo depois, sobre outro, registra: “não tem uma única ideia na cabeça e, por isso, é um ótimo orador” (p.62);
8) A crítica aos partidos: “Quem são os fascistas? O que eles são? São algo novo, inédito, um antipartido. Fazem antipolítica” (p.64).
9) O ressentimento: “Trata-se apenas de fomentar as facções, exasperar os ressentimentos” (p.64).
10) A falta de rumos: a massa de manobra do fascismo é composta por aqueles que “não têm noção de futuro, não sabem onde desaguar... Seu verdadeiro programa está contido na palavra ‘combate’” (p.64/65).
É um decálogo da catástrofe. “M” é, provavelmente, um dos livros que mais me impressionaram em quase cinco décadas como leitor. Recomendo a leitura

O Globo/2 de junho de 2020


70 contra 30 (Bruno Carazza)


Em 11 de outubro de 2013, poucos meses após as manifestações de rua que sacudiram o país, o Datafolha foi a campo para mapear o perfil ideológico dos brasileiros. Naquele momento, 29% dos entrevistados consideravam que possuir uma arma deveria ser um direito de todo cidadão para se defender da violência e 46% acreditavam que a pena de morte seria a melhor punição para indivíduos que cometessem crimes graves.

O mesmo levantamento ainda indicava que 33% associavam a pobreza à preguiça de quem não queria trabalhar. E 26% defendiam que a homossexualidade deveria ser desencorajada por toda a sociedade.
Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 porque soube como ninguém captar o sentimento da maioria do eleitorado quanto à corrupção revelada pela Lava-Jato, à enorme recessão de 2015/2016 e aos temores gerados por um eventual retorno do PT ao poder.
O que muita gente esquece de levar em conta - ou teima em não reconhecer - é que a chegada do ex-capitão ao Palácio do Planalto foi a vitória, sobretudo, de uma parcela de 25% a 30% da população que comunga plenamente com sua visão conservadora e autoritária - um contingente expressivo de pessoas que defendem o uso da força militar para manter a ordem, prega a defesa da “moral e dos bons costumes” e é contrária às políticas de proteção social e redistribuição de renda.
Decorrido um terço de seu mandato, Bolsonaro perdeu o apoio de boa parte dos 57,8 milhões de eleitores que o elegeram em novembro de 2018 - seja porque não entregou o crescimento econômico espetacular prometido por Paulo Guedes, pela saída de Sergio Moro acusando-o de interferir na Polícia Federal em favor dos filhos ou ainda pela sua flagrante incapacidade de gestão em meio à grave crise do coronavírus. Se um mês após a posse 40% dos brasileiros consideravam seu governo ótimo ou bom, a última pesquisa realizada pela XP/Ipespe revelou que sua aprovação minguou para o patamar de 26%.
Em 13 de março de 2017, praticamente 18 meses antes de ser eleito presidente da República, Jair Bolsonaro deu uma entrevista à “Folha de S.Paulo”. Naquela ocasião, o então deputado afirmou duas vezes que iria indicar militares para metade dos cargos nos ministérios. E ao ser questionado sobre os processos que respondia por incitação ao crime de estupro e injúria, declarou: “Não é a imprensa nem o Supremo que vão falar o que é limite para mim”.
Da mesma forma que o presidente não mudou sua concepção sobre a democracia desde que foi investido no cargo mais importante do país, existe um eleitorado-raiz que continua firme e forte defendendo o presidente. Independentemente do contexto, entre 20% e 30% dos brasileiros concordam com a conduta de Bolsonaro, seja no que diz respeito à sua atuação no combate ao coronavírus (20% a consideram ótima ou boa), à avaliação do vídeo da reunião ministerial (30% de aprovação), à oferta de cargos ao Centrão (20% apoiam a guinada no discurso do presidente) ou à declaração de que “o povo armado não é escravizado” (24% concordam com a afirmação).
Nos últimos dias ganhou força nas redes sociais a hashtag #somos70porcento, tentando mobilizar a população contra o governo sob o argumento de que a maioria (resultante da soma dos percentuais que avaliam a atual gestão como regular, ruim ou péssima na maioria das pesquisas) discordam das principais políticas conduzidas por Bolsonaro.
Durante o fim de semana, o recém-criado Movimento Estamos Juntos também se valeu da estatística para pressionar Bolsonaro. Seu manifesto, assinado por políticos, artistas e personalidades de diferentes posições ideológicas, afirma que “somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.
Valor Econômico/

1 de junho de 2020

‘STF tomou ação efetiva para barrar projeto autoritário’ (Marcos Nobre/entrevista)

Para o cientista social Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a fidelidade do presidente Jair Bolsonaro a suas “convicções autoritárias” o levaram a instituir um “governo de guerra” durante a pandemia do coronavírus e provocar a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Nobre acaba de lançar o e-book “Ponto Final- A Guerra de Bolsonaro contra a democracia” (Editora Todavia, 80 páginas, R$ 30,00), com um diagnóstico e propostas de saída para a crise institucional brasileira.
Segundo ele, a ação do Supremo Tribunal Federal (STF) contra integrantes do chamado “gabinete do ódio”, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, foi a reação mais efetiva tomada pelas instituições, até aqui, para barrar esse “projeto autoritário”. Nobre diz também que não há saída democrática sem uma negociação com as Forças Armadas e o vice-presidente Hamilton Mourão. “Ponto Final” é uma alusão a uma das expressões favoritas de Bolsonaro e também ao nome de uma lei de 1986 na Argentina que pretendeu, mas não conseguiu, interromper processos que levaram à prisão agentes da ditadura no país vizinho.
• No livro, o senhor sustenta que o presidente Jair Bolsonaro segue uma lógica política racional e que o método dele é caos. Que lógica é essa?
Todas as reações de Bolsonaro à pandemia têm a ver com a fidelidade dele a suas convicções autoritárias. Nisso, ele é um político. Normalmente, no início, políticos autoritários não são levados a sério. São tomados como bufões, burros, loucos até que fazem o estrago quando conseguem implantar o autoritarismo que perseguem. Chamá-lo de burro ou louco reforça o Bolsonaro, na medida que o projeto dele é desobrigar as pessoas de pensar. Também o desresponsabiliza, porque um burro ou um louco não é responsável pelos seus atos. Por fim, reforça a imagem que o Bolsonaro tenta passar de ser um não-político. Eu tento demonstrar no livro que ele segue uma racionalidade política, mas tétrica. A gente precisa fazer um esforço para entender essa racionalidade para tentar combatê-la.
• Que racionalidade orientou o presidente a instituir o que é caracterizado no livro como um “governo de guerra”, em vez de um “governo de união nacional”, como fizeram líderes de outros países?
Bolsonaro não fez isso porque ele se elegeu como um líder antissistema. E, como todo líder antissistema autoritário, o objetivo dele é destruir o sistema, e não geri-lo. Uma característica importante do Bolsonaro é que, para ele, o sistema é a mesma coisa que a democracia. O sistema, para ele, é de "esquerda"; a democracia é de "esquerda". Para ele, a verdadeira democracia é a democracia da ditadura militar. Esse é o paradoxo para tentar entender o vocabulário dele na reunião ministerial de 22 de abril. Quando ele diz que quer livrar o Brasil da ditadura, o que ele quer dizer é que quer livrar o Brasil da esquerda, do sistema e da democracia. Quando surge a pandemia, você precisa gerir o sistema como se estivesse numa situação de guerra, reorganizar os ministérios, a produção industrial, fazer um plano que envolva todos os poderes. Mas, se ele fizesse isso, ele abriria mão do seu projeto autoritário que estava só no início até a chegada da pandemia. Na minha leitura, o primeiro mandato seria de destruição das instituições democráticas. Num segundo mandato, ele iria implantar, de fato, o autoritarismo.
• Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal desencadeou uma operação da Polícia Federal, como parte do inquérito sobre “fake news”, contra integrantes do chamado “gabinete do ódio”. Qual é a eficácia desse tipo de ação por parte das instituições, já que ela faz parte de uma investigação controversa, desde o seu início, num período que o senhor caracteriza no livro como de “colapso institucional”?
Uma instituição estar em colapso não significa que ela não está funcionando. Quando a gente diz que o sistema de saúde está em colapso, a gente não quer dizer que ele não está funcionando. Pelo contrário, está funcionando em condições extremas. E, muitas vezes, funcionando de maneira disfuncional, sem cumprir os seus objetivos. O inquérito das fake news é um exemplo perfeito para demonstrar esse colapso institucional. Na sua origem, esse inquérito foi classificado, quase unanimemente entre os juristas, como algo inédito e sem amparo na legislação. Isso é um indício de colapso institucional. Mas o colapso maior ocorre quando Bolsonaro tenta se apossar da Polícia Federal, com a ideia de que um órgão de Estado é um instrumento do governante. O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a tomar uma atitude efetiva para barrar o projeto autoritário de Bolsonaro. Foi o primeiro que não fez nota de repúdio, manifesto, reunião virtual e agiu para atingir um pilar de sustentação de Bolsonaro, que é essa rede de desinformação, calúnia e difamação que sustenta uma boa parte da base dele. O ministro Alexandre de Moraes foi direto na ferida e usou mecanismos institucionais para combater um Estado que é de absoluta anormalidade. Nós não podemos combater com armas normais uma situação anormal. Não tem nada normal funcionando, mas é importante ter feito isso, principalmente num momento em que Bolsonaro resolve fazer um governo de guerra.
• Depois da ação do STF, Bolsonaro elevou a retórica de confrontação, disse que não iria cumprir “ordens absurdas” e o filho dele, Eduardo, disse que haverá uma ruptura institucional. Como avalia a possibilidade de haver essa ruptura institucional
Nessa escalada retórica, há um lado simplesmente diversionista, que é tirar o foco da pandemia, porque Bolsonaro sabe que vai ser responsabilizado pela falta de resposta do País, pela recessão econômica e pelo agravamento das duas pela crise política que ele produziu. O outro lado é: qual é a probabilidade de isso acontecer? No momento, como golpe organizado, ainda parece baixa. Isso não impede que haja atos descoordenados e isolados por parte de uma base fanática de Bolsonaro, armada e militarista.
• O senhor se refere no livro à grande presença de militares em funções na máquina pública federal como um “partido militar”, que ajuda a vertebrar o governo, pela falta de partido e quadros do bolsonarismo. Como vê o papel das Forças Armadas diante das ameaças de ruptura institucional proclamadas pela família Bolsonaro?
A questão dos militares é complexa porque ela é uma questão histórica no Brasil. A pandemia interrompeu um movimento do Bolsonaro, que tinha começado no Ceará, com um motim da PM, para fazer uma organização nacional das polícias militares, cujo objetivo era confrontar as Forças Armadas ou chantageá-las para segui-lo rumo a um regime autoritário. Quanto à parte dos militares que aceitou ir para o governo, seja da ativa ou da reserva, isso representa um movimento que é ansiado, há muito tempo, por eles, que participam da vida política brasileira desde a proclamação da República. Os militares sentiram que, após a redemocratização, foram alijados e excluídos dos círculos de decisão política por 35 anos. Então, qual foi a estratégia das Forças Armadas? Primeiro, foi recuperar sua imagem, que estava muito desgastada no final da ditadura militar. Em segundo lugar, foi apostar e investir muito em formação, especialmente das patentes superiores. Há uma parte relevante das Forças Armadas que diz que os militares querem participar de governos civis, democráticos, como quaisquer outros integrantes de instituições de Estado. Isso é uma parte dos militares, que se adaptou à democracia. É claro que tem uma parte que não concorda com isso e que acha que o período do regime militar é o melhor modelo para o País. Os militares não são um bloco unitário. É preciso a gente pensar nessas divisões internas porque não haverá solução para afastar o risco autoritário representado por Bolsonaro sem uma negociação com as Forças Armadas. Não há também uma saída sem que ela passe pelo vice-presidente, Hamilton Mourão.
• Pesquisas recentes mostram que Bolsonaro, apesar da saída de Sérgio Moro do governo, continua a conservar o apoio de cerca de um terço da população. A estratégia de guerra de Bolsonaro pode estar dando certo?
Desde o início do governo Bolsonaro, houve uma divisão do eleitorado em três terços: um terço de aprovação, um terço de rejeição e um terço que nem aprova nem rejeita. Isso levava a uma lógica que imobilizava a política brasileira, porque nenhum dos terços conversava com outro ou tentava roubar votos do outro. Cada terço só fazia esforço para fidelizar seu próprio terço. Isso era algo que estava levando Bolsonaro à reeleição porque ele vive também da divisão do campo democrático. As pesquisas mostram que foi rompida essa lógica, porque houve um aumento da rejeição a Bolsonaro e uma diminuição da parcela que não o aprova nem o rejeita. Acho que isso é uma tendência e que o apoio a Bolsonaro tende a se reduzir ao núcleo mais fanático. Ele é um presidente que caminha para a inviabilidade. O governo de guerra está servindo para ganhar tempo. Enquanto todo mundo está em isolamento, com as pessoas com dificuldades para se organizar e ir às ruas, ele parece ser o único homem livre num país de confinados. Ele está ganhando tempo, em cima de uma pilha de cadáveres, para negociar com o Centrão na Câmara para que não seja aberto um processo de impeachment.
• Quão firme é o apoio do Centrão?
O Centrão apoia qualquer governo até que esse governo se inviabilize. Se se formar uma esmagadora maioria na sociedade brasileira a favor do afastamento de Bolsonaro e não houver uma base firme para segurá-lo, o Centrão abandonará Bolsonaro. Especialmente, o ‘Centrão Carcará’, o que pega, mata e come. Ainda que o governo se inviabilize em seis meses, o pensamento deles, sempre de curtíssimo prazo, pode ser resumido assim: “eu vou aproveitar esses cargos, esses fundos para usar nas eleições municipais. Se o governo se inviabilizar, a gente muda, derruba o presidente porque o próximo vai precisar da gente. Estamos aí à disposição”.
• O senhor diz que ainda não é o momento de impeachment. Quais são as condições para que ele ocorra?
Há várias razões imediatas para o impeachment de Bolsonaro, mas a questão é se ele é viável. Um impeachment para tirar uma pessoa não vai resolver o nosso problema estrutural. É preciso fazer um processo de impeachment que seja um instrumento de regeneração da democracia, das instituições, da convivência e da competição política. As condições para esse impeachment regenerador são muito exigentes. Forças políticas que se atacaram de uma maneira destrutiva nos últimos anos têm de sentar, conversar e negociar questões de procedimento político e substantivas de conteúdo. Não só há muita mágoa em todos os lados e diferenças brutais, como estamos com dificuldade de comunicação. Há divisões também eleitorais por causa das eleições municipais. É muito difícil essa negociação, mas ela é possível. O impeachment é uma construção, não pode ser só a decisão de um grupo. Se não houver essa ampla concertação, vai ser jogar gasolina da fogueira do caos que Bolsonaro constrói cotidianamente. Essa construção já começou de forma tímida, incipiente. Está faltando a clareza de que o Bolsonaro vai se inviabilizar. Essa clareza só se vai dar quando uma esmagadora maioria da sociedade passar a rejeitá-lo. O sistema político está esperando ser empurrado pela sociedade para isso. A questão é se vão sentar para negociar isso de maneira séria – e não apenas eleitoral. Se for um negócio meramente eleitoral, não vamos sair do buraco. Isso significa o seguinte: o campo da esquerda tem dizer para o da direita que, se não houver essa repactuação, ela pode até ganhar a eleição em 2022, mas não vai governar. E vice-versa. Bolsonaro consegue se manter onde está, como está, porque o Pais é ingovernável com as instituições que temos e a lógica de guerra que tomou conta da política. Foi a essa ingovernabilidade que Bolsonaro respondeu como líder antissistema, que, desde o começo, se recusou a governar. Ou a gente repactua, ou vai continuar numa crise permanente.
Guilherme Evelin/O Estado de S.Paulo/1 de junho de 2020

A resistência ao fascismo tabajara (Luiz Werneck Vianna)

Soam por toda parte os sinais de perigo e os toques de reunir. Forças malévolas que nos sitiavam, espreitando nossos movimentos e confiantes na pandemia que nos obriga, em defesa da vida, a evitar as manifestações nos espaços públicos, um recurso importante do nosso repertório defensivo, calcularam ter chegado a hora do assalto às nossas posições. Não há por que tergiversar, o risco é real e seu nome é fascismo – tabajara, mas fascismo – que nos ronda desde os anos 1930, derrotado por duas vezes, em 1945 e 1985, mas nunca erradicado, entranhado como está em nossa história de modernização capitalista autoritária.
Fernando Gabeira, em iluminado artigo no Estado de São Paulo na edição de 29 do corrente mês, a rigor um manifesto, bendiz o dom de receber na derradeira fase da sua bela trajetória pessoal a missão de lutar pela democracia. Tal missão a todos, de todas as gerações, é confiada nesse momento difícil em que a sociedade se vê acuada pelo flagelo de uma epidemia letal. Hegel dizia que a escravidão somente era possível quando o bem da vida se punha acima do bem da liberdade. Nosso caso não é tão dramático, mesmo confinados contamos com espaços de liberdade e recursos para uma livre comunicação por meio da internet, conquista civilizatória ao alcance de todos.
Gabeira está consciente disso e dos limites que nos atam diante dos imensos recursos das forças que nos sitiam, mas os homens pensam e criam, e os desafios que nos confrontam exigem imaginação e inventividade. O caso da favela paulista Paraisópolis e de outras comunidades populares nos servem como paradigmas exemplares, a organização por conselhos, por sovietes, formas clássicas presentes em lutas populares, bem celebradas na obra de Hanna Arendt, ensinam caminhos a serem percorridos.
Em suas ações de defesa da vida, ameaçadas pela difusão da epidemia que a todos assola, as comunidades populares têm encontrado o apoio em círculos externos a elas, intelectuais solidários, pessoas e instituições de boa vontade, especialmente na Universidade e nos seus especialistas em saúde pública e técnicas de organização social. Surgem dessas inovações uma trama promissora, ainda em embrião, a combinar a agenda da defesa da vida com a da liberdade, pauta dos intelectuais ameaçados tanto pela pandemia como pela escalada autoritária em curso que tem como alvo o mundo da cultura e seus valores.
Tal descoberta para se impor na vida social depende da manifestação da vontade, muito particularmente da Universidade, que conta em seus quadros com especialistas capazes de levarem a termo a sua difusão mesmo nas circunstâncias adversas em que todos nos encontramos. A propósito, vale lembrar os protestos atuais contra a violência policial na sociedade americana –um caso extremo em que cidadãos se arriscam ao contágio pelo vírus diante da luta por liberdade –, exposta como a nossa à pandemia. Aqui, estamos começando a aprender a nos reunir e deliberar pela internet.
Decerto que a resistência nessa escala minimalista não tem o condão de opor uma linha forte de resistência ao avanço crescente do autoritarismo, embora em si mesma ela represente um reforço possível da sociedade civil e de suas ações. O reduto principal do sistema defensivo da nossa democracia está nas instituições que herdamos da Carta de 88, principal foco do assédio autoritário em suas tentativas cada vez mais intensas no sentido de neutralizá-las e, no limite, erradicá-las. O poder judiciário, um poder desarmado escorado apenas em sua autoridade moral, somente poderá resistir ao assédio de que é objeto se encontrar sustentação na opinião pública, nas instituições da sociedade civil e nos movimentos sociais que animam a vida popular. Sobretudo na disposição de reiterar aqui o esforço exemplar dos cidadãos americanos nos dias que correm de defesa intransigente dos seus direitos constitucionais.
Para uma defesa eficaz contra os perigos que nos rondam, não basta inventariar os recursos de força com que contamos, morais e organizativos, entre os quais os entes federativos refratários à escalada autoritária que se prepara para um golpe final em nossa democracia. A reunião do nosso sistema de defesa requer imperativamente a capacidade de sobrepor o interesse comum, qual seja o de evitarmos o abismo que se abriria diante de nós se permitirmos a ocupação do nosso país por forças estrangeiras à sua história e às suas tradições de perseguir os fins de uma obra civilizatória. Torna-se necessário também compreender a que aspiram as forças que nos antagonizam e a lógica que organiza sua movimentação.
O triunfo da coalizão de forças heterogêneas na sucessão presidencial contou como uma de suas palavras chave a ideologia do neoliberalismo, por meio da qual atraiu o apoio decidido das elites econômicas, especialmente das financeiras e agrárias, presença dominante no capitalismo brasileiro atual. Com essa marca de batismo, o novo governo nasce em antagonismo com a Constituição, de concepção, em seus traços principais, socialdemocrata. Remover a Carta, considerada como entrave aos seus fins econômicos, tornou-se assim um objetivo estratégico do governo Bolsonaro em seu projeto de capitalismo de estilo vitoriano, endossado por seu ministério, tendo à frente a anacrônica presença do ministro Paulo Guedes.
Em razão da arquitetura da Carta, que confiara a defesa dos direitos que criara a uma rede complexa de instituiçõe.s, ao estilo da Constituição americana e com elementos importados do sistema alemão, a ser sustentada, em última instância, pelo Poder Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal, o regime Bolsonaro identificou de pronto o inimigo a ser confrontado. O teatro das operações ora em curso estava armado, e a palavra de ordem delenda Cartago com que os romanos preparavam sua guerra de extermínio contra a sua cidade rival pelo domínio do mar Mediterrâneo, encontra sua tradução nos desígnios do atual governo de defenestrar o Poder Judiciário do sistema político, entregue apenas à jurisdição dos conflitos privados.
A vontade do poder, encarnada no chefe da nação, não deve reconhecer obstáculos à sua manifestação, leitura privilegiada dos desígnios de Deus, da pátria e da família. Com pandemia e contra todos os riscos, o que há de melhor em nós, acima de todas as diferenças entre nós, não podemos aceitar isso.
1 de junho de 2020