Não há consciência sem uma conversa entre a parte e o todo. Não haveria mundo sem esse elo entre os objetos e os seus lugares porque tudo tem um lugar, mesmo quando está fora de lugar - o que já é, como vemos todo ano no carnaval, um senhor lugar.
Num mundo globalizado sabemos o que ocorre em outras terras instantaneamente. Tanto objetos de consumo triviais ou deslumbrantes, quanto guerras e tragédias nos atingem. Antigamente, víamos o mundo por meio de um jornal ou revista que eram comprados e apresentavam uma visão parcial do mundo. Uma perspectiva sem movimento que despia os acontecimentos de sua densidade. Hoje, as catástrofes entram pelas nossas salas de visita por meio dos aparelhos de ver o mundo: essas máquinas que, ao vivo e em cores, recebem a programação convocada e um monte de hóspedes não convidados. É o moinho dos sonhos realizando um papel invertido: em vez de nos fazer esquecer, ele põe na nossa frente esse real que nada tem a ver com o coelho inofensivo tirado da cartola de um mágico que suspende os limites.
Ligamos a televisão para ver isso e ela despeja (eu quase digo, vomita) no nosso colo aquilo. O programado e o gozoso são substituídos pelo inesperado e pela dor. Estávamos pensando em confirmar nosso estilo de vida assistindo a um caso amoroso, uma boa discussão entre pai e filho ou confirmar que os administradores públicos são no máximo inconfiáveis e, no mínimo, corruptos e indiferentes, mas eis que assistimos a tragédias que nos obrigam a entrar pelo tubo, roubando nossa sonolência. Saímos com um gosto amargo na boca do outro lado do mundo: num Japão desconhecido, que fala uma outra língua, tem outras formas de viver e morrer, mas que é - eis o choque complicado de traduzir - feito de gente que chora como nós e tem filhos e família como nós. Mais perturbador e, no entanto, mais costumeiro é quando vemos a lama dos deslizamentos transbordando na nossa mesa de chá, e não nos bairros pobres, onde - ao lado de alguns prefeitos - jamais botamos os pés.
De repente descobrimos que tudo está ligado com tudo. O global que frequentemente surge pelos prismas gelados da economia, e da política, é subitamente iluminado pela compaixão e por uma identidade insuspeita que enternece o coração. Não há mais nenhuma possibilidade de pensar a vida somente em termos de divisões e territórios soberanos como manda o dogma do nacionalismo moderno sem, ao lado disso, repensá-lo como feito de tradições e pessoas que, antes de serem indivíduos, são parte de totalidades: são pedaços de um quadro que lhes dá sentido e que somente ganha realidade com a sua presença. A força das redes não está na conexão: está na densidade e na emoção que mobilizam. Quando o mundo se globaliza, ele faz algo novo em termos das várias humanidades que ele agasalha: pois constatamos as diferenças, mas sentimos a dor que vem do fundo do planeta. Da totalidade que convencionamos chamar de "natureza", mas que de fato é nossa irmã ou mãe ou esposa, hoje uma vitima do nosso estilo vida.
Não é por acaso que, num mundo iluminado pelas fórmulas matemáticas e pela revolução tecnológica que deu a uma certa Humanidade o poder de ampliar ao infinito a sua criatividade e a sua capacidade de destruição, a presença contundente do todo - nos temporais, terremotos, maremotos e furações - brote como a voz indesejada de Deus, ou de algum demônio. Pois Deus é, de fato, a melhor imagem deste todo que a nossa civilização baseada no individualismo (e na parte) e com ajuda da onipotência técnica ignorou e desdenhou. O reducionismo da vida ao "eu" (em inglês, significativamente escrito com um "I" maiúsculo), é deslocado pelos acidentes. Eles desmancham planos e destroem teorias. Eles revelam que sempre falta alguma coisa e que há sempre o imprevisto: uma ligação insuspeitada de tudo com tudo. Elo que nega brutalmente as agendas inventadas pelo individualismo. A revelação de conexões desconhecidas entre as partes deste mundo é a grande mensagem dos desastres.
As catástrofes obrigam a pensar o mundo como sendo feito de relações. E os elos implicam mais em trocas e em equilíbrio do que em exploração, experimentação e mais-valia, onde um ganha muito e o outro recebe o suficiente para se manter vivo. Se tanto, porque o modelo aplicado à natureza, revelou-se um desastre. É curioso que tenhamos chegado ao ponto de virada de um individualismo insolente, onde todos lutavam contra todos. E as coisas ficam ainda mais interessantes quando se observa que quem nos faz enxergar as nossas obrigações para com o planeta não seja nenhuma religião ou ideologia política, mas a tecnologia capitalista. É ela que paradoxalmente diz que a Terra é nossa mãe, tal como ensinam os chamados "povos primitivos". Eis o capitalismo virado pelo avesso.
PS: Bem que o Obama, com seu maremoto de reparos e limpeza, poderia visitar Niterói.
A força das redes está na densidade e na emoção que mobilizam
ROBERTO DaMATTA é antropólogo.
Fonte: O Estado de São Paulo/O Globo
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