terça-feira, 28 de abril de 2015

Utopia roubada (Eugênio Bucci)




Não são apenas os de fora que profetizam a morte do Partido dos Trabalhadores. Em janeiro deste ano, em entrevista a Eliane Cantanhêde, do jornal O Estado de S. Paulo, a senadora petista Marta Suplicy, que acabava de zarpar do Ministério da Cultura em clima pouco amistoso, lançou o vaticínio: "Ou o PT muda ou acaba". De lá para cá, a ideia do fim do PT virou vedete no debate nacional. Vira e mexe, alguém aparece com a crônica da morte anunciada. Uns porque desejam isso, ardentemente; mal podem esperar para cuspir no túmulo da estrela vermelha. Outros porque lamentam a agonia, do fundo do coração. Bem que gostariam de salvar o partido, mas, nocauteados, não veem mais por onde. Entre envergonhados e deprimidos, apenas cochicham entre si, "o PT vai acabar" antecipando o velório. Marta Suplicy, pelo menos, não se deixou imobilizar. Já anunciou sua saída do partido, que, não tendo mudado, não serve mais para ela. Se o PT vai acabar, ela não quer acabar junto.

Profecias à parte, tentemos pôr o pé na realidade. O PT vai mesmo acabar? A pergunta precisa ser enfrentada em dois planos diferentes. Como sigla registrada no TSE, é bem difícil que acabe. A hipótese de cassação é improbabilíssima. A não ser que venha por aí uma falência financeira devastadora, a legenda vai continuar no jogo como as outras, sobrevivendo como tantas sobrevivem.

Num outro plano, porém, o cenário é funesto. Como projeto de mudança da cultura política do país, como sonho de renovação ética na gestão pública, como celeiro de tantos valores bons, como solidariedade, tolerância, transparência e liberdade, a situação do PT não tem esperanças. Nesse plano, o verbo "acabar" deveria ser pensado não no futuro, mas no passado. Como utopia, como a heróica e generosa utopia que empolgou a juventude e deu visibilidade e protagonismo a atores que estavam simplesmente alijados da mera possibilidade de acesso ao poder, o PT não vai acabar: já acabou. O PT original, que soube mesclar virtude cívica e combatividade social, que teve o engenho de combinar causas universais com mobilização sindical, que tinha no respeito à coisa pública o seu denominador comum e que foi um fator decisivo de modernização da disputa política no Brasil, esse aí já foi para o vinagre.

A utopia se perdeu. Não porque o poder a tenha transformado num monstro desumano, como aconteceu com a burocracia soviética; não porque tenha se deixado enclausurar por sua própria mística e, em nome dela, tenha passado a combater a renovação, como aconteceu com a ditadura cubana: a utopia petista se perdeu porque foi afanada. Sobraram os parlamentares eleitos, os prefeitos, a presidente da República, sobrou a máquina partidária com sua tesouraria enroladíssima. A alma sumiu. Foi reduzida a saldo bancário, talvez. A utopia foi monetizada. Ao PT já não restam o charme, o encanto e a credibilidade. Já não acreditam nele. Nem mesmo os que a ele dedicaram a melhor parte da vida.

Poderia ser pior, é claro (sempre pode ser pior). A velha estrela perdeu seu futuro como utopia, mas ainda não perdeu o seu, digamos assim, futuro como História (com H maiúsculo, como sonharam os seus fundadores). A utopia foi desviada, mas o passado em que nasceu e cresceu essa utopia não foi surrupiado. Ainda. Como os demônios que devoram o passado habitam o presente, se o partido não mudar, agora, já, esses demônios vão acabar jogando nos ombros da utopia de ontem a culpa pelos desvios de hoje. Se forem bem-sucedidos nesse intento maligno, o PT vai ser convertido num argumento em prol de uma tese absurda: a de que os sonhos de igualdade do passado teriam sido os verdadeiros responsáveis pelos malfeitos do presente. O problema não estaria tanto nos desvios éticos atuais, mas nos sonhos utópicos de antes, pois o ideário socialista seria o pai fundamental de toda corrupção.

Se esse absurdo prevalecer, quem vai se esfacelar (ainda mais) não será o PT, sozinho, mas a esquerda em seu conjunto, o que empobrecerá enormemente a diversidade ideológica e a própria cultura política da nação. O PT perdeu muito, mas não perdeu tudo. Se quiser preservar sua história, precisará se dedicar a investigar e explicar, publicamente, as razões pelas quais a conduta de alguns de seus dirigentes virou caso de polícia. Terá de parar com essa histeria de que a imprensa é sua inimiga e de que os seus males não passam de invencionices de repórteres profissionais. Terá de se depurar, sem tergiversações.

Ou terá perdido também a coragem? Tomara que não. Pior que uma utopia roubada é uma história sem futuro.

Fonte  Época (26/04/15)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Faoro, 90 anos: As idéias no lugar de Raymundo Faoro (Marcelo Coelho/entrevista)




Neste dia 27 de abril o jurista, cientista político e sociólogo Raymundo Faoro, morto em 2003, completaria 90 anos. Em lembrança pela passagem da data publicamos esta entrevista, concedida em 2000 à “Folha de São Paulo”, onde fala de sua formação, da atividade intelectual – incluindo a confecção de sua obra maior, “Os Donos do Poder” – e do papel fundamental que desempenhou no processo de redemocratização do país a partir dos anos 70. 
  
As idéias no lugar de Raymundo Faoro
entrevista por Marcelo Coelho

Autor de um dos maiores clássicos da sociologia brasileira -“Os Donos do Poder”-, Raymundo Faoro nunca deu aulas na universidade, tendo feito carreira como advogado. Viúvo, mora sozinho, num apartamento sem luxo, na rua das Laranjeiras, no Rio. O bairro, antes aristocrático, hoje é poluído e feio. A impressão de solidão que acomete o entrevistador contrasta com o tom bem-humorado desse gaúcho alto e disposto, que me recebe com cavalheirismo e bonomia. Eu estava intimidado: mais do que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Jr., a meu ver é Raymundo Faoro quem de fato decifrou o Brasil. Escrito num estilo terso e rico, seu livro é uma verdadeira revolução para quem estiver acostumado aos cânones do marxismo, às dolências de Gilberto Freyre, à ansiosa euforia de Darcy Ribeiro, à ginga de Roberto DaMatta. Tem-se, em “Os Donos do Poder”, um retrato quase desesperado da experiência histórica brasileira. Falsas revoluções, falsas esperanças nada fazem além de confirmar, ao longo de séculos, o domínio daquilo que Raymundo Faoro caracterizou como o “estamento burocrático”. O termo é estranho e requer explicação. Estamento, em sociologia, é um nome para designar camadas sociais. Seria o equivalente de “classe”. Mas com uma diferença. Enquanto “classe” se define pelas posições que cada grupo assume dentro do sistema produtivo -proprietários dos meios de produção versus operariado-, o “estamento” se define por regras de prestígio, educação, linguagem, “posição”. Assim, na França do século 18 havia três estamentos ou três “estados”: a nobreza, o clero e a burguesia, que desencadeou a revolução. Desencadeou também outro sistema de estratificação social: o que opõe, segundo a propriedade, burgueses e proletários.

O poder dos burocratas
Para Raymundo Faoro, vivemos ainda um sistema estamental no Brasil. Burocratas, e não proprietários, detêm o poder. Isso explica a fragilidade de nosso capitalismo e a inexistência de uma real democracia. Os conchavos de ACM com FHC se ligam à frase clássica de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Uma tradição anti-revolucionária, conciliatória, conformou o Estado brasileiro, sufocando a nação; o estamento burocrático apropriou-se do país, fazendo de todo desenvolvimento econômico o pretexto para o parasitismo e o favorecimento.
Esse, resumindo mal, é o argumento de “Os Donos do Poder”. Seu autor, desencantado e frio, foi ao mesmo tempo personagem importante no movimento pela democratização do país nos anos 70. Como presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), foi representante, não raro acerbo, da “sociedade civil” nas negociações empreendidas por Geisel e Golbery com vistas à democratização do país. Confessa, hoje, que suas esperanças foram fraudadas. A democracia travestiu-se na enésima conciliação entre poder coronelista e ideologia da modernidade.
Mas não é com rigorismos indignados que Raymundo Faoro recebe o entrevistador. Sua simpatia não exclui a formalidade: tratou-me o tempo todo de “senhor”. No apertado espaço de sua biblioteca -onde têm lugar de honra Borges e Machado de Assis (sobre quem escreveu um livro, “A Pirâmide e o Trapézio”, Ed. Globo)-, concedeu-me uma entrevista. Avesso a pormenores biográficos, mais interessado em idéias e livros do que em confidências, deu, ao jornalista intimidado, a medida de sua grandeza intelectual.

O sr. nasceu em…?
Em 1925, em Vacaria, no Rio Grande do Sul.
Qual a sua origem familiar?
Venho de uma família de agricultores. Quando eu tinha 5, 6 anos, mudamo-nos para o oeste de Santa Catarina. Meu pai era um tipo aventureiro, desbravador. Minha família fundou ali uma pequena hidrelétrica, que naquela época era um empreendimento entregue à iniciativa privada.

E como foi sua educação?
Fiz os estudos básicos com um casal, dono de uma escola particular da região, que tinha uma perspectiva moderna para a época e talvez até para os dias de hoje: proibiam terminantemente que os alunos decorassem qualquer coisa, exigiam comentários pessoais das leituras que fazíamos. Depois, fiz o secundário num colégio marista, mais tradicional, evidentemente.
Quais as suas leituras nessa época?
Fui sempre um devorador de livros, lia tudo… li todo o José de Alencar, o que me passasse pelas mãos. Depois, descobri Machado de Assis, que foi uma revelação extraordinária.
Com que idade foi isso?

Eu devia ter uns 14 anos.
Depois o sr. fez a faculdade de direito em Porto Alegre.
Sim. Formei-me em 1948. Mas, para trabalhar na advocacia, em Porto Alegre, estava tudo tomado… os escritórios de advocacia eram os mesmos de havia cem anos. Fui trabalhar no interior. Achei aquilo muito chato. Fiz júris. Tentei provar que um sujeito que matou alguém na frente de cem pessoas era inocente (risos). Vim para o Rio em 1951 -ou 1952- e prestei concurso para procurador do Estado.
Esse contato com a cultura jurídica talvez tenha sido uma vacina contra o oficialismo dominante.
Há coisas formais que, hoje, estão mudando, mas deveriam mudar totalmente. Por que aquele formulário, o “data venia”, o sistema de raciocinar que é o mesmo desde Quintiliano, a introdução, a explicação, a prova, a refutação, a conclusão? É o mesmo clichê, a mesma prosa que, como advogado, nunca segui. Sempre procurei escrever como um cidadão, sem jargão jurídico. Aliás, só escrevi a segunda edição de “Os Donos do Poder” porque ninguém tinha entendido a primeira.
Lembro-me de que, quando li “Os Donos do Poder”, meus colegas de ciências sociais estranhavam a idéia de “estamento”. Sabíamos só que havia classes. O quadro de referências era muito distante do que o sr. escrevia.
A palavra estamento era tão abominada pela cultura marxista da época que, quando Marx escrevia “Stand”, traduzia-se por “classe”. Os marxistas achavam que havia classes até no Império Romano. Luta de classes no Brasil do século 16? Não havia classe coisa nenhuma… matavam o índio e acabavam com o negro.
O sr. leu Weber em alemão?
Não, naquela época não lia alemão. Aprendi o francês na faculdade, depois aprendi inglês, mas não falava. Hoje falo alguma coisa. Aprendi o alemão depois, mas hoje não tenho fluência, salvo nos textos sociológicos. Tentei ler “O Tambor”, de Günter Grass, em alemão, mas é um dialeto da antiga Dantzig, fiquei desnorteado. Meu alemão não dá mais para isso. O inglês tomou conta, e eles traduzem bem, ao contrário dos franceses, que só traduziram a primeira parte de “Economia e Sociedade” de Weber. E os mexicanos fizeram muito ao traduzir Weber. Agora vou dar uma de Gilberto Freyre.
Como assim?
A idéia de patrimonialismo, usada por Octavio Paz: comecei a falar antes dele sobre isso. Talvez nossa fonte tenha sido comum: comecei a achar a sociedade ibérica patrimonialista, como depois os mexicanos passaram a achar também.
Teve contato com Gilberto Freyre?
Sim, dentro da vaidade tremenda dele… o interessante é que a vaidade dele não era agressiva. Ele me dizia, sobre “Os Donos do Poder”: “Um de nós dois vai destruir o outro, e eu aposto que você vai desaparecer”.
Quando ele disse isso?
Isso foi em 1973, antes da segunda edição do livro.
No momento da primeira edição, como foi recebido o livro?
Nelson Werneck Sodré só faltou me chamar de filho da puta. Outro, mais delicado, foi o Wilson Martins, repudiando tudo o que eu escrevi. Gilberto Freyre escreveu sobre o livro também. Disse que minha tese teria validade, mas que a parte sobre o começo da colonização não tinha pertinência.
O sr. não chegou a debater com eles?
Tinha muita timidez em discutir com essa gente. Depois passei a conhecer o Gilberto Freyre, ele me oferecia o famoso licor que fazia todo mundo ficar com dor de cabeça…
Devia ser uma tática para diminuir o adversário.
Nunca fui muito de licor… era um licor tremendo…
Mas, com relação a essa oposição que ele enunciou, “Os Donos do Poder” versus “Casa Grande & Senzala”, qual a sua avaliação?
O contraste não é válido. Freyre escreveu sobre o Brasil do século 16, sobre uma área para onde vinha gente nobilitada ou rica. Não foi o caso do resto do Brasil.

No Nordeste, construía-se uma autarquia, um “oikos”. Mas sua visão sobre o patriarcalismo já vinha superada de Portugal. Nunca perdi de vista que o Brasil foi colônia. A produção era para exportação, e o exportador é o dono do negócio-o comissário, o comerciante…
Em 1958, de qualquer modo, o senhor sofreu uma espécie de prevenção ideológica. O senhor tinha por volta de 30 anos na época.
Trinta anos… mas o livro começou a ser escrito na faculdade, a partir da leitura de Joaquim Nabuco. Vi que a maioria dominante não tinha terra, alimentava-se da própria burocracia. O pai de Nabuco era juiz.
O sr. começou a interpretar o Brasil a partir do que acontecia no Império.
E se dizia, sobre aquela época, que o senhor de escravos era conservador. Dei uma virada nessa interpretação, que ficou. O conservador lida com a riqueza mobiliária, não com a terra. Ousei fazer, então, a ligação de patrimonialismo com estamento, o que não é weberiano.
Em tese, a divisão da sociedade em estamentos seria uma estratificação social relativa ao feudalismo etc., coisa que não existia no Brasil. O sr. começou a ler Weber na faculdade?
Sim. Quando vi na livraria aqueles quatro volumes, não tinha idéia de quem era. Depois um exilado espanhol, a quem perguntei sobre aquele autor que me parecia esquisito, me disse: “Mas esse é o grande sociólogo do mundo moderno!”.
Sua formação anterior era marxista?
Passei pelo marxismo dos intérpretes, aquele lixo todo do Bukhárin. Nunca gostei do Lênin. Mas o Marx me deslumbrava. E naquele tempo o Stálin ainda estava em moda.
O sr. tinha uma leitura sistemática dos marxistas?
Tinha, sim. Ainda hoje tenho livros em espanhol, publicados em Montevidéu e no México, como a tradução do “Capital” por Wenceslao Roces.
E naquela época, o sr. não tinha participação política?
Não, eu era contra a ditadura (de Vargas), como todos nós éramos, mas achava os políticos muito ridículos, com aquela retórica toda -o mesmo que eu acho hoje.

O sr. votava em quem, naquela época?
Em 1946, acho que votei no Brigadeiro (Eduardo Gomes, candidato da UDN em oposição a Vargas). Depois (jocosamente) fui um dos cem eleitores do João Mangabeira (candidato do PSB à sucessão de Dutra).
E qual sua opinião sobre a obra de Sérgio Buarque de Holanda, como interpretação weberiana do Brasil?

Mas o Sérgio Buarque não chega a ser weberiano. Tem uma única referência ao Weber, que eu ficava constrangido quando falava com ele, porque não sei de que edição ele tirou, é uma referência truncada: ele diz que o funcionário patrimonial é aquele que trabalhava para si mesmo como um senhor. Mas Weber diz que o funcionário patrimonial é aquele que trabalha para o senhor, não para o Estado. Talvez nas anotações dele tenha faltado essa parte. Mas ele não era um weberiano. Fui muito amigo dele. Saímos muito juntos aqui no Rio, sempre que ele vinha, me ligava. Ele tomava aqueles uísques e não acontecia nada. Era impressionante. Tomava uísque, vinho, e não se alterava. Mas ele tinha uma influência rankiana, do historicismo alemão. Mais Ranke do que Weber. Aliás, não é Ranke quem eu admiro mais no século 19, é Burckhardt (1818-1897).

“A Cultura do Renascimento na Itália”…

E “Constantino”, que é um livro menos conhecido. Burckhardt tinha preferência pelos momentos de mudança, e o Império de Constantino é uma mudança no mundo antigo. Há inclusive um ensaio de Burckhardt discutindo quando a mudança é autêntica e quando não é.

Voltando um pouco à recepção de “Os Donos do Poder”, na primeira edição, ficou a idéia de que seu pensamento era ultraliberal politicamente, levando a uma rejeição por parte da esquerda.

Foi rejeitado pela direita também. Naquele tempo, 1958-60, vivia-se a miragem de que estávamos num Estado capitalista adiantado e de que as coisas funcionavam muito bem, que as instituições eram sólidas. Ninguém queria ouvir o que eu estava escrevendo. Quando veio o golpe, percebeu-se que ao menos estávamos sujeitos a outro tipo de coisa.

Naquela época, havia um contraste entre a escola de sociologia da USP, Florestan Fernandes, Fernando Henrique e outros, e a sociologia carioca do Iseb, com Hélio Jaguaribe, por exemplo, as duas com uma visão de como se implantava o capitalismo no Brasil.

Ideológicas, as duas visões.

Quais as suas relações com os dois grupos?

Florestan, apesar de marxista, aceitava minhas teses. Como o Caio Prado, que não cita “Os Donos do Poder”, mas disse que o livro o impressionava muito.

Mas o sr. foi posto no gelo naquela época.

Os marxistas me consideraram herético. Se bem que, quando fui eleito para a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), meu adversário, que respeito e cujo nome não quero citar, distribuiu um xerox dizendo que eu era um marxista ortodoxo… levavam as coisas para esse lado…

Na reedição do livro, em 1975, parece-me que “Os Donos do Poder” vinha no momento certo… O que houve de alteração de 1958 para 1975? Citando Montaigne, o sr. disse que “não corrigia, mas acrescentava”. Mas houve a leitura de Gramsci nesse intervalo?

Realmente, não mudei nada na tese. De Gramsci houve muito pouco. Acho que não o li nessa época, li mais tarde.

De qualquer modo, parece que seu livro confluía com uma voga do pensamento de Gramsci junto à esquerda, para quem a idéia de sociedade civil como palco da mudança social assumia um papel antes atribuído à conquista do Estado.
É. Quando a gente falava em sociedade civil, na época da abertura, havia repórteres com medo de que o termo soasse como provocação. Eu dizia: “Publique; se der complicação, eu explico o que é”. Sociedade civil, para mim, vinha muito de Hegel. Li muito Hegel, sobretudo a “Filosofia do Direito”, que era muito pertinente ao que eu escrevi; li no intervalo entre a primeira e a segunda edições.
Pouco tempo depois o sr. foi eleito presidente da OAB.
Eu era procurador do Estado… estava arriscado a perder o cargo.
O sr. nunca tinha participado da política?
Não tinha prática política nenhuma. Tanto que, quando surgiu aquele momento do “diálogo” (iniciativa protagonizada pelo senador Petrônio Portella, com vistas à democratização, no governo Geisel), eu achava que seria enrolado pelos políticos. Então apareceu um velho advogado, um homem curtido em lutas políticas, que era o Neemias Gueiros, a quem transmiti minha insegurança. Ele me respondeu que haveria uma coisa em que eu sempre haveria de ganhar dos políticos: se eu me mantivesse sincero sempre. “Aí eles vão se complicar”, disse Gueiros: “O sincero sempre ganha do esperto”.
Como o sr. se candidatou à Ordem?
Já era conselheiro lá. Nunca quis ser presidente, mas havia um grande amigo, José Cavalcante Neves, que era presidente e me pôs na vice-presidência. Foi o responsável pelo afastamento dos advogados com relação ao regime militar. Antes, o presidente da Ordem indicava membros do conselho para a Escola Superior de Guerra. Quando o Neves assumiu, já era a época do AI-5; muitos passaram a achar que esse conluio já era demais. Cheguei mais tarde. Não quero dizer quem era meu adversário na eleição, porque seria muito embaraçoso. Mas eu iria votar nele.

No seu adversário?
Sim. Mas eu lhe perguntei se ele estava disposto, em nome da pluralidade da corporação, a abolir a política na administração da OAB. Ele disse que não. Acho que um advogado deve se pautar pelos direitos humanos, pela luta contra instituições que atacam os homens… é isso que nos dá legitimidade.
Foi em 1977?
As crises caíam em cima de nós. O dia em que eu assumi foi o dia do Pacote de Abril (quando Geisel fechou o Congresso e criou os senadores biônicos). Mas eu pensei muito nesse Pacote de Abril. Chamou-me a atenção a determinação de que reformas constitucionais, a partir daquele ato, poderiam ser feitas por maioria absoluta do Congresso (e não mais por dois terços dos votos).
Acho que ali o Geisel já estava pensando em mudar o regime, apesar da dureza do ato. O governo estava pensando em negociar com o MDB. Mas aí o Ulysses Guimarães faz um discurso sobre o pacote, comparando Geisel a Idi Amin (ditador africano, conhecido por atrocidades e canibalismo). Geisel se enfureceu e não quis mais negócio com a oposição. Petrônio Portella me mandou perguntar se eu topava falar com ele. Disse que sim, depois de consultar o conselho dos advogados. Precisávamos achar um lugar neutro para conversar. Mas ele se dispôs a vir ao Rio, onde conversamos por horas.
Ele chegou dizendo o quê? O que pretendia?
Disse que, como político profissional, não estava à vontade com o regime vigente e que havia no Planalto a intenção de mudar, de chegar à democracia, de que todos estavam cientes de que aquilo era uma ditadura. Mais tarde, em 1978, mostrou-me a minuta de uma emenda abolindo os atos institucionais. Entretanto não havia a possibilidade de isso ser palatável ao governo militar se não houvesse as salvaguardas relativas a estado de sítio, estado de emergência etc. “Não gosto disso”, disse a ele. “Não sei se essas mudanças são para valer.” Ele me garantiu que eram. Tanto que o sucessor de Geisel não seria uma personalidade ligada ao estamento militar, seria alguém de fora, promovido para ser presidente. A escolha de Figueiredo foi um escândalo na hierarquia. Disseram-me que, se Geisel ia o mais longe possível, Figueiredo iria além.
Apresentaram Figueiredo como uma novidade auspiciosa.
É. Mas aí me apresentaram a idéia de um mandato de seis anos. Achei que seria um desastre, que iriam sacrificar aquele cidadão. Até recomendei que lessem Tocqueville, que diz que, no momento em que alguém faz a reforma, a reforma segue por si mesma. Dei o Tocqueville para o Petrônio; não sei se ele lia francês.
Petrônio Portella seria um político comum, mediano?
Não, seu perfil era mais o de Tancredo. Só que o Tancredo se defendia muito com o mutismo, e o Petrônio se defendia com a prolixidade.
O papel de Tancredo nessa época foi pequeno?
Foi muito pequeno. Ele me fez uma visita, já na campanha das diretas. A primeira conjectura que fiz é que ele não queria as diretas. Sua eleição seria improvável. Não é que não quisesse. Achava politicamente arriscado. Se teve medo até na hora de assumir… não queria ser operado porque temia que dessem um golpe… Eu não sabia o que dizer para ele. Na minha opinião, um golpe seria muito difícil. Avançamos tanto naquele período que um regresso seria um banho de sangue… o mundo talvez não aceitasse.
Quais foram suas relações com Golbery?
Nunca conversei com ele. Dizem que foi uma pena… mas eu não tinha o que conversar com ele.
O que o sr. conversava com Petrônio Portella já era um pouco o equivalente disso…
Mas o Petrônio Portella também transmitia o temor das alas conservadoras das Forças Armadas.
Quando o ex-presidente americano Jimmy Carter veio ao Brasil, o sr. teve um encontro com ele.
(Com certo tédio) Tive, é verdade.
Foi importante a influência americana sobre o processo de abertura?
Carter nos deu apoio. A embaixada americana já dava sinais disso, convidando-me para eventos, onde eu encontrava militares. Alguns me cumprimentavam, outros não.
Houve um episódio seu no Conselho Federal da Cultura em que o senhor se indispôs com os representantes oficiais a propósito da tortura…
Foi em 1975. Participei de uma única reunião. Depois renunciei. Propus que se estabelecesse por lei a obrigatoriedade de que se comunicasse ao conselho todas as prisões políticas. Era um conselho de Cultura e Direitos Humanos. Meu projeto recebeu pareceres favoráveis, mas nunca andou. Fracassei.
Sua presença pública foi grande no período de abertura e o sr. passou a colaborar muito na imprensa com uma relação muito próxima com Mino Carta.
Eu não conhecia o Mino Carta. Quando ele foi expelido da “Veja”, como ele tinha dado umas notas simpáticas a mim, à OAB, liguei para ele dizendo que estava chateado. Ele disse que iria fazer outra revista e me pediu colaborações. No tempo da OAB, achava que não podia me recusar a escrever artigos. Era uma obrigação minha. Atendia todo dia a imprensa. Às vezes eu era enrolado. No caso do Aldo Arantes, ele me escreveu uma carta contando as torturas que sofreu. Dei a carta a todos os jornais. “O Globo” foi o único que publicou.
Depois, o Rogério Marinho me ligou dizendo que se criara uma situação muito complicada. Queria, em primeiro lugar, saber se eu de fato tinha lido a carta de Aldo Arantes. Ele me disse que os ministros militares iriam lançar uma nota a respeito. Disse a Rogério Marinho que a defesa dele era muito simples. Simplesmente dizer que recebeu a carta de um homem que reputava sério e não poderia deixar de publicar e que eu, que a encaminhei, era o responsável por isso. “Não faça isso”, disse ele. “Faça”, eu disse. “Quero que me processem.” Ele escreveu um negócio bonito, cheio de adjetivos, mas nunca vieram em cima de mim.
O sr. nunca foi ameaçado naquela época?
Eu desligava o telefone. Dizia “vá para a puta que te pariu” e desligava o telefone. Mas às vezes minha mulher atendia e eu dizia para ela desligar. Interessante que uma vez notei que se tratava de uma gravação. Eu xingava e o negócio continuava. Mas nunca tive receio disso. Uma vez me ofereceram garantias. Um militar foi me procurar, um militar graduado, para me oferecer segurança pessoal. Eu disse que não aceitava. Disse-lhe: “Se houver alguma coisa contra mim, obviamente os responsáveis serão os senhores”. “Mas”, continuei, “não vou aceitar que o sr. me bote um capitão, um sargento aqui junto de mim… disso não há hipótese”. Ele me deu o cartão dele. Devolvi-o, para que não houvesse nenhum vestígio de que ele me tinha procurado. Uma vez o Elio Gaspari contou isso ao Golbery, e o Golbery disse: “Ele fez o que tinha de fazer”. Eu iria me tornar um prisioneiro.
Sendo observado também.
Imagine, alguém vendo com quem eu falava, onde eu estava. Mas eu não abri mão de minha vida boêmia também… Tomar uísque nos bares… Jantar num lugar… nunca abri mão disso.
Quais suas grandes amizades, seus interlocutores intelectuais?
No passado?
Ou até hoje…
Hoje, o mais assíduo nas conversas é o Carlos Guilherme Mota. Meus antigos interlocutores morreram. Eram o Sérgio Buarque de Holanda. O José Honório Rodrigues. Hoje praticamente sou um homem isolado.
A vida acadêmica nunca lhe atraiu?
Não me acho capacitado para dar aula. Para dar aula, você precisa ter um programa. Eu não tenho, não tenho compromisso com o que falei ontem e se mudei de posição. Isso é comum, a gente lê uma coisa e vê que estava errado…
Mas no seu caso parece que o senhor sempre esteve certo nos seus diagnósticos…
(Rindo, rapidamente) Na maioria acertei. Mas, para dar aula, é preciso mais coerência, a exposição não pode ser fora dos padrões acadêmicos. Nunca gostei disso. (Confidencialmente) Mas também nunca me convidaram!
Pensando um pouco na relação entre teoria e prática, como o sr. avalia a posição de Fernando Henrique?
Estou em oposição ao governo FHC, não a ele, que foi uma pessoa muito cortês, diria até amiga comigo. Guardo dele uma recordação muito boa. Ele me estimulava muito. Chegou a me indicar como professor visitante em Cambridge.
O sr. não estava interessado?
Não, não podia, tinha família, interesses aqui.
E teoricamente, houve alguma discussão?
Não, muito superficial. Jantei na casa dele, nos encontramos em algumas ocasiões, no episódio de São Bernardo (repressão à greve dos metalúrgicos, em 1978). Meu contato intelectual era mais com Florestan.
De todos os sociólogos, talvez fosse aquele de quem o sr. estivesse mais próximo.
Achava que ele tinha uma seriedade intelectual muito grande. Eu dizia para ele: se você tirasse o leninismo da cabeça…
A segunda edição de “Os Donos do Poder”, em 1975, teve uma repercussão enorme.



Foi… aí foi embora.

Carlos Guilherme Mota se refere ao seu livro, ainda na edição de 58, como uma espécie de radicalismo…
Radicalismo liberal. Eu estava na banca da tese dele (transformada depois no livro “Ideologia da Cultura Brasileira”, editora Ática). Ele era furioso contra o Gilberto Freyre. Mas ultimamente parece que não está mais.

Ninguém mais parece estar furioso com Gilberto Freyre.
A melhor coisa que pode acontecer a um escritor é morrer ou ficar muito velho.
Isso acontece muito… A reedição do livro propiciou uma apropriação muito forte das suas teses pela esquerda.
Na verdade, o livro é um protesto. Mas, mesmo que eu não fosse “Lula”, sempre achei que o trabalhador devia ter um partido, uma representação. Era necessário à democracia. Não sei se o PT é um partido operário, mas é o que mais se aproximaria. Acho positivo o MST, até independentemente do mérito -é uma luta. A reforma agrária é uma velha reivindicação. Até Rui Barbosa, um conservador, eu acho, alude a isso. Os escravos não poderiam ser jogados fora. A República ignorou isso. Elitizou a política, por paradoxal que seja, ainda mais que o Império. Para Rui Barbosa, a abolição foi feita para se livrar do escravo… como se joga um boi inútil para fora da estância (traduz): da fazenda.
Com relação ao gosto literário, fora Machado de Assis, quais suas preferências?
Passei por tudo. Depois que aprendi o francês, passei por um encantamento pelo Chateaubriand. Chateaubriand, Victor Hugo… tive um período balzaquiano muito grande. Li toda a obra de Balzac… depois, me desfiz dos livros, não está mais em minha cogitação relê-los. Depois, na língua alemã, li muito Kafka. Conheci ele desde Porto Alegre. Havia lá um repórter esportivo que traduziu “A Metamorfose”. Quando aprendi o alemão, comecei a ler Kafka de toda maneira. Tenho até uma livraria sobre ele. Mas a minha mais permanente influência é do Montaigne. Naquele tempo, não havia muitos livros franceses em Porto Alegre. Pedi a um amigo que ia ao Rio para me arranjar os livros de Montaigne. Esse eu li e reli umas cinco, seis vezes.
É uma influência espiritual, além de estilística… mas me ocorre, no caso de Chateaubriand, a presença em seu estilo da elipse, de um tipo de colisão ao usar a forma reduzida da oração.
Um amigo meu, Josué Montello, diz que o livro mais belo que ele conhece é as “Memórias de Além Túmulo”, de Chateaubriand (1768-1848). Respondi: “Mas você não escreve mais como ele”. O estilo passou. Você conhece os pastiches de Proust, aquele sobre o Chateaubriand?
Proust pega muito a vaidade de Chateaubriand, as comparações que ele faz a respeito de si mesmo e Napoleão…
É, ele faz um paralelo, “Napoleão nasceu no ano tal, eu também…”. E as coisas que Chateaubriand conta, a respeito de sua visita a George Washington, por exemplo, parece que é tudo mentira…
Parece que mentiu também ao dizer que quase se afogou nas cataratas do Niagara…
Aquela coisa de que ele bateu na porta da casa de Washington, conversou com ele… Mas de fato havia essa simplicidade republicana nos presidentes. O avô de minha mulher, por exemplo, era engenheiro, me contou que havia uma divergência com outros engenheiros num aspecto jurídico de determinada obra a ser construída. Um deles disse que quem conhecia o assunto era o Epitácio Pessoa, então presidente da República. Foram procurá-lo no palácio. Chegaram, se apresentaram, o Epitácio mandou entrar, ficaram conversando. Era uma simplicidade republicana que Brasília destruiu.
Brasília parece reiterar a sua tese também… de um Estado apartado da sociedade.
Sempre achei aquilo uma maluquice. Juscelino, o presidente mais equilibrado que tivemos, foi quem fez aquela loucura.
Voltando às suas leituras, qual a presença de Maquiavel?
Gosto mais do Maquiavel republicano, o dos “Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”. Não tanto de “O Príncipe”. A leitura do “Príncipe” me parece polêmica. Há um ensaio de Pirandello sobre o humor, em que ele mostra, contra a tese do Taine de que o humor é uma coisa inglesa, que o grande humorista é Maquiavel, não o da “Mandrágora”, mas o do “Príncipe”.
Esse é um dos livros que ficam quase ilegíveis, de tanto que foram lidos…
De tantas interpretações, não é…
Tocqueville também seria uma influência?
Desses grandes historiadores do século passado eu gosto muito. Tocqueville, Burckhardt, até do Taine… gosto do Michelet.
Mas o efeito de seu livro, afinal, é muito pessimista, não?
Achávamos que era outro Brasil o que iríamos encontrar à frente.
Penso que toda a esquerda, confiante na sociedade civil, teve muito com que se decepcionar, não acha?
É, uma vez dei uma entrevista, e a Maria da Conceição Tavares veio me interpelar, com sua veemência. Na entrevista eu dizia o que o Sartre afirmou depois da guerra: “Agora somos todos impolutos, somos todos puros…”.
Não houve colaboracionistas…
É, mas no momento em que a abertura se consolidar, eu dizia, verificaremos que nosso vizinho é um ladrão, que o outro não tinha palavra… vamos encontrar de novo, na frente, o poder, coisa que até agora considerávamos hostil, e a que muitos irão aderir. Maria da Conceição me acusou de estar desanimando todo mundo… Disse para ela: vamos conferir daqui a uns tempos.
O sr. sempre votou no PT?

Como tenho mais de 70 anos, houve uma eleição em que eu não votei. Mas acho o PT, como idéia, muito interessante. Como realização, não tenho a menor simpatia. Acho que são excêntricos, no sentido de não terem um centro. O Lula se tornou simplificador dos problemas, o que não é bom. Convidou-me para vice-presidente da República, do que não há hipótese. Já tinha sido convidado duas vezes para vice: a primeira vez foi o Magalhães Pinto. Respondi-lhe que não tinha prática bancária. Ele esclareceu: “Não, não é para a vice-presidência do banco, é para a vice-Presidência do Brasil”. “Ah, bom”, respondi, “então não quero”. O segundo convite partiu de um general, que não posso nomear. Não considerava que o fato de ser general o habilitasse à Presidência.
Tem escrito algo? Algum projeto?
Na minha idade projetos são ilusórios… Mas cometi uma extravagância, um prefácio ao livro do Affonso Arinos (de Mello Franco) sobre Rodrigues Alves, no qual botei às claras o que era aquela Primeira República… o que eles chamavam de “populacho” era na verdade o povo. Desprezo pelo povo no caso da revolta da vacina, por exemplo… Rodrigues Alves, quando fez a reforma urbanística do Rio, expulsou o povo do centro, criando as favelas e o subúrbio.
Nesse ponto, é Machado de Assis quem tem consciência da brutalidade dominante.
Mas quem diz isso com mais veemência, e menos elegância, é Lima Barreto. Há um texto em que ele reproduz um diálogo mais ou menos assim: “O povo não vai gostar…”. E o outro responde: “Mas o povo, a gente abre umas colônias correcionais por aí”. Caricaturando, era mais ou menos o que pensava a elite

(entrevista em  14 de maio de 2000/FSP)

domingo, 26 de abril de 2015

"O governo está esfarinhando" (José Álvaro Moisés/entrevista)




- Revista Época

O cientista político José Álvaro Moisés, de 69 anos, é um dos mais duros críticos do PT na academia, onde os simpatizantes do partido detêm a hegemonia, em especial na área de filosofia e ciências humanas. Professor de ciência política e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), Moisés foi um dos fundadores do PT, em 1980, mas deixou o partido em meados dos anos 1990. A "pá de cal", segundo ele, ocorreu em dois tempos - com a recusa do PT em atender ao chamado do então presidente, Itamar Franco, para um governo de união nacional logo após o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e o afastamento da deputada Luiza Erundina (hoje no PSB), por ter aceitado um cargo de ministra no governo."Minha impressão é que, hoje, o PT entrou na fase do declínio", afirma. "Se a oposição for capaz de ocupar o espaço deixado pelo PT, provavelmente vai disputar as eleições de 2018 com muita força, mesmo que o candidato seja o Lula." Em entrevista a ÉPOCA, Moisés fala sobre a crise de legitimidade de Dilma e a desconfiança da população nos partidos e no Congresso Nacional. "A presidente Dilma conseguiu perder seu capital político em apenas três meses", diz. "As pessoas estão cobrando o preço da mentira."

ÉPOCA - O Brasil vive hoje a maior crise política desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992. Como o senhor vê o cenário político?

José Álvaro Moisés - Há uma crise de legitimidade do governo. Ele está esfarinhando, dissolvendo como sorvete na mão de criança no verão. A presidente Dilma conseguiu perder quase todo o seu capital político em apenas três meses, de tal modo que, quando alguém do governo vai falar na televisão, tem panelaço. Nas últimas pesquisas, a aprovação do governo e da presidente Dilma ficou em torno de 10%. Não conheço na história brasileira nenhum governo que, num período tão curto, tenha enfrentado um questionamento desses. Não apenas no que se refere às medidas de ajuste da economia. As dúvidas sobre o governo e as críticas de todos os lados passam pelo questionamento da capacidade de Dilma governar e coordenar sua própria base política. Agora, com a escolha do vice-presidente, Michel Temer, para fazer a articulação política, parece que isso está mudando um pouco. A escolha de Temer não vai resolver tudo, mas aponta a possibilidade de melhoria na relação com o Congresso. Para completar o quadro, uma parte dos eleitores do PT está decepcionada. Você não chega a 78% de rejeição da presidente e 65% da política do governo, como mostrou a pesquisa CNT (Confederação Nacional dos Transportes), no final de março, se não imaginar que, nesse contingente, tem gente que votou no PT.

ÉPOCA - Quais as consequências dessa crise para o país?

Moisés - Se muita gente começa a desacreditar no governo e associa isso ao mau funcionamento de algumas instituições da democracia, como os partidos e o Congresso Nacional, pode levar à formação de uma base potencial para apoiar alternativas não democráticas, como uma intervenção militar. Isso é um horror. Em todas as pesquisas que fiz na USP, essa desconfiança nas instituições aparece. Em 2006,29% diziam que a democracia pode frmcionar sem o Congresso e 31 % sem os partidos. Em 2014, isso foi para 46% no caso dos partidos e para 45% no caso do Congresso. É muito para duas instituições centrais na democracia, cujo papel é trazer os desejos da sociedade, suas preferências, para dentro do sistema político.

ÉPOCA - No dia 12 de abril, milhares de pessoas voltaram às ruas para pedir o impeachment da presidente Dilma e protestar contra o PT e a corrupção no governo. O senhor acredita que o impeachment é possível?

Moisés - A democracia não pode funcionar na base do impeachment. O impeachment é uma solução de emergência, que deve ser usada numa situação de radicalização política, para não aprofundar a crise. Na situação atual, não estão criadas nem as condições políticas, nem as condições que a Constituição assegura, para permitir o impeachment. Agora, eu tenho uma dúvida. Admitindo que, neste mandato, não haja atos de responsabilidade da presidente que justifiquem o impeachment, o que vamos fazer com o que aconteceu no primeiro mandato, quando ela era chefe da Casa Civil, presidente do conselho da Petrobras e ministra de Minas e Energia? Não sei se o sistema político vai tratar disso no fim do mandato dela. Recentemente, vi uma tese que tem de ser considerada. Como o Brasil adotou o sistema de reeleição, o segundo mandato seria uma sequência do primeiro. Embora não esteja claro na Constituição, os crimes de responsabilidade do primeiro mandato se transfeririam para o segundo. Estou tentando entender se isso faz sentido jurídico, porque mudaria minha posição em relação ao impeachment.

ÉPOCA - O PT, Lula e Dilma continuam a negar participação ou conhecimento sobre as propinas na Petrobras. Como o senhor analisa isso?

Moisés - As pesquisas mais recentes mostram que muita gente não apenas está acompanhando as investigações do petrolão, como imagina que tanto Lula como Dilma sabiam o que estava acontecendo e têm responsabilidade pelo que ocorreu. Bem mais que 50% estão dizendo isso. Não é um antipetismo ou uin ódio ao PT, como disse o ex-ministro Luís Carlos Bresser Pereira outro dia num artigo. Em nenhum momento o Bresser fala sobre o direito de as pessoas protestarem e se indignarem com a corrupção. Ele teria de dizer que o PT está dando motivo não só para os ricos, mas também para muitos de seus eleitores começarem a protestar e se colocarem contra o partido e o governo. As pessoas estão cobrando o preço da mentira. Ouvi muito isso nas manifestações da Avenida Paulista. As pessoas não são idiotas. Elas estão percebendo que alguma coisa não está funcionando bem. A minha impressão é que o PT entrou numa fase de decadência.

ÉPOCA - Em sua opinião, esse quadro pode abrir espaço para a ascensão de um "salvador da pátria" em 2018?

Moisés - Num momento em que há muita descrença, se aparecer um aventureiro, as pessoas podem aceitar. Em última instância, foi isso que aconteceu com a eleição do Collor. Mas, naquela época, estávamos em outra fase do processo de democratização brasileiro. É preciso lembrar que, naquele momento, o PT teve um papel importante na mobilização pelo impeachment. Não considerou que fosse golpismo, como agora. Hoje, temos de evitar que essa deterioração do governo se articule com a crítica das instituições. Essa separação precisa ser feita pelo governo, pelos partidos e pelas lideranças políticas. Mas estamos carentes de lideranças democráticas capazes de pensar o momento e os desdobramentos futuros. Sei que teve o Aécio Neves na eleição de 2014. Diria até que ele saiu maior do que entrou na campanha. Só que, nos últimos meses, não estamos vendo a presença dele. Sou crítico também em relação à participação da Marina. Algumas semanas atrás, a Marina disse que estava "ouvindo o silêncio". Eu respeito isso. Mas a sociedade está num momento crítico. Precisa haver vozes de liderança que façam essa separação. O Fernando Henrique tem feito isso, mas não podemos depender só dele.

ÉPOCA - Há uma luz no fim do túnel?

Moisés - Depende do papel que a oposição desempenhar. Estamos vivendo uma crise no Brasil que abre as portas para que as forças políticas se reinventem. Isso significa que precisam agir. Não só o PSDB, mas o DEM, o PPS, o próprio PSB, para não falar do partido da Marina. Precisamos de uma oposição democrática, capaz de falar sobre os temas centrais do momento: ajuste fiscal, para retomar a economia, a reforma política, em especial as questões que dizem respeito à corrupção, a maneira como é feito o financiamento das campanhas eleitorais e medidas para ter mais controle e punição sobre a corrupção. A oposição tem de dizer algo sobre isso. Não apenas um elenco de propostas para se contrapor, mas que faça sentido para a população e mostre que a política é um caminho para melhorar a sociedade. Se a oposição for capaz de ocupar o espaço deixado pelo PT, provavelmente vai disputar as eleições de 2018 com muita força, mesmo que o candidato seja o Lula.

ÉPOCA - Que papel cabe ao PMDB nesse processo?

Moisés - Nos últimos 25 anos, formamos a imagem do PMDB como um partido fisiológico, que aproveita todas as chances de estar no poder e não teria nem projeto para o Brasil. De repente, o PMDB está jogando um alto papel. Não importa se por vias transversas ou por pessoas que nem têm tanto crédito, mas o PMDB está dizendo que, na democracia, a agenda política não pode ser definida só pelo Executivo. O Legislativo tem de participar, ter mais independência para examinar o que o Executivo está propondo. Por mais contraditório que seja, o PMDB está dizendo: "Algum princípio republicano tem de prevalecer" e "Ter 39 ministérios não faz sentido". Alguém sempre vai dizer que é oportunismo. Se você vai na linha do presidencialismo de coalizão, quem faz parte da coalizão tem de participar das decisões. Às vezes, da crise podem emergir mudanças positivas. O espaço da boa política deixado pelo PT e pela oposição, surpreendentemente, começa a ser ocupado pelo PMDB

O entardecer da esquerda no Brasil (Zander Navarro)




Numa de suas peças, 2.500 anos atrás, Eurípides, um dos grandes nomes da tragédia grega clássica, legou-nos a famosa passagem: "Oh, Zeus, o que posso dizer? Que você se interessa e cuida da humanidade? Ou nós, mantendo que os deuses existem, nos iludimos com sonhos vazios e mentiras, enquanto o acaso controla o mundo?".

O trecho tem inspirado incontáveis discussões acerca do papel das contingências e das circunstâncias na aventura humana. O conjunto de sonhos (e mentiras) seria a crença numa ordem moral que conformaria as arquiteturas sociais. Mesmo que ocorram infinitas transgressões, formas de violência ou o império da barbárie, o senso comum insistiria em que esses são desvios fortuitos em relação àquela ordem existente.

A frase propõe um dilema: ou aceitamos a existência daqueles sonhos - sejam as religiões, os valores ou as ideologias, ainda que pouco críveis - ou nos resignaremos às incertezas do acaso. Mas há consequências. De um lado, se nos curvarmos passivamente à ordem moral, desistiremos de nosso arbítrio e do controle sobre a forma como vivemos. De outro, aceitando a prevalência do acaso como o guia da História, abdicaremos da razão ou dos valores e a vida fluirá à deriva movida por contingências.

Em suas múltiplas vertentes, o campo da "esquerda" vem-se deparando com o dilema acima, sem solucioná-lo. Por isso agoniza em todo o mundo. Uma das principais razões é que a narrativa contemporânea da democracia é como se fosse um morro na planície. Excluiu inicialmente as pessoas comuns dos processos decisórios. Depois, elevou-se com as ondas de democratização no pós-guerra europeu, que integraram massas de eleitores em partidos que representavam seus interesses. Nesse ponto mais alto, a prosperidade social e econômica e a satisfação cidadã se encontraram. Os interesses do capital foram forçados a reconhecer seus limites e responderam democraticamente a governos legítimos. Em síntese, os mercados submeteram-se à política. As demais ondas de democratização repetiram desenvolvimentos com alguma similaridade em outras regiões.

Posteriormente, contudo, a linha começou a declinar, definhando a expressão real da democracia, ou seja, as escolhas políticas que correspondem às demandas dos eleitores. É um esvaziamento que vem sendo denunciado em quase todos os países, pois os processos decisórios se distanciaram dos partidos e dos parlamentos. Houve uma inversão e os mercados voltaram a autonomizar-se ante a esfera da política.

Por que tem sido assim? Afirmar somente sobre a espantosa hegemonia do grande capital globalizado simplifica as coisas. A vitória dos mercados, de fato, registra outras vias de desconexão entre a política e os cidadãos. Por exemplo, vai desaparecendo a noção de emprego estável que vigorou no passado. Ou, então, Estados nacionais vão se enfraquecendo com o receituário único, que é repetir no âmbito estatal as práticas das grandes empresas. Adicionalmente, os políticos e seus partidos parecem dispensar os eleitores, pois subsistem sem sua participação. Assim, as eleições tornaram-se meras disputas de slogans vazios.

Diante dessas mudanças, a esquerda foi encurralada, pois seu discurso se encaixava num passado, hoje inexistente. Sua ideologia não seduz mais e, assim, tem apostado apenas no acaso. Seus programas convencionais não têm a menor chance de ser concretizados ante as realidades macroeconômicas. É ilustrativo o caso grego atual, no qual o pior ainda está por vir e logo o eleitorado perceberá que o Syriza prometeu o que jamais entregará. A esquerda amofina, perplexa, em seu labirinto, pois a sua base social se reduz dramaticamente, suas grandiosas propostas não aderem ao mundo real e, finalmente, conta com um Estado hoje sem capacidade operacional. São alguns dos dilemas gerais que a esquerda enfrenta e, por isso, há um recuo generalizado de sua presença política em todo o mundo.

Por sobre esses fatos, somam-se as particularidades da esquerda brasileira e o campo petista no poder. Aqui ressurge vivamente o dilema proposto por Eurípides. Incapaz de oferecer um programa de governo e um projeto de nação, o PT no poder dedicou-se a desenvolver entre nós uma versão deplorável do binário proposto na tragédia ateniense. De um lado, costurou um manto gigantesco de sonhos irrealizáveis, recorrendo continuamente à mentira, enquanto entorpecia os cidadãos. Ao mesmo tempo, ficou torcendo pelo acaso e suas contingências afortunadas, que garantissem a sua manutenção no poder. Mas não deu certo: o repertório abusivo e suas manipulações vinham sendo de tal magnitude que em algum momento a letargia social foi desfeita.

Esse é o sentido manifesto dos protestos que surgiram inesperadamente em 2013 e se vêm mantendo. Sua interpretação gera disputas entre os analistas, mas poucos partem do mais cristalino: há, sobretudo, uma profunda indignação cidadã com o campo petista no poder, em todos os estratos sociais e em todas as regiões brasileiras, mudando apenas a sua magnitude. É um descontentamento catalisado pelos escândalos devidos à corrupção sistêmica, combinados com a crise econômica, o absurdo aparelhamento estatal e a chocante incompetência governamental. Por isso, entre tantas consequências, o campo petista poderá também incluir em sua biografia outro feito: seu fracasso liquidou a esquerda e uma visão mais progressista da política e do Estado no Brasil.

Incapaz de propor novos sonhos aos brasileiros, o campo político que comanda o governo se move agora exclusivamente pelas contingências do acaso. Alguém duvida? Então faça o teste, pois o esfarelamento da esquerda petista pode ser aferido de forma singela: mesmo acompanhado de seguranças, Lula passaria incólume num passeio pelo centro de qualquer capital do País?

Sociólogo, professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre).

Fonte: O Estado de São Paulo (25/04/15)

Quando a política perde a cultura (Marco Aurélio Nogueira)



Há uma verdade e um dilema no centro da vida nacional.

A verdade pode ser apresentada assim. Na sociedade em que vivemos não há lugar para ignorância e amadorismo: o modo de vida requer qualificação, boa formação e capacidade de manejar os múltiplos recursos que se tem à disposição, ou se pode acessar. Pede que atuemos em rede, organizando informações e buscando convertê-las em conhecimento. Exige, em suma, educação contínua.

Podemos acrescentar: a vida também espera que recusemos a especialização estreita, que abracemos o pensamento complexo e articulemos as atividades práticas com cultura, arte, literatura, música, cinema.

Se é assim nos mais variados setores, não poderia ser diferente na política. Seus protagonistas dedicados - políticos profissionais, governantes, gestores - estão obrigados a fazer o mesmo que as demais pessoas: encharcar-se de informação, cultura e conhecimento, pôr-se de modo ativo diante do mundo real para interrogá-lo e compreendê-lo. Especialmente se desejarem protagonizar a grande política, com os olhos no bem comum, na reforma democrática progressiva e na melhoria das condições de vida de todos, sobretudo dos mais necessitados.

Políticos refratários à formação permanente continuarão a existir, assim como muitas pessoas seguirão alheias às exigências da época ou impossibilitadas de atendê-las. É que a vida, ao mesmo tempo que pede cultura e conhecimento, cria incentivos para uma adaptação passiva. Abre espaços para a racionalidade crítica e a sensibilidade cultural, mas também pressiona em favor de uma racionalidade burocrática, operacional. Divididas entre o atendimento a esses sinais contraditórios, inúmeras pessoas acabam tendo de optar pelo que rende mais frutos no curto prazo.

Acontece o mesmo com os políticos, que talvez estejam ainda mais expostos à racionalidade instrumental: afinal, eles estão em contato direto com o poder e a gestão, setores que são cortados por influxos pragmáticos recorrentes, pela necessidade de apresentar resultados e por uma "urgência" que não concede tempo para reflexões sofisticadas. Além disso, são propensos a uma espécie de arrogância autossuficiente, comportando-se como se não mais necessitassem de esforços educacionais.

Chegamos assim a um dilema, que lateja sem cessar no Brasil. É que estamos assistindo ao empobrecimento acelerado da política, que se divorcia sempre mais da cultura e da intelectualidade. Assim "racionalizada", a política não consegue cumprir o que promete: civilizar os conflitos sociais, processar demandas, contribuir para o governo democrático da sociedade e o fortalecimento da cidadania.

Não estou, evidentemente, me referindo à intelectualidade como professores ou acadêmicos, mas como conjunto de pessoas dotadas de sensibilidade, conhecimentos e habilidades para falar, escrever, argumentar e persuadir. Falo de formuladores e organizadores, gente afinada com a construção de projetos substantivos, o questionamento e a elaboração de ideias, sonhos e utopias.

Hoje, no Brasil, os intelectuais afastaram-se da vida política propriamente dita, aquela materializada em partidos, instituições, cargos e responsabilidades. Talvez não tenha sido muito diferente no passado. Mas antes não se vivia numa "sociedade do conhecimento" e a própria intelectualidade era reduzida. Mesmo assim, a presença dela na vida política se fazia sentir de modo efetivo.

Hoje, ao contrário, nesta época de ideias e conhecimentos, o rebaixamento cultural dos grupos dirigentes surge como um contrassenso.

Se olharmos de relance a história de nossos mais importantes partidos políticos - do PTB, da UDN e do PCB ao MDB, ao PT e ao PSDB -, podemos ver que conheceram seu auge quando foram influenciados por homens de cultura, os quais forjaram as ideias que impulsionaram a atuação e a identidade dos partidos. Por extensão, atraíram outros intelectuais e transferiram qualidade ao conjunto da vida política, produzindo uma cultura que desceu para a sociedade.

O que vemos hoje? Bons políticos existem, com certeza, e muitos deles têm formação intelectual. Mas não temos mais, na política, quadros da estatura intelectual de Julio de Mesquita, Astrojildo Pereira, Alberto Pasqualini, Caio Prado Júnior, Carlos Lacerda, Franco Montoro, Florestan Fernandes, Ulysses Guimarães, para citar alguns grandes, mais partidários ou menos. Dos que estão em ação podemos citar Fernando Henrique Cardoso, mas não muito mais que ele.

Os intelectuais que se aproximam da política corrente pesam pouco como intelectuais, não modulam sua atuação com uma "alma" cultural. Tornam-se "sistêmicos": fazem com que as coisas funcionem.

O efeito é trágico. A linguagem política decaiu a níveis inimagináveis, o debate público é rústico, não há mais dirigentes que organizem bancadas e militantes, a indigência intelectual corrói os jovens líderes, as decisões governamentais têm fundamento técnico, mas tropeçam bisonhamente na comunicação social e não são acompanhadas por uma visão abrangente de País. Para piorar, o modo dominante de fazer política - que ficou imune a ideologias - abre sempre mais espaços para a demagogia, o populismo, o dinheiro, o faz de conta.

Como seriam um freio natural a esses processos, os intelectuais fazem muita falta.

É um sinal dos tempos, um efeito da modernização "líquida" impulsionada pelo capitalismo globalizado. A situação deveria estimular os intelectuais. Eles, porém, parecem bloqueados por suas agendas profissionais, sem força para agir sobre a vida e modificá-la.

O pior é que esta situação cria uma matriz que vai modelando a sociedade e fazendo com que os dirigentes (não só os políticos em sentido estrito) se tornem executores de rotinas ou servos da autoridade formal, deixando assim de liderar e organizar.

Quando a classe política perde a cultura, todos perdem.

Fonte: O Estado de São Paulo (25/04/15)

A implacável lógica da mentira (Rosiska Darcy de Oliveira)





A mentira tem uma lógica implacável. Só é possível mantê-la graças a mais mentiras. Essas mentiras a mais vão exigir, para que não sejam descobertas, uma cadeia de novas mentiras. A mentira é um poço sem fundo. Com o tempo, ela invade tudo e passa a alimentar-se a si mesma.

Para o mentiroso, o hábito da mentira acaba por transformá-la na sua verdade. Ele se sente injustiçado quando o acusam de mentir. O impostor que se apresenta como herói sofre quando lhe dizem que ele não é senão um impostor.

Foi essa logica diabólica que enredou o Partido dos Trabalhadores desde que suas lideranças começaram a mentir.

Seus militantes negam as acusações de corrupção sabendo que elas são verdadeiras. Confrontados a provas irrefutáveis, alegam estar a serviço de uma causa nobre — são os únicos que estão verdadeiramente do lado dos pobres — o que, na linha dos fins que justificam os meios, os absolveria. Argumento tragicômico. A causa dos pobres é a primeira vítima dos desvios de dinheiro público.

Protegem-se das críticas repetindo a arenga da “esquerda” contra a “direita”. E a “direita” amalgamaria todos que não compram a versão dos heróis ofendidos.

Que esquerda é essa que o PT estaria encarnando? O que o partido fundado por grandes brasileiros, como Mario Pedrosa e Paulo Freire, fez de si mesmo, seu colapso ético que desrespeitou um passado honroso e o comprometeu com uma corrupção sistêmica, não lhe autoriza a invocar o monopólio da preocupação com os mais pobres e do projeto de assegurar a todos os meios de sua dignidade.

Somos muitos no Brasil os herdeiros de um princípio de solidariedade e de igualdade, que um dia definiu a esquerda. Somos muitos, ancorados em uma consciência democrática, a honrar essa herança sem renunciar à inegociável liberdade.

À esquerda de quem estão os tesoureiros presidiários? O dossiê judiciário que se acumula contra seus dirigentes coloca o partido não à esquerda, porem à margem. Na marginalidade.

Que direita é essa com que nos assombram? A estratégia petista para manter seu poder tem sido promover a radicalização ideológica. Ameaçando as ruas com supostos exércitos do MST, pela provocação acordam fantasmas adormecidos, dando-lhes um protagonismo que já não têm. Esses fantasmas de uma volta ao passado servem então de espantalho e fica mais fácil dizer “quem não está conosco está com eles”. O amálgama desqualifica, por contágio, todos que se opõem aos seus desígnios.

A esmagadora maioria dos que hoje contestam o PT não é “direitista”. São brasileiros que querem que as instituições funcionem bem, em particular a Justiça. São pessoas que ganham a vida com o seu trabalho e a quem, por isso mesmo, a corrupção repugna. Que se preocupam, sim, com políticas que combatem a pobreza e pedem serviços públicos decentes que seus impostos pagam, bem sabendo que a corrupção é o buraco negro que suga os recursos do país.

Não se referem a doutrinas, nem à esquerda nem à direita, referem-se à vida real, querem um governo competente, querem liberdade de expressão para formar livremente sua opinião, querem respeito.

Cansaram da coleção de bonés contraditórios do ex-presidente Lula, da metamorfose ambulante, da farsa dos punhos fechados desses “prisioneiros políticos” de si mesmos, de seu próprio governo. Cansaram das promessas de campanha viradas pelo avesso, dos atos esquizofrênicos em defesa da Petrobras convocados pelos que quase a destruíram. Cansaram da mentira.

Os que se comportaram como donos do Estado quiseram também arvorar-se em donos da sociedade, tentando encapsulá-la nas fronteiras estreitas de movimentos sociais e organizações populares hoje a seu serviço mais do que da expressão autônoma de direitos e identidades. Inútil; a sociedade em sua diversidade é muito mais complexa e insubmissa do que organizações que se tornaram paragovernamentais.

A população brasileira não está dividida pela oposição esquerda e direita. Na nossa democracia cabem todos os atores políticos que se exprimam no marco da legalidade constitucional. O que não cabe mais é a corrupção se intitulando política. E, pior, mais cinicamente, revolucionária. O que não cabe mais é a impostura.

O dicionário “Aurélio” oferece várias definições da impostura, todas em torno da mentira, do embuste, da falsa superioridade. A última a define como o “farrapo que se prende ao anzol para engodar os peixes”. Engodar é seduzir com falsas promessas. O ex-presidente Lula está programando uma viagem pelo Brasil para falar às “bases”. E se os peixes não vierem?

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Fonte: O Globo (25/04/15)

terça-feira, 21 de abril de 2015

A esquerda desconectada e o impasse das novas manifestações (Bruno Cava/entrevista)


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Os protestos de 15 de março e 12 de abril compõem “um novo ciclo de manifestações”, o qual é pautado pela “indignação que já estava presente desde 2013, mas que não tinha encontrado uma forma de canalização”, diz Bruno Cava em entrevista concedida à IHU On-Line ... Na avaliação dele, atualmente a insatisfação da população encontra eco no discurso contra a corrupção e coaduna contra a presidente, a partir do “fora Dilma”.
O pesquisador critica as análises que tentam desqualificar os grupos que saíram às ruas no dia 12 de abril, por conta da diminuição do número de participantes. “Analisar quantitativamente é insuficiente”, pontua. Para ele, a diminuição do número de manifestantes se deve ao fato de que “antes do dia 12 de abril não houve a mesma provocação que ocorreu em 13 de março, quando uma manifestação pró-governo foi para a rua”.

As manifestações do dia 15 de março tiveram mais adeptos porque partiram da “dimensão de confrontar, de dar uma resposta” ao protesto organizado pelos governistas. No dia 12 de abril, a insatisfação não mudou e “o pano de fundo de indignação é geral em todas as classes sociais, todas as regiões do Brasil, todas as faixas etárias e níveis de escolaridade, ou seja, a insatisfação continua a mesma, mas não houve aquela ‘cutucada na onça’, como a que ocorreu no dia 13 de março”, compara.

Segundo ele, “quando a manifestação diminuiu de tamanho, quando havia 2,5 milhões na rua e agora tem 700/800 mil, isso foi visto como uma descarga para esse pessoal que não apoia as manifestações, embora o número de manifestantes seja pelo menos 10 vezes superior ao máximo do que todas as forças de esquerda conseguem colocar na rua hoje — isso com movimentos como MST ou CUT, movimentos que existem há mais de 30 anos”.

Pautas potenciais que apontem para a queda do padrão de vida das famílias, para a crise econômica e para a situação do trabalho com a aprovação do PL 4330, que regulamenta a terceirização, ainda não encontraram uma forma de articulação nas ruas, porque não existem “grupos políticos” para articulá-las.

Segundo Cava, isso acontece porque a “aposta de vários grupos que se colocam à esquerda” é “construir, a partir da indignação popular, uma pauta de direitos, mas sem gritar ‘fora Dilma’ e sem entrar de cabeça no discurso da corrupção. Assim, a esquerda encontra dificuldades em agir, “porque os signos que eles vão usar, ou seja, de vermelho, bandeiras sindicais, bandeiras de movimentos sociais, que são tradicionalmente associados à esquerda, são considerados pela população como parte do problema”, constata.

“É paradoxal - continua - porque a esquerda quer, de certa forma, dar um sentido com a pauta de direitos, mas ela não consegue entrar no movimento de indignação, porque este movimento é totalmente por fora dos canais dos partidos de esquerda”.

Na interpretação de Cava, a crise política do PT e da presidente Dilma demonstra “o problema de renovação da esquerda”, que ainda é “pautada por um discurso socialista que está ficando cada vez mais descolado das mobilizações sociais e das próprias lutas por direitos”. Para ele, as críticas às manifestações demonstram que “o 15 de março assustou bastante não só o PT e o governo, mas a esquerda, que pensou: ‘nós estamos afundando juntos, nós estamos indo para o fundo do poço juntos, é o fim de um ciclo, não é só o ciclo do PT, mas é o ciclo de todo o imaginário de esquerda no Brasil, nós estamos muito longe de nos recompor’”.


Confira a entrevista.

IHU IHU On-Line - Como descreve as manifestações que aconteceram no Rio de Janeiro, no domingo, 12 de abril? O que viu durante as manifestações?

Bruno Cava – Um novo ciclo de manifestações se abriu em 2015, um ciclo de manifestações que vem de uma indignação que já estava presente desde 2013, mas que não tinha encontrado uma forma de canalização, que não tinha encontrado sentido, e que em 2015 convergiu para a questão da corrupção.

A grande pauta hoje é, de fato, a questão da corrupção, seja porque o tema está no noticiário todos os dias, seja porque existe um fundo material real desta indignação, que é a percepção de que estamos vivendo o início de uma crise econômica que não encontra uma resposta, muito pelo contrário, encontra um silêncio por parte do governo.

O governo não está sendo capaz de oferecer uma resposta clara à população e, de fato, a operação Lava Jato está se ampliando e se enraizando por uma série de outros atores políticos. A base do governo, inclusive, está sendo implicada em grande escala, principalmente o PMDB, o PP, mas também o PT, e aí estamos falando do tesoureiro do partido, ou seja, figuras que são difíceis de dissociar desse projeto político. Então, a convergência da corrupção, de certa forma, acaba também repercutindo em uma insatisfação com o governo. E, num presidencialismo, a insatisfação com o governo coaduna na presidente; é inevitável não convergir num “fora Dilma”.

Existe uma indignação geral que não encontra vazão no sistema representativo, esta indignação convergiu na corrupção, diferente de 2013, quando se tinha uma série de pautas muito mais claras, como, por exemplo, a questão do transporte público, das tarifas, a questão da moradia, a mobilização pelos direitos humanos, a pauta sobre a PEC-37, que retirava o poder de investigação do Ministério Público, as manifestações contrárias à “cura gay”.

Agora, em 2015, esse novo ciclo é inteiramente determinado pelo lado da corrupção, embora isso também existisse em 2013. É claro que você pode dizer que a corrupção é análoga de muitas questões. Por exemplo, a pessoa está insatisfeita com o serviço de saúde, pelas filas de atendimento, pela precariedade dos planos de saúde, e ela acaba atribuindo a responsabilidade à corrupção. Então, quando se fala em corrupção, não se trata de um discurso vazio; tem um rol de insatisfações que não encontraram formulação fora da corrupção.

IHU On-Line - Por que essa insatisfação não se aplica à crise econômica evidenciada pelo baixo crescimento e ao aumento do custo de vida, exemplificado na conta de energia, da gasolina, por exemplo?

Bruno Cava – Isso tem a ver com a campanha eleitoral. Toda a campanha da Dilma e do PT enfatizou que o país não precisava de um ajuste econômico, que não haveria qualquer tipo de interferência nos direitos trabalhistas, ou seja, o voto pela continuidade seria o voto mais seguro para conduzir a economia. Ao contrário, os outros dois candidatos afirmaram que seria necessário fazer um ajuste econômico. Quando terminou a eleição, o ajuste foi feito, ou seja, houve cortes sociais, cortes de subsídios, aumento de tarifas, como o aumento da tarifa da conta de energia, aumento do valor da gasolina, aumento de juros.

Em suma, todo este pacote de medidas econômicas que foi tomado contraria exatamente o discurso central da campanha eleitoral da Dilma, que tinha como discurso “não mexer no direito dos trabalhadores nem que a ‘vaca tussa'”. Quem não lembra aquela inserção na propaganda eleitoral em que a comida estava sumindo dos pratos e os banqueiros estavam comandando? Só que hoje temos um banqueiro comandando o Ministério da Fazenda: o ministro Levy vem do Bradesco.

Então, embora o projeto econômico dos três candidatos, no final das contas, acabaria sendo o mesmo, um deles disse que não faria o que acabou fazendo. Então, isso gerou uma percepção de frustração, de mentira, inclusive naqueles que apoiavam a candidatura pela esquerda, que viam isso como sagrado nas vias sociais, nas vias trabalhistas. Obviamente todas essas ações entram no pacote de indignação.

Mas para chegar à rua, o que acontece? Ainda não existe formulação disso; você não vê na rua, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde tenho acompanhado com mais afinco as pesquisas e os relatos, grupos levantando cartazes ou exprimindo o motivo de estar lá, ou o fato de estar sem seguro desemprego, ou reclamando porque a conta de luz aumentou, ou que o custo de vida aumentou, ou que está havendo demissões. Mas a indignação por perceber que o discurso de que a economia não vai mal é uma mentira — porque na verdade estamos mal —, sem dúvida gera a alta intensidade do protesto.


 IHU On-Line – Quer dizer que os manifestantes ainda não processaram os efeitos da questão econômica?

Bruno Cava – Vejo que existe um problema que é da própria esquerda, porque é a esquerda que faz esse discurso do trabalhador, da saúde, da educação, da segurança no trabalho, dos direitos sociais. Mas como a esquerda, de certa forma, encontra-se paralisada com esta situação, porque no segundo turno ela apoiou a candidata que, após eleita, implementou o programa da oposição, isso em grande parte a desmobilizou.

O problema é que hoje se tem um programa sendo implementado através do Congresso, que também passa pela base do governo. Não podemos esquecer que o PMDB no Congresso não é oposição à presidente Dilma, ele é parte do governo, só que existe uma tensão interna, ou seja, o Congresso quer passar medidas ainda mais conservadoras, como a redução da maioridade penal e agora o projeto de lei que vai liberar a terceirização na atividade-fim das empresas.

Apesar desse cenário, toda a indignação coaduna no discurso da corrupção, porque a esquerda não corre neste discurso que é feito também por grupos que são ligados à intervenção militar, embora sejam muito minoritários, grupos que são caricatos da direita reacionária brasileira, e isso acaba afugentando parte da esquerda. Então, se tem uma dificuldade de ter uma formulação política, uma formulação discursiva a partir da crise econômica, que passe por dentro dos processos massificados.

O que está acontecendo hoje? Uma tendência a ter protestos pequenos, como o que está marcado para o dia 15 de abril contra a terceirização, organizados pela esquerda, mas que são mobilizados dentro daquela velha forma sindical e partidária da militância e não atingem a população em grande escala. E os protestos, organizados ao redor da corrupção, que são heterogêneos obviamente, que têm vários grupos, como, por exemplo, o #VemPraRua, o Movimento Brasil Livre - MBL, passam pela pauta da corrupção.

A questão é: De onde virá um protesto ancorado na crise, que tem uma formulação, uma pauta, uma agenda de direitos? Esse é, hoje, o grande impasse nas manifestações. O fato de se ter uma crise não significa que iremos sair nem para pior nem para melhor; o fato de se ter uma crise significa uma oportunidade de construir uma coisa nova.

IHU On-Line – A terceirização, ao que tudo indica, poderá prejudicar os trabalhadores como um todo. Atribui a falta desta pauta nas manifestações por conta da pauta maior em torno da corrupção?

Bruno Cava – O que aconteceu foi que no dia 15 de março um dos principais grupos de mobilização, o #VemPraRua, não tinha encampado a pauta do impeachment. Os outros dois grupos que são fortes nas redes sociais, o MBL e os Revoltados, encamparam essa pauta.

De março até abril houve uma grande discussão entre esses grupos de qual seria a pauta do dia 12 de abril e houve o risco de eles romperem a unidade, porque alguns têm uma pauta mais liberal-pragmática, e outros têm de fato a pauta da intervenção militar, que é minoritária, mas está lá.

Para não romper a pauta, eles fecharam no “fora Dilma” e concentraram toda a energia nessa pauta. Ao mesmo tempo existe um rechaço de dentro dos grupos mais articulados com movimentos sociais tradicionais, sindicatos, grupos mobilizados mais à esquerda de participar destas manifestações, que poderiam pautar isso, que poderiam tentar encontrar um tipo de inserção que não fosse provocativa, porque obviamente não se pode ir à rua com a bandeira vermelha que é associada ao PT. É preciso ter um tipo de estratégia de inserção desta pauta na manifestação, mas não existe a vontade política de fazer um outro ato separado.

Em junho também houve este problema durante a final da Copa das Confederações — no dia 30 de junho, durante o jogo entre Brasil e Espanha no Maracanã. Na ocasião, o ato principal que estava reunindo todos os grupos que estavam na rua durante aquele mês, estava agendado para acontecer à tarde. Mas os grupos mais ligados aos partidos socialistas de esquerda, os movimentos sindicais, o MST, a CUT, fizeram um ato pela manhã para deixar claro que eles não estavam se juntando. Só que quando você não se junta, você não deixa de reforçar todo aquele movimento, porque o movimento é fortíssimo.


IHU On-Line - Em que aspectos há aproximações e diferenças na manifestação do último domingo com a do dia 15 de março? Como vê, nesse sentido, os comentários entusiastas de que as manifestações foram reduzidas?

Bruno Cava – Analisar quantitativamente a manifestação é insuficiente. O fato de ter um milhão ou 100 mil ou 500 mil, é um dado, mas isso não explica totalmente a manifestação. Você pode ter um milhão na rua durante todo o mês, até o final do ano, e isso não significa nada, porque manifestação é organização, criação de formas de organização e de mobilização, ou seja, significa ter grupos que consigam, de certa forma, manter regularidade para manifestações e que tenham pautas, capacidade de articular estas pautas. Sem isso a manifestação pode ser uma festa, pode ser uma passeata meramente ocasional.

De todo modo, em parte, atribuo a diminuição do número de participantes ao fato de não ter havido, antes do dia 12 de abril, a mesma provocação que ocorreu em 13 de março, quando uma manifestação pró-governo — que, embora fosse justamente tensionar o governo à esquerda, a saída pela esquerda, era uma manifestação dos grupos ligados ao governo e ao PT, à CUT e ao MST, tanto que os grupos mais à esquerda, por exemplo, ligados ao PSOL, não participaram — foi para a rua dizendo: “nós vamos para rua e vamos disputar com aquele discurso de desqualificação do outro lado, que é coxinha, que é golpista”, enfim todos os adjetivos de desqualificação. Essa atitude gerou uma provocação e muitas pessoas foram às ruas no dia 15 de março porque estavam insatisfeitas e quiseram mostrar que de fato nós não estamos satisfeitos com o governo Dilma, não estamos satisfeitos com as medidas que foram tomadas e com a corrupção.

O dia 15 de março teve esta dimensão de confrontar, de dar uma reposta e, por isso, ocorreram panelaços. De 15 de março até 12 de abril, a insatisfação, de acordo com as pesquisas do Datafolha, não mudou: 62% rejeitam ou acham o governo ruim ou péssimo, e em 12 de abril o número é o mesmo. Ou seja, o pano de fundo de indignação é geral em todas as classes sociais, todas as regiões do Brasil, todas as faixas etárias e níveis de escolaridade, ou seja, a insatisfação continua a mesma, mas não houve aquela “cutucada na onça”, como a que ocorreu no dia 13 de março.

O segundo ponto que explica a diminuição de participantes é o desgaste natural de toda manifestação. Se não criar algo novo, se não mostrar que aquilo está indo para algum lugar, que está gerando uma consequência, gera uma desmobilização. Isso aconteceu em junho de 2013 e é normal em mobilizações de massa. Para os próximos protestos, os grupos estão querendo fechar agora no impeachment.

IHU On-Line - O impeachment é a melhor pauta?

Bruno Cava – Não é a melhor pauta porque simplesmente trocar o presidente não vai resolver o problema da corrupção. Além disso, também há poucos elementos, do ponto de vista jurídico, para implicar no processo de impeachment da presidente.


IHU On-Line – Então, por que a escolha por esta pauta?

Bruno Cava – Se você analisar do ponto de vista intelectual se o impeachment é a melhor solução, obviamente verá que não é. Mas existe um sentimento popular de revolta, que no presidencialismo coaduna na presidente, e que é legítimo. Então, a pessoa gritar “fora Dilma” não é uma coisa absurda.

IHU On-Line – Mas, em contrapartida, governistas e intelectuais governistas derrubam essa pauta e fazem defesa ao governo, inclusive melhorando a imagem do partido.

Bruno Cava – Sim, e aí novamente voltamos para o cenário das eleições. Qual é o sonho do governismo? Repetir o que aconteceu na eleição, ou seja, ter um terceiro turno, regularizar a sociedade colocando de um lado os eleitores da Dilma e do outro os eleitores do Aécio, e com isso é criada uma divisão em dois campos, quando a situação é muito mais complexa do que isso.

As manifestações não são simplesmente um grupo ligado ao PSDB e muito menos ao Aécio. O Aécio entrou na eleição com 15% dos votos e deu aquela disparada no final, mas boa parte dos votos dele é um voto de protesto, um voto de mudança que não está associado a um compromisso com o candidato. E nem em relação à Dilma; o voto da Dilma não é um voto comprometido de “estou com a Dilma até a morte”, não é, tanto que a popularidade dela despencou.

A realidade não é a realidade eleitoral, mas à medida que é pedido o impeachment, é pedido que as pessoas se posicionem. Por isso os três grupos (Revoltados, o MBL e #VemPraRua) convergem nessa pauta. Mas do mesmo modo como eles convergiram para esta pauta, ela pode ser uma armadilha também, porque esta pauta pode gerar uma repolarização que vai gerar um impasse, porque mesmo dentro do sistema político brasileiro interessa a muito pouca gente o impeachment.

A quem interessa o impeachment? Ao PMDB não interessa; o PMDB já está governando, é o governante de fato. O PSDB está preparado para assumir a presidência agora? Não parece. Então, é uma pauta que é tudo ou nada, porque ou massifica muito para conseguir levar a uma situação de impeachment — é preciso uma mobilização muito maior e muito mais intensa para conseguir —, ou essa pauta vai acabar favorecendo a própria presidente, o próprio governismo.

IHU On-Line - Qual seria a pauta que poderia unificar os três grandes grupos de protestos?

Bruno Cava – É incontornável a corrupção. Tem de haver um discurso para corrupção. Agora, tem de haver um discurso que não pode ser simplesmente punitivista, que não pode ser simplesmente “vamos punir os culpados”. É necessário apontar uma reforma do sistema político. Não uma reforma política imaginada pelo governismo, mas uma reforma política dando mais democracia, mais instrumentos de participação, de decisão, de capacidade de as pessoas se envolverem diretamente.

IHU On-Line - A piora do padrão de vida não parece uma boa pauta?

Bruno Cava – Sim, mas quais grupos políticos vão articular esta pauta dentro da indignação popular? A aposta de vários grupos que se colocam à esquerda, que se colocam abertamente como a saída pela esquerda, é qual? Nós vamos construir, a partir da indignação popular, uma pauta de direitos, mas sem gritar “fora Dilma” e sem entrar de cabeça no discurso da corrupção.

Existe uma dificuldade muito grande nesse sentido, porque os signos que eles vão usar, ou seja, de vermelho, bandeiras sindicais, bandeiras de movimentos sociais, que são tradicionalmente associados à esquerda, são considerados pela população como parte do problema. E sem gritar “fora Dilma” é muito difícil construir algo a partir da indignação que está coadunada na presidente.

Por exemplo, em junho de 2013, no Rio de Janeiro, a indignação coadunou no governador com o “fora Cabral”, e o Cabral teve que renunciar em 2014 para o Pezão poder concorrer a governador. É paradoxal, porque a esquerda quer, de certa forma, dar um sentido com a pauta de direitos, mas ela não consegue entrar no movimento de indignação, porque este movimento é totalmente por fora dos canais dos partidos de esquerda.


IHU On-Line - O que isso mostra sobre a esquerda?

Bruno Cava – Mostra o velho problema da renovação, embora não exista uma esquerda, mas existam várias esquerdas. Mas, de todo modo, existe o problema de renovação da esquerda, ou seja, a esquerda é muito pautada por um discurso socialista que está ficando cada vez mais descolado das mobilizações sociais e das próprias lutas por direitos também, que não são lutas pelo socialismo, mas são lutas por moradia, por direito à cidade, por direito ao transporte, que não estão diretamente ligadas a um projeto de Estado socialista.

Como o PT governa há 13 anos, existe um desgaste por 13 anos de governo, e o PT sempre se afirma novamente de esquerda e faz questão de usar este discurso, o qual ainda “cola”, porque no segundo turno da eleição o grande discurso que conseguiu captar o voto de esquerda foi o voto de barrar a direita. Ou seja, implicitamente quer dizer que a Dilma era mais esquerda que o Aécio, mais esquerda que a Marina, por simplesmente barrar a direita, por escolher o “menos pior”.

As próprias esquerdas acabaram associando seus símbolos, seus discursos, suas bandeiras, no segundo turno da eleição, ao governo Dilma. Então, agora, como essas esquerdas vão dizer para a população que não apoiam o governo Dilma? A população vê a bandeira vermelha, vê aquela estética de manifestação e associa imediatamente ao PT, e a indignação está totalmente contra o governo. Por isso, precisamos de uma esquerda antropofágica, uma esquerda que consiga inovar em termos de signos e discursos para poder trabalhar com esta indignação.

IHU On-Line - Existem novos signos e discursos em perspectiva?

Bruno Cava – Junho de 2013 foi um grande laboratório disso. Foi um momento em que tínhamos as pautas de direitos e havia massificação nas ruas. Havia uma grande quantidade de manifestantes vindos de vários lugares da cidade; não havia somente a classe média dos bairros mais ricos da cidade, que fazem protesto de esquerda.

Ao contrário, havia representantes da periferia, de uma semiperiferia, naquele cinturão que é chamado de classe C ou classe D da cidade, havia manifestação de grupo das favelas da Rocinha e do Vidigal, através da campanha do Amarildo. Houve a manifestação da Maré também, quando teve a chacina após um dos protestos. Nesse momento se engendraram várias tentativas, várias ocupações, novas formas de fazer mídia — o midiativismo — e construção de redes que juntasse tudo isso.

O problema foi que parte da esquerda, principalmente a governista, desqualificou as manifestações sistematicamente, então atrapalhou bastante. Em 2014 tivemos a Copa das Copas, que foi o momento em que esses movimentos, que surgiram de junho de 2013, foram massacrados, com prisões, com espionagem em massa, com ativistas presos por organizarem-se politicamente. E, depois, a eleição foi aquele momento em que se pegou toda a multiplicidade de sujeitos sociais, toda a diversidade de pautas, e se enquadrou em dois moldes, ou seja, forçou aquela multidão em dois e, somente dois; foi uma operação ortopédica. Isso foi feito a um custo político e simbólico altíssimo.


 IHU On-Line - Em seu comentário no Facebook, você chama atenção para a “diversidade social e racial” entre as 10 mil pessoas que estiveram na Av. Atlântica, no Rio de Janeiro, na manifestação do dia 12 de abril. Essa afirmação foi proposital para chamar a atenção, inclusive, para as manifestações que ocorreram em março, de que havia uma diversidade entre os manifestantes? Ou essa é uma característica nova, que não apareceu em outras manifestações?

Bruno Cava – No dia 15 março eu não fiz pesquisa de campo. Mas no dia 12 eu fui com um grupo e fiz uma pesquisa e tirei fotos. Em São Paulo, Pablo Ortellado também está fazendo uma pesquisa empírica das manifestações. Mas claramente a manifestação do dia 12 de abril não é a manifestação da elite branca; tinha uma diversidade enorme de pessoas que moram em bairros bem distantes da zona Sul do Rio de Janeiro, de cidades vizinhas, pessoas que estão se organizando, por exemplo, em Rio Bonito, em Nova Iguaçu, em Magé, e é evidente a diversidade social que está presente na manifestação.

Houve um momento no final das manifestações que achei muito interessante, quando o #VemPraRua colocou um rapper da favela para falar. Esse foi um momento tenso, porque foi a primeira vez que aquilo acontecia no sentido de se ter um discurso de um sujeito social diferente. Ele foi lá e fez um rap, cantou e interagiu bastante. No primeiro momento aquilo gerou um choque de várias partes da manifestação que não estavam acostumadas, que não estavam preparadas para aquilo, mas funcionou, ou seja, existe uma abertura para este tipo de discurso. Podem até falar que essa foi uma jogada do movimento para provar que negros participaram da manifestação, mas a esquerda faz muito isso; “pelo amor de Deus”, se você analisar a diversidade social e racial da esquerda, você chegará a algumas conclusões bem interessantes.

Mas de certa forma deu certo, funcionou e um grupo da favela mobilizado se fez presente e passou seu recado. Para mim este foi um momento definidor. Eu achava que o rapper seria rechaçado naquele instante e ficaria bem clara a conotação elitista da manifestação, mas não aconteceu isso, foi justamente o contrário e não foi uma coisa automática; ele começou a falar, foi falando e foi envolvendo as pessoas aos poucos.

IHU On-Line - Os discursos humildes da presidente depois das manifestações do dia 15 de março tiveram algum impacto nas manifestações de abril?

Bruno Cava – Não, não teve impacto nenhum, tanto que as pesquisas de popularidade continuaram com os mesmos índices. A questão é como Dilma vai sair desta “sinuca de bico” em que ela se colocou. Quanto mais ela cortar na carne as operações da corrupção, mais ela fica sem condições de implementar qualquer tipo de política. É uma situação de perde-perde. Se você me perguntar o que o governo deveria fazer, eu diria: não deveria ter se colocado nesta situação, em primeiro lugar.


IHU On-Line - Como interpreta as diferentes análises feitas, especialmente via redes sociais, que tentam legitimar ou deslegitimar as manifestações?

Bruno Cava – Novamente, uma comparação boa para ser feita é a eleição. O que menos se teve na eleição foi debate; a eleição foi uma sucessão de “memes”, de uma desconstrução pessoal, ou seja, o foco era sempre na pessoa, era sempre tentar descobrir os pontos fracos de cada um e começar a atacar esses pontos, passando por cima, travando qualquer tipo de debate.

Houve muita produção que, ao invés de qualificar o debate, o confundiu. As campanhas operaram a partir da lógica da desconstrução. O que é essa lógica? As pessoas tomam o seguinte posicionamento: eu não entro em nenhum debate, eu ataco, eu parto para a ridicularização, para a desqualificação, para desacreditar.

Boa parte do debate hoje nas redes, e não é só sobre a manifestação, mas em qualquer tema, segue a mesma lógica da desqualificação, da desconstrução. É muito difícil travar um debate, e as redes sociais não favorecem a tranquilidade e a arena de debate que seja saudável. Ela favorece o ataque, a curtida do deboche; é muito difícil, de fato, através das redes fazer uma análise ou ter acesso a opiniões mais embasadas, a discussões mais ricas.

Com relação aos intelectuais, ainda não li todos os textos, mas me pareceu que o 15 de março assustou bastante não só o PT e o governo, mas a esquerda, que pensou: “nós estamos afundando juntos, nós estamos indo para o fundo do poço juntos, é o fim de um ciclo, não é só o ciclo do PT, mas é o ciclo de todo o imaginário de esquerda no Brasil, nós estamos muito longe de nos recompor”. Isso acuou bastante e gerou uma paralisia e até um início de repensamento na esquerda.

Quando a manifestação diminuiu de tamanho, quando havia 2,5 milhões na rua e agora tem 700/800 mil, isso é visto como uma descarga para esse pessoal que não apoia as manifestações, embora o número de manifestantes seja pelo menos 10 vezes superior ao máximo do que todas as forças de esquerda conseguem colocar na rua hoje — isso com movimentos como MST ou CUT, movimentos que existem há mais de 30 anos.

IHU On-Line - Quem está na rua hoje pode ser chamado de multidão?

Bruno Cava – É complicado esse debate, mas esse é o debate, ou seja, que a multidão não é espontânea. A diferença entre a multidão e a massa é que a multidão não é espontânea, não é homogênea como a massa. A formação de massa era uma formação do fascismo na década de 1920, de 1930, a partir de uma propaganda massiva de Estado, de partido, de se construir aquele sujeito homogêneo que era quase uma tropa militar. A multidão, não, a multidão é uma rede de singularidades, ela tem uma diversidade de sua composição política e, apesar disso, ela tem potência política, porque a diferença gera uma ressonância, uma força maior do que se trabalhar a partir do mesmo.

Agora, ela tem linhas organizativas de novo tipo, não é organizada da forma vertical como a forma tradicional do sindicato, do partido ou daquele movimento social mais tradicional, mais orgânico; ela é uma rede de singularidades, mas é organizada, é capaz de sustentar um discurso, uma pauta, é capaz de produzir direitos.


IHU On-Line – Vou perguntar de novo: o que estamos vendo nas ruas é multidão?

Bruno Cava – O que está acontecendo nas ruas é uma manifestação, é um momento em que deságua na rua uma rede de mobilização, uma rede de discussão que é alimentada pela indignação, ou seja, são os indignados. A pergunta não é exatamente se você tem, por exemplo, uma multidão na rua, mas se esse processo político constituinte, esse processo de novos sujeitos sociais, pode ser chamado de multidão, e uma das suas expressões seria a rua.

IHU On-Line – Então, “esse processo político constituinte, esse processo de novos sujeitos sociais pode ser chamado de multidão e uma das suas expressões está sendo a rua”?

Bruno Cava – É complicado “bater o martelo” dizendo é multidão ou não é multidão. Porque se eu digo que é multidão, estou usando um conceito para fazer apologia de um determinado processo; se eu bato dizendo que não é multidão — muitos usam essa expressão para desqualificar —, da mesma forma estou julgando o processo de cima.

Para dizer o que é multidão, primeiro precisaríamos entender os processos de dentro, pesquisá-los efetivamente — tem pouquíssima gente pesquisando esses processos —, analisar os sujeitos que estão se constituindo e analisar se existe dentro desse projeto alguma tendência de fazer multidão por dentro do processo; não necessariamente toda a manifestação seria multidão.

Poderia haver uma tendência ali dentro que está associada a outras redes, a outras formas de mobilizar que talvez não estejamos vendo e que isso é multidão; teria que pesquisar.

IHU On-Line – Mas você, enquanto pesquisador que utiliza esse conceito, está neste processo de investigação para saber se se trata ou não de multidão? Há pesquisas empíricas neste campo?

Bruno Cava – Esta categoria é muito difícil. No Rio de Janeiro, a rede de pesquisadores de que participei, na Universidade Nômade, esteve muito presente em junho de 2013 e lá, claramente, tinham processos de fazer multidão. Existia, sim, a linha longitudinal das manifestações e que se tornou predominante no Rio de Janeiro em outubro — porque no Rio de Janeiro os protestos foram de junho até outubro. Em outubro, claramente, se tinha um processo de novo tipo, de organização de novo tipo, de mobilização de novo tipo, que é um processo que pode se expresso por este conceito de multidão.

Hoje, estamos fora. Por que estamos fora? Quem organizou essas indignações foram grupos ligados nas redes sociais, que vêm de uma mobilização que não participou de junho, nem o #VemPraRua, nem o MBL, nem o Revoltados. Eles aprenderam com junho.

Embora o conteúdo das pautas seja diferente, a forma de trabalho é parecida: a capacidade de se organizar nas redes sociais, de ter um discurso agregador sem unificar necessariamente em uma só ideologia ou em um partido. A maioria das pessoas que estão na rua, embora não tenham votado na atual presidente, rechaçam qualquer partido: 85% não simpatizam com nenhum partido nas pesquisas da Perseu Abramo e do Datafolha. Isso é uma forma nova de organizar, ou seja, você não é obrigado a estar fechado com um programa para participar de manifestação; você pode participar da manifestação e levar seu cartaz, participar com a sua diversidade e a partir daí encontrar uma ocupação, ou um grupo no Facebook, ou uma assembleia e começar a se envolver mais.

IHU On-Line – E o que aconteceu com a multidão de junho de 2013?

Bruno Cava – A leitura mais presente entre nós é que a eleição foi um processo de destruição da multidão. A multidão funciona de forma transversal, não precisa ter um centro de comando onde se elaboram os discursos. O que foi a eleição? Foram dois centros de comando que mandavam para todos seus militantes, para todas suas mídias, as mensagens, os discursos, e a pauta do dia era reproduzida. Quando chegávamos nas redes sociais, onde nós estamos — somos apenas indivíduos nas redes sociais —, éramos bombardeados pelos “memes”. Uma guerra estava acontecendo, com cobranças para que as pessoas participassem a partir das visões dos centros de comando. Ou você participa ou está do outro lado, era um discurso binário. Eu, pelo menos, estou bem pessimista em relação à capacidade de fazer multidão no atual contexto; teria que haver algum passe, alguma forma de salto qualitativo para isso acontecer.


IHU On-Line – Esse salto qualitativo passa pela existência de um líder político que possa representar a multidão?

Bruno Cava – Sim. Na eleição de 2014 tinha a Marina. O discurso da Marina e sua própria construção política desde que saiu do governo, em 2008, vinha nessa direção de afirmar um novo sujeito político, uma sociedade em rede, uma sociedade conectada globalmente, enfim, ela apostou mesmo nessa linha que, em termos de discurso, dialogava com junho de 2013 muito melhor que os outros candidatos.

IHU On-Line – A Marina Silva seria a representante da multidão?

Bruno Cava – Não, a multidão não admitiria uma representante, a multidão poderia ter uma tática eleitoral. A potência está com a multidão, ela nunca delega um representante a essa potência. A multidão, como é um sujeito político gerador e constituinte, tem sempre a potência ao lado dela.

Naquele momento da eleição, a Marina tinha a possibilidade de ser um vetor desses processos, mas por inúmeras falhas, pela própria situação que ela se colocou na campanha: sem um partido próprio, sem um grupo de elaboração próprio, entrando de forma improvisada depois da morte do Eduardo Campos, com infinitamente menos recursos, infinitamente menos condições e com os erros que ela cometeu também, se colocando em uma posição defensiva tentando arriscar e jogar para os dois lados. E, ao tentar jogar para os dois lados, ela perdeu a capacidade afirmativa, a capacidade de ocupar o vazio. Para ocupar o vazio você não pode ficar só na defesa; é preciso ter capacidade afirmativa. Ela acabou sendo destruída por esta máquina binária, cometeu vários erros, não teve também como contornar os erros durante a campanha e passou muito longe de conseguir exprimir junho de 2013.

Mas era, de fato, entre as três candidaturas com mais chance de ganhar a eleição, a que chegou mais perto de abrir este processo. Talvez, por isso, Giuseppe Cocco compara, com um pouco de ressalvas, ao que está acontecendo na Espanha com o Podemos, que é o partido que está acolhendo também esta insatisfação com todo o sistema político e quer inovar em formas de democracia.

IHU On-Line – É necessário o surgimento de um “Podemos” no Brasil para avançar em termos de pauta e representação política?

Bruno Cava – Essa é uma grande questão também. Qual é a liderança que vai, de fato, vetorizar ou que vai simbolizar isso? Porque o que pode acontecer é: ou a volta do Lula, que seria mais do mesmo novamente, ou algum oportunista.

IHU On-Line – O que diferencia os círculos comunitários de hoje com o que as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs faziam junto com a Igreja durante o surgimento do PT?

Bruno Cava – O surgimento do PT é o surgimento de tudo isso que falamos de horizontalismo, de formas de democracia participativa, multiplicação de núcleos de base, de associações de moradores, de movimentos da saúde da periferia, de comunidades eclesiásticas de base, as pastorais da Terra que iam se enraizar, do sindicalismo que é uma luta por um sindicato de novo tipo.

Enfim, o surgimento do PT é o surgimento do novo e completamente atravessado pela multidão no final da década de 1970 para 1980, que ocupou um vazio, que é o vazio da crise econômica e política da ditadura, que foi acelerada por esses processos de mobilização, como as grandes greves, os protestos contra a ditadura, do movimento estudantil, do movimento negro unificado, do movimento das mulheres.

Mas muitas pessoas, principalmente à esquerda, pretendem reproduzir este processo ou acreditam que a saída é reproduzir este processo para fazer um novo partido hoje. Teríamos que começar a construir qualidade de trabalhos de base, de participacionismo, todo aquele processo que vai culminar não no governo Lula, mas no orçamento participativo em Porto Alegre em 1989, na prefeitura da Luiza Erundina em 1989, em São Paulo. Porto Alegre e São Paulo foram grandes laboratórios entre instituição e movimento.

Mas o mundo mudou, as formas de organização da vida, de organização social, de como nos organizamos mudaram muito. Hoje trabalhamos completamente conectados, temos uma conexão com a cidade que é diferente da conexão de cidade com o território daquela época, que era uma conexão mais local, uma conexão com seu ambiente de trabalho. Hoje estamos em rede, nos comunicamos a grandes velocidades e a grandes distâncias. Participamos de grupos de afinidades e interesses diferentes ao mesmo tempo, não temos uma vida orgânica, arrumadinha, estamos em três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Então, não tem como reproduzir um método de organização, um método de construção que era próprio dos anos 1970, 1980, no século XXI, em 2015.

Mesmo porque aqueles pobres do PT, os sem terra, os sem teto, mudaram também. Hoje se tem em torno de 100 milhões de brasileiros que pertencem à “nova classe média”, que são pobres que conquistaram alguma renda, mas também tiveram acesso a ferramentas, ao conhecimento, a mídias, a redes, e também criaram suas próprias culturas de resistência, seus próprios termos de sociabilidade e de produção cultural. Não precisa que venha um partido ou que venha um grupo de pedagogia do oprimido para ensinar, para emancipar; as pessoas são autônomas. Então, se existe uma diferença, não diria que é uma diferença com o círculo de cidadania, porque creio que seria uma megalomania querer comparar os círculos de cidadania incipientes — temos em torno de 10 a 15 círculos espalhados — com a CEBs.

Os círculos não são necessariamente enraizados em territórios. Podem ser temáticos, de afinidades, podem atravessar as cidades também; os círculos não têm um lógica piramidal. Todos os círculos são interdependentes e estão no mesmo patamar, são a tentativa de criar uns pontos de cultura. Os pontos de cultura são mais próximos dos círculos de cidadania, porque a lógica dos pontos de cultura é baseada na negociação de recursos, de tempo, recursos inclusive com o Estado para poder construir algum tipo de mobilização, mas você elabora e executa esse movimento por conta própria, como os pontos de cultura. Eles negociavam os recursos, mas quem determinava o que era cultura era o próprio ponto de cultura, ele tinha autonomia para isso. Ou seja, o Estado não diz o que eles têm de fazer e não há uma política que determina o que os pontos têm de fazer. É muito mais horizontal este ponto de vista do que uma lógica de pirâmide, uma lógica partidária do tipo clássica.

IHU On-Line – A multidão não quer participar politicamente de uma instituição?

Bruno Cava – Primeiro, a multidão — esse conceito do Antonio Negri e do Michael Hardt — é uma tentativa de pensar o povo, é um conceito para substituir o povo no momento em que não se tem mais aquela unidade homogênea criada pelo Estado a partir da nacionalidade, ou aquela unidade clássica do nacional popular de Antonio Gramsci, com todas as tentativas socialistas de construir o povo em oposição à burguesia. Ou seja, a multidão é um conceito de um sujeito, mas que não está dado, não existe algo que mostre onde está a multidão; multidão é um fazer, é um processo, é uma permanente construção e reconstrução de um processo. Um processo que tem linhas organizativas que vão se transformando.

A multidão atravessou o governo Lula. O que foi a reinvenção do Brasil nos últimos 15 anos? O Brasil melhorou, não podemos colocar uma venda sobre esse aspecto. Só que a situação melhorou não só porque o Estado foi lá e deu algo. Ela melhorou porque a população se apropriou dessas políticas, tomou posse dessas políticas e reinventou o Brasil. Quem reinventou o Brasil não foi o governo X ou Y, o partido X ou Y; a transformação foi uma conquista social, resultado de muita mobilização desde o ponto de vista mais cotidiano no sentido de luta. Esse é um processo que não precisa de uma liderança que diga o que fazer e não precisa de um partido que vai dar um programa a ser seguido. Não é simplesmente uma construção dos sindicatos ou das empresas; é um processo autônomo.

O conceito de multidão não se opõe à instituição; não há uma dicotomia entre multidão de um lado e, de outro lado, as instituições e os aparelhos partidários. A multidão é potência social, é criatividade, é democracia — capacidade de criar democracia, de se agenciar e construir juntos ações coletivas e afetos implicados desta democracia. Na verdade, as instituições sem uma legitimidade, uma participação de processos ativamente democráticos, se esvaziam, geram um deságio entre a República representada e o representante. Essa é a crise que vivemos da representação, que não acontece só no Brasil, mas é mundial. Trata-se de um processo de esvaziamento, de desconexão, e isso gera um vazio.


IHU On-Line – Depois das manifestações de domingo, o que vislumbra acerca de novas manifestações no país?

Bruno Cava – A crise econômica ainda não pegou os efeitos para valer, o ataque na massa salarial dos direitos ainda vai cobrar custos e isso vai desdobrar-se ao longo de todo o ano, e até o final do ano não tem nenhuma saída à vista para esta crise. Isso certamente vai gerar indignação, porque as pessoas vão perder o que elas têm. Esse é o primeiro momento, desde 2003, em que se tem uma crise econômica que realmente vai atingir as classes populares. Tem ainda a grande desilusão da eleição, porque a Dilma foi eleita em uma euforia, como uma alternativa na capacidade de gerir o país sem crise. Isso gera uma percepção de que o governo é arrogante e que fez uma campanha de mentiras, o que certamente será acentuado durante este ano.

Agora, qual o sentido? Qual a narrativa? Qual será a pauta em que isso irá coadunar? É acerca dessas perguntas que vejo uma situação de enorme impasse, como havia comentado no início, ou seja, tem os grupos mais mobilizados ao redor da corrupção, querendo somente o impeachment da Dilma e se concentrando nesta pauta; de outro lado, as manifestações mais ligadas aos grupos do governo ou que são do governismo crítico, que dizem que a saída é pela esquerda, mas, no momento de fazer mobilizações, as fazem junto com os movimentos sociais ligados ao governo, os quais não têm capilaridade popular, nem capacidade de mobilização além de suas redes antigas, as velhas estruturas partidárias, e que não encampam o discurso da corrupção. Então, é muito difícil eles se conectarem ao sentimento popular.

O trabalho a ser feito hoje, um trabalho ativista de construção de discurso, de ousadia, seria o de buscar nas margens dos dois grupos o limiar dessas manifestações da corrupção e ao mesmo tempo estar presente em manifestações como a contrária à terceirização, tentando tensionar para que não caia na ordem da polarização do governismo. O problema é que, assim como na eleição, agora a capacidade de repolarizar o cenário político ainda é muito forte, e isso cria um redemoinho. E esse redemoinho tende a cooptar tudo o que vê pela frente. É muito difícil conseguir escapar dessas duas esferas.

Mas não vejo outro jeito, não dá para imergir em um grupo que pode parecer uma alternativa mais conservadora para a crise, porque podemos chegar a algo parecido com o cenário argentino de 2001, em que cinco presidentes caíram em três meses. Do mesmo modo, não dá para imergir simplesmente, acriticamente, em manifestações do governo. Se participarmos dessas manifestações, estaremos defendendo o quê? Uma pauta que não é de direitos, pelo contrário. A própria PEC da terceirização foi engendrada no governo. Essa tentativa de separar o governo, ou seja, de separar o Poder Executivo e o Legislativo, é uma tentativa formal, porque o governo é composto pelo Poder Executivo e por uma base no Poder Legislativo, que justamente se chama “base do governo”.

O PMDB, majoritário no Congresso, também é governo, o Renan Calheiros, o Eduardo Cunha, os governadores do PMDB, o Pezão no Rio de Janeiro, também são base do governo. Na verdade não é governo, é governabilidade: há um esquema de governabilidade que é pautado pelo PT e que agora tenta criar uma nova dialética do “menos pior”. Criou com o Aécio e agora tenta criar com o PMDB e com Eduardo Cunha. Então, uma defesa do governo, ainda que seja pela esquerda, é a defesa disso; o que é o mais neurótico de tudo.

IHU On-Line – Como vê esse discurso de sempre tentar isolar o PT dos demais partidos?

Bruno Cava – É o discurso da tese defensiva. Quando você assume uma tese defensiva, ou seja, uma tese que não fala em mudança, que fala em só manter o que se tem, você cede o discurso da mudança, do propositivo, para a oposição. Hoje, os grupos mais à direita estão começando a dominar, a se apropriar de todo o discurso da mudança, enquanto os grupos à esquerda ficam simplesmente lutando para barrar a direita pelo “menos pior”, contra o retrocesso.


IHU On-Line – Por que há tanta discordância dentro da esquerda e a dificuldade de encontrar uma pauta unificadora?

Bruno Cava – O Brasil é muito difícil, mas a esquerda é mais difícil ainda de se entender. Não tenho essa resposta. Mas acho que o principal não deveria ser a esquerda, ou seja, não deveria ser uma disputa pela ideologia da esquerda por ser de esquerda, deveria ser pelas lutas existentes, pelas pautas existentes, ou seja, partir do que são efetivamente os sujeitos sociais mobilizados, suas perspectivas de lutas e projetos de mobilização, e a partir daí construir.

Marx e Engels falavam isso na Ideologia alemã: o comunismo, ou seja, a luta de classe é um movimento real de superação do estado de coisas, não existe um comunismo que é meramente um discurso, ou projeto, ou modelo de sociedade; isso é socialismo utópico. Ele é necessariamente uma imersão nas forças reais mobilizadas que já existem em seu tempo de luta e a partir daí se constrói um projeto político institucional.

A esquerda tem dificuldade de se conectar às lutas reais do seu tempo e aí ela se esvazia e vira uma ideologia, no sentido ruim de ideologia, ou seja, uma bandeira vermelha. A partir dai é que surgem as brigas, como se fosse religião: se discute um monte de questões de dogma, de doutrina, mas dentro da vida de cada um, talvez, essas questões não sejam tão impactantes. A esquerda também começa a discutir uma série de pontos ideológicos, só que se você for para as lutas existentes, essas discussões não fazem muito sentido.

(*) Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.

Por Patrícia Fachin