quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Os combustíveis do governo (Marcos Nobre)




Viver em instabilidade crônica exige muito treino até virar hábito. Apesar de ser regra e não exceção na história do país, a sensação de vertigem dos últimos dez meses foi sentida de maneira muito mais aguda porque um extraordinário surto de estabilidade tomou conta do cenário entre 2006 e 2013. O mensalão, em 2005, foi a primeira crise política em vinte anos que não teve qualquer repercussão relevante na economia. O profundo e duradouro abalo mundial que eclodiu em 2008 foi a primeira crise econômica que não teve qualquer repercussão relevante na política em quase dez anos.

É verdade que Junho de 2013 mostrou que a chapa já vinha esquentando bem antes na base da sociedade. Do ponto de vista democrático, esse período de pouco mais de sete anos foi uma estabilidade de pasmaceira. Não foi tentada qualquer reforma política digna do nome, capaz de reconectar as instituições oficiais de representação a uma sociedade em rápida mudança. Mesmo no sentido mais elementar de funcionamento normal do sistema político, foi um período em que a oposição praticamente desapareceu, em que o sistema se blindou contra a sociedade que deveria representar. O discurso oficial não fez mais do que dizer que a vida iria melhorar indefinidamente.

O que se teve nesses quase dez meses de 2015 foi um choque de instabilidade. Uma espécie de ajuste da percepção coletiva, correspondente ao ajuste fiscal. Quando ocorreu, Junho de 2013 podia ser tanto o início de uma adaptação a certa normalidade caótica que marca a história do país como uma chance de reorganização do sistema político. A eleição presidencial de 2014 produziu a impressão inicial de que pelo menos parte das divisões e insatisfações da sociedade iria encontrar expressão institucional mínima, de que haveria pelo menos situação e oposição, por exemplo. A ilusão durou pouco.

Sem ter se reformado, o sistema político apenas se desorganizou. A Operação Lava-Jato intensificou o processo, provocando a formação de milícias paraparlamentares de autodefesa que não respondiam mais a uma cadeia de comando partidária efetiva. Sobrou apenas um processo intensivo de ajuste da psicologia coletiva a uma desgraça duradoura. Voltou-se à situação recorrente de olhar a instabilidade como um dado da natureza, um pouco como a falta ou o excesso de chuva.

O teste desse antigo novo estado de ânimo virá com o anúncio esta semana pelo governo do tamanho do rombo orçamentário de 2015. Quando, no último dia de agosto, o ministro Nelson Barbosa declarou que seria enviado ao Congresso um orçamento para 2016 com déficit de R$ 30,5 bilhões, pareceu que o mundo iria acabar. Agora, o governo ameaça anunciar um rombo de até R$ 100 bilhões para 2015 e é provável que o mercado só dê uma piscadela. Ficou para trás a sensação de fim de mundo. O fim do mundo já aconteceu. É onde se terá de viver por um bom tempo, é a volta a um padrão bastante comum na história do país.

Assim como antes a euforia sem fundamento, também esse certo estado de depressão coletiva extrema entorpece. Desapareceu do horizonte qualquer expectativa de mudança positiva. O conformismo e a adaptação à instabilidade parecem ter se imposto de maneira duradoura. Por estranho que possa parecer, esse estado de ânimo é o combustível primeiro do novo governo liderado por Lula, que vive antes de tudo de um rebaixamento geral das expectativas.

O segundo combustível do novo governo pôde começar a ser utilizado com a imobilização de Dilma Rousseff. Determinações explícitas da presidente simplesmente não são cumpridas, como se viu em casos como o dos cargos de segundo escalão no ministério dos Portos, por exemplo, em que a Casa Civil ignorou comandos diretos vindos de Dilma. Essa restrição de movimentos da presidente foi o fator primordial que permitiu a retomada da velha tática usada desde o governo FHC de jogar o PMDB do Senado contra o PMDB da Câmara e vice-versa. Isso obriga a multiplicidade de grupos do bazar de interesses do PMDB a se unificar em apenas duas frentes, de maneira a tornar mais efetivos os acordos. Antes dessa reorganização, todo ajuntamento de três ou quatro parlamentares do PMDB e assemelhados se apresentava como tendo justo título para negociar quinhões do governo.

O movimento decisivo de Lula para isso foi trazer o vice-presidente de volta para o governo. Não apenas foram mantidos os ministros próximos a Michel Temer na reforma ministerial como o vice-presidente foi transformado no autêntico interlocutor do PMDB no grupo da Câmara dos Deputados, confirmando de fato o isolamento de direito a que já está submetido o presidente da casa, Eduardo Cunha. Empoderou Temer ao mesmo tempo em que inviabilizou sua posição de ponto de convergência do PMDB. Ao transformá-lo em representante de uma das duas frentes do PMDB, colocou em xeque sua posição de presidente do partido.

Pode parecer estranho, mas o primeiro grande teste da retomada dessa velha tática de dividir de maneira ordenada o PMDB se deu com a filiação ao partido de uma ex-senadora do PT. Em articulação do PMDB do Senado, a Executiva Nacional do partido impôs a Michel Temer a filiação de Marta Suplicy. A articulação foi feita em nome da necessidade de manter maioria sólida na casa. Mas foi principalmente a primeira manifestação visível de que a reorganização está se produzindo. A movimentação atropelou nada menos do que um acordo de longa data celebrado por Temer em seu próprio feudo, um arranjo que tinha com o atual secretário de Educação do município de São Paulo, Gabriel Chalita.

Esse episódio mostra tanto o renascimento de uma divisão organizada do PMDB que permite ao governo negociar de maneira efetiva como indica que o horizonte político já se deslocou inteiramente para as eleições municipais do próximo ano. Uma importante alteração da lei eleitoral fez com que o prazo final de filiação para concorrer às eleições de 2016 tenha passado a ser de seis meses e não mais de um ano. Não por acaso, também os seis meses de sobrevida que ganhou o atual governo.

(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Fonte: Valor Econômico (26/10/15)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A virtude está à esquerda (Francisco Ferraz)

Nas últimas três décadas consagrou-se um princípio que se tornou um axioma da política brasileira: "A virtude está à esquerda". Tornou-se um axioma porque foi subscrito por lideranças que desejavam lustrar a sua imagem com uma marca da esquerda e por ter sido, silenciosa e progressivamente, subscrito pelos eleitores em geral.
Os corolários do axioma são visíveis por todo lado, desde a recuperação da guerra fria num mundo sem guerra fria, a forma peculiar de entendimento dos direitos humanos e a maneira tolerante de encarar as questões da segurança pública até a aberta relativização da lei e da Constituição. Plasmou-se, então, uma retórica política e ideologicamente comprometida na qual o uso ou não uso da palavra presidente no feminino já indica a posição política de quem fala, o termo privatização é substituído por concessão e a corrupção pelo mais ameno conceito de malfeito.
Por que esse princípio logrou implantar-se como um axioma na nossa cultura política? 1) O fim do regime de 1964, da forma como ocorreu, deslegitimou os partidos de direita e conservadores; 2) a legitimidade do novo regime democrático concentrou-se no espaço da esquerda do espectro político; 3) os demais partidos (centro e centro-esquerda) foram submetidos a uma "demonização em camadas", que os empurrava para a direita.
Todos contra o PDS
Tudo começou com a forma como o regime militar saiu de cena, em 1985. Se Geisel resolveu satisfatoriamente sua saída, o mesmo não ocorreu com Figueiredo, que não conseguiu comandar a transição do regime de 64 para a democracia. Esse foi o momento em que o PDS passou a ser a única referência da direita no espectro político.
Ser contra o PDS equivalia, de 1985 até a foto de Lula no jardim de Maluf em 2012, a tirar uma "folha corrida" anti-1964.
Todos contra o PFL
Pouco tempo durou o período de graça do PFL, escolhido para ser o alvo seguinte. O começo da Nova República não podia ser mais frustrante. Nem Tancredo nem Ulysses, o novo presidente seria Sarney. Como se não fosse o bastante, o PFL, forte no Nordeste e no Legislativo, continuava no governo. PT, PDT, "autênticos do MDB" e partidos de esquerda demonizaram o PFL, que, limitado aos estados do Nordeste, perdeu o salvo-conduto que obtivera na Nova República.
A hora do PMDB
A partir de 1982, o PMDB ocupou o espaço de centro-esquerda e em 1985 conquistou o poder, com Sarney na Presidência. Tinha a seu favor as cassações sofridas, o generoso guarda-chuva ideológico, a figura heróica de Ulysses, o bloco dos "autênticos" e a vitória nas eleições de 1986. Com o fracasso do Plano Cruzado, o desgaste do governo Sarney, a perda de parlamentares pela criação de PCdoB, PSB e PSDB, os desgastes na Constituinte, ficou diminuído em sua expressão política. O inimigo agora seria, então, o PMDB, que compensou sua perda de competitividade nas eleições presidenciais com sua força nas eleições legislativas e estaduais.

PSDB, a bola da vez
Com o impeachment de Collor, tudo levava a crer que a hora de o PT chegar ao poder tinha chegado. O Plano Real, porém, a protelaria por mais oito anos. A vitória de FHC deixava claro que o PSDB seria a próxima "bola da vez" do processo de demonização.
Um axioma da política brasileira que reinou incontestado nas últimas três décadas
O governo FHC, preocupado em resolver os crônicos problemas econômicos do País, não foi capaz de aproveitar o bom momento da economia para "apresentar" o mercado, sob outra luz, ao povo brasileiro. Não o assumiu doutrinariamente como o assumira na prática. O melhor momento para contestar o axioma não foi usado, deixando ao PT a oportunidade para dar um nome à doutrina do PSDB - neoliberalismo -, demonizá-lo e reforçar ainda mais o axioma.
O PT, já nessa época um partido forte, assumiu e liderou a demonização, centrada na figura dos líderes do PSDB (Covas, FHC, Serra, os mesmos que apoiavam candidatos do PT cm segundo turno nas disputas contra Maluf), na condenação do Plano Real e na acusação de neo-liberalismo, privatizações danosas, submissão ao mercado e ao capitalismo internacional.
O PT chega ao poder
Uma vez lá, sem mais rivais à esquerda e tendo o domínio do Estado, o PT deu uma guinada enérgica para o centro e centro-direita, cooptou partidos e lideranças de direita, até o extremo da visita ao jardim de Maluf. A ideologia ficou restrita às relações exteriores, o marketing tomou-se permanente, e o populismo - aquela luva esquerda calçada numa mão direita - subalternizou e descaracterizou o compromisso ideológico em troca da manutenção do poder a qualquer preço. Dificilmente se teria consolidado um axioma que revogou o contrato social de 1988 sem sua adoção oportunista por lideranças de todos os partidos que se submeteram à dinâmica do "tropismo à esquerda", com suas ameaçadoras chantagens e suas tentadoras vantagens.
Como poderia ser diferente, quando valores políticos universais, ainda que histórica e tradicionalmente associados a sistemas políticos liberais, foram sendo expurgados da nossa cultura política sem reação adequada de lideranças políticas e sociais com poder, respeitabilidade e popularidade?
Com teses de esquerda legitimando o sistema político, a direita sujeita às sucessivas demonizações, e o centro sempre ameaçado de ser denunciado como a nova face da direita (vide PSDB), as defesas "orgânicas" de uma democracia representativa perderam grande parte do seu poder de imunização e o axioma "a virtude está à esquerda" reinou incontestado pelos últimos anos.
Na realidade, vivemos a reiteração do movimento pendular que caracteriza o sistema político brasileiro ao longo de sua história. Um pêndulo que oscila entre esquerda e direita, democracia e ditadura, Estado e sociedade, autoritarismo e liberdade, centralização e descentralização, nacionalismo populista e abertura para o mercado, liberdade beirando anarquia e ditadura.
O movimento pendular não deve ser encarado como um determinismo político. Ele ocorre porque sua dinâmica é acompanhada e apoiada pelos brasileiros, no seu movimento em direção aos extremos (esquerda ou direita), durante certo tempo e até certo ponto. A partir deste limite, o movimento pendular reproduz a mesma dinâmica na direção contrária.
Não há mistério nem fantasmas empurrando o pêndulo. A baixa qualificação democrática da nossa cidadania não consegue institucionalizar organizações e comportamentos no espaço do centro político.
Neste espaço, a política, e em especial a democracia, é mais sutil, depende de equilíbrio, transigência, conflito moderado, capacidade de combinar valores antagônicos. Muito mais compreensível, aparentemente simples e emocionalmente gratificante é a política numa única direção, até o momento em que se aproxima demais da radicalização e do extremismo, que aciona os alarmas para inverter o movimento pendular.

Fonte: O Estado de São Paulo (24/10/13)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Construção da versão (Samuel Pessôa)





O presidente do Ipea, Jessé de Souza, em entrevista ao "Valor" na terça feira passada, afirmou: "Se pensarmos a história do Brasil no século 20, temos o uso do Estado e de seus recursos para beneficiar a maioria da população brasileira, especialmente as classes populares e trabalhadoras, antes de tudo com Getúlio Vargas e 60 anos depois com Lula. (...) o golpe [militar] efetuou um corte muito óbvio nesse tipo de preocupação, e o Brasil que passa a ser construído depois do golpe é o Brasil para 20%".

É mito que o gasto social tenha crescido no período Vargas e sido reduzido na ditadura militar. Há crescimento suave e contínuo desde a República Velha até o fim do regime militar, forte crescimento após a redemocratização, um salto em FHC e outro maior com Lula.

Por exemplo, o gasto público com o ensino fundamental entre 1932 e 1964 foi constante, na casa de 0,8% do PIB. De 1964 até 1970, subiu para 1,5% do PIB e atingiu 1,7% em 1984. Com a redemocratização, há um salto no gasto público com o fundamental para 2,5% do PIB em 1986, nível em que permaneceu até 2004.

O mesmo ocorre com a taxa bruta de matrícula. No final do Império, as taxas de matrícula no fundamental eram da ordem de 7%. Cresceram ao longo da República Velha para 27%. De 1933 até 1984, cresceram lentamente, até atingir 104% em 1984 (a taxa bruta pode ser maior que 100% em razão de alunos que cursam o ciclo fora da idade correta).

Para o ensino médio, a melhora substantiva ocorreu logo em seguida ao golpe militar, quando as taxas cresceram de 7% para 32% em 1977. O segundo salto do ensino médio foi de 1994 até 2003, quando cresceu de 40% para 80%.

Nos anos 1950, as taxas brutas de matrícula no fundamental eram da ordem de 55% e o gasto público total com educação, da ordem de 1,5% do PIB. O gasto público por aluno no fundamental era de 10% do PIB per capita; no ensino médio, era de 100% do PIB per capita, e, no superior, de 1.000% do PIB per capita.

A escola pública dos anos 1950 expulsava os filhos dos pobres ainda no fundamental, em razão das elevadíssimas taxas de reprovação, e em seguida gastava com os filhos dos ricos dez vezes mais no médio e cem vezes mais no superior.

Minha colega do Ibre Juliana Cunha construiu série do gasto total com Previdência desde 1920. Não há nenhuma descontinuidade perceptível na série até a redemocratização, quando há forte aceleração. É conhecido que o grande salto no gasto social foi a universalização da saúde com o SUS e a criação da assistência social não contributiva aos idosos, ambos após a redemocratização.

No governo FHC, o gasto social cresceu 0,17 ponto percentual do PIB por ano, e, no período petista, até agora e em razão da bonança econômica, o crescimento foi de 0,29 ponto percentual.

Assim, o que diferencia FHC do PT no governo não é o crescimento do gasto social, mas sim o excesso de intervencionismo estatal no petismo, para estimular o desenvolvimento econômico. É a mesma diferença que há entre a República Velha e o período do nacional-desenvolvimentismo.

Aprendemos nos últimos anos que gasto social e intervencionismo estatal não cabem ambos no Orçamento do Estado brasileiro. Márcio Holland, secretário de Política Econômica do ministro Mantega no governo Dilma 1, reconhece em artigo nesta Folha na quinta-feira passada que a crise atual não tem causas externas nem resulta do ajuste fiscal do ministro Levy. Antes tarde do que nunca.

fonte: Folha de São Paulo (25/10/15)

domingo, 25 de outubro de 2015

Um preço alto demais (Marco Aurélio Nogueira)




Treze anos depois da posse de Lula, o medo está vencendo a esperança. Houve importantes avanços sociais, mas eles não se mostraram sustentáveis. A correlação de forças não se alterou, mudanças estruturais não se realizaram e o conjunto das políticas de Estado mal saiu do lugar. O País continua patinando em termos de saúde, educação e infraestrutura. O prometido “espetáculo de crescimento” não passou de um jargão solto no ar e o governo Dilma está na ponta do precipício.

Como foi possível que tudo desse tão errado? Há diagnósticos parciais, quase sempre envenenados pela luta político-partidária que engessou a sociedade desde que Lula foi eleito presidente. A polarização dos últimos anos afastou o debate público do fundamental.

Na economia, por exemplo, a corrente mais liberal afirma que houve descuido com as contas públicas e excesso de intervenção estatal, que os gastos não levaram em conta a capacidade de arrecadação do Estado. A crise externa desempenhou um papel, mas o problema principal foi interno, pois o governo abandonou os “fundamentos econômicos” e trouxe de volta a inflação e a “irresponsabilidade fiscal”. Optou-se pela continuidade dos gastos públicos sem o devido cuidado com as receitas e a estabilidade. A única saída é um aperto fiscal duro.

Os economistas mais alinhados com o governo e o PT, por sua vez, não concordam com esse diagnóstico. Eles se subdividem em duas correntes: os “novos desenvolvimentistas”, mais tradicionais, e os “social-desenvolvimentistas”, que defendem a combinação de políticas sociais ativas com investimentos em infraestrutura energética e logística. Ainda que seja favorável a medidas anticíclicas, esta segunda corrente não as vê como algo permanente. Tem pontos de contato com a “nova matriz econômica”, mas não a endossa como coisa sua. Não é tão “estatista” e “intervencionista” quanto ela, por exemplo. Nem aplaude a opção pelo consumo como impulsionador do crescimento. Para ela, a orientação geral beneficiou os setores sociais mais fragilizados, mas os erros de gestão e algumas escolhas equivocadas foram tão graves que tornaram inevitável um ajuste.

Os “social-desenvolvimentistas”, porém, opõem-se ao que chamam de “austericídio”, defendendo um ajuste calibrado para recompor a capacidade de financiamento do Estado.

No fundo desse debate, está a questão do Estado, verdadeiro divisor de águas no mundo contemporâneo. Mas do mesmo modo que os liberais entendem o valor da regulação e sabem que é insensato discutir se o Estado deve ou não intervir na economia, os “social-desenvolvimentistas” entendem que as contas públicas precisam de equilíbrio e hoje o ajuste é inevitável. Uns e outros aceitam que os setores público e privado precisam trabalhar juntos. Sabem, também, que cortar gastos públicos tem efeitos perversos no emprego e na renda. E que um aperto duro demais pode fazer a recessão se estender no tempo e ser mais profunda.

Ambas as correntes são críticas do governo atual. Deveriam dialogar mais entre si. A contraposição dogmática das visões, porém, bloqueia a formação de uma agenda econômica. O debate gira em torno de dois polos incomunicáveis, que se comportam com autossuficiência, como se não existissem mais alternativas.

A saída mais sensata e inteligente seria o entendimento entre governo, trabalhadores e empresários, em nome de um ajuste que não dizime a sociedade. Mas ninguém patrocina isso.

O calcanhar de Aquiles dos governos petistas tem sido a política de coalizões, ou seja, o modo como o partido buscou compensar a falta de maioria parlamentar e de condições de governabilidade.

Recusando-se a investir numa frente social-democrata que reunisse PT e PSDB, a opção petista foi buscar o “baixo clero” do Congresso Nacional, ou seja, os partidos menores. Uma opção de risco, porque o preço cobrado pelo apoio foi alto e teve de ser pago em moeda, não só com cargos e favores.

O episódio do “mensalão” escancarou o procedimento, que espalhou seus venenos pelo sistema. O partido recompôs sua base, aliou-se ao PMDB e passou a fazer vista grossa para o crescimento da corrupção, agora praticada mediante empreiteiras e empresas públicas, como a Petrobrás. Ainda que não tenha impedido que Lula e Dilma se reelegessem em 2006, 2010 e 2014, tal política amarrou e enfraqueceu o PT, forçando seus governos a uma entrega ao PMDB, que, aos poucos, foi engolindo o partido e a agenda governamental.

A política de coalizões se articulou com uma política de “aliança de classes” por meio do Estado. Lula atraiu o apoio do grande empresariado e dos setores organizados da classe trabalhadora em nome de uma política expansionista que anunciava ganhos para todos, beneficiando os mais pobres com políticas assistencialistas e de transferência de renda. O Estado converteu-se no grande articulador político do País. Para manter os inúmeros aliados, Lula, Dilma e o PT concederam todos os anéis, viraram as costas para a esquerda democrática e passaram a tratar os adversários como inimigos.

Cortaram o País em duas metades. Ajudaram a alimentar o “ódio” de que tanto reclamam hoje.
Com o fracasso da política econômica, a difícil reeleição em 2014 e a falta de molejo político da presidente, o governo Dilma passou a perder apoios em cascata. Deixou de coordenar até mesmo as próprias bases. Nada do que tenta fazer funciona.

Sem forças para repor a política de alianças e coalizões, o governo ficou sem capacidade de agendamento e ação. Abriu-se, assim, o cenário surreal em que nos encontramos, no qual um governo recém-empossado parece prematuramente envelhecido e caminha para o ostracismo, ameaçando arrastar a sociedade consigo.

A gritaria é geral, mas pouco se faz para que se reponham as bases da convivência civilizada e produtiva entre os que pensam diferentemente.

(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais (neai) da Unesp

Fonte: O Estado de São Paulo (24/10/15)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A escolha de Sofia (Fernando Gabeira)





Quem cai primeiro: Dilma ou Eduardo Cunha? Essa, para mim, é uma escolha de Sofia, a personagem que teve de decidir qual dos dois filhos seria sacrificado. Sofia queria que ambos sobrevivessem, daí a angústia de sua escolha. No caso brasileiro, gostaria que os dois caíssem e, se possível, levassem também o Renan Calheiros.

Para o ex-ministro Joaquim Barbosa, o impeachment de Dilma é uma bomba atômica. Mesmo discordando de sua conclusão, acho que a imagem é útil e nos remete ao período da Guerra Fria, no qual a ameaça de uma hecatombe nuclear se tornou um fator de equilíbrio.

Eduardo Cunha tem contas na Suíça e foi detonado por quatro delatores. Hoje, conta com a simpatia da oposição. O líder do PSDB fez um discurso nauseante de apoio a Cunha na CPI. Fiquei tão chocado que escrevi mensagem de protesto para seu gabinete.

Mas Cunha floresceu no período do PT. Era líder de seu partido, o PMDB, comandava votações e nas questões econômicas fechava com o governo. O processo de degradação que o PT favoreceu acabou levando a uma consequência lógica na Câmara: o mais hábil e experimentado bandido acabaria ocupando a presidência.

A imagem de Barbosa serve, no entanto, para descrever o quadro. O impeachment tem valor para Cunha apenas como ameaça. Ele sabe que o impeachment de Dilma, imediatamente, levaria à sua própria queda. Dilma e Cunha necessitam um do outro e talvez evitem a guerra até que um deles caia por si próprio, derrubado pelos cupins que o consomem. Só existe um fator capaz de trazer alguma esperança: a participação popular. Sem ela, o Congresso fica perdido, os dramas vão se arrastar e reduziremos as chances de prosperidade das novas gerações.

Lula, por exemplo, escolheu um caminho de defesa: os fins justificam os meios. As pedaladas fiscais aconteceram para financiar o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. É um argumento tenebroso porque engana os mais ingênuos e continua dando à quebra das regras do jogo um certo charme de Robin Hood. Acontece que o governo não pedalou apenas com os gastos sociais. Fez inúmeras despesas, em torno de R$ 26 bilhões, sem consulta ao Congresso. Em qualquer democracia do mundo, isso é crime bem mais grave do que comer um bombom na mesa do delegado da PF.

Não importam Teoris e Rosas e outros juristas vestidos de preto, com uma linguagem empolada. Nessa semana fizeram o que condenamos nos juízes de futebol: apitaram perigo de gol. O governo acentuou seus erros num ano eleitoral precisamente para dizer agora: esqueçam o passado, não sou responsável por ele. E, com esse argumento, pedalou até em 2015.

Enquanto potencialmente puder acenar com o impeachment de Dilma, Cunha ficará vivo. E enquanto tiver Cunha como seu grande oponente, o governo vai propor a ele um acordo de sobrevivência. É uma dádiva para o PT que ele tenha encarnado a oposição.

Dizer que nada vai se resolver enquanto for decidido por cima não é, necessariamente, pessimismo. Milhões de pessoas rejeitam Dilma e Cunha. Mas não podem apenas esperar que um destrua o outro. Ou supor que as instituições, por si próprias, encontrem a saída. O Brasil está vivendo, de novo, aquele dilema do personagem de Kafka que esperou anos diante da porta do castelo, para descobrir que ela sempre esteve aberta.

Nossa oposição é medíocre, o Supremo aparelhado pelo PT, que se gaba de ter pelo menos cinco ministros na mão. Os principais personagens, Dilma e Cunha se equilibram pelo terror.

Milhões de pessoas querem mudança. Mas esperam que aconteça num universo petrificado de Brasília. As coisas se parecem um pouco como aquele poema de John Donne sobre sinos dobrando. Não pergunte por quem dobram, pois dobram por você. De uma certa maneira, não será o Cunha, Congresso ou Supremo que resolverão essa parada. Ela depende de cada um.

Enquanto os atores institucionais e seus cronistas nos reduzirem apenas a expectadores, esse filme de quinta categoria não acaba nunca. Não quero dizer com isso que precisamos fazer manifestações cada vez maiores, para os jornalistas medirem, fita métrica na mão, o nosso avanço.

Com mais de meio século de experiência nas ruas, cheguei à conclusão de que nelas, como em outros lugares, não é só a quantidade que conta. Há um grande espaço para a qualidade e invenção. Mesmo sem nenhuma garantia de que esse caminho dê certo, ele tem, pelo menos, a vantagem de estar nas nossas mãos.

Da anistia às diretas, passando pela queda de Collor, as conquistas populares foram notáveis. Mas assim como na profissão de jornalista, o passado é muito bom mas não serve de consolo para os desafios do momento. O foco é sempre a próxima tarefa.

E o Brasil parece ter empacado na próxima tarefa. Ela não se resume na troca no poder, mas também na busca de um crescimento sustentável em todos os sentidos. Não podemos mais voar como galinha nem seguir, desvairadamente, destruindo recursos naturais.

Alguns amigos sonham com a garotada que vem aí. Mas os ombros dos jovens não precisam suportar o mundo. O futuro interessa também aos que não estarão vivos para presenciá-lo

Fonte: O Globo (18/10/15)

O novo pacto lulista (Marcos Nobre)

19 de outubro de 2015




Depois de nove meses de crise aguda, o quadro agora se tornou apenas crônico. Instalou-se um governo-tampão dentro do governo Dilma. Seu primeiro horizonte são as águas de março de 2016. A atual recessão política crônica deve continuar a acompanhar a sua irmã gêmea, a recessão econômica prolongada, e o ajuste político será pago em prestações, da mesma forma como o ajuste fiscal e econômico. O que pode indicar que o atual arranjo talvez não seja exceção, mas regra de razoável duração. Pode ser uma espécie de experimento piloto do que virá: algo como dois ou três sucessivos governos de seis meses, cada um com seu horizonte, agenda e desafios.

O primeiro e mais urgente desafio da agenda deste primeiro governo-tampão é colocar alguma ordem nas contas públicas. No grau que for possível, da maneira como der. Porque uma característica marcante do novo pacto lulista em prestações é um radical rebaixamento das expectativas de ajuste. Por ter sentido no rosto o bafo do colapso econômico, o mercado se rendeu a qualquer arranjo de estabilização, desde que dure mais do que uma semana. Praticamente abriu mão, mesmo que de maneira provisória, de exigências que considera habitualmente inegociáveis, como a de um ajuste que indique sustentabilidade de médio prazo, por exemplo.

O desespero chegou a tal ponto que uma estabilização de seis meses se tornou o equivalente de equilíbrio sólido. Não por acaso, até defesas apaixonadas da CPMF se multiplicaram, vindas de onde menos se poderia esperar. Não que adiante muito a esta altura, já que a CPMF parece mesmo enterrada. Mas é um sintoma importante da Síndrome de Estocolmo do mercado, que passou a defender com veemência o mesmo sistema político que o sequestrou nos últimos meses.

A rendição do mercado mostra que as expectativas se reduziram agora a estancar a sangria. Se o governo conseguir impedir que o rombo de 2015 pare de aumentar e se conseguir convencer de que o buraco de 2016 não vai ser assim tão grande, já terá conseguido o apoio da elite econômica de que precisa para atravessar esse primeiro mandato-tampão. A abdicação de Dilma em favor de Lula significou a volta de um fiador crível, do ponto de vista do mercado. No velho estilo dos seus dois mandatos, Lula promoveu a celebração de um pacto que promete manter o sistema político e a base da sociedade sob relativo controle sem desesperar a elite econômica. Só que, desta vez, o mercado vai ter de aceitar as condições escorchantes impostas pela bancarrota política.

Porque Lula tem também de combinar com o povo que sofrerá os horrores da recessão prolongada e com as suas próprias bases mais tradicionais de apoio. Esse é o segundo desafio mais premente. Joaquim Levy não é ele mesmo o problema. É apenas um símbolo do governo anterior de Dilma, o da crise aguda. Pode ter de ser afastado para marcar um novo começo. Nada pessoal.

Lula tem de entregar o prometido em termos de relativa calmaria social e política. O sistema político continua se esfaqueando pelos cargos de segundo escalão. Não se trata das navalhadas de sempre, porque agora a máquina pública foi declarada terra devoluta, sem qualquer cordão sanitário de proteção nem mesmo para áreas de mananciais. Mas, dentre mortos e feridos nessas disputas de grilagem, cercas e porteiras vão acabar sendo erguidas em algum momento próximo.

Do lado do sofrimento social, a orientação será de reforçar na medida do possível mecanismos de proteção ao emprego e à renda, de reduzir juros e de aliviar o compulsório dos bancos, além de retomar um patamar mínimo para o investimento público, simplesmente dizimado em 2015. Também sob esse aspecto, o mercado se verá obrigado a engolir adicionalmente uma taxa de inflação que já subiu no telhado da meta.

Mesmo sendo implementadas com sucesso, essas medidas não bastarão para colocar a insatisfação social sob relativo controle. Em junho, Lula teria dito que ele e Dilma estavam no volume morto. A queda do nível do reservatório teria feito emergir o verdadeiro fiador da presidente, o próprio Lula, a quem Dilma deveria urgentemente entregar governo se quisesse salvá-lo. Desde então, repete até hoje de maneira insistente que o governo precisa produzir um discurso capaz de dar sentido ao sofrimento presente e de descortinar alguma perspectiva de futuro.

Essa é a principal dificuldade política do momento atual. E não apenas para o presente governo-tampão, que pode jogar a população nos braços das forças anti-Dilma a partir de fevereiro do ano que vem se não conseguir dar alguma explicação e alguma perspectiva de melhora para a desgraça de hoje. Também a turma pró-impeachment tem enorme dificuldade para produzir um discurso crível. Ganha um impeachment de caramelo suíço quem conseguir explicar para a maior parte do eleitorado o que é uma "pedalada fiscal" e convencê-la de que isso seria equivalente a usar recursos ilícitos para pagar contas privadas da casa de um presidente no exercício do mandato, como foi o caso de Collor, em 1992.

Levar o atual governo-tampão até março do próximo ano significa ainda sobreviver à fase de maior turbulência e desorganização da Lava-Jato. Será o momento em que a operação já deverá ter praticamente completado o seu álbum de figurinhas de quem será alijado do jogo. É só a partir daí que o sistema político poderá efetivamente estabelecer acordos que não fiquem invalidados pela próxima leva de denúncias de prisões.

Mesmo com a continuidade da recessão política e econômica, chegar até março permitiria estabelecer um novo governo-tampão para os seis meses seguintes, tendo como horizonte as eleições municipais de 2016. Da mesma forma, passadas as eleições municipais, o horizonte se deslocaria imediatamente para 2018, levando já em conta o novo quadro partidário que resultar das prefeituras conquistadas. Seria o momento em que o prazo do mandato-tampão seguinte poderia então passar de seis meses para um ano e meio. Pode até funcionar. O que não se sabe é o que vai sobrar do país depois disso tudo

(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap

Fonte: Valor Econômico (19/10/15)

Vila Velha: Coisas da política ou o desmonte da Educação

Isso foi escrito em 2012 e postado no Facebook. Agora, o Face nos surpreende com essas "memórias". Será que valerá para 2016? 
Adaptando aquele comercial do finado Bamerindus: o tempo passa, o tempo voa, mas tem coisas em VV que parecem que não passam.

Coisas da política:
Neucimar Fraga praticou uma política de terra arrasada na educação de Vila Velha.
Foram quatro secretários de educação, o que demonstra a descontinuidade das políticas e o descompromisso com a educação. Começou com um "secretário-bomba" (por onde passa não deixa pedra sobre pedra), conforme o comentário do vereador Tenório Merlo em sessão da Câmara, e chega ao final com uma secretária que dispensa comentários, tal o nível de ojeriza da categoria em relação a personagem.
Acabou com as eleições diretas para diretor escolar, sob alegações pueris e quase insanas, e transformou o cargo em moeda de troca em um leilão espúrio de cargos em nome de uma visão degradada de coalização política e de uma pretensa governabilidade. Direção escolar ficou subordinada a lógica do QVI (que vereador indica), ou, no caso dos que permaneceram que vereador oferece sustentação.
Ofendeu e menosprezou os educadores proclamando, em alto e bom som, em eventos públicos que "não precisava do voto de professor". No recente debate da CBN questionou o legítimo direito de manifestação dos trabalhadores da educação em frente ao Marista tachando-os praticamente de vagabundos, que deveriam estar trabalhando em vez de estarem se manifestando naquele local e horário.
Promoveu um festival de "produtividades" que agora são cobradas com a obrigação de participação em "bandeiraços" e outros eventos de campanha (hj, recebi um email de uma professora sob o clima em sua escola em relação a essas coisas).
Agora, o vida cruel!, suprema ironia.
Desdenhou, desdenhou e desdenhou; espezinhou, espezinhou e espezinhou; e agora descobre que o voto do trabalhador em educação faz diferença. E, mais do que isso, que a amplissima maioria do magistério tem um só e primordial objetivo: derrotar Neucimar nas urnas.
E aí, suprema ironia, quem dizia que "não precisava de voto de professor", corre atrás do prejuízo chamando os professores para uma reunião nesse sábado para supostamente apresentar as suas "propostas" da educação. Tenho certeza que será um festival de presença de comissionados e agraciados com as famosas produtividades (ou como é que se chame isso). Eu tenho certeza que os professores de Vila Velha tem dignidade e orgulho. E quem tem dignidade não irá colocar os pés na Novo Milénio nesse sábado, mas saberá dar a resposta com o seu voto no próximo dia 28.

sábado, 10 de outubro de 2015

Se Congresso rejeitar contas, caminho do impeachment está aberto, diz ex-ministro do STF (Sydney Sanches/entrevista)




SÃO PAULO - O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Sydney Sanches afirma que o caminho para um processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff está aberto, embora não esteja instaurado. Na avaliação do ex-ministro, que presidiu o Congresso durante o processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, se o Legislativo rejeitar as contas da presidente Dilma Rousseff em 2014, como recomendou nesta semana o Tribunal de Contas da União, está caracterizado crime de responsabilidade.

Em entrevista ao Broadcast Político, serviço em tempo real da Agência Estado, Sanches afirma que o processo de impeachment é político, não jurídico, e, portanto, imprevisível, já que os políticos, diferentemente dos juízes, não precisam embasar suas decisões. E avalia que uma nova interrupção de mandato não põe em risco a democracia no País. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Broadcast Político - Como o senhor vê a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de abrir pela primeira vez uma Ação de Impugnação de Mandato Eleitoral contra um presidente?

Sydney Sanches - O TSE havia aprovado as contas, mas depois surgiram fatos novos evidenciando que teria havido irregularidades durante a campanha da presidente Dilma Rousseff e o processo foi reaberto. Se ficar comprovado que as contas realmente não deveriam ter sido admitidas, há consequências como a possibilidade de anular a eleição da presidente e também do vice Michel Temer, porque a chapa é uma só. A menos que - e falo excepcionalmente e em tese - fique evidenciado que o vice-presidente não teve nenhuma participação na declaração de bens e valores da campanha e que não teve nenhuma culpa nisso. E isso quem tem que provar é quem acusa, no caso o Ministério Público.

BP - Como o senhor vê a decisão do Tribunal de Contas da União?

Sanches - Trata-se de um parecer em que o TCU opina que os parlamentares rejeitem as contas. Já houve um precedente em 1937 (governo Getúlio Vargas) em que o TCU opinou pela rejeição e o Congresso aprovou as contas. A decisão vai depender da maioria que a presidente tenha no Congresso, em sessão conjunta.

BP - Como o senhor vê a chance de impeachment diante dessas decisões?

Sanches - Se o Congresso rejeitar as contas, está caracterizado um crime de responsabilidade, que é o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e da própria Constituição. Isso pode ensejar uma denúncia na Câmara dos Deputados, que pode autorizar ou não a instauração do processo de impeachment. Se a Câmara autorizar o processo, o Senado é que processa e julga. Foi o que o ocorreu no caso Collor, que eu presidi. Eu era presidente do Supremo e, pela Constituição, quem assume o comando do processo é o presidente da Corte - na ideia de que o magistrado vai se manter equidistante das partes. Nunca fui filiado a partido político, nem antes de ir para o Supremo nem depois de me aposentar, há 12 anos.

BP - Há um fato concreto para pedir o afastamento de Dilma da Presidência?

Sanches - Ainda não se vê uma imputação de ato concreto da presidente, a não ser que o parecer do TCU seja acolhido pelo Congresso. Se não for acolhido, não se pode imputar o crime de responsabilidade. Se vai ser admitido pela Câmara ou não, não posso prever. Se vai ser julgado procedente ou não pelo Senado, não posso prever. Uma coisa era a situação do Collor naquela ocasião. Ele não tinha apoio nenhum no Congresso. Achava que tinha sido eleito e não devia satisfação para o Senado e a Câmara, pelo menos era o que se ouvia nos meios.

BP - Qual foi o impacto da interrupção do mandato de Collor?

Sanches - Não houve graves consequências. A transição é bastante conhecida e foi tido como um momento importante para o País, afinal de contas estávamos saindo de um regime autoritário. O impeachment pode acontecer com qualquer um. Só espero que não aconteça sempre, porque o País precisa de paz. Precisa de uma economia estável. No tempo do Collor o País ficou parado quatro meses. Foram dois meses para que a Câmara autorizasse a instalação do processo e dois meses para a conclusão no Senado. Foi concluído nos últimos dias de dezembro de 1992.

BP - Qual o prazo para um processo de impeachment?

Sanches - Não é previsível. Vai depender se na Câmara houver manobras protelatórias. Naquela época, havia todo um clima formado contra Collor. Tanto que, no julgamento propriamente, houve 3 ou 4 votos vencidos. Foram mais de 70 votos pela interdição do exercício de função pública, porque ao mandato ele havia renunciado.

BP - Esse clima existe agora?

Sanches - Acho que no País não há. O que está faltando, e, veja bem, não estou fazendo campanha, é pressão popular. O Senado e a Câmara são órgãos muito sensíveis à pressão popular. Os partidos estão muito divididos, tanto o PT como o PMDB e os outros aliados... Fico pensando em quem está aspirando ao cargo de presidente da República. Se cessar agora o mandato da presidente Dilma e essa pessoa assumir, que governo vai fazer na situação em que o País está? No fundo, todos têm medo disso. Vão passar para a história como culpados também do problema.

BP - O que fundamentou o pedido de impeachment de Collor?

Sanches - No caso Collor era um problema de ética. Ele recebia dinheiro sem procurar saber a origem e alegava que eram restos de financiamento de campanha. Era uma coisa que precisava ser apurada, mas não competia aos senadores verificar. O que competia aos senadores era decidir se havia faltado decoro no exercício do mandato, que não é um conceito jurídico. Tudo isso mostra que o caminho para um impeachment está aberto, não está instaurado ainda, mas está aberto. Acho que agora já não há empecilho.

BP - O hoje senador Collor afirmou recentemente que, uma vez aberto, o processo de impeachment ganha vida própria e não pode ser parado. O senhor concorda?

Sanches - O processo é imprevisível porque o foro é político, não jurídico. A composição de um foro político varia muito de eleição para eleição. E mais. Pode alguém achar o seguinte: "Não estou vendo crime cometido pela presidente, mas acho que não convém mais que ela fique". É um julgamento político e nisso o Supremo não pode mexer. E é bom lembrar que a condenação tem que ser por dois terços dos senadores. Pode até, por um voto, não ocorrer impeachment.

BP - Apesar do impeachment, Collor foi inocentado anos depois no Supremo. Como interpretar a absolvição?

Sanches - No Supremo a imputação contra Collor foi de crime de corrupção passiva, que implica não só recebimento de vantagem, mas promessa ou realização de algum ato de ofício. Pela maioria, cinco ministros, dos quais fiz parte, não havia provas contra Collor desse crime. Tanto o Senado quanto o Supremo acertaram no caso do Collor, embora pareçam decisões contraditórias.

BP - Um novo impeachment não abalaria a democracia brasileira?

Sanches - É mais um teste. Abalo das relações institucionais já está havendo, mas não está havendo abalo das instituições propriamente ditas. Mas o que pode acontecer é imprevisível porque o foro é político: é quem é contra o governo e quem é a favor do governo. Quem quer derrubar a presidente e quem não quer derrubar a presidente, ainda que sem bom motivo.

BP - A falta de bons motivos configuraria um golpe, como tem dito a presidente Dilma?

Sanches - Alguém poderia votar pelo impeachment ainda que não estivesse convencido de que Dilma praticou tal ou qual ato. Não é preciso fundamentar o voto? Não. A diferença é que o político não precisa fundamentar o voto como um juiz. Só precisa dizer sim ou não.

Fonte: Letícia Sorg (O Estado de São Paulo)

Por que as instituições se fortaleceram no Brasil? (Marcus André Melo)




Governantes têm aversão a prestar contas, como nos lembra Soll em seu magistral "The reckoning: financial accountability and the rise and fall of nations". Na Inglaterra do século XVII, Charles I mandou cortar as orelhas de William Prynne, que chefiava uma comissão de contas criada pelo Parlamento para investigar a gestão das receitas do Estado. Desconfio que nossos governantes tenham tido ímpeto semelhantes em relação a magistrados como Joaquim Barbosa e Sérgio Moro. Mas o corte de orelhas obviamente não se consumou. Nas democracias contemporâneas, a violência física não consta do repertório de ações dos governantes, e, nas mais consolidadas, a interferência nas instituições de controle é mínima. No Brasil a recém-adquirida robustez das instituições de controle latu senso (Judiciário, Ministério Público, TCU) tem chamado a atenção. O que causou seu fortalecimento e de onde vem sua independência?

Há dois argumentos rivais para dar conta desse fortalecimento. O primeiro sustenta que o fator determinante é a retidão de propósitos dos governantes. Assim, as instituições deveriam seu fortalecimento ao reformador que "não rouba nem deixa roubar". Embora seja normativamente atraente - afinal tem forte apelo sobre nossa consciência moral - as pesquisas mais instigantes na ciência política tem mostrado que as instituições fortes de controle não são produto da ação de governantes, partidos ou movimentos. A recíproca, no entanto, é verdadeira: governantes corruptos tem sido em geral bem sucedidos no objetivo de subjugar as instituições de controle. Muitos partidos, movimentos e indivíduos chegaram ao poder em cruzadas anticorrupção e moralizantes. Caso tornem-se dominantes, inicia-se a degeneração institucional. Há, assim, algo mais que voluntarismo em jogo.

O argumento rival defende que não são cruzadas morais que fortalecem o controle da corrupção e previnem o abuso, mas o desenho institucional voltado para maximizar os incentivos para o controle. Denominemos esse argumento de argumento neomadisoniano em homenagem ao pai fundador da república americana, James Madison. Em "O Federalista nº 51" afirmou "que se o homens fossem anjos, os controles não seriam necessários". O ponto de partida do madisonianismo é que o poder corrompe. A defesa contra o abuso de poder e a corrupção não é a conversão - a uma ideologia ou princípio moral transcendente - mas um desenho institucional que leve a contraposição de interesses.

Dessa forma, os atores institucionais teriam incentivos para se controlar mutuamente. A transparência seria produzida pela competição política e o melhor remédio contra a corrupção seria então uma oposição forte. Só ela teria interesses em desvelar desmandos. A autocontenção (moral) é insuficiente porque o "moral hazard" (risco moral) é alto: governo algum tem interesse em expor suas próprias mazelas, pelo contrário. Nas novas democracias - o caso brasileiro é exemplar - o risco permanente é o conluio entre parceiros em uma coalizão dominante ou o uso da maioria para inibir as instituições de controle.

O exemplo das instituições de controle dos países da comunidade britânica das nações é ilustrativo. A presidência dos "Public Accounts Committee" é delegada ao líder da oposição que nomeia o titular do National Audit Office - que é o equivalente ao TCU no Brasil. A intuição por trás dessa regra é madisoniana: a maioria parlamentar que dá sustentação ao governo não está interessada em se autocontrolar. Só a oposição alimenta esse interesse. Isto explica porque, por exemplo, as CPIs no Brasil nunca tiveram efetividade, porque controladas pelo governo e sua maioria. Os episódios raros em que surtiram efeito foram apenas porque puderam dar vazão a conflitos no seio de famílias ou "fogo amigo" entre desafetos. Só tem efetividade no país as instituições que fogem a essa lógica por serem antimajoritárias, como o Judiciário e o Ministério Público (urge que o TCU seja reformatado e se converta em instituição judicial!). Mas poderíamos acrescentar também a mídia independente do governo. Nas novas democracias, estas instituições são a última linha de defesa da "res publica".

Mas o que impede o governo de "cortar as asas" das instituições de controle"? A interferência aberta nessas instituições tem custos que em alguns contextos democráticos podem ser proibitivos: os eleitores punem nas urnas governos que ataquem tais instituições. No limite, a interferência ocorre de forma indireta quando a falta de alternância política se traduz na composição governista dos colegiados dessas instituições. Mas o ataque direto tem um custo reputacional: ele é tanto maior quanto mais independente for a mídia e mais forte a oposição.

Os limites à interferência nas instituições são dados pela opinião pública, sobretudo nas democracias maduras. Há um equilíbrio quando os custos de tolerar a oposição e os controles tornam-se maiores que os de reprimi-los. Esse argumento parece ser bem compreendido por protagonistas do "jogo do controle" no Brasil. O juiz federal Sérgio Moro, em texto de 2004 sobre a Operação Mani Pulite, que levou centenas de políticos e empresários para a cadeia, concluiu que "a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia... Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados". Ao deflagrar a Operação Lava-Jato certamente anteviu o massivo apoio que receberia da opinião pública.

No Brasil, as instituições fortaleceram-se e isso foi produto da competição política. O contrafactual é dado por países onde forças políticas tornaram-se hegemônicas e o controle democrático sobre os governos definhou. Estudos comparativos rigorosos na América Latina e na Europa do Leste corroboram amplamente este argumento. O neomadisonianismo não é vacina definitiva contra o corte de orelhas, mas é o começo. Sim, o Brasil vai mal, mas as instituições antimajoritárias funcionam cada vez melhor!


(*) Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT

Fonte: Valor Econômico (09/10/15)

As fontes da ira (Fernando Gabeira)





Por toda parte, queixas e lamúrias: arrasaram o Brasil, estamos quebrados, tudo fechando, alugando. É uma fase pela qual temos de passar. Quanta energia, troca de insultos, amizades desfeitas. Às vezes penso que a melhor forma de abordar o novo momento é apenas deixar que os fatos se imponham.
Muitas vezes afirmei que o dinheiro roubado da Petrobrás foi para os cofres do PT e usado na campanha de Dilma Rousseff. Caríssima campanha, R$ 50 mil por mês só para o blogueiro torná-la um pouco engraçada.

O primeiro fato importante foi a delação premiada do empresário Ricardo Pessoa. Ele afirmou que deu quase R$ 10 milhões à campanha para não perder seus negócios na Petrobrás. Logo depois surgiram suas anotações, estabelecendo um vínculo entre o dinheiro que destinou ao PT e os pagamentos que recebia da Petrobrás. Verdade que a empresa estava nomeada apenas como PB. Claro que ainda podem dizer que esse PB quer dizer Paraíba, ou pequena burguesia. É um jogo cansativo.

Nem é tão necessário que a investigação defina novos vínculos entre o escândalo, o PT e a campanha de Dilma. Basta assumir as consequências do que já se descobriu. Se o tema vai ser neutralizado no Supremo, se o governo compra um punhado suficiente de deputados, tudo isso não altera minha convicção de que o escândalo desnudou um projeto político criminoso.

Ainda na semana passada o Estadão publicou reportagem sobre a Medida Provisória (MP) 471. Ao que tudo indica, foi comprada. Ela garante a isenção de R$ 1,3 bilhão em impostos. E rendeu R$ 36 milhões em propina.

Não estranho que tenha sido aprovada pela maioria. Eram estímulos para três regiões do País e as respectivas bancadas estavam satisfeitas com isso.

Também não havia, da parte das outras regiões, questionamentos sobre estímulos localizados. O único nó nesse campo, se me lembro bem, era a divisão dos royalties do petróleo.

Muito possivelmente, a emenda foi vendida com o preço da aprovação parlamentar embutido. De qualquer forma, a maioria no Congresso foi enganada e, com ela, todos os seus eleitores.

A empresa que negociou a medida provisória destinou R$ 2,4 milhões ao filho de Lula. Segundo a notícia, ele diz que o dinheiro foi pago por assessoria de marketing esportivo. O pai assina a MP, o filho recebe R$ 2,4 milhões da empresa de lobby. Se você não estabelece uma conexão entre as duas coisas, vão chamá-lo de ingênuo; se estabelece, é acusado de lançar suspeita sobre a reputação alheia.

A maioria das pessoas consegue processar fatos e documentos já divulgados e talvez nem se escandalize mais com a venda de uma MP: é o modo de governar de um projeto. É todo um sistema de dominação. É preciso ser um Jack estripador ou um ministro do Supremo para dizer: vamos por partes.

As conexões estão feitas na cabeça da maioria e nada de novo acontece. Neste momento pós-moderno, em que as narrativas contam, mas não as evidências, o conceito de batom na cueca também se tornou mais elástico. Não é bem uma marca de batom, mas algo vermelho que esbarrou pelo caminho, uma tinta, um morango maduro.

Enquanto se vive este faz de conta nacional, a situação vai se agravar. É muito grande o número de brasileiros que se sentem governados por uma quadrilha. Apesar de não estarem organizados, ou talvez por isso, alguns vão se desesperar, ultrapassando os limites democráticos. O tom do protesto individual está subindo. Dirigentes do PT são vaiados, figuras identificadas até a medula com o partido, como o ministro Lewandowski, também não escapam mais da rejeição popular.

O PT e os intelectuais que o apoiam falam de ódio. De fato, o amor é lindo, mas como ser simpático a um partido que arrasa o País, devasta a Petrobrás e afirma que está sendo vítima de uma injustiça?

Não são apenas alguns intelectuais do PT que se recusam a ver a realidade. No passado, as denúncias de violência stalinista eram guardadas numa gaveta escura do cérebro. Era impossível aceitar que o modelo dos sonhos se apoiava numa carnificina. Agora também parece impossível admitir que o líder que os conduz tem como principal projeto tornar-se milionário. É como se admitissem ser humildes fiéis de uma religião cujo pastor acumula, secretamente, uma fortuna, enquanto teoriza sobre a futilidade dos bens materiais.

A sucessão de escândalos, demonstrando a delinquência do governo, não basta para convencer os mais letrados. E certamente não bastará para convencer os que ignoram a História e são pagos para torpedear o adversário nas redes.

Mas os fatos ainda têm grande força. Lutar contra eles, em certas circunstâncias, não é só um problema de estupidez, mas também de estreita margem de manobra.

Se o governo não pode aceitar que suas contas sejam recusadas por unanimidade no TCU, não resta outro caminho senão tentar melar o julgamento. Sabem que todos estão vendo sua jogada e talvez experimentem uma ligeira sensação de ridículo. Mas o que fazer?

A única saída decente seria renunciar. Mas, ao contrário, decidiram ficar e convencer os críticos de que estão cegos por causa de sua ideologia de direita, conservadora e elitista.

Isso radicaliza a tática de Paulo Maluf, que insiste em dizer que não tem conta na Suíça, que o dinheiro e a assinatura não são dele. Maluf apenas nega o que estamos vendo. O PT nos garante que há algo de errado com nossos olhos.

Pessoalmente, na cadeia e no Congresso, fui treinado a discordar, mas conviver com as pessoas, apesar de seus crimes. Nem todos os brasileiros pensam assim, na rua. Não é possível irritar as pessoas ao extremo e, quando reagem, classificá-las de intolerantes.

O momento é uma encruzilhada entre a ira popular e a enrolação institucional. Com todos os seus condenáveis excessos, a raiva nas ruas é que tem mais potencial transformador.

A esquerda sempre soube disso. Agora, com o traseiro na reta, o PT descobre o amor.

Fonte: O Estado de São Paulo (09/10/15) 


Estado, desenvolvimento e democracia, no Brasil (Michel Zaidan Filho)




Foi solicitado por esta Conferência que falasse sobre Estado, Desenvolvimento e Democracia, no Brasil – da perspectiva dos avanços e desafios. Lembro-me do livro escrito por Celso Furtado, em plena ditatura militar, intitulado “O mito do desenvolvimento econômico”, mas lembro também de um outro, no meu período de estudante universitário, cujo nome era “A dialética do desenvolvimento”. É preciso frisar que Furtado não só foi um teórico do desenvolvimento, como um formulador de políticas de desenvolvimento para os países do Terceiro Mundo.

O tema do “desenvolvimento” deve ser pensado de um ponto de vista multidimensional. O desenvolvimento não é sinônimo de crescimento. O desenvolvimento não se resume à mera geração e acumulação de riquezas. Há desenvolvimento e desenvolvimento.

Quando os teóricos da CEPAL abordaram esse assunto, havia quase um consenso que o desenvolvimento era igual à industrialização. E que sem uma industrialização, não haveria desenvolvimento. Foi a época da chamada “Razão dualista”, tão bem criticada por Chico de Oliveira em seu famoso ensaio. Os autores dualistas acreditavam que o subdesenvolvimento, ou a falta de desenvolvimento, era produzida pela hegemonia do setor agro-exportador-primário (com uma agricultura extensiva, de baixa produtividade). Daí a ideia de incrementar a industrialização, submetendo à agricultura às necessidades da economia urbano-industrial. E claro, a necessidade de uma readequação da estrutura fundiária brasileira, com o aumento da produtividade e uso de tecnologias modernas no campo. Vem daí um clássica e antiga disputa entre os reformistas e reformuladores agrários, representados pelos circulacionistas e os críticos da “plantation”.

Na ideia dos dualistas, não havia nenhuma comunicação entre os dois setores da sociedade (rural e urbano). A agricultura era exportada: e a indústria sofria as consequências da disfuncional idade econômica do setor agrícola, tido como atrasado. A proposta de desenvolvimento coincidia, então, como o incremento da industrialização e a subordinação do setor agrícola ao setor industrial. E o desenvolvimento de mercado interno, através da generalização do trabalho assalariado e o aumento do poder de compra dos trabalhadores.

Este modelo ficou bem em evidência com a revolução de 30, tida e havida como a nossa revolução burguesa e a instalação do “Estado de Compromisso” no Brasil. A política de socialização das perdas, tão bem estudada por celso Furtado, minimizava o crise da cafeicultura e dava um impulso decisivo à indústria brasileira, pela generalização das leis trabalhistas, a formação de um mercado nacional e o processo conhecido como: Substituição das importações. Enquanto o setor agrícola pode financiar esse processo, com a contenção das importações e sua substituição pela indústria nacional, houve um grande avanço da indústria brasileira, sem grandes mudanças na estrutura agrária. O estrangulamento desse processo se dá quando não é mais possível impulsionar a indústria, sem o concurso da importação de insumos, máquinas, peças e acessórios e a falta de poupança interna.

Colocou-se, claramente, para a sociedade brasileira que o aprofundamento do processo de industrialização dar-se-ia com a internacionalização do Departamento de bens de produção, e não com a produção interna de máquinas e insumos industriais. A questão é que esse modelo dependente e associado não libertaria a economia brasileira da sua subordinação ao capital internacional, e o setor agrícola continuaria atrasado e improdutivo. A ideia de criar um mercado de capitais, com o fim da estabilidade dos trabalhadores, e a abertura econômica, pelos militares, dando a passagem ao capital financeiro, não ajudou a fortalecer a indústria, nem a mudar o campo, mas modernizou a infraestrutura do país e deu origem a um processo de diferenciação dos atores sociais muito grande no Brasil.

Vem daí o conceito de “Sociedade Civil” contra o Estado, de inspiração gramsciana e no bojo dasrevoluções contra o Estado, também chamadas de “recuperadoras”, por um filósofo alemão contemporâneo. Achava-se que por um paradoxo a modernização econômica do Brasil teria gerado novos atores políticos (modernos) num processo de socialização da política, e que a sociedade brasileira rumava firmemente para a “ocidentalização”, ou uma democracia de massas. Segundo essa análise, no Brasil o Estado era tudo, e a sociedade civil era nada. Entre nós, havia uma “Estadania”, não uma “cidadania”. E que o primeiro projeto de cidadania teria vindo com Getúlio Vargas, seria a cidadania regulada, a cidadania da carteira de trabalho.

Malgrado essas expectativas, a sociedade brasileira que surgiu foi uma mistura de Bélgica com a Índia, uma Belindia, em razão não só das características da transição democrática (pelo alto, através de uma conciliação entre as elites), mas também pelo formidável passivo social (e a falta de representação política) dos setores marginalizados. Produziu-se, com o governo Sarney, uma “societas sceleris”, uma sociedade de bandidos, com o império de uma “razão cínica”, representada pela “lei de Gerson” e seus heróis: Pele, Ayrton Senna, Macunaíma, Jeca tatu etc. Toda o ensaio de criação de uma nova sociedade civil e seus sujeitos políticos coletivos, atuando nos aparelhos privados de hegemonia, desapareceu num passe de mágica.

E a velha política voltou a dominar o país, com o prolongamento do governo corrupto de Sarney e a destruição de canais de TV aos oligarcas regionais. Foi o período da hiperinflação e a moratória da dívida externa.

O próximo passo foi a introdução, a golpes de medidas provisórias e ataques a direitos e organizações de trabalhadores, da agenda dita moderna, das privatizações, redução do Estado, demissão de funcionários públicos, abertura da economia brasileira etc. De início, de forma atabalhoada, depois de forma sistemática, planejada, com FHC e sua gestão gerencial/regulatória, apoiada no tripé: desregulamentação do mercado financeiro, privatização de ativos públicos e abertura da economia brasileira. Câmbio flutuante, metas, juros altos e superávit primário. Sob o pretexto de criar um clima “ótimo” para os negócios, vendeu-se o país, na bacia das almas, com o preço depreciado e empréstimos do BNDES. Época das bandalheiras, dos negócios da China. A proposta de cidadania era a do cidadão-consumidor. Aquele que tinha a capacidade de escolher o modelo, a qualidade, o preço, o tipo de serviço, mediante pagamento. Cooptou-se a sociedade civil, através do “mercado altruístico”, do terceiro setor e flexibilizou-se ao máximo as relações de trabalho, quebrando o princípio básico da legislação trabalhista: a relação de continuidade da relação de trabalho. Foi a época do voluntariado, dos amigos disso, os amigos daquilo etc. Onde as fundações empresariais passaram a fazer filantropia, às custas do tesouro, e agregar valor às suas marcas.

A chegada de Lula ao Poder, através de uma coligação de centro-esquerda e um discurso econômico contemporizador colocou a questão da continuidade ou não dessa política econômica, a forma de garantir governabilidade através de uma ampla coalizão partidária e se essa seria uma janela de oportunidades para o avanço das lutas sociais no Brasil. Questão difícil de responder, tanto no plano econômico, como no político. Na pior hipótese, o governo petista teria acrescentado uma agenda social à política econômica de FHC. No plano da reengenharia institucional, ou das relação entre os poderes, temos de reconhecer honestamente que não houve avanço. O governo petista procurou tirar proveito de todos os vícios e defeitos do regime político (presidencialista e multipartidário) cooptando parlamentares e os partidos de sua base, dando uma enorme sobrevida às figuras teratológicas da política brasileira.

Estendeu muito a cobertura das políticas de transferência de renda, ajudando a tirar muitos brasileiros da linha de miséria. A política redistributiva, apoiada no fundo público, empréstimos consignados, investimentos em infraestrutura, expansão do ensino, renúncia fiscal, administração do preços públicos e o apoio ao setor agroexportador, contribuiu muito para criar um arremedo de mercado interno para os produtos da chamada linha-branca, construção de casas populares, redução da dívida externa, formação de grandes reservas em moeda forte. Mas quando mudou a conjuntura internacional e o preço das comodities despencou, produziu-se um enorme buraco nas contas públicas, acompanhado de mais inflação, mais taxas de juros, escassez do crédito, retração da economia e dificuldades para encontrar uma demanda sustentável para a indústria de transformação.

Houve uma mudança grande de agenda econômica, passando de uma política anticíclica, expansionista do crédito e investimentos estatais, para uma política contracionista, baseada em aumento de impostos, cortes de direitos, aumento de juros e uma necessidade premente de economizar dinheiro para o equacionamento das contas públicas. A dívida pública chegou a 37% de PIB, os índices previstos para o crescimento são negativos, como a inflação. Emprego e renda também sofreram queda. E o país enfrenta a má-vontade das agências de avaliação do grau de investimento no país. Há também um ataque especulativo ao real, que precifica a crise política e o mau desempenho da economia. O cenário internacional também é desfavorável.

A janela de oportunidade para os movimentos sociais não produziu os resultados esperados. Os movimentos foram atravessados pela divisão entre a resistência ao ataque aos direitos dos trabalhadores e a defesa das instituições democráticas. O que torna pouco enfática a defesa do mandato da Presidente da república, que praticamente entregou a sua sorte ao maior partido do Congresso, em troca de cargos, verbas e nomeações. A oposição golpista insufla os movimentos de rua e as redes sociais contra a permanência da Presidente da República, aproveitando-se dos processos contra ela, da Operação Lava-a-jato e dos péssimos indicadores econômicos. Mas não há unidade entre esses. A imprensa golpista também dá sua contribuição à fervura do caldeirão, mais preocupadas com seus interesses corporativos do que com o interesse público. É possível que a Dilma sobreviva a tudo isso. Mas a um custo extremamente elevado para o país e os interesses populares. E a gente se perguntando se vale a pena pagá-lo.

Democracia consentida e administrada. Sociedade civil tutelada. Capitalismo de Estado, que redistribui, por um lado, e ajuda a acumulação de capital das empresas e o fabuloso lucro dos bancos e agentes financeiros.

Que tipo de cidadania é essa? Que o governo petista ajudou a criar?

(*) Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco

História que se arrasta (José de Souza Martins)




Os arrastões de praia no Rio de Janeiro e os contra-arrastões da polícia para combater essa prática, inspecionando ônibus em que eventualmente viajam jovens procedentes dos bairros e da periferia com destino às praias, explicam-se por uma mesma lógica. A ideologia de praia, no Brasil, é a ideologia da apropriação por alguns de espaço que é de todos. Nas áreas urbanas, de todas as cidades, há uma sub-reptícia classificação social de senso comum que “põe cada um no seu lugar”. A própria palavra “periferia” é aplicada para definir o que está longe do que é propriamente urbano e civilizado.
Essas classificações atingem seus moradores e a eles estendem, injustamente, atributos de inferioridade social, que acabam sendo considerados indícios de inferioridade pessoal. Isso vale também para “morro” e “favela”.

Daí decorre uma cerca invisível que, no caso das praias, as torna subjetivamente inacessíveis a um grande número de pessoas que carregam alguma marca de diferença. Apesar da multidão que a ocupa, na praia há regras que asseguram o reconhecimento da validade dessa concepção: parece um lugar público, mas não o é. A praia é um faz de conta, uma fantasia.

O aparato de coisas que carregam os que vão à praia, aquilo que o sociólogo Erving Goffman define como equipamento de identificação, torna-a culturalmente inacessível aos que não têm o que ostentar. 

De certo modo, esses lugares públicos, ao se tornarem lugares de ostentação, numa sociedade que não é igualitária, dominada pelo discurso da polarização de classes sociais e da injustiça histórica que a fundamenta, acabam sendo usados como lugares de refúgio, mais do que lugares de liberdade. Os arrastantes, por sua vez, procedem do confinamento decorrente e residual daqueles para os quais os lugares de ostentação se tornaram interditados, lugares de suspeição e rejeição. O arrastão é uma forma comunitária e autodefensiva de reagir ao confinamento de classe social, no bloqueio do acesso aos lugares simbolicamente proibidos a quem não pode exibir os signos de pertencimento.

O fato de que os participantes dessas demonstrações coletivas de força sejam adolescentes oriundos dos bairros e da periferia do Rio de Janeiro não significa necessariamente que o façam para apenas roubar. O “arrastão ostentação”, como é chamado nas redes sociais das localidades de origem dos participantes desses atos, indica um exibicionismo juvenil que tem outra motivação. 

Independentemente das diferenças sociais que se escondem por trás das ocorrências, nessas exibições os arrastantes completam em casa e no bairro o ato iniciado na praia: quanto mais colares de ouro, celulares e outros objetos de desejo cada um exibir na rede, maior o seu triunfo. Esse é o modo de construírem sua própria fantasia de praia.

As praias das áreas afluentes dessas ações são encaradas pelos participantes como um jardim zoológico, território de caça ao tesouro, lugar de exibição da valentia e da coragem de que os jovens, do sexo masculino, precisam para se mostrarem adultos para si mesmos e para sua gangue. O medo das vítimas, que é hoje um componente da cultura da classe média, dá a esses jovens o ânimo para o exercício do poder e do prazer que podem sentir diante de um adulto de outra classe social, indefeso e aterrorizado. 

Os arrastões têm a função de um rito de passagem da adolescência para a maturidade, ainda que pela via errada. O problema não está no rito, mas na forma que assume, por falta de vias integrativas de passagem de uma faixa de idade a outra. A sociedade protege-se contra desvios sociais optando pela exclusão do outro. Entrega à polícia a tarefa de reprimir para protegê-la na omissão que considera um direito. Coisa de sociedade que teve escravidão, em que o capitão do mato enquadrava os insubmissos.

Consciência coletiva. A polícia, na equivocada política de uma abordagem preventiva que é repressivamente cerceadora do direito de ir e vir, acaba confirmando a discriminação e coadjuvando o confinamento exibicionista dos que podem e ocupam as praias. Ao fazê-lo legitima as desigualdades sociais. Age como defensora dos valores da sociedade estamental que subsistem na consciência coletiva, a sociedade da estratificação social rígida que precedeu a relativamente flexível sociedade de classes, a sociedade moderna. É evidente que a igualdade jurídica dos banhistas e frequentadores de praia não fica assegurada por ações que apenas reforçam a concepção de que a praia é um lugar reservado aos que podem ostentar.

É o que torna mais grave essas ações se considerarmos que a polícia do Rio usou como critério abordar menores que estivessem sem documentos, descalços, que não tivessem pagado a passagem. A única arma de que dispõe na prevenção dos arrastões, que sem dúvida são crime, é a do estereótipo e do preconceito. Os mesmos instrumentos da velha Polícia de Repressão à Vadiagem, que foi ativa após a abolição da escravatura para enquadrar na disciplina do trabalho compulsório ex-escravos e imigrantes. 

Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (05/10/15)