domingo, 25 de fevereiro de 2018

Centro, esse escorregadio objeto de desejo (Marco Aurélio Nogueira)

Entra semana, sai semana, o centro continua em evidência. Todos querem atrair ou neutralizar suas correntes. Procuram-se também nomes que o unifiquem.
Luciano Huck mostrou a dificuldade do processo. Desejou ser o centro renovador: o novo em política. Excitou os movimentos cívicos e reiterou a ideia de que os partidos precisam reinventar-se. Criou turbulência no interior do PSDB, mexendo com os brios de Geraldo Alckmin. A operação não deu certo, mas serviu para realçar a necessidade de preencher o vazio que se reproduz na política nacional: um vazio de nomes, de ideias, de projetos que sacudam a poeira das velhas vestes que ainda recobrem a política.
O excesso de movimentação demonstra que o centro é um espaço em busca de quem o organize. Seu magnetismo se impõe porque não há vitória eleitoral ou políticas positivas que não tenham ao menos um pé centralizado.
Os dogmáticos falam que a afirmação de um centro seria uma estratégia da direita, assustada com a liderança de Lula nas pesquisas. Os liberais querem um centro que neutralize os “excessos” e proteja a liberdade. Os conservadores mais à direita, por sua vez, veem no centro um obstáculo para seus planos de conter a renovação dos costumes. Mesmo setores da esquerda, quando pensam em sua própria articulação, concebem um “centro-esquerda” que se una para enfrentar o “centro-direita”.
Os democratas entendem o centro como um fator de ultrapassagem do atual padrão de competição política, muito polarizado. O suposto é que sem o centro o sucesso será mais difícil, posto que saturado pela reposição mecânica do velho padrão. O desafio passa pela reconstrução de algo que, em boa medida, foi a força propulsora da redemocratização. Como a vida mudou e a política entrou em parafuso, reconstruir o centro tornou-se ao mesmo tempo problema e estratégia.
Ruim em termos de articulação, a situação tem como contraponto positivo a pressão social, a hostilidade popular à política praticada, a indignação contra a corrupção, os privilégios e a ineficiência dos políticos. Procura-se um nome “novo”, mais que um novo projeto. Não se conseguiu, até agora, definir que forças políticas poderão articular-se em torno de propostas claras para a questão fiscal, o formato do Estado, a agenda social, o desenvolvimento. Sem isso tanto fará se o candidato for “novo” ou “velho”.
Mas o que seria o centro político, esse objeto de desejo tão escorregadio?
O centro é sempre importante, mas não é tudo. É parte do jogo, um vir a ser, uma aspiração ou uma obsessão. Não é uma igreja de salvação, nem a praia de todos. Ocupá-lo é uma necessidade. Sem ele nenhum sistema político ganha fluidez.
Particularmente no Brasil, o centro não é o Centrão. Também não é igual a maioria parlamentar ou ao polo que controla essa maioria. Não é governismo. Para ser viável e consistente precisa ir além dessa dimensão, dirigi-la, subordiná-la, por maior que seja a atração exercida pelo poder central. Um centro comandado pelo poder central amarra o País. Autônomo e consciente de si, faz o País avançar.
Em geometria, o centro é o ponto que está no meio de uma figura. Numa reta, divide-a em dois lados iguais. Num círculo ou numa esfera, é o ponto a partir do qual equidistam todos os pontos pertencentes à circunferência. Nas figuras geométricas em geral, o centro pode ser determinado com precisão desde que elas sejam simétricas, regulares.
Em termos políticos, não é assim. Um centro político não tem determinação exata, não é fixo nem equidistante de nada. Pode flertar mais com um lado do que com outro, buscar superar as extremidades, atraindo-as e submetendo-as a si, ou pode simplesmente funcionar como um administrador das forças em presença. Suas figuras e seus espaços de operação são irregulares, dinâmicos.
Trata-se, pois, de uma posição relativa, que só pode ser proclamada tendo em vista uma esquerda e uma direita, entendidas essas duas posições em sua tradução pura, extremada. Como tal pureza não existe, o centro também não se configura com precisão. Como lembrou o cientista político Marcus Mello, citando Maurice Duverger, “o centro é um lugar imaginário, não existe em política”: chamamos centro ao “lugar geométrico donde se reúnem os moderados de tendências opostas”. Para compensar sua limitação costuma ser associado a termos outros, como união, serenidade e temperança.
Há centros que existem para conservar e outros que se dedicam a fazer uma revolução. Um centro inclinado à direita anda para trás. Inclinado à esquerda, é uma chance de avanço, tanto no plano moral quanto em termos de igualdade. Um centro autoritário, burocrático, promove a passividade e a subserviência dos aderentes. Realizado democraticamente, promove a autonomia, o pluralismo e a multiplicidade das vozes. O primeiro é potencialmente regressista, o segundo é progressista.
O centro não existe como algo dado: é uma construção. Por isso somente ganha sustentabilidade se tiver programa e projeto. Sem raízes sociais é como uma casa sem alicerces. Pode assentar telhas e janelas, mas ruirá no primeiro vendaval.
Um centro inclinado à esquerda não é a solução, mas pode ajudar a que ela seja encontrada. Sua virtude repousa na articulação dialética Estado-sociedade, no molejo democrático que faz com que se ouça a voz de todos e na disposição de abraçar a causa de um país. Seu programa se volta para o encontro de um novo modo de pensar e organizar a política, atualizando-a aos patamares civilizatórios em que nos encontramos.
2018 promete avançar em meio à incerteza, ao mal-estar social, a crises e polarizações. Não dá para saber se um centro forte possibilitará que se desanuviem as brumas que nos cegam. Mas dá para cravar que sem reformismo democrático, respeito aos direitos e articulação social nenhum centro fará coisa que preste.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/02/18)

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Preconceito contra a intervenção (Vladimir Palmeira)

A esquerda reagiu mal à intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro, com a indicação de um general do Exército para cuidar da área. De forma preconceituosa. E partidarista.
Aqueles que tentam elevar um pouco a crítica afirmam, com razão, que a intervenção não resolverá o problema da violência no Rio de Janeiro. De fato, não resolverá.
Sabemos que a solução deste problema, sempre parcial, aliás, só virá com medidas a longo prazo. A mais importante das quais é, sem dúvida nenhuma, uma distribuição de renda mais justa em nosso país. Não me refiro somente à renda no sentido estrito. Mas também à melhoria efetiva nas áreas de transporte, educação e saúde.
Do ponto de vista policial, estamos diante de mais de uma questão. Em primeiro lugar, nossa polícia tem um grau de despreparo muito alto. Em segundo lugar, houve a preferência pela ação repressiva, e não investigativa. Em terceiro lugar, a própria polícia está em parte ligada à corrupção — basta lembrar o caso do batalhão de São Gonçalo. Em quarto lugar, houve um grande descaso depois do fracasso das UPPs — a demagogia desmascarada trouxe não novas propostas, mas uma terrível inação. Como resultado, a guerra entre quadrilhas tornou-se mais radical, e os próprios policiais começaram a ser mortos sistematicamente pelos bandidos.
Finalmente, a ação policial Cabral-Pezão desconsiderou completamente qualquer poder civil e as comunidades interessadas.
Evidentemente, a intervenção federal não vai resolver este tanto de questões. Mas a situação estava ficando insustentável. A morte de inocentes, sobretudo nos bairros pobres, estava saindo dos limites. A polícia não tinha mais rumo. Rumo nenhum.
O Rio precisava de um choque positivo. A intervenção federal pode representar este choque. Um chega pra lá na bandidagem. Dependendo de como for conduzida, em coordenação com a polícia investigativa, pode deter o avanço da violência.
Às entidades da sociedade cabe acompanhar as ações e denunciar caso os direitos individuais dos moradores sejam violados pelos soldados do Exército — assim como deve ser feito quando esses direitos são violados pelos policiais militares.
Soluções a longo prazo serão debatidas no processo eleitoral. E poderão ser implementadas por um governo eleito.
O governo Pezão já acabou. Por isso, inclusive, a intervenção federal deveria ter vindo antes e ter sido feita de forma completa, afastando o governador. O governo Crivella, por sua vez, nunca começou. É importante, que, dado um chega pra lá nos bandidos, os partidos, inclusive, de esquerda, assumam suas culpas e tratem de mudar a política geral de segurança.
(*) Vladimir Palmeira é professor universitário e foi deputado constituinte (PT-RJ)
Fonte: O Globo (23/02/18)

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Poder de polícia x ‘soft power’ (Merval Pereira)

O sucesso da atuação das Forças Armadas no comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que se encerrou no ano passado ao completar 13 anos, faz com que uma ação semelhante nas favelas brasileiras, especialmente no Rio, seja considerada possível.
As experiências brasileiras estão sendo base para treinamentos e cursos no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil Sérgio Vieira de Mello, o que faz do Brasil referência internacional na preparação de pessoal qualificado, militar e civil, para a execução de missões de paz. Mas há diferenças fundamentais que precisam ser avaliadas.
Recentemente, num seminário internacional realizado no Centro de Instrução dos Fuzileiros Navais, onde foi feito um balanço desses 13 anos de atuação da Força de Paz, muitas questões foram levantadas a esse respeito. Há diversos oficiais, como o General Augusto Heleno, que comandou a missão de paz da ONU no Haiti durante um período, que não têm dúvida de que as tropas brasileiras estão preparadas para uma atuação interna desse tipo.
Ele me disse certa vez, anos atrás, ao fazer um balanço da atuação no Haiti, que nossos soldados são quadros profissionais que tiveram uma experiência que, no Brasil, não teriam jamais uma vivência real de combate, trocando tiro, aprendendo a reconhecer o terreno, dominando o medo. Mas há diferença marcantes, e a primeira é o aspecto político, porque no Haiti os soldados brasileiros trabalhavam sob a égide da ONU, com regras de engajamento bem definidas e bem compreendidas pelas tropas.
Depois desses anos todos, com troca de contingentes a cada seis meses, o treinamento foi feito de maneira bastante sofisticada. O contingente que viajaria era treinado nos seis meses anteriores exaustivamente, de modo que já chegavam lá conhecendo bem todas as normas. Cada um sabia o que podia fazer. Ao contrário, no Brasil, o poder de polícia do Exército é muito limitado. O temor de que os soldados possam ser expostos a uma condenação por causa de uma operação foi em boa parte superado pela lei sancionada em outubro passado pelo presidente Michel Temer, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis nas chamadas missões de “garantia da lei e da ordem”.
Também caberá à Justiça Militar julgar os crimes praticados durante o cumprimento de atribuições estabelecidas pelo governo, ou quando envolver a segurança de instituição ou missão militar, mesmo que não beligerante. Nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz da ONU, há referências expressas aos cuidados com danos colaterais, e a ação tem que ter proporcionalidade de forças.
Os militares, sempre que questionados sobre essas missões, afirmam que não pensam em tomar o lugar da polícia, que é mais adestrada para esse tipo de operação, conhece a bandidagem. O que querem é assumir o comando da operação e coordená-la, de maneira a que todos trabalhem com a sua habilidade. Esse foi um dos maiores problemas das recentes operações das Forças Armadas no Rio, pois a coordenação entre elas, as Polícias Civil, Militar, e Rodoviária sempre foi problemática.
Há também uma diferença fundamental entre o tipo de criminosos nas favelas de Porto Príncipe e as do Rio. Lá o tráfico de drogas é mínimo, a defesa de posições dos traficantes do Rio é muito mais forte e os armamentos, mais pesados. Eles estão defendendo um comércio que rende muito dinheiro e a reação é muito mais violenta. Porém, para Fernando Gabeira, que como deputado federal esteve no Haiti acompanhando a primeira fase de conquista de Bel-Air, a fórmula não é muito complicada de replicar no Rio. Ele me disse na ocasião, relato que publiquei na coluna, que no início era muito difícil fazer operações conjuntas com policiais do Haiti, “pois eles avisavam os bandidos. Tiveram que apreender os telefones celulares deles e impor uma ordem”.
Bel-Air estava totalmente fechada pelas gangues, que não têm relação com o narcotráfico, que é incipiente, mas são forças populares treinadas e armadas pelo presidente deposto Jean Marie Aristides e que partiram para uma ocupação territorial com componente político e muito de bandidagem mesmo, como sequestros-relâmpagos e assaltos.
Para Gabeira, o mais importante “foi uma série de ações para substituir o governo. Os soldados que faziam a patrulha entraram em contato com a população recolhendo o lixo. A população levava o lixo para um ponto e jogava, ficavam montes muito altos e perigosos para a saúde. Além do mais, os montes de lixo serviam de trincheira para os bandidos. Depois do recolhimento do lixo, os soldados tiveram condições de expulsar os bandidos com o apoio da população. Contrataram uns meninos para fazer alguns trabalhos, de intérprete, ensinaram português a outros”.
Gabeira acha que “a chance de dar certo aqui é muito grande. Se você se coloca para as comunidades, depois de ocupar, com o governo em ação, tem o reconhecimento e o apoio”. Ele lembra que a atuação das tropas jordanianas em Cité Soleil, antes de os brasileiros assumirem o comando das ações na maior favela do Haiti, é prova de que “ocupação só não resolve. O Brasil construiu escolas, implantou programas esportivos, fez cisternas que possibilitaram o acesso à água. Fizeram toda uma política de assistência social e de melhoria de infraestrutura elementar que viabilizou o êxito”.
Cité Soleil, uma favela plana onde vivem 300 mil pessoas em condições de muito mais miséria do que os nossos favelados, segundo depoimento generalizado, só foi considerada oficialmente ocupada pelas forças da missão da ONU depois de três anos de presença das tropas multinacionais no país e de um ano de cerco pelas tropas brasileiras.
O sociólogo Rubem César Fernandes, do Viva Rio, que trabalha no Haiti em contato direto com a ONU, foi chamado porque os primeiros militares que lá chegaram acharam que a situação era parecida com a do Rio, e lembraram-se da experiência da ONG nas favelas. Assim como nas favelas cariocas, facções lutam pelo território. Lá havia quatro comandos que se enfrentavam. O Viva Rio promove projeto de reabilitação urbana de Bel-Air, área do século XVIII um pouco parecida com Nova Orleans. A inspiração foi a Lapa.
Recuperar uma área que tem história forte de cultura local, onde o carro-chefe seria a boemia: comida, música, dança, artesanato, explica Rubem Cesar. Bel-Air está dominada, do ponto de vista militar. As gangues, desde julho de 2005, não entram em confronto direto com o Exército, mas ainda há conflitos.
As experiências dos militares brasileiros e outros atores desse trabalho mostram que, para exercer o efetivo controle onde há bandidagem, é preciso entrar e permanecer. Encontrar um ponto forte, e a partir daí fazer o patrulhamento e efetivamente controlar a área. Com isso se conquista a confiança da população. Onde entrar a repressão, tem que entrar a construção, costumam dizer. O general Heleno afirmou na ocasião que, “se continuar a ausência do Estado, vamos continuar tendo a situação que vivemos no Rio, onde se faz uma operação, há troca de tiros, morre gente, e depois sai. Aí o bandido fala para a população: ‘estão vendo, eles não são capazes de ficar, quem fica somos nós. Se vocês ficarem do lado deles, nós massacramos vocês.’ Isso nós aprendemos no Haiti”.
O apoio da companhia de engenharia, que atua junto com a tropa, foi fundamental para prestar serviços básicos para a população: cavar poço artesiano, arrumar escola, asfaltar rua, instalar posto de saúde. A população passou a se aproximar da tropa, ressaltam sempre os militares. Essa capacidade de agregação demonstrada pelas tropas brasileiras transformou-se num ativo importante da nossa política externa. No seminário internacional organizado para fazer um balanço dos 13 anos da atuação brasileira à frente da força de paz no Haiti, que teve o patrocínio da Academia Brasileira de Letras e da PUC-Rio, o historiador José Murilo de Carvalho, meu colega da ABL, ressaltou essa capacidade brasileira, embora tenha firmado sua posição contrária à participação das Forças Armadas em ações internas de caráter policial. Para ele, a missão que durou 13 anos constituiu experiência inédita para o país em termos de dimensão, duração e comando das operações.
O reconhecimento internacional da capacitação dos “pacificadores” brasileiros fez com que recuperássemos “um pouco nossa imagem no exterior e nossa autoimagem em casa”, comentou José Murilo de Carvalho. Para ele, “todos os que acompanharam, mesmo que superficialmente, a atuação brasileira no Haiti devem ter sentido algum orgulho pelo trabalho lá realizado por nossos compatriotas. Em um país devastado pela violência, pela miséria, pela fome e por desastres naturais, militares e civis, homens e mulheres, órgãos públicos e ONGs, com destaque para o Viva Rio, souberam recorrer a um rico arsenal de procedimentos que iam muito além do simples uso da força. Houve grande esforço de dialogar com o povo haitiano, de mostrar empatia, de respeitar a cultura local, inclusive a religiosa”.
Para José Murilo, “é difícil não se comover diante de cenas em que brasileiros, fardados ou não, brincam com crianças, distribuem presentes, organizam festas, ensinam música e futebol, participam de cultos de vodu. Minha impressão é que levamos para o Haiti o melhor de nós mesmos, que transportamos para lá o que nos parece fazer falta aqui hoje”.
Ao abordar no mesmo seminário a atuação do Brasil, chamei a atenção para como o “soft power” passou a ser um instrumento fundamental de nossa politica externa a partir da atuação de nossas Forças Armadas nas missões da ONU. Expressão cunhada pelo cientista político Joseph S. Nye Jr, professor de Harvard com larga experiência dentro da máquina administrativa do governo dos Estados Unidos — trabalhou nos governos Carter e Clinton, nas secretarias de Estado e de Defesa —, o “soft power” seria uma terceira dimensão do poder, superando em certas ocasiões o poder econômico e o militar.
Num mundo multipolar, esse “poder suave”, cultivado nas relações com aliados, na assistência econômica e em intercâmbios culturais, resultaria em uma opinião pública mais favorável e maior credibilidade externa. No governo Obama o “soft power” teve mais importância na política externa americana, enquanto hoje o governo Trump dá mais valor à confrontação militar e ao poder econômico.
As missões de paz seriam uma maneira de o Brasil dar relevância ao seu “soft power”, que é a capacidade de ser relevante na região em que é líder natural. Desde que assumiu em 2004, a pedido dos Estados Unidos, o comando da Força de Paz da ONU no Haiti, o governo brasileiro vinha fazendo gestões junto aos organismos internacionais, inclusive a própria ONU, para que se empenhassem com mais vigor na recuperação do país mais pobre do Ocidente, com programas de ajuda humanitária, mais apoio de forças de outros países, máquinas para limpar as ruas, dinheiro para programas sociais.
A estratégia de passar a prestar serviços básicos à população, depois de dominar as partes de Porto Príncipe que estavam controladas por gangues, foi fundamental para o êxito da força internacional de paz que o Brasil comandou no Haiti. O clima de simpatia em relação aos militares brasileiros passou a predominar, consolidado pelo Jogo da Paz, em que a seleção brasileira se apresentou no Haiti. Até bem pouco tempo atrás, era comum ver bandeiras brasileiras pintadas nos muros da cidade, e crianças com camisas da seleção.
A necessidade de maior financiamento está explícita justamente nessa estratégia de dominação do território, onde o combate às gangues tem que ser seguido de uma atuação social imediata, levando escolas, postos de saúde, delegacias de polícia à população. Da mesma forma que acontece nas favelas cariocas dominadas pelos traficantes, cuja ação falha, como falhou, se não houver depois a ocupação “do bem”, com o cumprimento efetivo do que se espera do Estado.
A experiência do Exército brasileiro no Haiti é considerada algo que tem sido efetivamente inovador no campo militar, por não se limitar à tarefa de polícia, e dar aos militares treinamento em uma nova forma de atuação que pode ser útil em outras operações. Como a que começa agora no Rio.
Fonte: 17/02/18)

A tal conspiração das elites (Sergio Fausto)

Há quem acredite que Lula seja vítima de uma trama jurídico-midiática de elites interessadas em impedir sua volta à Presidência. Estariam motivadas por um sentimento de vingança contra o presidente que “mais fez pelos pobres em toda a História do País”. O argumento seria plausível se o ex-presidente tivesse liderado um programa de redistribuição de renda e riqueza que ameaçasse os interesses dos donos do poder político e econômico. Nada mais distante da realidade.
Para as verdadeiras elites econômicas do País, o governo do ex-presidente, no geral, só traz doces lembranças, por boas e más razões: o País cresceu acima da média dos últimos 30 anos, milhões de novos consumidores foram incorporados aos mercados, os juros reais continuaram a remunerar regiamente os “poupadores líquidos”, os contratos com o Estado se multiplicaram e engordaram com generosos superfaturamentos. O mesmo vale para os donos do poder político: apesar da vocação hegemônica do PT, velhos caciques, a maioria deles filiada ao PMDB, encontraram amplo terreno de caça para operar política e negócios tanto com a antiga como com a emergente alta burguesia brasileira, da qual os irmãos Batista são (ou eram) exemplares típicos.
É preciso ser muito crédulo para acreditar na ladainha de que as elites não querem Lula de volta porque não toleram a ideia de que pobres possam frequentar universidades e andar de avião. Perguntem aos donos de faculdades privadas – em particular aos que se ergueram com a alavanca do Fies – e controladores de companhias aéreas o que acham dessa extravagante interpretação.
É verdade que as camadas mais altas e consolidadas das classes médias se sentiram incomodadas com a “invasão” de espaços que antes lhe eram quase privativos. Mas as elites, ora, continuaram a viajar em avião particular e a matricular os filhos nas melhores universidades privadas do País e do exterior. É tola a ideia de que não queiram que os pobres melhorem de vida.
O incômodo de parte das classes médias tornou-se um fenômeno político potente quando o “espetáculo do crescimento” se encerrou, o mensalão foi a julgamento no STF e na sequência a Lava Jato passou a revelar um sistema de corrupção como nunca antes visto neste país (o que não é pouca coisa, tendo em vista o histórico brasileiro nessa matéria). Aí, sim, cresceu em todas as classes médias – emergentes e consolidadas, baixas e altas – um sentimento anti-PT e anti-Lula que criou a atmosfera propícia ao impeachment de Dilma. Nem a mais onisciente e onipotente elite da galáxia teria conseguido alinhar uma sequência tão devastadora de choques negativos sobre um governo.
Em busca das razões da situação vivida pelo partido e por seu líder máximo, o PT deveria abandonar o recurso a bodes expiatórios, teorias da conspiração e estereótipos sobre as elites brasileiras. Melhor faria se reavaliasse por que perdeu as classes médias: fim do boom de commodities, nova matriz econômica, estelionato eleitoral, corrupção e, ainda agora, confronto com as instituições.
Desde que Lula passou a ser investigado pela Lava Jato e outras operações congêneres, o PT decidiu denunciar instituições que seriam representativas dos interesses das elites, em particular a grande imprensa e o Judiciário. Fico imaginando o que pensam os vários empresários condenados à prisão sobre a tese de que juízes representariam os interesses das elites. Só se forem os interesses corporativos dos membros do Judiciário, os quais nenhum governo até aqui, incluídos os do PT, pôs em xeque.
A estratégia de confrontação com as instituições pode até fazer sentido para manter o ânimo da militância partidária, mas enreda o PT nas teias de uma velha e perigosa ambiguidade. Passados quase 40 anos de sua fundação, o partido ainda oscila entre a adesão à democracia representativa e o flerte romântico ou concreto com formas de exercício do poder e governos autoritários, assim como entre o reconhecimento do caráter apartidário das instituições do Estado e a tentação de aparelhá-las.
Logo após o impeachment de Dilma o então presidente do PT, Rui Falcão, lamentou não terem os governos petistas alterado os currículos das academias militares e promovido oficiais com “compromissos democráticos e nacionalistas”. Desse mesmo período é o discurso em que Jaques Wagner, um dos prováveis candidatos do PT à Presidência, explica a militantes do partido que, “por ora”, é preciso respeitar as “regras deles”, porque no Brasil vivemos numa democracia e não fizemos revolução. Não estou certo de que o ex-governador da Bahia acredite no que disse, mas é sintomático que o tenha dito para explicar a militantes a necessidade de alianças partidárias fora do campo da esquerda. E como deixar de mencionar a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que sustenta a tese de perseguição política a Lula quase com o mesmo ardor com que defende o atual governo da Venezuela, onde os políticos opositores são presos arbitrariamente. Não menos ambígua é a defesa da “democratização das comunicações”, que amiúde se confunde com “controle sobre a mídia”.
No calor da luta política, qualquer partido, quando se vê em desvantagem, tende a forçar os argumentos para se defender e atacar os adversários. Não raro, esse tensionamento pode produzir frutos positivos para a qualidade da democracia. Dou como exemplo a acusação que o PT faz de haver tratamento diferenciado para os casos de corrupção envolvendo governos e políticos do PSDB. É bom debater e apurar se tal acusação tem ou não fundamento. O problema surge quando um partido apela à mistificação para atacar a legitimidade do regime democrático. O PT chegou ao limite entre a crítica legítima a decisões judiciais e a deslealdade com as instituições.
Tomara que as lideranças mais sensatas do partido não permitam a fatal ultrapassagem dessa fronteira.
Fonte: O Estado de São Paulo (17/02/18)

sábado, 17 de fevereiro de 2018

O enigma do lulismo (José de Souza Martins)

Uma historiografia do atual exageradamente centrada na figura de Lula obscurece a trama de relacionamentos e de fatos que é essencial para a compreensão da crise política que tem nele o principal protagonista. E até mesmo para compreender o que pode ser definido como o drama de sua pessoa.
O lulismo surgiu e se firmou não propriamente como desencontro com a estrutura partidária e desvio de sua ideologia de coalizão social-centrista. Mas como sucedâneo de uma fragilização de identidade partidária decorrente das contradições internas do partido. Fracionado em três grandes grupos ideológicos - a facção religiosa, a sindical e a de esquerda resultante da implosão que o stalinismo impôs ao comunismo -, o PT se propôs como um partido social-democrata da luta de classes. Diversidade demais para uma convergência viável.
A identidade partidária impossível encontrou em Lula e no populismo lulista um substituto não programático e sobreideológico. Isso teve um preço, o do fazer sem saber, nas condições adversas da ação política dominada pela complicada trama de vontades desencontradas de uma governabilidade sofrível. Lula se tornou a personificação do poder sem sê-lo e sem saber que não o era.
Num livro de 1943, "A Poesia Afro-Brasileira", Roger Bastide, o grande sociólogo francês que substituíra o belga Claude Lévi-Strauss na cátedra de sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, demonstrou que na forma e no estilo os nossos poetas negros fizeram poesia de branco. Sublinhava a trama de mecanismos sociais que capturam propósitos e intenções e os desfiguram. É próprio, aliás, da sociedade contemporânea o desencontro entre o que se quer, se pensa e se diz estar fazendo e o que de fato se faz. Todos, em diferentes graus, passam por isso. A diferença entre uns e outros é que uns têm disso consciência no esforço de superar a alienação. Outros não.
Nas questões relativas aos grandes embates sociais e políticos, com facilidade os protagonistas de possíveis grandes rupturas, ao final do ciclo de sua missão, acabam descobrindo ter feito exatamente o oposto do que desejavam fazer. Ou do que diziam e pensavam estar fazendo.
Se tomarmos como referência duas grandes e decisivas figuras da história política brasileira, dom Pedro II e Getúlio Vargas, veremos que foram, provavelmente, os nossos dois únicos governantes que ao cabo de suas vidas puderam dizer que o projeto de nação que representaram se cumprira. O caso de dom Pedro é significativo. Aos cinco anos de idade, deixado pelo pai aos cuidados do governo, tornou-se um filho da nação e personificou de maneira exemplar o estadista da unidade nacional. Essa era sua missão.
Getúlio também conseguiu personificar e executar um projeto de nação, que sintetizava as aspirações de grupos civis e militares que, em nome dos valores do positivismo, opunham-se ao localismo arcaico das oligarquias regionais. Era o projeto de transformação de um país dependente da agricultura de exportação num país industrial. Um projeto que se definiu aos poucos, conforme a circunstância histórica da sociedade e do poder. Se Getúlio não foi o pai político da classe operária brasileira, foi quem a consolidou e lhe deu um ideal de participação na modernização do país.
O presidente Luiz Inácio, a seu modo, teve nas mãos a possibilidade de definir e executar um projeto de nação que transformaria o homem simples, fosse ele pardo, branco ou negro, simbólicos remanescentes da nossa sociedade de escravidões, num protagonista ativo e consciente da história moderna do Brasil. O Partido dos Trabalhadores foi o único que percebeu que estava à disposição de protagonistas potenciais essa missão política. Porém, Lula e o PT a compreenderam no viés do populismo que acoberta a realidade opaca do processo político. Foram capturados pela ambição do poder sem alternância partidária, que os trouxe até estes dias cinzentos de incerteza para o país inteiro.
Das três figuras mencionadas, Lula é a que sai pela porta lateral do processo histórico, na armadilha da falsa consciência do que é o povo e da minimização das instituições. Esse tormento não se deve ao juiz Sergio Moro, um cumpridor do seu dever como magistrado e funcionário da lei. Equivocadamente eleito por Lula como seu inimigo e algoz. Seu inimigo oculto está nas contradições de origem de seu próprio partido. Devido a ela, o PT não logrou coerência doutrinária para cumprir sua missão histórica. Aprisionou seu líder nos desencontros de um encontro meramente verbal e discursivo. O poder transformou Lula num ser bifronte: uma coisa no poder e outra diferente coisa na porta da fábrica e nas manifestações de rua.
Fonte: Valor Econômico (16/02/18)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Enquanto agonizo (Paulo Delgado)

Ele se amontoa sobre o país. Hiperrealiza seus desejos, usa aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualificar a acusação, e deu errado. Segue trabalhando mal o luto. Um voo tão alto, uma queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da desonestidade e alega princípios para abafar inconveniências. Chegou ao limite de querer aproveitar da própria decadência.
Um grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do passeio. Embora vários do cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele, qualquer pessoa que os observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele ultrapassando por uma cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiva, é subalternidade. Lembra livro de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai brutal impõe a todos um enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir sem ter de pensar no seu egoísmo doentio.
A calçada, esturricada pelos pisões do povo e pedras soltas, segue reta como um fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele os deixará, indiferente aos terrenos resvalantes que o levaram a escorregar. Antes de embarcar, mirando o dilúvio, determina: meu reino por minha vitimização, façam ferver o coração, vai ser longa a condolência. Preparem o caixão e, se der certo, enterrem, com a toga preta do Supremo, o princípio da igualdade de todos perante a lei.
Alguns aliados não aduladores sentiram que havia alguma coisa ruim. Nem em silêncio era razoável aquela insensatez de celebrar como triunfo uma calamidade. Nem apropriado apiedar-se de um político mais que do povo. Uns diziam que era anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se chama crime de perseguição; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser condenado por mentir.
Ele estava se esvaziando rapidamente. Um tique nervoso, fruto de soberba banal, o levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. “Não há qualquer rival de ‘o líder’ em todo o firmamento.” Era assim mesmo que se chamava, “o líder”, apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua ambiguidade pública.
Como numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um país. Não queria mais suar. Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que as pessoas tenham opinião diferente sobre honestidade não cabe a ele discutir desígnios divinos. Suas proezas entardeceram e começaram a alimentar uma ordem política incapaz de produzir valores sociais.
Vazio, deixou-se preencher pelo maior valor do mundo moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a consequência do futuro.
Quando mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de ideias. “A abundância de diploma acaba com o diploma”, alguém alertou, e foi expulso da sala. E uma pessoa vazia na política não é mais um político. Enchendo-se de autoelogios e fúria, logo ele não sabe se é ou não é, ou que é que de fato é. Saiu do trilho, aumentou necessidades, até que as dádivas deram por conhecidos seus favores.
Enfraqueceu a autoridade por seu abuso e o hábito de confundir poder com relação e intimidade. No mundo das decisões apressadas, dissimulações, das interdições sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade irresponsável de ser o que você quiser ser, a transgressão percebeu a melhor das convergências. Com a autoridade participando, o erro ganha mais velocidade.
Seu talento para a evasão o tornou conhecido como aquele político “veloz estruturador de negócios e soluções”. Logo que recebeu a resposta da carta enviada aos brasileiros donos de banco, escrita em inglês, percebeu que pecado-salvação é mera questão de palavra. Harmonizou-se com a parceria de talentosos ocultadores de intenções para montar as ladainhas, a lenga-lenga a que deu o nome de política de governo.
Quando a Justiça abriu a porta dos seus transtornos desesperadores, ele já havia caído na mais sedutora armadilha da política atual, o dinheiro fácil, e não quis reconhecer o que fez. Saiu em desespero para pagar a promessa de 40 anos atrás. Mas sem dizer o que deveria ter dito ao juiz – o que o deteria na certeza de que alcançar seu objetivo primordial de ser respeitado, ser alguma coisa nova, é que compunha seu élan vital – pressupôs que a condição de vítima evitaria o caminho da desmoralização. Ele voltou a suar, como se estivesse espumando, feito um cavalo desembestado, convocou adoradores, dependentes, para a velha modalidade de ação heroica – camisa de partido, candidatura, comício, farisaísmo – na tentativa desesperada de incinerar a sentença e botar fogo na pavorosa jornada da Justiça de ousar apontar o dedo para quem sempre fez o que quis e nunca foi tão adequadamente contrariado.
Quando ouviu “estamos aqui e você tem de lidar conosco”, percebeu que escondera dos amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza, foi-se a profecia. Quem dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais honestidade e a adversidade com mais autocontrole.
Um partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro. E reconhecer que um período de governo com um presidente deposto, três ex-presidentes da Câmara, senadores e inúmeros ministros de Estado presos ou processados, dirigentes partidários e governadores confinados ou envolvidos, a maior empresa do País dilapidada, a autoridade olímpica nacional presa, o bilionário do período encarcerado, a Copa investigada, fundos de pensão arruinados, o BNDES um clube de amigos, grandes empresários condenados, frugal intimidade com ditadores, etc., não foi um período virtuoso.
O que “o líder” quer é o refluxo da identidade perdida, fugir da responsabilidade confinado na condição de perseguido. Pelo alto, espalha simulacros de habeas corpus, certo de que a Justiça dos privilegiados prevalece e o ressuscita, como Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia, seguro de que a manipulação do povo reabsorve a desordem que ele criou e a dissolve na sociedade até sumir sua autoria.
Fonte: O Estado de São Paulo (14/02/18)

Novidade sem raízes (Marco Aurélio Nogueira)

Não se pode ser contra quem anda insuflando o Huck a sair candidato. Não o conheço, não votaria nele, mas respeito os argumentos de quem o patrocina. Não se deveria vetar iniciativas políticas desse tipo, até por uma questão de princípio. Todos devem ter direito de propor nomes e articular candidaturas, lutando por elas se acaso nelas acreditarem de verdade.
Também não hostilizo o rapaz, que deve ter seus méritos. Acho uma bobagem extrema dizer que ele não pode ser candidato porque não passa de um “funcionário da Globo” e representaria os interesses dessa organização. É uma acusação que só comprova os tempos intolerantes e de retórica autoritária em que vivemos. É ridículo, para dizer o mínimo, medir sua estatura política ou intelectual pelo programa de auditório que ele pilota há anos. Parte da esquerda aprecia essa prática, em nome da necessidade de apreender os nexos explosivos entre a economia e a política. Para ela, a posição no mercado remete imediatamente a uma posição na política. É a reiteração do mesmo dogmatismo que despreza a complexa dialética entre economia e política e que, aos trancos e barrancos, tem ajudado a empurrar o marxismo para a margem.
A ideia de que Huck pode ser o “sangue novo” que falta à política tradicional e que, por isso, poderia representar a alternativa de que carece o “centro democrático” está, porém, desprovida de substância política. Novo de que tipo? Pela esquerda, pelo centro, pela direita, por sobre partidos, a partir de “movimentos cívicos”? Coisas novas, em política, não saem do bolso do colete de alguém dotado de visão superior. Nenhum caso foi assim: Collor em 89, Lula em 2002, Macron na França, todos surgiram a partir ou de uma construção complexa, ou foram a expressão de lideranças que de algum modo estavam na política. Não há um novo “puro”. A ideia é abstrata e precisa ser traduzida. Especialmente quando embalada por articulações e desejos afirmados de cima para baixo, sem a devida maturação, sem aquele processamento indispensável para que se acerte o alvo, ou se chegue perto dele com um mínimo de autenticidade, massa crítica e base operacional.
Nada contra a ação dos bastidores. Em boa medida, todos os nomes nascem de conchavos e negociações que rolam em camarins pouco acessíveis. Mas somente vencem aqueles que, dispondo de bons bastidores, demonstram ter resiliência e competitividade para chegar ao coração do povo e dobrar os adversários. É tudo óbvio, mas não custa lembrar.
A fonte propulsora de uma eventual candidatura de Huck parece ser a preguiça dos políticos democráticos de enfrentar a própria crise, de romper com a inoperância que ameaça corroê-los e inviabilizá-los.
Ninguém sabe o que pensa Huck, além da promessa de “renovar a política”. Seus patrocinadores nem sequer se preocupam em agregar qualidade programática ao nome dele, como se achassem que prestígio televisivo e apoio de algumas lideranças são suficientes para fazer um país. Credibilidade não é extensão natural de popularidade. Dizem que sua plataforma será construída no devido tempo e a partir de itens “autoevidentes”, impostos pela necessidade que o país teria de “renovação”. É mais uma desculpa que uma explicação.
Se Huck quer mesmo se colocar a serviço de uma causa — e não há motivos para que se duvide disso –, há muitos lugares disponíveis para tal empreendimento na política. Deveria começar do começo, amassando barro e sujando as mãos. Despejado sobre a sociedade como descoberta “genial” de alguns morubixabas, poderá até vencer, mas não terá raízes em que se apoiar. Precisará ser tão assessorado e tão protegido que não poderá dar passos à frente sem as muletas daqueles que o descobriram e patrocinaram. Seu poder, assim, não lhe pertencerá. Nem a ele, nem ao povo que o eleger.
Patrocinado por um dos polos do drama nacional nosso de cada dia, ainda terá por efeito encrespar o polo adversário, prolongando a polarização de que precisamos nos livrar.
Fonte: O Estado de São Paulo (14/02/18)

Ideias fora de lugar (Demétrio Magnoli)

As ideias já estavam fora de lugar antes da condenação de Lula pelo TRF-4 e sua consequente inelegibilidade. O voto unânime dos três magistrados mudou radicalmente o panorama político-eleitoral. As ideias moveram-se junto com os votos, girando 180 graus — e continuaram fora de lugar. Não era verdade, antes, que as eleições presidenciais necessariamente ficariam reféns da polarização entre populistas de esquerda e de direita. Não é verdade, agora, que o espectro dos populismos simétricos tenha sido conjurado. Agora, como antes, o enigma situa-se em outro lugar: a crise do centro político no Brasil.
Antes da sentença do TRF-4, as sondagens atribuíam a Lula algo em torno de 35% das intenções de voto, enquanto Jair Bolsonaro atingia cerca de 15%. O número relevante, que passava quase imperceptível, era 50% — não a soma dos potenciais eleitores de ambos, mas a metade do eleitorado avesso às duas alternativas populistas. Num cenário em que a massa menos informada dos cidadãos só sabia da existência daquelas duas candidaturas, 50% declaravam rejeitá-los. O espaço para uma candidatura vitoriosa de centro ampliou-se, obviamente, com a virtual destruição da postulação de Lula. Mas o centro não triunfará se persistir na sua crônica incapacidade de formular um discurso político popular.
O outono do lulismo reflete-se na fragmentação do campo do populismo de esquerda. Ciro Gomes (PDT), Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos, presumível candidato pelo PSOL, já disputam seu espólio eleitoral, enquanto o PSB tenta atrair o interesse de Joaquim Barbosa. Tudo indica, porém, que o PT erguerá uma candidatura própria. Nutrido a partir da campanha fantasmagórica de Lula, que promete a restauração de uma mítica “idade de ouro” e exibe-se como vítima da “perseguição das elites”, mister X, o candidato do PT, tem chances apreciáveis de ultrapassar a barreira do primeiro turno. Nessa hipótese, uma imagem holográfica de Lula reunificaria, no segundo turno, o bloco do capitalismo de compadrio, do corporativismo e do paternalismo estatal.
Na ponta oposta (ao menos, aparentemente), o populismo de direita apresenta-se unificado desde o início. Bolsonaro investiu no promissor mercado eleitoral do ódio ao lulismo, mesclando sua alma original ultranacionalista a uma agenda ultraliberal fornecida por seitas ideológicas das catacumbas da internet. O Santo Guerreiro precisa do Dragão da Maldade: a ausência de Lula tende a esvaziar o discurso de Bolsonaro. Contudo, por enquanto, sua candidatura progride, alimentada pela ilusória candidatura de Lula. Dias atrás, num evento patrocinado pelo BTG Pactual, o sombrio deputado foi ovacionado por mais de dois mil investidores, uma reiterada comprovação de que a idiotia política e a habilidade para ganhar dinheiro não são mutuamente excludentes.
Mister X (Lula em holografia ou Ciro Gomes, ou mesmo Boulos) versus Bolsonaro? Mesmo agora, não pode ser descartada a hipótese de um tóxico segundo turno, uma “escolha de Sofia” entre a tradição varguista e a nostalgia da ditadura militar, uma recusa absoluta a encarar os dilemas do presente. Contudo, só seremos arrastados a essa encruzilhada impossível se o centro político concluir sua trajetória de implosão.
O PSDB avançou, de olhos abertos, rumo ao abismo engalfinhando-se durante 15 anos nas estéreis lutas intestinas entre seus caciques, firmando um pacto faustiano com Eduardo Cunha em nome do impeachment e, finalmente, perfilando-se com o Aécio Neves do malote de dinheiro da JBS. Mas o colapso tem raízes mais profundas: desenhou-se lá atrás, quando o partido de FHC não soube formular uma política social alternativa ao programa paternalista de estímulo ao consumo privado conduzido pelo lulismo triunfante. O vazio de ideias da candidatura de Geraldo Alckmin espelha um impasse antigo, que se manifesta agonicamente nas periódicas celebrações tucanas dos aniversários do Plano Real.
“Exemplo de lealdade no ninho: enquanto Alckmin tenta consolidar sua candidatura, FHC busca um Macron para chamar de seu”, disparou um obscuro deputado petista, acertando o alvo. Duvidando do candidato tucano, FHC descreve círculos especulativos ao redor da potencial candidatura de Luciano Huck, qualificando-a como “boa para o Brasil”, capaz de “arejar” o cenário e “botar em perigo a política tradicional”. O Macron da França surgiu no vórtice de uma crise dramática, criou um partido centrista viável e ofereceu à nação um ousado projeto de reformas econômicas, sociais e institucionais. Já o Macron de FHC emerge como fenômeno exclusivamente midiático: uma estrela brilhante na constelação das celebridades.
Macron — como, em circunstâncias nacionais diferentes, o argentino Mauricio Macri e o partido espanhol Cidadãos — evidencia que o centro político é capaz de se reinventar diante do desafio populista. O Macron de FHC é o exato oposto disso: um atestado de falência do nosso centro político.
Fonte: O Globo (12/02/18)

Zygmunt Bauman sustenta que a nostalgia é incurável na modernidade (Dirce Waltrick do Amarante)

Retrotopia, livro póstumo do sociólogo e pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), discute o desejo da volta ao passado – a um passado idealizado, que não é o passado “como ele genuinamente era” –, visto como solução para um mundo melhor, pois, como afirma Rutger Bregman, no livro Utopia para Realistas, citado por Bauman, “não logramos imaginar um mundo melhor do que aquele que alcançamos” e, de fato, as pesquisas têm demonstrado que esta geração vislumbra para a geração posterior uma situação pior do que a sua.
Diante desse cenário sombrio, a nostalgia se torna a “condição moderna incurável” deste século, mas seu perigo está em revivificar desejos nacionais e nacionalistas que se empenham “na fabricação de mitos antimodernos de história, por meio de um retorno a símbolos e mitos nacionais e, ocasionalmente, com teorias intercambiáveis da conspiração”.
A retrotopia é o desejo do passado estável e não de um futuro incerto, ou seja, ela não busca a terra bem-aventurada, a Utopia, quer, isso sim, o retorno a uma terra que já se conhece. Ela é também a negação do progresso, que pressagia a ameaça de perdas e a degradação social. Sem a esperança do progresso, “a herança que nos consola é a tradição”, diz David Lowenthal, citado por Bauman. Não sem razão, atualmente têm ganhado destaque os discursos políticos que defendem a volta aos valores do passado.
Nesse retorno ao túnel do tempo, afirma o sociólogo polonês, ressuscitamos o Leviatã, de Thomas Hobbes, que acreditamos não ter cumprido sua função de “subjugar a crueldade inata dos homens, tornando assim a vida humana entre humanos suportável”. Em seu livro, Bauman cita o historiador Timothy Snyder, o qual sugere, reavaliando a experiência terrível e perniciosa do Holocausto, que se os Estados fossem destruídos e as instituições locais corrompidas, “poucos dentre nós se comportariam bem. Há poucas razões para pensar que somos do ponto de vista ético superiores aos europeus dos anos 1930 e 1940 ou menos vulneráveis ao tipo de ideia que Hitler tão auspiciosamente promulgou e pôs em prática”.
Hoje, não temos um Leviatã “todo-poderoso”, mas pequenos Leviatãs, “numerosos até demais”, que fracassam no desempenho de suas tarefas e que não conquistam a confiança das pessoas, as quais respondem a essa impotência do Estado com atos de “autodestruição” ou, sem perspectiva e sem dignidade, atacam outras aleatoriamente, afirma Bauman. Basta pensarmos nos ataques terroristas, que não escolhem vítimas: qualquer um em qualquer hora e lugar pode ser alvo de “explosões vingativas de ódio”.
Enquanto aguardamos um Leviatã eficiente e os Estados se tornam cada vez mais “vizinhanças amplas”, resultantes do processo de globalização, a aspiração por uma sociedade tribal ganha força. Diz o filósofo político norte-americano Michael Walzer, com quem Bauman dialoga, que se os Estados se tornarem “grandes vizinhanças, é provável que as vizinhanças se tornem pequenos Estados. Seus membros irão se organizar para defender as políticas e a cultura locais contra estranhos”. Essas tribos se valerão de suas diferenças para defender uma suposta superioridade sobre outras tribos e assim farão ressurgir a fronteira entre “nós” e “eles”.
Outra questão que Bauman traz à tona em seu livro, que o torna muito atual, é a da desigualdade que ressurge impelida pelo conceito em voga de “privação relativa”, o qual não advém da comparação com normas sociais absolutas e universais, mas de um paralelo com as condições existentes em determinados locais e circunstâncias. Desse modo, ricos podem viver em condição de “privação relativa” em relação à sua classe social. Ao mesmo tempo, pode-se considerar normal a situação de pobreza de um indivíduo que vive em determinada região do mundo menos próspera.
Por fim, Bauman analisa o desejo que se tem de voltar ao útero, de voltar a si próprio. Com telefones celulares, tablets, laptops etc., já vivemos isolados, separados e em desconexão física com outros à nossa volta. Voltar ao útero seria buscar a “autossatisfação” sem depender do outro; o útero seria uma espécie de Cocanha, local mítico em que não é preciso trabalhar e onde se tem tudo em abundância.
Ainda que, como lembra Bauman, seja uma contradição o ser humano sem a companhia humana, o útero, esse “lugar solitário – mas também um lugar seguro, não questionado e não estorvado –, sem competidores rivalizando para diminuir a estatura do seu único residente ou roubar seu bônus e privilégios”, é o ideal contemporâneo.
A tese de Walter Benjamin de que “o rosto do anjo da história está voltado para o passado” e “a tempestade é o que nós chamamos de progresso”, com a qual dialoga Zygmunt Bauman, parece efetivamente anunciar a noção de retrotopia.
(*) Dirce Waltrick do Amarante traduziu e organizou, entre outros, 'Finnegans Wake (Por um Fio)', de James Joyce (ed. Iluminuras)
Fonte: Especial para o Estado/Aliás (12/02/18)

Golias contra Davi, em breve no Planalto Central (Bolívar Lamounier)

“Prova”, no plano da técnica jurídica, é um conceito complexo, daí o extremo cuidado com que todo juiz tem o dever de se conduzir na apreciação das informações que lhe chegam às mãos. Mas é algo perfeitamente compreensível a partir da razão comum que Deus, em sua infinita bondade, repartiu igualmente entre os homens, dela excluindo só os de má vontade e os mentalmente prejudicados. Realmente, só um rematado idiota ou alguém movido por interesse contestará que a história montada pela defesa de Lula acerca do sítio em Atibaia é uma farsa sem tamanho. Quem contasse algo parecido para tentar iludir um cidadão comum – alguém que não tenha ocupado altos cargos políticos ou não possa arcar com os obscenos honorários cobrados por advogados de renome – deveria ser imediatamente levado à delegacia de polícia mais próxima.
A reflexão acima veio-me à mente, como é óbvio, a propósito do inquérito do sítio em Atibaia, cuja propriedade Lula contesta, e da entrada do ex-ministro José Paulo Sepúlveda Pertence na equipe de advogados que defende o ex-presidente.
Tive o privilégio de conviver com o dr. Sepúlveda Pertence nos anos 1985-86, como colega dele na Comissão Afonso Arinos, nomeada pelo presidente José Sarney a fim de elaborar um anteprojeto de Constituição. Vezes sem conta me deslumbrei com a clareza de seu intelecto e a solidez de seus conhecimentos jurídicos. Não menos importante, admirava o rigor de suas convicções republicanas. Discordávamos no tocante ao sistema de governo – ele, presidencialista, eu, parlamentarista –, mas confortava-me sentir que daí não advinha diferença alguma em nossa devoção à democracia representativa.
Faz tempo que não o encontro, mas tenho, infelizmente, a impressão de que nos distanciamos um pouco no entendimento de nossos antigos ideais e valores. Apresso-me a esclarecer que essa afirmação não decorre diretamente de ele ter aceitado integrar a defesa de Lula. Todo acusado tem direito a defesa; argumentando por hipótese, digo que eu mesmo, se fosse advogado, torceria o nariz, mas aceitaria defender o ex-presidente. Tampouco me refiro aos altos honorários que vai receber, a julgar pelo que a imprensa veiculou durante a semana, cujos reais valores não conheço e não tenho interesse em conhecer.
O que me causa estranheza no caso é a natureza da relação que aparentemente se pretende estabelecer entre a acusação e a defesa – ou, para dizê-lo sem rodeios, entre o juiz Sergio Moro e o ministro Sepúlveda Pertence. A relação que começa a se configurar me parece bem distinta da clássica lide forense, na qual as partes até certo ponto se equivalem. Não é simplesmente o fato de que uma estará do lado de cá e a outra do lado de lá, com recursos e prerrogativas semelhantes, salvo, é claro, por uma eventual diferença de qualificação intelectual. Até onde me é dado compreendê-la, o que se tem dito, e me parece plausível, é, em primeiro lugar, o que geralmente se designa como “tráfico de influência”.
Um gigante das letras jurídicas brasileiras, ex-ministro do próprio STF, é contratado para exercer uma influência difusa sobre os integrantes do Egrégio Colegiado, levando um ou outro a mudar sua linha de raciocínio – no limite, até sua convicção – no tocante à prisão após a decisão em segunda instância. Influência decorrente, portanto, de uma posição de elevado status no nível mais elevado da comunidade de magistrados. Há crime nisso? Creio que não, mas, não tendo tido oportunidade de me louvar em matéria jurídica, abstenho-me de perseguir essa linha e volto ao que me parece palpável: o recurso ao status e a singularidade da questão que ora nos ocupa no presente contexto brasileiro.
Pertence, como antecipei, estará “do lado de cá: na defesa”. Do lado de lá, encarnando a prerrogativa acusatória inerente ao Estado, estará Sergio Moro, um juiz federal de primeira instância.
A questão crucial que o STF vai examinar é se Lula deverá ou não ser preso imediatamente. Já condenado em segunda instância, tal exame recairá somente sobre questões técnicas de Direito, não sobre o mérito, já decidido.
Visto por esse ângulo, o recurso de última hora ao status – quero dizer, a clara intenção de contrastar um deus do Olimpo aos dei minori do STF e mais ainda ao pobre diabo de Curitiba que exarou a primeira sentença – parece-me indisfarçavelmente antiética. Mas, como não poderia deixar de ser, admito que estou a exprimir uma opinião, um juízo de valor, uma expressão do que a meu ver deveria ser a ética advocatícia. Afirmo, não obstante, que minha inquirição ética vai muito além da aceitação da tarefa pelo douto ex-ministro Pertence. No cerne dessa celeuma há uma questão relevante para todo o ordenamento jurídico do País e para os valores que pelo menos em tese regem nossa ordem política: a da busca da igualdade republicana.
Não admitir a prisão em segunda instância equivale a deixar livres os criminosos que possam arcar com altos honorários advocatícios e facilitar a prescrição de seus crimes, apontando aos destituídos da terra a imediata reclusão numa das fétidas masmorras mantidas pelo Estado brasileiro. Isso é República? É igualdade de tratamento? De forma alguma. É outorgar a Lula um tratamento diferenciado, mais que isso, o status de monarca absoluto, acima de qualquer norma jurídica ou costumeira, no país que se quer republicano.
Esse aí, em português corrente, o triste papel que José Paulo Sepúlveda Pertence acaba de assinar. Comparado a Moro, homem de estatura média, ele parece um Golias de três metros. O futuro, como sabemos, a Deus pertence. Em algumas semanas saberemos se Moro será morto e lançado aos cães, como queria Golias, ou se o gigante cairá fulminado pela certeira funda de Davi.
Fonte: O Estado de São Paulo (10/02/18)