Eles partem. Vão embora confirmando a sensação de que a vida é uma coleção de perdas. Está certo que permanecem, pois deixam seus livros, portanto estaremos com eles até o dia em que também iremos. Mas gostamos deles nesta vida. Dos encontros, conversas, telefonemas, e-mails, viagens, jantares, visitas, feiras de livros, com suas graças e manias, ambições e sonhos, sucessos e fracassos, amores e desilusões, brigas e dissensões.
Escritores de minha geração, ou mais velhos, ou mais novos, todos próximos, a quem nos ligamos pela amizade e pelos livros. Partem. Um dia chega a notícia do carro de Osvaldo França Júnior despencando num despenhadeiro nas estradas de Minas. Outro foi João Antonio, tendo seu corpo descoberto em decomposição, morto há muitos dias em total isolamento. Vivia sozinho, nunca vi solidão maior. Hilda Hilst morreu aos poucos em sua chácara de Campinas, onde seguia ansiosa o relógio esperando chegar a hora em que o médico a tinha autorizado a beber um copo e sonhando com seus livros sendo vendidos, bem vendidos. Roberto Drummond estava tão apavorado com o coração que se recusava a ir ao cardiologista. Morreu na véspera do jogo do Brasil com a Inglaterra. Juarez Barroso, cearense, que esteve ao meu lado na famosa noite de 1975 no Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro, quando se enfrentou a censura militar, partiu muito novo, devido a um aneurisma. Wander Pirolli, um dos mais modernos autores infantis, revolucionário com seu O Menino e o Pinto do Menino, teve um ataque cardíaco. Dorian Jorge Freire, rio-grandense do norte, de poucos livros e muitas crônicas, sujeito importante em minha vida, ao me orientar no jornalismo, nos últimos momentos, lá em Mossoró, escreveu seus textos com um único dedo, o indicador, o resto paralisado. O mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, fantástico, isolado em Corumbá, nunca teve a glória alta que merecia, melhor, muito melhor que dezenas de autores midiáticos. Também se foram Josué Guimarães, Ganymedes José, Torquato Neto, Maura Lopes Cançado, Osman Lins, Mora Fuentes, Julieta Godoy Ladeira, Marcos Rey, Fausto Wolf, Carlinhos de Oliveira, Elias José, Caio Fernando Abreu, Roberto Piva, Massao Ono. Sem esquecer Ricardo Ramos, dos melhores companheiro de viagens, cheio de humor, um aglutinador cuja obra precisa ser recuperada, contista que honrava o pai, Graciliano. E Ray-Gude Mertin, tradutora e agente, doce figura, brava mulher.
Saíram, muitos nem tiveram tempo de dizer adeus, até já, até breve. Então, chegou a vez de Moacyr Scliar, o gaúcho. Poucas vezes vi a morte de um escritor repercutir tanto, tão intensamente. Já se passaram duas semanas e continuo a ler na imprensa de todo o Brasil artigos dizendo adeus. Raras vezes vi um carinho e uma tristeza tão grandes em relação a um autor, num meio em que há (veladamente) exclusões, ciúme, alguma inveja, fofocas. Parece loucura, mas nunca vi ninguém alfinetar Moacyr. E olhem que foi autor sempre elogiado pela crítica, membro da ABL, para a qual foi eleito por unanimidade, viajando mundo, traduzido, vendido, dominando auditórios, um médico culto e informado. Meu Deus, que prato!
Moacyr não bebia; um espanto. Nada, de nada. Por não gostar conseguia escrever, limpo, clean, como se diz nos filmes americanos. Não que nós todos somos borrachos, longe disso! Moacyr escreveu, porque tinha o que escrever, sempre foi cheio de histórias, trouxe para a sua literatura os temas e o humor judaicos, recolhia o País em torno dele, em alguns momentos aproximou-se de Jorge Luis Borges. Foi cronista de jornal, da revista Seleções, redigia ensaios, escrevia livros, viajava. Há quem diga que ele não dormia. Judith, sua mulher de toda uma vida, ri, nega, conta que ele escrevia o tempo inteiro, até no avião. Homem disciplinado, controlava o tempo. Foi o que Judith revelou a Guiomar de Grammont, organizadora do Fórum das Letras de Ouro Preto, que escreveu neste jornal, domingo passado, belíssima crônica, dizendo o que todos gostaríamos de ter dito. Emocionante memorabilia. Ali está o jeito simples de Scliar, sua não afetação, o homem tranquilo, preocupado com os outros, sua maneira gaúcha de falar, o tu sempre presente, seus encontros com leitores, estudantes e iniciantes.
O homem que nunca contava sobre o que estava escrevendo. A não ser talvez para os íntimos. Não me lembro de ter lido notícias sobre no que estava trabalhando. Quando a notícia chegava, ele já tinha terminado. Era dos poucos escritores brasileiros que lia livros de outros companheiros, sabia o que estava se passando, citava nomes em entrevistas (coisa rara). Participei dos entrevistadores do Roda Viva da TV Cultura, ano passado, quando ele estava no centro da conversa. Depois nos encontramos no Palácio do Governo, quando recebemos a Comenda da Ordem do Ipiranga. Não podia saber que estávamos nos despedindo. No coquetel, quando levantei a taça de Prosecco e ele ergueu o copo de suco, brindamos pela última vez na vida.
Quando fui a Porto Alegre no dia 20 de janeiro, ele já estava na UTI e tinha sofrido uma cirurgia seguida de um AVC. Estava sedado, assim permaneceu. Num sábado, final do dia, falei com Judith e ela se abriu, dolorida: "Moacyr deve partir entre agora e amanhã". Na madrugada, Scliar se foi. Fará falta!
Fonte: Estadão
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