segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A Tunísia, o Egito e nós (Luiz Werneck Vianna)

Fora de disputa que os regimes políticos fechados consistem no terreno mais fecundo para a emergência das revoluções, que lhes chegam como catástrofes naturais e com a fúria de elementos irresistíveis contra os quais nada pode a força humana, salvo, na melhor das hipóteses, tentar conduzi-los para a mesma direção dos processos que elas desencadeiam. Revoluções não se fabricam, e são, para lembrar velhas lições, mais próprias dos principados do que das repúblicas, como, mais uma vez, testemunham os regimes autocráticos do norte da África e do Oriente Médio, que, por terem desconhecido canais institucionais de expressão dos seus conflitos, não foram capazes de sentir os sucessivos pequenos abalos que anunciavam as grandes convulsões que ora os abalam.

Seu estopim pode ser um incidente ingênuo e não desejado, tal como no caso da revolução russa de 1905, evento dramático que se iniciou a partir de uma manifestação pacífica, liderada pelo padre Gregori Gapone, um clérigo convicto da magnanimidade do czar Nicolau II, que tentava fazer chegar a ele um documento com algumas reivindicações, evento que culminou com o fuzilamento pela guarda imperial de centenas de manifestantes. Ou, como agora, na Tunísia, desencadeada a partir de uma corriqueira ação repressiva contra pequenos negociantes do comércio informal, que levou um deles, o jovem Mohamed Bouazizi, a se imolar em praça pública, levando a um levante indignado da população contra seu governo, cujo impulso irradiou-se pela costa africana do Mediterrâneo e pelo Oriente Médio, cujas repercussões para os destinos da região e da ordem mundial são imprevisíveis.

A longevidade da maior parte dos regimes, agora por terra ou sitiados por esses levantes populares, concedia-lhes a aparência de estabilidade, daí a surpresa da opinião pública mundial e, pelo que se ora constata, de uma boa parte das chancelarias ocidentais, com os acontecimentos. Surpresa que já se traduz no temor de que, à falta de políticas adequadas, toda uma região em posição estratégica na geopolítica do mundo possa se converter em um bastião do fundamentalismo islâmico.

Os estadistas do Ocidente, entregues à inércia intelectual e com seus interesses confortavelmente instalados e protegidos por regimes anacrônicos, somente agora, depois de muito leite derramado, se dão conta dos equívocos de suas avaliações sobre o efetivo estado de coisas da região. A forma da sublevação popular, a sua escala e seu tempo de duração, é a melhor indicação de que, embora nessas sociedades inexistisse uma esfera pública diferenciada do poder político, germinava a formação de uma esfera pública informal e subterrânea, contestatória dos seus regimes e dotada da capacidade de estabelecer um sistema eficiente de comunicação entre seus participantes. É aí, nessa esfera pública submersa, constituída, em boa parte, por setores das classes médias sem lugar no mercado de trabalho e no sistema político formal, que devem ser buscadas as origens da atual movimentação.

Constatou-se, igualmente, que em meio a sociedades a que faltavam partidos e sindicatos fortes, com a maioria da população subsistindo na informalidade, caracteristicamente retardatárias do ponto de vista econômico, não só os meios usados para os fins de concertar ações comuns têm vindo de recursos modernos da internet, como suas bandeiras e propósitos são igualmente modernos, em particular nas suas demandas por liberdades civis e públicas. Contudo, apesar dos inúmeros sinais animadores emitidos em favor da democracia política e da democratização social, rondam aí ameaças sombrias para uma nova escalada do fundamentalismo religioso.

Essas ameaças afetam a todos, e não deve haver neutralidade em relação a elas, pois, ali no Oriente, a democracia, como sistema de governo e como caminho estratégico de mudança social, joga uma cartada decisiva no tabuleiro do mundo. Exorcizá-las implica participar do movimento da opinião pública internacional, reclamando uma posição ativa dos governantes, pressionando-os no sentido de que mobilizem seus recursos institucionais em favor de uma alternativa democrática que livre aquela imensa e complexa região dos abismos da guerra civil e dos demônios que ela pode liberar. Trata-se da defesa da democracia, sistema de vida e de organização política a que aderimos quando derrotamos o regime autocrático nos idos dos anos 1980, ainda a carecer de não pouco aperfeiçoamento.

Ao contrário do que muitos alegam, nem tudo está por fazer nesses países, que contam com uma rica tradição política em suas histórias de luta contra o colonialismo e em favor da democratização social e da modernização econômica, do que é exemplo a doutrina do pan-arabismo, formulada sob o governo de Gamal Abdel Nasser nos anos 1950, combinando um nacionalismo-desenvolvimentista avant la lettre com a tópica do socialismo, então influente na região. A política de não-alinhamento com as potências polares da Guerra Fria - União Soviética e Estados Unidos - adotada por Nasser ganhou mundo. No seu curto governo, o presidente Jânio Quadros flertou abertamente com ela.

Aquele foi um tempo de forte mobilização, conduzida por forças e ideais seculares, como as da corporação militar e as dos partidos de esquerda, que, nessas novas circunstâncias, conta com a oportunidade de ressurgir a partir de baixo, inclusive, tal como ocorreu na democratização brasileira, também animada por valores das religiões. Aqui, de tão longe, as melhores expectativas se depositam no reconhecimento de que há, naquele teatro de operações onde transcorre um drama, além de local, de alcance universal, uma sociedade civil que, longe de gelatinosa, já tem uma história que ora amadurece velozmente com a sua vigorosa participação nas lutas pelas liberdades e pela democracia.

Ela que se demonstrou capaz de conformar uma esfera pública submersa, será capaz de animar, ou até mesmo promover, a institucionalização de uma esfera pública democrática? Se isso ocorrer, mais um ponto para a teoria que admite as vantagens do atraso na passagem para o moderno.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-RJ. Escreve às segundas-feiras

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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