Ontem eu escrevi que o Congresso Nacional precisa ponderar bem a situação antes de se engajar num debate penoso e prolongado em torno de um projeto de reforma política. Não que eu seja contra a reforma em si, não é isso. Minha preocupação é vê-lo exposto a novos desgastes, incapaz de sensibilizar a opinião pública e patinando em cima de alguma proposta inviável ou irrelevante.
Uma reforma que somente tenha a ver com questões internas dos partidos ou com aspectos operacionais que ninguém compreende, seria com certeza um tiro no pé.
No que se refere ao Legislativo, o que preocupa atualmente os cidadãos é o grau de desmoralização a que ele chegou após uma interminável sucessão de escândalos.
Aí já se entrevê um sério risco. Milhões de eleitores anseiam por uma faxina. Querem ver o Congresso encarando a sério uma forma qualquer de purgação, cortando em sua própria carne até se livrar por completo de seus males atuais e futuros. Exorcizando, desde logo, a corrupção, mas quem sabe achando também um jeito de melhorar a qualificação intelectual média dos deputados e senadores, reduzindo a níveis suportáveis as futricas que soem ocorrer entre os partidos e dentro de cada um deles, e de quebra tornando-os mais coesos, ideológicos etc.
It’s a tall bill, como os americanos gostam de dizer. Estão cobrando de uma eventual reforma algo que reforma alguma pode assegurar.
No post de ontem eu mencionei por alto que há duas idéias fermentando no espírito dos congressistas: o voto em lista fechada e o voto distrital. Terão elas o condão de sensibilizar os eleitores? A primeira eu creio que não, a segunda, parece-me que sim.
Mas entendamo-nos primeiro quanto aos conceitos. Lista “fechada” versus lista “aberta” é uma alternativa referente à composição do rol de candidatos a deputado. São Paulo, por exemplo, tem 70 vagas na Câmara Federal. Cada partido (ou coligação) normalmente apresenta aos eleitores uma lista com 105 candidatos (um e meio por vaga). A lista é aberta; isto significa que os nomes são apenas listados em ordem alfabética, sem qualquer hierarquização; se o partido “A” obtém, digamos, 20 cadeiras, entram os 20 mais votados.
Na lista fechada – utilizada na maioria dos países da Europa -, a convenção partidária ordena os candidatos segundo sua ordem de preferência. Se o partido “A” obteve 20 vagas, entram os 20 que o partido indicou como preferenciais.
As implicações do emprego de um método ou do outro são fáceis de perceber. Com a lista aberta, têm mais chances de eleição os candidatos que dispõem de mais recursos, certos tipos de celebridade, ou aqueles que se beneficiam de uma forte implantação em determinadas regiões (os chamados “currais eleitorais”).
Com a lista fechada, as direções partidárias têm mais condições de intervir para o lado do “bem”, balanceando melhor a lista ou facilitando a eleição de algum candidato carente de votos, mas altamente meritório ; mas nada as impede de intervir para o “mal”, agindo como oligarquias ou como facções truculentas e excluindo “indesejáveis”.
As expressões “voto distrital” e “voto proporcional” dizem respeito ao que tecnicamente se designa como sistema eleitoral: o conjunto de regras por meio do qual os votos dos cidadãos são convertidos em determinada distribuição das cadeiras no Congresso entre os partidos políticos. São, porém, expressões leigas, imprecisas, que não raro distorcem os termos do debate.
Especialmente imprecisa é a contraposição que se estabelece entre “distrito” e “proporção”. Sistemas eleitorais não são distritais ou proporcionais; são majoritários ou proporcionais.
Majoritários, como o termo indica, quando a regra de decisão é a maioria. Nossa eleição presidencial, por exemplo, segue a regra da maioria: o candidato com a maioria de votos se elege, os outros perdem. Os votos dados ao candidato vencedor são, digamos assim, “aproveitados”; os dados aos perdedores são esterilizados -ou seja, não produzem nenhum efeito.
Nos sistemas proporcionais, a regra é evidentemente a proporção. Em nossas eleições para a Câmara Federal, por exemplo, as 513 cadeiras são divididas entre os diferentes partidos em parcelas tão próximas quanto possível das proporções (percentuais) do total de votos populares que eles tenham recebido nas urnas. Obviamente algum partido A terá muito mais votos que um partido B, mas os votos dados a B produzem um efeito – vale dizer, geram alguma representação. Não são esterilizados.
Dessa distinção fundamental decorrem, por um lado, uma controvérsia filosófica meio sem saída, por outro, dezenas de modelos técnicos concebidos para amenizar efeitos negativos inevitáveis em ambas as citadas concepções.
Do ponto de vista filosófico, qual dos dois princípios é mais democrático, o majoritário ou o proporcional? Democracia significa captar tanto quanto possível as preferências e correntes de opinião existentes na sociedade, por menores que sejam, ou induzi-las a se juntar em grupos maiores, potencialmente majoritários?
Ao representar politicamente os cidadãos, há mais justiça em acentuar o que os diferencia e separa, ou o que os une e assemelha?
Também podemos indagar, num plano menos abstrato, se são mais democráticos os países que elegem seus representantes (pensemos nos deputados federais) com base num método ou no outro.
Os Estados Unidos empregam o método majoritário. Cada estado é dividido em circunscrições uninominais – distritos de um só representante; em cada distrito, elege-se o candidato que obtém a maioria dos votos. O outro (porque raramente há um terceiro) está fora: não tem direito a um “pedaço” proporcional da vaga.
O Brasil utiliza o método proporcional. Deixando de lado o nível econômico e quaisquer considerações sociais, culturais etc, faz sentido dizer que um dos dois, nós ou eles, é mais democrático? Ou, mais amplamente, Estados Unidos e Inglaterra, majoritários, são menos ou mais democráticos que Alemanha ou Itália, proporcionais ?
Neste nível de generalidade, eu não vejo como essa controvérsia possa ter um fim.
No post de amanhã, pretendo entrar em aspectos mais específicos desta discussão e em vantagens que o “voto distrital” poderia a meu juízo trazer para a política brasileira.
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