Ainda não passados dois meses do seu governo, a presidente Dilma já navega em mares novos para os quais têm pouca serventia as rotas singradas por seu antecessor, por mais fiel que pretenda ser a ele. As grandes transformações que ora convulsionam o Magreb, se aprofundam no Egito e se irradiam pelo Oriente Médio, são a marca visível de uma mudança de época, apartando de modo irreparável o mundo tal como o conhecemos até então desse novo continente do qual nos aproximamos entre brumas, mas com fundadas esperanças. A democracia como valor universal, planta exótica de guetos de esquerda ocidentais, expressão de uma política de mudanças sociais contínuas, começa a encontrar, agora, no solo do Oriente, antes um santuário da tradição, terreno fértil para seu florescimento.
Nasce ali uma revolução da sociedade civil, em que a presença ativa da multidão, constituída por uma imensa rede subterrânea de organizações, em parte articulada via internet, intervém diretamente na luta por um estado democrático de direito, aí claramente compreendidos os direitos sociais. A força dos acontecimentos, que se sucedem em escala progressiva, sempre afirmando rumos democráticos, não permite, principalmente aos observadores estrangeiros a eles, previsões confiáveis sobre o seu desfecho. Contudo, a obra já feita, salvo para os militantes de um pessimismo mal intencionado, consiste em um indicativo de que a conclusão do processo em curso não deve se desviar do seu impulso original.
Foi a primeira queda de braços petista com o sindicalismo
Para a América Latina, e o Brasil em particular, o alcance dessas mudanças no cenário internacional não é de pouca monta. A Carta de 88, mais uma vez, se demonstra estar à altura dos desafios do nosso tempo, e, com ela e suas instituições, o país, igualmente situado na periferia do Ocidente desenvolvido, se encontra altamente credenciado para ampliar sua presença nas democracias que venham a emergir, como se espera, naquela região.
De outra parte, as lições que nos vêm do Oriente põem em evidência a natureza anacrônica das tendências, persistentes entre nós, de confiar ao Estado e às suas burocracias, à margem da sociedade civil e de suas organizações, o papel de condutores da modernização.
De que o mar por onde transita o governo Dilma não estava no mapa do governo anterior, mais uma prova está na atual controvérsia sobre o salário mínimo, e que levou um governo do PT, pela primeira vez em oito anos, a uma queda de braços com o sindicalismo. Nessa disputa, a derrota do sindicalismo não foi de natureza econômica - afinal, estavam em jogo apenas trinta moedinhas de 50 centavos, como alardeava um parlamentar de origem sindical -, mas política: o sindicalismo foi posto no seu lugar, fora do Estado, devolvido à cena mercantil. Restou-lhe, talvez por pouco tempo, uma posição combalida no Ministério do Trabalho. A racionalização da administração e da economia, para onde aponta a bússola de Dilma, não conhecerá, ao contrário do governo Lula, adversários internos.
Sem os sindicatos, uma das importantes peças de sustentação do modelo Lula de governar, suas demandas e os eventuais conflitos nelas envolvidos escapam, como se constatou, do interior do Estado para ganharem "as ruas e o parlamento", como anota um sindicalista. A esse movimento, provavelmente, devem se seguir outros, sobretudo os que gravitam em torno da questão agrária, como anunciam as controvérsias sobre o novo Código Florestal, ora tramitando no parlamento, que certamente não encontrarão uma solução consensual, provavelmente destinados a procurar o mesmo caminho.
Sob o governo Dilma, começa a ser aliviada, em nome da racionalização e da gestão eficiente, a carga pesada de conflitos com que Lula sobrecarregou seu governo e sua forma de Estado, tornada viável por sua política de contemplar a todos, mediante sua direta arbitragem pessoal. Assim, querendo ou não, Dilma é levada a abandonar a forma de Estado barroca, em uma regressão à era Vargas, que Lula adotou em seu segundo mandato, vindo a imprimir nele os traços simplificados de um Estado burguês moderno.
O sindicalismo desprendido do centro de decisões do Estado terá que aprender a fazer um caminho de volta, em que seu crescimento dependa da sua capacidade de acumular forças próprias em suas bases sociais e na sociedade civil. A política econômica está dito, e sacramentado por votação amplamente majoritária na Câmara Federal, não lhes diz respeito na qualidade de interlocutor institucional, como Lula insinuava que fossem. Ela deve obedecer, no governo Dilma-Palocci, à lógica sistêmica, e embora o Estado deva seguir no papel de dirigente quanto aos rumos da economia, tudo indica que estão contados os dias de capitalismo orientado.
Compelida a se ajustar ao mundo, diante de novas circunstâncias externas e internas, a ordem burguesa brasileira, lenta, mas progressivamente, ainda que lhe falte um projeto para tal, começa a cortar vínculos com seu passado e com o imaginário, centrado na estadofilia, expressão do cientista político José Murilo de Carvalho, que nele predominou. Em particular nas novas sendas que se abrem para uma maior projeção da sua sociedade civil, inclusive a que ora germina nos seus setores subalternos, do que pode ser um exemplo, entre tantos, os processos que se sucedem após a emancipação das favelas cariocas dos laços que a subordinavam à cultura da violência do crime organizado e aos setores do aparelho policial a ele associados. Se esta não é uma boa hora para os partidos, qual será?
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.
FONTE: VALOR ECONÔMICO (21/02/11)
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